quarta-feira, 17 de abril de 2013

Machado de Assis (Dom Casmurro) Parte 6

CAPÍTULO XIXI / O PENTEADO

E Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelhando. Peguei-lhe dos cabelos, colhi-os todos e entrei a alisá-los com o pente, desde a testa até as últimas pontas, que lhe desciam à cintura. Em pé não dava jeito: não esquecestes que ela era um nadinha mais alta que eu, mas ainda que fosse da mesma altura. Pedi-lhe que se sentasse.

--Senta aqui, é melhor.

Sentou-se. "Vamos ver o grande cabeleireiro", disse-me rindo. Continuei a alisar os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porções iguais, para compor as duas tranças. Não as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os cabeleireiros de ofício, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tacto aqueles fios grossos, que eram parte dela. O trabalho era atrapalhado, às vezes por desazo, outras de propósito para desfazer o feito e refazê-lo. Os dedos roçavam na nuca da pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam acabando, por mais que eu os quisesse intermináveis. Não pedi ao céu que eles fossem tão longos como os da Aurora, porque não conhecia ainda esta divindade que os velhos poetas me apresentaram depois; mas, desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes. Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa... Uma ninfa! Todo eu estou mitológico. Ainda há pouco, falando dos seus olhos de ressaca, cheguei a escrever Tétis; risquei Tétis, risquemos ninfa, digamos somente uma criatura amada, palavra que envolve todas as potências cristãs e pagãs. Enfim acabei as duas tranças. Onde estava a fita para atar-lhes as pontas Em cima da mesa, um triste pedaço de fita enxovalhada. Juntei as pontas das tranças, uni-as por um laço, retoquei a obra, alargando aqui, achatando ali, até que exclamei:

--Pronto!

--Estará bom?

--Veja no espelho.

Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Não vos esqueçais que estava sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabeça, a tal ponto que me foi preciso acudir com as mãos e ampará-la; o espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me depois sobre ela rosto a rosto, mas trocados, os olhos de uma na linha da boca do outro. Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão a moveu.

--Levanta, Capitu!

Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e...

Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida, eu recuei até à parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me clarearam vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua. Preso. atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas... Não mofes dos meus quinze anos, leitor precoce. Com dezessete, Des Grieux (e mais era Des Grieux) não pensava ainda na diferença dos sexos.

CAPÍTULO XXXIV / SOU HOMEM!

Ouvimos passos no corredor; era D. Fortunata. Capitu compôs-se depressa, tão depressa que, quando a mãe apontou à porta, ela abanava a cabeça e ria. Nenhum laivo amarelo, nenhuma contração de acanhamento, um riso espontâneo e claro, que ela explicou por estas palavras alegres:

--Mamãe, olhe como este senhor cabeleireiro me penteou; pediu-me para acabar o penteado, e fez isto. Veja que tranças!

--Que tem? acudiu a mãe, transbordando de benevolência . Está muito bem, ninguém dirá que é de pessoa que não sabe pentear.

--O que, mamãe? Isto? redargüiu Capitu, desfazendo as tranças. Ora, mamãe!

E com um enfadamento gracioso e voluntário que às vezes tinha, pegou do pente e alisou os cabelos para renovar o penteado. D. Fortunata chamou-lhe tonta, e disse-me que não fizesse caso, não era nada, maluquices da filha. Olhava com ternura para mim e para ela. Depois, parece-me que desconfiou. Vendo-me calado, enfiado, cosido à parede, achou talvez que houvera entre nós algo mais que penteado, e sorriu por dissimulação...

Como eu quisesse falar também para disfarçar o meu estado, chamei algumas palavras cá de dentro, e elas acudiram de pronto, mas de atropelo, e encheram-me a boca sem poder sair nenhuma. O beijo de Capitu fechava-me os lábios. Uma exclamação, um simples artigo, por mais que investissem com força, não logravam romper de dentro. E todas as palavras recolheram-se ao coração, murmurando: "Eis aqui um que não fará grande carreira no mundo, por menos que as emoções o dominem..."

Assim, apanhados pela mãe, éramos dous e contrários, ela encobrindo com a palavra o que eu publicava pelo silêncio. D. Fortunata tirou-me daquela hesitação, dizendo que minha mãe me mandara chamar para a lição de latim; o Padre Cabral estava à minha espera. Era uma saída; despedi-me e enfiei pelo corredor. Andando, ouvi que a mãe censurava as maneira da filha, mas a filha não dizia nada.

Corri ao meu quarto, peguei dos livros, mas não passei à sala da lição; sentei-me na cama, recordando o penteado e o resto. Tinha estremeções, tinha uns esquecimentos em que perdia a consciência de mim e das cousas que me rodeavam, para viver não sei onde nem como. E tornava a mim, e via a cama, as paredes, os livros, o chão, ouvia algum som de fora, vago, próximo ou remoto, e logo perdia tudo para sentir somente os beiços de Capitu Sentia-os estirados, embaixo dos meus, igualmente esticados para os dela, e unindo-se uns aos outros. De repente, sem querer, sem pensar, saiu-me da boca esta palavra de orgulho:

--Sou homem!

Supus que me tivessem ouvido, porque a palavra saiu em voz alta, e corri à porta da alcova. Não havia ninguém fora. Voltei para dentro, e, baixinho, repeti que era homem. Ainda agora tenho o eco aos meus ouvidos. O gosto que isto me deu foi enorme. Colombo não o teve maior, descobrindo a América, e perdoai a banalidade em favo; do cabimento- com efeito, há em cada adolescente um mundo encoberto, um almirante e um sol de outubro. Fiz outros achados mais tarde; nenhum me deslumbrou tanto. A denúncia de José Dias alvoroçara-me, a lição do velho coqueiro também, a vista dos nossos nomes aberto por ela no muro do quintal deu-me grande abalo, como vistes; nada disso valeu a sensação do beijo. Podiam ser mentira ou ilusão. Sendo verdade, eram os ossos da verdade, não eram a carne e o sangue dela. As próprias mãos tocadas, apertadas, como que fundidas, não podiam dizer tudo.

--Sou homem!

Quando repeti isto, pela terceira vez, pensei no seminário, mas como se pensa em perigo que passou, um mal abortado, um pesadelo extinto; todos os meus nervos me disseram que homens não são padres. O sangue era da mesma opinião. Outra vez senti os beiços de Capitu. Talvez abuso um pouco das reminiscências osculares, mas a saudade é isto mesmo; é o passar e repassar das memórias antigas Ora, de todas as daquele tempo creio que a mais doce é esta, a mais nova, a mais compreensiva, a que inteiramente me revelou a mim mesmo. Outras tenho, vastas e numerosas, doces também, de vária espécie, muitas intelectuais, igualmente intensas. Grande homem que fosse, a recordação era menor que esta.

CAPÍTULO XXXV / O PROTONOTÁRIO APOSTÓLICO

Enfim, peguei dos livros e corri à lição. Não corri precisamente; a meio caminho parei, advertindo que devia ser muito tarde, e podiam ler-me no semblante alguma cousa. Tive idéia de mentir, alegar uma vertigem que me houvesse deitado no chão, mas o susto que causaria a minha mãe fez-me rejeitá-la. Pensei em prometer algumas dezenas de padre-nossos; tinha, porém, outra promessa em aberto e outro favor pendente... Não, vamos ver; fui andando, ouvi vozes alegres, conversavam ruidosamente. Quando entrei na sala, ninguém ralhou comigo.

O Padre Cabral recebera na véspera um recado do internúncio; foi ter com ele, e soube que, por decreto pontifício, acabava de ser nomeado protonotário apostólico. Esta distinção do papa dera-lhe grande contentamento e a todos os nossos. Tio Cosme e prima Justina repetiam o título com admiração- era a primeira vez que ele soava i aos nossos ouvidos, acostumados a cônegos, monsenhores, bispos, núncios, e internúncios; mas que era protonotário apostólico? O Padre Cabral explicou que não era propriamente o cargo da cúria, mas as honras dele. Tio Cosme viu exalçar-se no parceiro de voltarete, e repetia:

--Protonotário apostólico!

E voltando-se para mim:

--Prepara-te, Bentinho, tu podes vir a ser protonotário apostólico Cabral ouvia com gosto a repetição do título. Estava em pé, dava alguns passos, sorria ou tamborilava na tampa da boceta. O tamanho do título como que lhe dobrava a magnificência, posto que, para ligá-lo ao nome, era demasiado comprido- esta segunda reflexão foi tio Cosme que a fez. Padre Cabral acudiu que não era preciso dizê-lo todo, bastava que lhe chamassem o protonotário Cabral. Subentendia-se apostólico.

--Protonotário Cabral.

--Sim, tem razão; protonotário Cabral.

--Mas, Sr. protonotário, -- acudiu prima Justina para se ir acostumando ao uso do título,--isto o obriga a ir a Roma?

--Não, D. Justina.

--Não, são só as honras, observou minha mãe.

--Agora, não impede,--disse Cabral, que continuava a refletir, --não impede que nos casos de maior formalidade, atos públicos, cartas de cerimônia, etc; se empregue o título inteiro: protonotário apostólico. No uso comum, basta protonotário.

--Justamente, assentiram todos.

José Dias, que entrou pouco depois de mim, aplaudia a distinção, e recordou, a propósito, os primeiros atos políticos de Pio IX, grandes esperanças da Itália; mas ninguém pegou do assunto; o principal da hora e do lugar era o meu velho mestre de latim. Eu, voltando a mim do receio, entendi que devia cumprimentá-lo também, e este aplauso não lhe foi menos ao coração que os outros. Bateu-me na bochecha paternalmente, e acabou dando-me férias. Era muita felicidade para uma só hora. Um beijo e férias! Creio que o meu rosto disse isto mesmo, porque tio Cosme, sacudindo a barriga, chamou-me peralta; mas José Dias corrigiu a alegria:

--Não tem que festejar a vadiação; o latim sempre lhe há de ser preciso, ainda que não venha a ser padre.

Conheci aqui o meu homem. Era a primeira palavra, a semente lançada à terra, assim de passagem, como para acostumar os ouvidos da família. Minha mãe sorriu para mim, cheia de amor e de tristeza, mas respondeu logo:

--Há de ser padre, e padre bonito.

--Não esqueça, mana Glória, e protonotário também. Protonotário apostólico.

--O protonotário Santiago, acentuou Cabral.

Se a intenção do meu mestre de latim era ir acostumando ao uso do título com o nome, não sei bem; o que sei é que quando ouvi o meu nome ligado a tal título, deu-me vontade de dizer um desaforo. Mas a vontade aqui foi antes uma idéia, uma idéia sem língua, que se deixou ficar quieta e muda, tal como daí a pouco outras idéias... Aliás essas pedem um Capítulo especial. Rematemos este dizendo que o mestre de latim falou algum tempo da minha ordenação eclesiástica, ainda que sem grande interesse. Ele buscava um assunto alheio para se mostrar esquecido da própria glória, mas era esta que o deslumbrava na ocasião. Era um velho magro, sereno, dotado de qualidades boas. Alguns defeitos tinha; o mais excelso deles era ser guloso, não propriamente glutão; comia pouco, mas estimava o fino e o raro, e a nossa cozinha, se era simples, era menos pobre que a dele. Assim, quando minha mãe lhe disse que viesse jantar, a fim de se lhe fazer uma saúde, os olhos com que aceitou seriam de protonotário, mas não eram apostólicos. E para agradar a minha mãe novamente pegou em mim, descrevendo o meu futuro eclesiástico, e queria saber se ia para o seminário agora, no ano próximo, e oferecia-se a falar ao "senhor bispo", tudo marchetado do "protonotário Santiago."

CAPÍTULO XXXVI / IDÉIA SEM PERNAS E IDÉIA SEM BRAÇOS

Deixe-os, a pretexto de brincar, e fui-me outra vez a pensar na aventura da manhã. Era o que melhor podia fazer, sem latim, e até com latim. Ao cabo de cinco minutos, lembrou-me ir correndo à casa vizinha, agarrar Capitu, desfazer-lhe as tranças, refazê-las e concluí Ias daquela maneira particular, boca sobre boca. E isto vamos é isto... Idéia só! idéia sem pernas! As outras pernas não queriam correr nem andar. Muito depois é que saíram vagarosamente e levaram-me à casa de Capitu. Quando ali cheguei, dei com ela na sala, na mesma sala, sentada na marquesa, almofada no regaço, cosendo em paz. Não me olhou de rosto, mas a furto e a medo, ou, se preferes a fraseologia do agregado, oblíqua e dissimulada. As mãos pararam, depois de encravada a agulha no pano. Eu, do lado oposto da mesa, não sabia que fizesse e outra vez me fugiram as palavras que trazia Assim gastamos alguns minutos compridos, até que ela deixou inteiramente a costura, ergueu-se e esperou-me. Fui ter com ela, e perguntei se a mãe havia dito alguma cousa; respondeu-me que não A boca com que respondeu era tal que cuido haver-me provocado um gesto de aproximação. Certo é que Capitu recuou um pouco.

Era ocasião de pegá-la, puxá-la e beijá-la... Idéia só! idéia sem braços! Os meus ficaram caídos e mortos. Não conhecia nada da Escritura. Se conhecesse, é provável que o espírito de Satanás me fizesse dar à língua mística do Cântico um sentido direto e natural. Então obedeceria ao primeiro versículo: "Aplique ele os lábios, dando-me o ósculo da sua boca". E pelo que respeita aos braços, que tinha inertes, bastaria cumprir o vers. 6.° do cap. II: "A sua mão esquerda se pôs já debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me abraçará depois". Vedes aí a cronologia dos gestos. Era só executá-la; mas ainda que eu conhecesse o texto, as atitudes de Capitu eram agora tão retraídas, que não sei se não continuaria parado. Foi ela, entretanto, que me tirou daquela situação.

CAPÍTULO XXXVII / A ALMA E CHEIA DE MISTÉRIOS

-- Padre Cabral estava esperando há muito tempo?

--Hoje não dei lição; tive férias.

Expliquei-lhe o motivo das férias. Contei-lhe também que o Padre Cabral falara da minha entrada no seminário, apoiando a resolução de minha mãe, e disse dele cousas feias e duras. Capitu refletiu algum tempo, e acabou perguntando-me se podia ir cumprimentar o padre, à tarde em minha casa.

--Pode, mas para quê?

--Papai naturalmente há de querer ir também, mas é melhor que ele vá à casa do padre, é mais bonito. Eu não, que já sou meia moça, concluiu rindo.

O riso animou-me. As palavras pareciam ser uma troça consigo mesma, uma vez que, desde manhã, era mulher, como eu era homem. Achei-lhe graça, e, para dizer tudo, quis provar-lhe que era moça inteira. Peguei-lhe levemente na mão direita, depois na esquerda, e fiquei assim pasmado e trêmulo. Era a idéia com mãos. Quis puxar as de Capitu, para obrigá-la a vir atrás delas, mas ainda agora a ação não respondeu à intenção. Contudo, achei-me forte e atrevido. Não imitava ninguém- não vivia com rapazes, que me ensinassem anedotas de amor. Não conhecia a violação de Lucrécia. Dos romanos apenas sabia que falavam pela artinha do Padre Pereira e eram patrícios de Pôncio Pilatos. Não nego que o final do penteado da manhã era um Brande passo no caminho da movimentação amorosa, mas o gesto de então foi justamente o contrário deste. De manhã, ela derreou a cabeça, agora fugia-me; nem é só nisso que os lances diferiam; em outro ponto, parecendo haver repetição, houve contraste.

Penso que ameacei puxá-la a mim. Não juro, começava a estar tão alvoroçado, que não pude ter toda a consciência dos meus atos; mas concluo que sim, porque ela recuou e quis tirar as mãos das minhas; depois, talvez por não poder recuar mais, colocou um dos pés adiante e o outro atrás, e fugiu com o busto. Foi este gesto que me obrigou a reter-lhe as mãos com força. O busto afinal cansou e cedeu, mas a cabeça não quis ceder também, e caída para trás, inutilizava todos os meus esforços, porque eu já fazia esforços, leitor amigo. Não conhecendo a lição do Cântico, não me acudiu estender a mão esquerda por baixo da cabeça dela; demais, este gesto supõe um acordo de vontades, e Capitu, que me resistia agora, aproveitaria o gesto para arrancar-se à outra mão e fugir-me inteiramente. Ficamos naquela luta, sem estrépito, porque apesar do ataque e da defesa, não perdíamos a cautela necessária para não sermos ouvidos lá de dentro; a alma é cheia de mistérios. Agora sei que a puxava; a cabeça continuou a recuar; até que cansou; mas então foi a vez da boca. A boca de Capitu iniciou um movimento inverso, relativamente à minha, indo para um lado, quando eu a buscava do outro oposto. Naquele desencontro estivemos, sem que ousasse um pouco mais, e bastaria um pouco mais...

Nisto ouvimos bater à porta e falar no corredor. Era o pai de Capitu, que voltava da repartição um pouco mais cedo, como usava às vezes. "Abre, Nanata! Capitu, abre!" Aparentemente era o mesmo lance da manhã, quando a mãe deu conosco, mas só aparentemente verdade, era outro. Considerai que de manhã tudo estava acabado, e o passo de D. Fortunata foi um aviso para que nos compuséssemos. Agora lutávamos com as mãos presas, e nada estava sequer começado.

Ouvimos o ferrolho da porta que dava para o corredor interno era a mãe que abria. Eu, uma vez que confesso tudo, digo aqui que não tive tempo de soltar as mãos da minha amiga; pensei nisso, cheguei a tentá-lo, mas Capitu, antes que o pai acabasse de entrar, fez um gesto inesperado, pousou a boca na minha boca, e deu de vontade o que estava a recusar à força. Repito, a alma é cheia de mistérios.

CAPÍTULO XXXVIII / QUE SUSTO, MEU DEUS!

Quando Pádua, vindo pelo interior, entrou na sala de visitas, Capitu, em pé, de costas para mim, inclinada sobre a costura, como a recolhê-la, perguntava em voz alta:

--Mas, Bentinho, que é protonotário apostólico?

--Ora, vivam! exclamou o pai.

-- Que susto, meu Deus!

Agora é que o lance é o mesmo; mas se conto aqui, tais quais, ou dous lances de há quarenta anos, é para mostrar que Capitu não se dominava só em presença da mãe, o pai não lhe meteu mais medo No meio de uma situação que me atava a língua, usava da palavra com a maior ingenuidade deste mundo. A minha persuasão é que coração não lhe batia mais nem menos. Alegou susto, e deu à cara um ar meio enfiado; mas eu, que sabia tudo, vi que era mentira e Fiquei com inveja. Foi logo falar ao pai, que apertou a minha mão, e quis saber por que a filha falava em protonotário apostólico. Capitu repetiu-lhe o que ouvira de mim, e opinou logo que o pai devia ir cumprimentar o padre em casa dele; ela iria à minha. E coligindo os petrechos da costura, enfiou pelo corredor, bradando infantilmente:

-- Mamãe, jantar, papai chegou!

CAPÍTULO XXXIX / A VOCAÇÃO

Padre Cabral estava naquela primeira hora das honras em que as mínimas congratulações valem por odes. Tempo chega em que os dignificados recebem os louvores como um tributo usual, cara morta, sem agradecimentos. O alvoroço da primeira hora é melhor, esse estado da alma que vê na inclinação do arbusto, tocado do vento, um parabém da flora universal, traz sensações mais íntimas e finas que qualquer outro. Cabral ouviu as palavras de Capitu com infinito prazer.

--Obrigado, Capitu, muito obrigado; estimo que você goste também. Papai está bom? E mamãe? A você não se pergunta- essa cara é mesmo de quem vende saúde. E como vamos de rezas?

A todas as perguntas Capitu ia respondendo prontamente e bem trazia um vestidinho melhor e os sapatos de sair. Não entrou com a familiaridade do costume, deteve-se um instante à porta da sala antes de ir beijar a mão a minha mãe e ao padre. Como desse a este duas vezes em cinco minutos, o título de protonotário, José Dias para se desforrar da concorrência, fez um pequeno discurso em honra "ao coração paternal e augustíssimo de Pio IX."

--Você é um grande prosa, disse tio Cosme, quando ele acabou José Dias sorriu sem vexame. Padre Cabral confirmou os louvores do agregado, sem os seus superlativos; ao que este acrescentou que o Cardeal Mastai evidentemente fora talhado para a tiara desde o princípio dos tempos. E, piscando-me o olho, concluiu:

--A vocação é tudo. O estado eclesiástico é perfeitíssimo, contanto que o sacerdote venha já destinado do berço. Não havendo vocação, falo de vocação sincera e real, um jovem pode muito bem estudar as letras humanas, que também são úteis e honradas.

Padre Cabral retorquia:

--A vocação é muito, mas o poder de Deus é soberano. Um homem pode não ter gosto à igreja e até persegui-la, e um dia a voz de Deus lhe fala, e ele sai apóstolo; veja S. Paulo.

--Não contesto, mas o que eu digo é outra cousa. O que eu digo é que se pode muito bem servir a Deus sem ser padre cá fora; pode-se ou não se pode?

--Pode-se.

--Pois então? exclamou José Dias triunfalmente, olhando em volta de si. Sem vocação é que não há bom padre, e em qualquer profissão liberal se serve a Deus, como todos devemos.

--Perfeitamente, mas vocação não é só do berço que se traz.

--Homem, é a melhor.

--Um moço sem gosto nenhum à vida eclesiástica pode acabar por ser muito bom padre; tudo é que Deus o determine. Não me quero dar por modelo, mas aqui estou eu que nasci com a vocação da medicina- meu padrinho, que era coadjutor de Santa Rita, teimou com meu pai para que me metesse no seminário; meu pai cedeu. Pois, senhor, tomei tal gosto aos estudos e à companhia dos padres, que acabei ordenando-me. Mas, suponha que não acontecia assim, e que eu não mudava de vocação, o que é que acontecia? Tinha estudado no seminário algumas matérias que é bom saber, e são sempre melhor ensinadas naquelas casas.

Prima Justina interveio:

--Como? Então pode-se entrar para o seminário e não sair padre?

Padre Cabral respondeu que sim, que se podia, e, voltando-se para mim, falou da minha vocação, que era manifesta; os meus brinquedos foram sempre de igreja, e eu adorava os ofícios divinos. A prova não provava; todas as crianças do meu tempo eram devotas. Cabral acrescentou que o reitor de S. José, a quem contara ultimamente a promessa de minha mãe, tinha o meu nascimento por milagre; ele era da mesma opinião. Capitu, cosida às saias de minha mãe, não atendia aos olhos ansiosos que eu lhe mandava; também não parecia escutar a conversação sobre o seminário e suas conseqüências, e, aliás, decorou o principal, como vim a saber depois. Duas vezes fui à janela, esperando que ela fosse também, e ficássemos à vontade, sozinhos, até acabar o mundo, se acabasse, mas Capitu não me apareceu. Não deixou minha mãe, senão para ir embora. Eram ave-marias, despediu-se.

--Vai com ela, Bentinho, disse minha mãe.

--Não precisa, não, D. Glória, acudiu ela rindo, eu sei o caminho. Adeus, Sr. protonotário...

--Adeus, Capitu.

Tendo dado um passo no sentido de atravessar a sala, é claro que o meu dever, o meu gosto, todos os impulsos da idade e da ocasião eram atravessá-la de todo, seguir a vizinha corredor fora, descer à chácara, entrar no quintal, dar-lhe terceiro beijo, e despedir-me. Não me importou a recusa, que cuidei simulada, e enfiei pelo corredor; mas, Capitu que ia depressa, estacou e fez-me sinal que voltasse. Não obedeci; cheguei-me a ela.

--Não venha, não; amanhã falaremos.

--Mas eu queria dizer a você...

--Amanhã.

--Escuta!

--Fica!

Falava baixinho; pegou-me na mão, e pôs o dedo na mão. Uma preta, que veio de dentro acender o lampião do corredor, vendo-nos naquela atitude, quase às escuras, riu de simpatia e murmurou em tom que ouvíssemos alguma cousa que não entendi bem nem mal. Capitu segredou-me que a escrava desconfiara, e ia talvez contar às outras. Novamente me intimou que ficasse, e retirou-se; eu deixei-me estar parado, pregado, agarrado ao chão.

CAPÍTULO XL / UMA ÉGUA

Ficando só, refleti algum tempo, e tive uma fantasia. Já conheceis as minhas fantasias. Contei-vos a da visita imperial; disse-vos a desta casa de Engenho Novo, reproduzindo a de Mata-cavalos... A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva, rápida, inquieta, alguma vez tímida e amiga de empacar, as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas, correndo. Creio haver lido em Tácito que as éguas iberas concebiam pelo vento, se não foi nele, foi noutro autor antigo, que entendeu guardar essa crendice nos seus livros. Neste particular, a minha imaginação era uma grande égua ibera; a menor brisa lhe dava um potro, que saía logo cavalo de Alexandre; mas deixemos metáforas atrevidas e impróprias dos meus quinze anos. Digamos o caso simplesmente. A fantasia daquela hora foi confessar a minha mãe os meus amores para lhe dizer que não tinha vocação eclesiástica. A conversa sobre vocação tornava-me agora toda inteira. e, ao passo que me assustava, abria-me uma porta de saída. "Sim, é isto, pensei; vou dizer a mamãe que não tenho vocação, e confesso o nosso namoro; se ela duvidar, conto-lhe o que se passou outro dia. o penteado e o resto..."
–––––––––
continua…

terça-feira, 16 de abril de 2013

Eber Sander (Como Entender as Mulheres)

Desisto. Não vou mais tentar entender as mulheres. Depois de algum tempo (não muito tempo), chega-se à conclusão que é deveras impossível entender as mulheres.

Se estiver sol, reclamam por estar quente; se estiver frio, reclamam por estar gelado. Se estiver mais ou menos, reclamam por não estar quente, nem frio. Desisto, não quero mais entender as mulheres. Como decifrar seus códigos, como desvendar suas angústias,seus medos, suas frustrações?

Quando tem os lindos cabelos loiros, sofrempor tê0lo. Já as que têm os cabelos enrolados, recorrem às chamadas chapinhas, a xampus milagrosos e até mesmo a entidade divina. Deus tem que trabalhar muito em alguns casos.

Não vou mais tentar entender as mulheres. Dizem que carro não faz diferença, que o importante é o papo, a gentileza, mas nunca vi um homem a pé com uma bela mulher.Não dá para entender as mulheres. Perguntam minha opinião,se estão gordinhas, se estão, digo que estão,se não estão, digo que não estão. Impressionante que sempre estou errado,por mais que esteja certo. A gordinha está sempre mais gordinha aos seus olhos, e amagrinha nunca está tão magrinha aos seus olhos. Não vou mais tentar entender as mulheres.

Em uma festa qualquer, onde há belas mulheres, muitas bebidas, diz que estou a paquerar, mas de fato não estou,de tanto ela insistir, tenho que olhar. Aí vem ela e diz que estava com a razão, que pequei duas vezes, por mentir e por estar olhando, e para isso não tem perdão. Não consigo entender as mulheres.

Minhas opiniões sobre suas roupas também não valem de nada. Mulheres não se vestem para os ficantes, namorados, maridos. Mulheres se vestem para outras mulheres, para competir com as outras mulheres. Para ganhar das outras mulheres. Para fazer inveja às outras mulheres. Então por que me perguntar?

Eu continuo não entendendo as mulheres. Jamais imaginaria que o céu e o inferno  podem estar tão próximos um do outro. Em um momento é céu. No outro, Deus nos proteja!

Mas que bobagem a minha tarefa. Mulheres não foram feitas para serem entendidas. Mulheres foram criadas para serem respeitadas, amadas, adoradas. E homem nenhum, em lugar nenhum, em momento nenhum vai entender as mulheres. E é bom que não se entenda, se entendermos perderemos o encanto e a magia que cerca a aura feminina. E convenhamos: nunca iríamos entender as mulheres mesmo!

Fonte:
Éber Sander. Perguntas indiscretas e outros contos e cronicas. Itatiba/SP: Berto, 2009.

Concurso de Trovas Alternativo Navegando nas Poesias (Resultado Final)

Tema: Profundeza

Lírica/Filosófica.


VENCEDORES:
Sertanejo em seu lamento
não blasfema, não faz guerra
só quer tirar seu sustento
da profundeza da terra.
DYRCE PINTO MACHADO
Cantagalo/RJ


Palavras sem profundeza,
faladas ou mesmo escritas,
sem conteúdo e beleza...
é melhor não serem ditas.
JOTA DE JESUS
Bacaxá- Saquarema/RJ


Mais mistérios e riquezas
que no fundo do oceano
por certo há nas profundezas
da mente do ser humano.
ANTONIO AUGUSTO DE ASSIS
Maringá/PR


Sem teu amor, meu fanal,
naufraguei entre os abrolhos
na profundeza abissal
do mar azul dos teus olhos.
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG


A lua tristonha e calma,
buscando versos de amor,
sonda as profundezas da alma,
de um poeta trovador!
CAMPOS SALES
São Paulo/SP


MENÇÃO HONROSA:
Navegando nas Poesias
minha vida se renova.
Entre tantas alegrias,
na profundeza da trova.
JOSÉ GILBERTO GASPAR
São Bernardo do Campo/SP


O poeta, amargo, tristonho,
quando a musa lhe diz não,
nas profundezas do sonho
vai buscar inspiração.
JOÃO COSTA
Saquarema/RJ


Desatento à profundeza
de teus olhos cor do mar,
eu mergulhei sem defesa
nas ondas do teu olhar!
JOSÉ LUCAS DE BARROS
Tirol, Natal/RN


És pélago, profundeza,
és um mar todo de amor.
Afogar-me em tua beleza,
é o sonho de um trovador.
JOSÉ WARMUTH TEIXEIRA
Tubarão/SC


Atingi profundidade
da dor, deveras supina,
na voragem da saudade
deste amor, da minha sina.
LUIZ GODIM DE ARAUJO LINS
Copacabana/RJ


MENÇÃO ESPECIAL:

A profundeza da mente,
arquivo de nossos traços,
mantém guardada, latente,
a dor de nossos fracassos!
HELOYSIO ALONSO TEIXEIRA
Cantagalo/RJ


O mais intenso luar
e os raios que o Sol descerra,
jamais poderão beijar
as profundezas da Terra...
RUTH FARAH NACIF LUTTERBACK
Cantagalo/RJ

É na profundeza d'alma,
que se abriga o sentimento...
Alma pura, vida calma,
ao culpado, só tormento.
THERESINHA DE JESUS LOPES
Juiz de Fora/MG


Mergulhei na profundeza
do teu olhar, e encontrei
tanta doçura e pureza,
que, por ti, me apaixonei!
IZO GOLDMAN
São Paulo/SP


Chamo por Deus... e acredito
que está em todo lugar:
- perto de mim... no infinito...
na profundeza do mar.
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP


Fonte:
Eliana Jimenez. http://www.poesiaemtrovas.blogspot.com.br 
Imagem = formatação com imagem obtida na internet, de autor anonimo.

Luis Vaz de Camões (Caravela da Poesia XXVIII)

Fernando Pessoa e Camões
Sonetos
(foi mantida a grafia original)
026

Grão tempo há já que soube da Ventura
a vida que me tinha destinada;
que a longa experiência da passada
me dava claro indício da futura.

Amor fero, cruel, Fortuna dura,
bem tendes vossa força exprimentada:
assolai, destruí, não fique nada;
vingai vos desta vida, qu'inda dura.

Soube Amor da Ventura, que a não tinha,
e, por que mais sentisse a falta dela,
de imagens impossíveis me mantinha.

Mas vós, Senhora, pois que minha estrela
não foi milhor, vivei nesta alma minha,
que não tem a Fortuna poder nela.

162
Ilustre o dino ramo dos Meneses,
aos quais o prudente e largo Céu
(que errar não sabe), em dote concedeu
rompesse os maométicos arneses;

desprezando a Fortuna e seus reveses,
ide para onde o Fado vos moveu;
erguei flamas no Mar alto Eritreu,
e sereis nova luz aos Portugueses.

Oprimi com tão firme e forte peito
o Pirata insolente, que se espante
e trema Taprobana e Gedrosia.

Dai nova causa à cor do Arabo estreito:
assi que o roxo mar, daqui em diante,
o seja só co sangue de Turquia!

112

Indo o triste pastor todo embebido
na sombra de seu doce pensamento,
tais queixas espalhava ao leve vento
cum brando suspirar da alma saído:

—A quem me queixarei, cego, perdido,
pois nas pedras não acho sentimento?
Com quem falo? A quem digo meu tormento
que onde mais chamo, sou menos ouvido?

Oh! bela Ninfa, porque não respondes?
Porque o olhar-me tanto me encareces?
Porque queres que sempre me querele?

Eu quanto mais te vejo, mais te escondes!
Quanto mais mal me vês, mais te endureces!
Assi que co mal cresce a causa dele.

078

Lá a saudosa Aurora destoucava
os seus cabelos d'ouro delicados,
e as flores, nos campos esmaltados,
do cristalino orvalho borrifava;

quando o fermoso gado se espalhava
de Sílvio e de Laurente pelos prados;
pastores ambos, e ambos apartados,
de quem o mesmo Amor não se apartava.

Com verdadeiras lágrimas, Laurente,
—Não sei (dizia) ó Ninfa delicada,
porque não morre já quem vive ausente,

pois a vida sem ti não presta nada?
Responde Sílvio:—Amor não o consente,
que ofende as esperanças da tornada.

127

Já não sinto, Senhora, os desenganos
com que minha afeição sempre tratastes,
nem ver o galardão que me negastes,
merecido por fé, há tantos anos.

A mágoa choro só, só choro os danos
de ver por quem, Senhora, me trocastes;
mas em tal caso vós só me vingastes
de vossa ingratidão, vossos enganos.

Dobrada glória dá qualquer vingança,
que o ofendido toma do culpado,
quando se satisfaz com cousa justa;

mas eu de vossos males e esquivança,
de que agora me vejo bem vingado,
não o quisera eu tanto à vossa custa.

105

Julga-me a gente toda por perdido,
vendo-me, tão entregue a meu cuidado,
andar sempre dos homens apartado,
e dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
e quase que sobre ele ando dobrado,
tenho por baixo, rústico, enganado,
quem não é com meu mal engrandecido.

Vão revolvendo a terra, o mar e o vento,
busquem riquezas, honras a outra gente,
vencendo ferro, fogo, frio e calma;

que eu só em humilde estado me contento,
de trazer esculpido eternamente
vosso fermoso gesto dentro n'alma.

113

Lembranças que lembrais meu bem passado
para que sinta mais o mal presente,
deixai-me (se quereis) viver contente,
não me deixeis morrer em tal estado.

Mas se também de tudo está ordenado
viver (como se vê) tão descontente,
venha (se vier) o bem por acidente,
e dê a morte fim a meu cuidado.

Que muito milhor é perder a vida,
perdendo-se as lembranças da memória,
pois fazem tanto dano ao pensamento.

Assi que nada perde, quem perdida
a esperança traz de sua glória,
se esta vida há-de ser sempre em tormento.

015

Lembranças saudosas, se cuidais
de me acabar a vida neste estado,
não vivo com meu mal tão enganado,
que não espere dele muito mais.

De muito longe já me costumais
a viver de algum bem desesperado;
já tenho co a Fortuna concertado
de sofrer os trabalhos que me dais.

Atado ao remo tenho a paciência,
para quantos desgostos der a vida,
cuide em quanto quiser o pensamento;

que, pois não há i outra resistência
para tão certa queda da caída,
aparar-lhe hei debaixo o sofrimento.

023

Lindo e sutil trançado, que ficaste
em penhor do remédio que mereço,
se só contigo, vendo te, endoudeço,
que fora cos cabelos que apertaste?

Aquelas tranças d'ouro, que ligaste,
que os raios do Sol têm em pouco preço,
não sei se para engano do que peço
se para me atar, os desataste.

Lindo trançado, em minhas mãos te vejo,
e por satisfação de minhas dores
como quem não tem outra, hei de tomar te.

E se não for contente meu desejo,
dir lhe hei que, nesta regra dos amores,
pelo todo também se toma a parte.

084

Males, que contra mim vos conjurastes,
quanto há de durar tão duro intento?
Se dura porque dura meu tormento,
baste vos quanto já me atormentastes.

Mas se assi perfiais porque cuidastes
derrubar meu tão alto pensamento,
mais pode a causa dele, em que o sustento,
que vós, que dela mesma o ser tomastes.

E, pois vossa tenção, com minha morte,
há de acabar o mal destes amores,
dai já fim a um tormento tão comprido,

porque d'ambos contente seja a sorte:
vós, porque me acabastes, vencedores;
e eu, porque acabei de vós vencido.

Fonte:
CAMÕES, Luís Vaz de. Sonetos. A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro . Texto-base digitalizado por: FCCN - Fundação para a Computação Científica Nacional (http://www.fccn.pt) IBL - Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro (http://www.ibl.pt)
Imagem com formatação sobreposta obtidas na internet, sem identificação do autor.

Machado de Assis (Dom Casmurro) Parte 5

CAPÍTULO XXVII / AO PORTÃO

No portão do Passeio, um mendigo estendeu-nos a mão. José Dias passou adiante, mas eu pensei em Capitu e no seminário, tirei dous vinténs do bolso e dei-os ao mendigo. Este beijou a moeda; eu pedi-lhe que rogasse a Deus por mim, a fim de que eu pudesse satisfazer todos os meus desejos.

--Sim, meu devoto!

--Chamo-me Bento, acrescentei para esclarecê-lo.

CAPÍTULO XXVIII / NA RUA

José Dias ia tão contente que trocou o homem dos momentos graves, como era à rua, pelo homem dobradiço e inquieto. Mexia-se todo, falava de tudo, fazia-me parar a cada passo diante de um mostrador ou de um cartaz de teatro. Contava-me o enredo de algumas peças, recitava monólogos em verso. Fez os recados todos, pagou contas, recebeu aluguéis de casa; para si comprou um vigésimo de loteria. Afinal, o homem teso rendeu o flexível, e passou a falar pausado, com superlativos. Não vi que a mudança era natural; temi que houvesse mudado a resolução assentada, e entrei a tratá-lo com palavras e gestos carinhosos, até entrarmos no ônibus.

CAPÍTULO XXIX / O IMPERADOR

Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de Medicina. O ônibus em que íamos parou, como todos os veículos; os passageiros desceram à rua e tiraram o chapéu, até que o coche imperial passasse. Quando tornei ao meu lugar, trazia uma idéia fantástica, a idéia de ir ter com o Imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a intervenção. Não confiaria esta idéia a Capitu. "Sua Majestade pedindo, mamãe cede", pensei comigo.

Vi então o Imperador escutando-me, refletindo e acabando por dizer que sim, que iria falar a minha mãe; eu beijava-lhe a mão, com lágrimas. E logo me achei em casa, à esperar até que ouvi os batedores e o piquete de cavalaria; é o Imperador! é o Imperador! toda a gente chegava as janelas para vê-lo passar, mas não passava, o coche parava à nossa porta, o Imperador apeava-se e entrava. Grande alvoroço na vizinhança: "O Imperador entrou em casa de D. Glória! Que será? Que não será?" A nossa família saía a recebê-lo; minha mãe era a primeira que lhe beijava a mão. Então o Imperador, todo risonho, sem entrar na sala ou entrando, --não me lembra bem, os sonhos são muita vez confusos,--pedia a minha mãe que me não fizesse padre, -- e ela, lisonjeada e obediente, prometia que não.

--A medicina, por que lhe não manda ensinar medicina?

--Uma vez que é do agrado de Vossa Majestade..

--Mande ensinar-lhe medicina; é uma bonita carreira, e nós temos aqui bons professores. Nunca foi à nossa Escola? É uma bela Escola. Já temos médicos de primeira ordem, que podem ombrear com os melhores de outras terras. A medicina é uma grande ciência; basta só isto de dar a saúde aos outros, conhecer as moléstias. combatê-las, vencê-1as... A senhora mesma há de ter visto milagres Seu marido morreu, mas a doença era fatal, e ele não tinha cuidado em si... É uma bonita carreira: mande-o para a nossa Escola. Faça isso por mim, sim? Você quer, Bentinho?

-- Mamãe querendo.

-- Quero, meu filho. Sua Majestade manda.

Então o Imperador dava outra vez a mão a beijar, e saía, acompanhado de todos nós, a rua cheia de gente, as janelas atopetadas, um silêncio de assombro: o Imperador entrava no coche. inclinava-se e fazia um gesto de adeus, dizendo ainda: "A medicina, a nossa Escola." E o coche partia entre invejas e agradecimentos.

Tudo isso vi e ouvi. Não, a imaginação de Ariosto não é mais fértil que a das crianças e dos namorados, nem a visão do impossível precisa mais que de um recanto de ônibus. Consolei-me por instantes, digamos minutos, até destruir-se o plano e voltar-me para as caras sem sonhos dos meus companheiros.

CAPÍTULO XXX / O SANTÍSSlMO

Terás entendido que aquela lembrança do Imperador acerca da medicina não era mais que a sugestão da minha pouca vontade de sair do Rio de Janeiro. Os sonhos do acordado são como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas inclinações e das nossas recordações. Vá que fosse para S. Paulo, mas a Europa... Era muito longe, muito mar e muito tempo. Viva a medicina! Iria contar estas esperanças a Capitu.

--Parece que vai sair o Santíssimo, disse alguém no ônibus. Ouço um sino; é, creio que é em Santo Antônio dos Pobres. Pare, Sr. recebedor!

O recebedor das passagens puxou a correia que ia ter ao braço do cocheiro, o ônibus parou, e o homem desceu. José Dias deu duas voltas rápidas à cabeça, pegou-me no braço e fez-me descer consigo. Iríamos também acompanhar o Santíssimo. Efetivamente, o sino chamava os fiéis àquele serviço da última hora. Já havia algumas pessoas na sacristia. Era a primeira vez que me achava em momento tão grave; obedeci, a princípio constrangido, mas logo depois satisfeito, menos pela caridade do serviço que por me dar um ofício de homem. Quando o sacristão começou a distribuir as opas, entrou um sujeito esbaforido, era o meu vizinho Pádua, que também ia acompanhar o Santíssimo. Deu conosco, veio cumprimentar-nos. José Dias fez um gesto de aborrecido, e apenas lhe respondeu com uma palavra seca, olhando para o padre que lavava as mãos. Depois, como Pádua falasse ao sacristão, baixinho, aproximou-se deles; eu fiz a mesma cousa. Pádua solicitava do sacristão uma das varas do pálio. José Dias pediu uma para si.

--Há só uma disponível, disse o sacristão.

--Pois essa, disse José Dias.

--Mas eu tinha pedido primeiro, aventurou Pádua.

--Pediu primeiro, mas entrou tarde, retorquiu José Dias; eu já cá estava. Leve uma tocha.

Pádua, apesar do medo que tinha ao outro, teimava em querer a vara, tudo isto em voz baixa e surda. O sacristão achou meio de conciliar a rivalidade, tomando a si obter de um dos outros seguradores do pálio que cedesse a vara ao Pádua, conhecido na paróquia, como José Dias. Assim fez, mas José Dias transtornou ainda esta combinação. Não, uma vez que tínhamos outra vara disponível, pedia-a para mim, "jovem seminarista", a quem esta distinção cabia mais diretamente. Pádua ficou pálido, como as tochas. Era pôr à prova o coração de um pai. O sacristão, que me conhecia de me ver ali com minha mãe, aos domingos, perguntou de curioso se eu era deveras seminarista.

--Ainda não, mais vai sê-lo, respondeu José Dias piscando o olho esquerdo para mim, que, apesar do aviso, fiquei zangado.

--Bem, cedo ao nosso Bentinho, suspirou o pai de Capitu.

Pela minha parte, quis ceder-lhe a vara; lembrou-me que ele costumava acompanhar o Santíssimo Sacramento aos moribundos levando uma tocha, mas que a última vez conseguira uma vara do pálio. A distinção especial do pálio vinha de cobrir o vigário e o sacramento; para tocha qualquer pessoa servia. Foi ele mesmo que me contou e explicou isto, cheio de uma glória pia e risonha. Assim fica entendido o alvoroço com que entrara na igreja; era a segunda vez do pálio, tanto que cuidou logo de ir pedi-lo. E nada! E tornava à tocha comum, outra vez a interinidade interrompida; o administrador regressava ao antigo cargo... Quis ceder-lhe a vara; o agregado tolheu-me esse ato de generosidade, e pediu ao sacristão que nos pusesse, a ele e a mim, com as duas varas da frente, rompendo a marcha do pálio.

Opas enfiadas, tochas distribuídas e acesas, padre e cibório prontos, o sacristão de hissope e campainha nas mãos, saiu o préstito à rua. Quando me vi com uma das varas, passando pelos fiéis, que se ajoelhavam. fiquei comovido. Pádua roía a tocha amargamente.

É uma metáfora, não acho outra forma mais viva de dizer a dor e a humilhação do meu vizinho. De resto, não pude mirá-lo por muito tempo, nem ao agregado, que, paralelamente a mim, erguia a cabeça com o ar de ser ele próprio o Deus dos exércitos. Com pouco, senti-me me cansado; os braços caíam-me, felizmente a casa era perto, na Rua do Senado.

A enferma era uma senhora viúva, tísica, tinha uma filha de quina ou dezesseis anos que estava chorando à porta do quarto. A moça não era formosa, talvez nem tivesse graça, os cabelos caíam despenteados, e as lágrimas faziam-lhe encarquilhar os olhos. Não obstante o total falava e cativava o coração. O vigário confessou a doente, deu-lhe a comunhão e os santos óleos. O pranto da moça redobrou tanto que senti os meus olhos molhados e fugi. Vim para perto de uma janela. Pobre criatura! A dor era comunicativa em si mesma complicada da lembrança de minha mãe, doeu-me mais, e, quando enfim pensei em Capitu, senti um ímpeto de soluçar também, enfiei pelo corredor, e ouvi alguém dizer-me:

--Não chore assim!

A imagem de Capitu ia comigo, e a minha imaginação, assim como lhe atribuíra lágrimas, há pouco, assim lhe encheu a boca de riso agora; vi-a escrever no muro, falar-me, andar à volta, com os braços no ar; ouvi distintamente o meu nome, de uma doçura que me embriagou, e a voz era dela. As tochas acesas, tão lúgubres na ocasião tinham-me ares de um lustre nupcial... Que era lustre nupcial Não sei; era alguma cousa contrária à morte, e não vejo outra mais que bodas. Esta nova sensação me dominou tanto que José Dias veio a mim, e me disse ao ouvido, em voz baixa:

--Não ria assim!

Fiquei sério depressa. Era o momento da saída. Peguei da minha vara; e, como já conhecia a distancia, e agora voltávamos para a igreja, o que fazia a distancia menor, -- o peso da vara era mui pequeno. Demais, o sol cá fora, a animação da rua, os rapazes da minha idade que me fitavam cheios de inveja, as devotas que chegavam às janelas ou entravam nos corredores e se ajoelhavam à nossa passagem, tudo me enchia a alma de lepidez nova.

Pádua, ao contrário, ia mais humilhado. Apesar de substituído por mim, não acabava de se consolar da tocha, da miserável tocha. E contudo havia outros que também traziam tocha, e apenas mostravam a compostura do ato; não iam garridos, mas também não iam tristes. Via-se que caminhavam com honra.

CAPÍTULO XXXI / AS CURIOSIDADES DE CAPITU

Capitu preferia tudo ao seminário. Em vez de ficar abatida com a ameaça da larga separação, se vingasse a idéia da Europa, mostrou se satisfeita. E quando eu lhe contei o meu sonho imperial:

-- Não, Bentinho, deixemos o Imperador sossegado, replicou; fiquemos por ora com a promessa de José Dias. Quando é que ele disse que falaria a sua mãe?

--Não marcou dia; prometeu que ia ver; que falaria logo que pudesse, e que me pegasse com Deus.

Capitu quis que lhe repetisse as respostas todas do agregado, as alterações do gesto e até a pirueta, que apenas lhe contara. Pedia o som das palavras. Era minuciosa e atenta; a narração e o diálogo, tudo parecia remoer consigo. Também se pode dizer que conferia, rotulava e pregava na memória a minha exposição. Esta imagem é porventura melhor que a outra, mas a ótima delas é nenhuma. Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse, aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição.

Era também mais curiosa. As curiosidades de Capitu dão para um Capítulo. Eram de vária espécie, explicáveis e inexplicáveis, assim úteis como inúteis, umas graves, outras frívolas; gostava de saber tudo. No colégio onde, desde os sete anos, aprendera a ler, escrever e contar, francês, doutrina e obras de agulha, não aprendeu, por exemplo, a fazer renda- por isso mesmo, quis que prima Justina lhe ensinasse. Se não estudou latim com o Padre Cabral foi porque o padre, depois de lhe propor gracejando, acabou dizendo que latim não era língua de meninas. Capitu confessou-me um dia que esta razão acendeu nela o desejo de o saber. Em compensação, quis aprender inglês com um velho professor amigo do pai e parceiro deste ao solo, mas não foi adiante. Tio Cosme ensinou-lhe gamão.

--Anda apanhar um capotinho, Capitu, dizia-lhe ele.

Capitu obedecia e jogava com facilidade, com atenção, não sei se diga com amor. Um dia fui achá-la desenhando a lápis um retrato; dava os últimos rasgos, e pediu-me que esperasse para ver se estava parecido. Era o de meu pai, copiado da tela que minha mãe tinha na sala e que ainda agora está comigo. Perfeição não era; ao contrário, os olhos saíram esbugalhados, e os cabelos eram pequenos círculos uns sobre outros. Mas, não tendo ela rudimento algum de arte, e havendo feito aquilo de memória em poucos minutos, achei que era obra de muito merecimento- descontai-me a idade e a simpatia. Ainda assim, estou que aprenderia facilmente pintura, como aprendeu música mais tarde. Já então namorava o piano da nossa casa, velho traste inútil, apenas de estimação. Lia os nossos romances, folheava os nossos livros de gravuras, querendo saber das ruínas, das pessoas, das campanhas, o nome, a história, o lugar. José Dias dava-lhe essas notícias com certo orgulho de erudito. A erudição deste não avultava muito mais que a sua homeopatia de Cantagalo.

Um dia. Capitu quis saber o que eram as figuras da sala de visitas. O agregado disse-lho sumariamente, demorando-se um pouco mais em César, com exclamações em latim:

--César! Júlio César! Grande homem! Tu quoque, Brute?

Capitu não achava bonito o perfil de César, mas as ações citadas por José Dias davam-lhe gestos de admiração. Ficou muito tempo com a cara virada para ele. Um homem que podia tudo! que fazia tudo! Um homem que dava a uma senhora uma pérola do valor de seis milhões de sestércio!

--E quanto valia cada sestércio?

José Dias, não tendo presente o valor do sestércio, respondeu entusiasmado:

--É o maior homem da história!

A pérola de César acendia os olhos de Capitu. Foi nessa ocasião que ela perguntou a minha mãe por que é que já não usava as jóias do retrato; referia-se ao que estava na sala, com o de meu pai, tinha um grande colar, um diadema e brincos.

--São jóias viúvas, como eu, Capitu.

-- Quando é que botou estas?

-- Foi pelas festas da Coroação.

--Oh! conte-me as festas da Coroação!

Sabia já o que os pais lhe haviam dito, mas naturalmente tinha para si que eles pouco mais conheceriam do que o que se passou nas ruas. Queria a notícia das tribunas da Capela Imperial e dos salões dos bailes. Nascera muito depois daquelas festas célebres. Ouvindo falar várias vezes da Maioridade, teimou um dia em saber o que fora este acontecimento; disseram-lho, e achou que o Imperador fizera muito bem em querer subir ao trono aos quinze anos. Tudo era matéria às curiosidades de Capitu, mobílias antigas, alfaias velhas, costumes, notícias de Itaguaí, a infância e a mocidade de minha mãe, um dito daqui, uma lembrança dali, um adágio dacolá...

CAPÍTULO XXXII / OLHOS DE RESSACA

Tudo era matéria às curiosidades de Capitu. Caso houve, porém, no qual não sei se aprendeu ou ensinou, ou se fez ambas as cousas, como eu. É o que contarei no outro Capítulo. Neste direi somente que, passados alguns dias do ajuste com o agregado, fui ver a minha amiga; eram dez horas da manhã. D. Fortunata, que estava no quintal nem esperou que eu lhe perguntasse pela filha.

--Está na sala penteando o cabelo, disse-me; vá devagarzinho para lhe pregar um susto.

Fui devagar, mas ou o pé ou o espelho traiu-me. Este pode ser que não fosse; era um espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano, moldura tosca, argolinha de latão, pendente da parede, entre as duas janelas. Se não foi ele, foi o pé. Um ou outro, a verdade é que, apenas entrei na sala, pente, cabelos, toda ela voou pelos ares, e só lhe ouvi esta pergunta:

--Há alguma cousa?

--Não há nada, respondi; vim ver você antes que o Padre Cabral chegue para a lição. Como passou a noite?

--Eu bem. José Dias ainda não falou?

--Parece que não.

-- Mas então quando fala?

--Disse-me que hoje ou amanhã pretende tocar no assunto; não vai logo de pancada, falará assim por alto e por longe, um toque. Depois, entrará em matéria. Quer primeiro ver se mamãe tem a resolução feita...

-- Que tem, tem, interrompeu Capitu. E se não fosse preciso alguém para vencer já, e de todo, não se lhe falaria. Eu já nem sei se José Dias poderá influir tanto; acho que fará tudo, se sentir que você realmente não quer ser padre, mas poderá alcançar?... Ele é atendido; se, porém... É um inferno isto! Você teime com ele, Bentinho.

--Teimo- hoje mesmo ele há de falar.

--Você jura?

--Juro. Deixe ver os olhos, Capitu.

Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, "olhos de cigana oblíqua e dissimulada." Eu não sabia o que era obliqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira, eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...

Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dane; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitou, mas então com as mãos, e disse-lhe,--para dizer alguma cousa,--que era capaz de os pentear, se quisesse.

--Você?

--Eu mesmo.

--Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim.

--Se embaraçar, você desembaraça depois.

--Vamos ver.

––––––––––-
continua…

domingo, 14 de abril de 2013

Messody Benoliel (Poesias & Trovas)

NÃO MAIS SOZINHA
.
Após um show, o retorno
na madrugada fria e chuvosa.
perigosas encruzilhadas
calçadas tortuosas

 E o ônibus não chega,
o pavor se apodera de mim.
De repente, um atabaque
batendo forte
chamando por OGUM.

 Tento em vão descobrir
de onde vem aquele canto
em louvor ao dono do aço.

 Mas o ônibus chegou
o medo passou
passou o cansaço.

SOLIDÃO

Na total solidão dessa casa,
onde respiro atmosfera triste,
não restou, de um mundo de guerras,
nenhum adversário a combater.

 Agora o inimigo quer paz.
Pudera! Ganhou a guerra!
E a guerreira, ingênua,
querendo salvar o que já havia perdido.

 As lágrimas predominando,
traição e cinismo destruindo
todo um sentimento verdadeiro,
abafado no peito, transformando-se em ódio.

 Ódio de mim e de você
que, ao premeditar a fuga,
tentou deixar sem rumo
quem só tinha olhos para vê-lo.

 No canto dos pássaros há esperança...
que conforta, que é alento.
Levo comigo a lembrança
de um amor, que foi amor por muito tempo.

SE...

Se amar é devanear à luz do dia,
deixando arder a chama interior,
creio sentir a esplêndida euforia
de ter vivido intensamente o amor.

 Se amar é não sofrer melancolia
e nem sequer de leve um dissabor,
um outro sentimento eu não devia
deixar crescer, enfim, com tanto ardor.

 Se foi assim, culpo a você somente
que me esqueceu sem pena, sem demora
não sei se infeliz ou felizmente.

 E se hoje vivo uma saudade imensa,
recordo com tristeza o amor de outrora
e a cicatriz dessa ferida intensa.

IDENTIDADE

Eu sou assim, coberta de incerteza
e paradoxalmente incontrolável
creio, portanto, mais do que explicável,
ser sempre um mar em plena correnteza.

 Sou o que sou devido a natureza
que não me quer de forma controlável
vivendo em ansiedade insustentável
que me atiça com muita sutileza.

 Sou contraste, sou várias numa só
sou fêmea calejada por amar
sabendo dar um laço e dar um nó.

 Sou outras, não sou nada certamente
necessário será me apaixonar
Para ser muitas, de repentemente.

ESTRADA QUE EU QUERIA

Vim pela estrada, certa de encontrar
a presença de um ombro doce e amigo,
passei por cravos, rosas e bendigo
a beleza do sol a rebrilhar.

De repente parei meu caminhar
ouvindo vozes a cantar comigo
canções ao som de um realejo antigo,
suavizando assim, o meu penar.

Contemplando o painel da natureza,
queria mais estrada percorrer,
extasiada de ver tanta grandeza.

Mas esqueci que a tarde já se ia
e a noite escura a me surpreender,
afastou-me da estrada que eu queria.

INCERTEZAS

Olhando o céu em busca do infinito
nuvens garbosas querem me dizer
que nesse espaço que não é restrito
elas bem sabem como se esconder.

Rara beleza em coração aflito
traz incertezas ao amanhecer,
fazendo assim, de um sonho tão bonito,
cruel verdade em que não quero crer.

Como é possível tal transformação?
teus tons mesclados, róseos, me encantavam
e de repente, a imensa escuridão.

Deixei de apreciar tuas belezas,
pois hoje sei o quanto me enganavam,
nuvens em mim ficaram… incertezas…

TACACÁ COM BASTANTE CAMARÃO

E mamãe me chamava:
– Vem, filha, vem almoçar.
Sem dar resposta, permanecia no meu quarto.

Aos gritos então insistia:
– Você vem ou não vem?
– Não, estou sem fome.

À noite, quando papai chegou, ela disse:
Ramiro, esta garota está doente ou
está comendo na rua muita porcaria…
Apavorada me escondia para
ouvir o que papai dizia:

– Deixe a menina em paz
Vai ver comeu na casa da coleguinha.
Na verdade, verdade mesmo, ao sair
da escola, pertinho do Largo da Pólvora,
tomava meu tacacá na lanchonete do bairro.
Aquela goma fresquinha com tucupi
e jambu treme-treme, me satisfaziam
pelo resto do dia.

Sei não, o açaí não tinha vez
por falta absoluta de espaço.

E papai ao saber de tudo, disse orgulhoso:
Minha filha puxou a mim que,
além de tacacazeiro, não abro mão
de um tacacá fresquinho com bastante camarão!

TROVAS

Nas asas da liberdade
firmei meu corpo a voar,
pois ser livre é ter vontade
de não parar de sonhar.

Minha mãe não tem descanso
nem após sua partida,
pois de chamá-la não canso,
pelos caminhos da vida.

Fontes:
– http://messodybenoliel.tripod.com/curriculum.htm
– http://www.poetasdelmundo.com/detalle-poetas.php?id=3900
– http://acervodagraphia.wordpress.com/category/messody-benoliel/

Messody Benoliel (1933)

Messody Ramiro Benoliel, artisticamente conhecida como Messody Benoliel nasceu no Rio de Janeiro aos 26 de novembro de 1933.

A família da avó de seu pai veio de Tânger e, vinda para o Brasil, parte do clã fixou-se em Belém do Pará e parte em Manaus, no Amazonas. Filha única de Sol Cohen Benoliel (nascida em Itacoatiara, Amazonas) e Ramiro Benoliel (nascido em Cametá, Pará),

Formou-se em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (velho casarão do Catete), em l956, tendo sido a primeira Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil-Mulher, da 28º Subseção e durante 2 biênios, Presidente da Subcomissão de Direitos Humanos da OAB, também na 28º Subseção, na década de oitenta.

Como cantora, começou pelas mãos de Renato Murce, no Programa Papel Carbono, da Rádio Nacional, na década de cinquenta. Cantava músicas do repertório de Dinah Shore, Ella Fitzgerald, Doris Day e de outros cantores estrangeiros. Cantou com grandes orquestras nos bailes de formatura, como ainda canta, com grandes músicos brasileiros, o Clássico Popular, MPB e Sambas. Em francês, tem agradado muito a todos que a ouvem, tendo sido chamada de Edith Piaf brasileira, pelo saudoso cantor intérprete Ivon Cury.

Profissionalizou-se há muitos anos e canta em 5 idiomas.

Como compositora ficou conhecidíssima no Município de Saquarema, onde durante mais de dez anos, foi autora dos sambas para os blocos Reco-Reco e Grilo, os quais eram cantados por ela nos ensaios e durante os desfiles carnavalescos.

É também autora de toadas cantadas pela população. Em 85, recebeu o título honofífico de Cidadã Saquarenense, do qual muito se orgulha, das mãos do Juiz de Direito Dr. Leomil Pinheiro.

Como poeta começou a fazer poesia aos 14 anos de idade Foi Presidente fundadora da Associação Profissional de Poetas no Estado do Rio de Janeiro (APPERJ) pertencendo a várias Academias de Letras, tendo sido a primeira mulher a ser Vice-Presidente da Federação das Academias de letras do Brasil, biênio 98/99, possuindo várias obras em Cordel, sendo Vice-Presidente da Sociedade Literária do Soneto, que se reúne mensalmente, no centro de Cidade do Rio de Janeiro.

Entidades a qual pertence:
– Presidente da Academia Brasileira de Trova,
– Assessora da Presidência da Casa do Compositor Musical (CCM).
– Fundadora e Assessora da Presidente da ALAP (Academia de Letras e Artes de Paranapuã),
– Fundadora do INBRASCI (Instituto Brasileiro de Culturas Internacionais),
– Vice Presidente Vitalícia da Academia Brasileira de Literatura de Cordel,
– Presidente Fundadora da Sociedade Literária do Soneto (SOLIS),
– Membro Efetivo da ACLERJ (Academia de Letras e Artes do Rio de Janeiro do Cenáculo Brasileiro de Letras e Artes ,
– Membro da APALA (Academia Pan Americana de Letras e Artes),
– Membro da Luso Brasileira de Letras e Artes,
– Membro Honorária da Academia Nacional de Letras,
– Membro do Pen Clube do Brasil,
– Membro do ARTPOP (Academia De Letras e Artes de Cabo Frio),
– Membro da UBE - (União Brasileira de Escritores),
– Membro Honorária da Academia Brasileira de Letras Mariana-MG,
– Membro da Sociedade Eça de Queiroz,
– Membro do Sindicato de Escriitores do Rio de Janeiro,
– Presidente Fundadora da APPERJ (Associação Profissional de Poetas no Estado do Rio de Janeiro),

– Premio da Academia de Ciencias, Letras e Artes de Paris, fundada em 1915, tendo recebido em  2010 a Medalha VÈRMEIL das mãos da Presidente Jaqueline Vermére, em Paris, indicada pelo Consul da França, com incontáveis premios como poeta (sonetista, cordelista e trovadora) e também com versos livres.

2011 – Troféus Cecilia Meireles e Carlos Drummond de Andrade, em Itabira Minas Gerais.

Autora dos livros de poesia:
A Solidão Que Ficou;
À Flor Da Pele;
Sob Todas as Coisas;
Identidade em Noite de Coroação;
In Verbis e
FACES,
 
com várias obras em cordel:
Primórdios da Literatura Cristã,
Leonardo Motta sua vida e sua obra,
A Coisa Preta na Casa Branca, etc.

Fontes:
– A Autora
– http://messodybenoliel.tripod.com/curriculum.htm
– http://www.jornalaldrava.com.br/pag_sbpa_messody.htm
– http://www.poetasdelmundo.com/detalle-poetas.php?id=3900
– http://acervodagraphia.wordpress.com/category/messody-benoliel/

sábado, 13 de abril de 2013

Orlando Woczikosky (Livro de Trovas)

A cantar, a minha vida,
eu canto em qualquer cidade,
mas minha terra querida,
eu não canto sem saudade!

Agora sou nau sem rumo,
Que zarpou da mocidade,
Para encalhar, eu presumo,
No banco duma saudade.

A mãe da gente é uma luz
que brilha, brilha e rebrilha:
dá-nos vida e nos conduz
pela mais sagrada trilha.

Amor que não tem saudade,
é planta que não dá flora;
amor que é amor de verdade,
na saudade é mais amor.

A mulher é diferente
no terreno da emoção:
- O homem diz sim e consente,
ela consente e diz não!

A nossa UBT querida
é meu verdadeiro amor,
faz parte da minha vida
como a um jardim, uma flor.

Às vezes, na multidão,
estou só sem ver ninguém,
porque a maior solidão
é estar longe do meu bem.

A vagar pela cidade
Hoje, bem longe de ti,
Vejo, através da saudade,
O tesouro que perdi.

Beba água mineral
e viva despeocupado,
porque água só faz mal
para quem morre afogado.

Cônscio de que nada valho,
quando te beijo, formosa,
eu sou uma gota de orvalho
que tremeluz numa rosa.

Convidei a minha sogra
pra passear no Butantã:
a velha mordeu a cobra,
e a cobra ficou tantã!

Curitiba, paraíso
Que mil encantos encerra,
Linda Cidade-Sorriso:
– Sorriso da minha terra!

Dezoito anos de idade
Completei no fim da guerra,
No fim da calamidade
Que tingiu de sangue a terra.

Dentro de certas pessoas
há duas forças latentes:
uma que as trona tão boas,
outra que as vira serpentes.

Desde que cedo me acordo,
Até que à noite me deito,
Com saudade te recordo,
Meu único amor perfeito!

Em noites de lua cheia,
no tênue alvor que se espraia,
minha alma foge e vagueia,
perambulando na praia.
 

É nobre quem não exalta
vitória já conquistada,
pois a nobreza mais alta
é vencer sem dizer nada.

É nos olhos que a pimenta
quando toca nos magoa:
quem tem sogra não a aguenta,
quem não tem diz que ela é boa.

Esta saudade é uma luz,
Na noite da minha vida,
O guia que me conduz
À tua imagem, querida.

Eu fui a tua metade
E foste a minha, porque,
Agora, só na saudade
Inteiro a gente se vê!

Eu não gosto de sorteio
Porque a sorte é contra mim:
Talvez porque eu seja feio,
De uma feiura sem fim.

Eu não troco uma jazida
De ouro puro e refinado,
Por uma hora vivida
Na saudade do passado.

Eu nasci pobre na vida,
no entanto sei quanto valho,
pois conheço a dor sentida
dos que tombam no trabalho.

Felicidade é a esperança
que está sempre em nós presente,
mas a gente não a alcança
e ela não alcança a gente!

Flavo sol que as flores pintas
com doce tonalidade,
empresta-me as tuas tintas,
quero pintar a saudade.

Minha avó, que já está morta,
queria tudo perfeito:
até fazendo uma torta,
fazia torta direito.

Não fosse a necessidade
De tanto, tanto te amar,
Sufocaria a saudade
Nas profundezas do mar.

Não me comove a riqueza,
E nem lhe adoro a conquista,
Pois, em saudade e pobreza
Também sou capitalista.

Não te incomodes, querida
Se o meu peito a dor invade,
Pois, são temperos da vida
A dor, o amor e a saudade.

Não vim para te dar um beijo,
vim pra te dar muito mais,
vim dizer que te desejo
O melhor dos teus Natais!

Natal é uma festa linda,
festa de luz e esplendor,
que nos rememora a vinda
De Jesus, Nosso Senhor.
 

Nesta vida de percalços
todo mundo tem defeitos,
mas entre honestos e falsos
todos se julgam perfeitos.

Neste ano, peça a Deus,
que a todos, como a você,
os mesmos tesouros seus,
aos seus semelhantes dê.

Ninguém proíbe que morras
nas tuas loucuras andanças,
mas dirigindo não corras
para não matar as crianças.

No dia dos namorados
fico triste, simplesmente,
por ver que há muitos coitados
sem ter a quem dar presente.

O amor é a coisa mais bela
deste mundo encantador!
E é você quem me revela
toda a beleza do amor!

O amor é igual à comida:
demais, não se dá valor;
quando falta em nossa vida,
dá-se a vida pelo amor!

Oh! doce mundo da infância,
todo em saudade tecido,
a recordar-te a distância,
eu choro por ter crescido.

Para trovar, certamente,
não bastam apenas rimas;
trovador inteligente
faz das trovas obras-primas.

Pela guerra não há glória:
- Perder, vencer, tanto faz!
- A verdadeira vitória,
só se alcança pela paz!

Por mais que hoje louve a vida
dos que fazem bem por lei,
trago n'alma a dor sentida,
dos males que pratiquei.

Pra me esquecer de você,
Tenho rezado à vontade!
Mas não te esqueço, porque
A minha reza é saudade.

Quando a trova justifica
sobejamente a valia,
- Rima pobre ou rima rica -
sempre é grande poesia.

Quando em meus braços te aperto,
todo o infinito sorri,
porque a vida é um céu aberto
quando estou perto de ti.

Quando tu fores velhinha
E eu também, da mesma idade,
Sentirás saudade minha,
Sentirei de ti saudade.

Quem diz que não tem saudade
e se é verdade o que diz,
não teve a felicidade
de já ter sido feliz.

Quem pratica a Medicina
espelhando-se em Jesus,
por certo Deus ilumina
com sua divina Luz.

Quem se afunda na bebida,
para afogar sua mágoa,
descobre, no fim da vida,
que a melhor bebida é água.

Que não valha a minha trova
por nada do que ela exiba,
senão por tudo o que prova
do valor de Curitiba.

Revivendo, na saudade,
a minha casa paterna,
Choro! Mas tenho vontade
que a saudade seja eterna.

Saudade é a lembrança viva
Daquilo que já morreu;
É fogo que inda se ativa
Das cinzas do escombro seu.

Saudade é coisa que nasce
À tona do pensamento,
E, por mais que o tempo passe,
Paramos nesse momento.

Saudade é lua que vaga
Nas sombras do sol do amor;
Quanto mais o sol se apaga,
Mais a lua traz langor.

Saudade é luz matutina
no crepúsculo da gente.
Sol que o passado ilumina
quando escurece o presente.

Se, à noite, chega o negror
E todo o meu ser invade,
Clareia-se o meu amor,
Dentro da luz da saudade.

Se eu de você fico ausente
e alguém os meus olhos vê,
lendo os meus olhos pressente,
no fundo deles, você!

Se partes, fica o desgosto
da minha alma sem a tua,
e eu pareço um rei deposto
perambulando, na rua.

Ser Presidente de Honra
da UBT, é, para mim,
mais do que uma simples honra,
é uma lisonja sem fim.

Sou feliz por te dizer,
em palavra comovida,
que minha vida é um prazer
se há prazer na tua vida.

Trocando sempre teus ares,
foges de mim com prazer;
mas apesar dos pesares
eu não te posso esquecer.

Tudo que é bom, nesta vida,
foge-nos celeremente,
somente a dor mais sentida
fica na vida da gente.

Vermelho igual ao tomate,
meu coração é um bife:
quanto mais alguém lhe bate,
mais amolece o patife.

Fonte:
José Feldman (org, sel, ed.). Trova Brasil numero 10 - abril de 2013

Olivaldo Júnior (Último Lampejo)

Quando se atravessa um deserto, espera-se encontrar um oásis. Ou não.

Uma lâmpada

Ficou acesa, quando devia ter ficado apagada.
Apagou-se, quando devia ter ficado candente.

Uma lâmpada, uma lâmina, uma luz guardada,
não uma busca, uma augusta chance presente.

Ficou à mesa, quando devia ter ficado velada.
Revelou-se, quando devia ter virado semente.

Uma lâmpada, uma lança, não uma luz parada,
mas uma luz, mas uma lua, grande e plangente.

Virou a presa, quando devia ter virado caçada.
Escondeu-se, quando devia ter virado nascente.

Uma lâmpada, uma lã, mina de luz, mais nada.

Moji Guaçu, SP, dezenove de março de 2013.

Cláudia Dimer (Não Serei Fim)

Fonte:
Facebook

Adelto Gonçalves (Ramalho Ortigão: vencido e vencedor da vida)

RAMALHO ORTIGÃO: UM MARCO NA LITERATURA PORTUGUESA, de Ednilo Soárez. 
Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 382 págs., 2008.

I

No Brasil, entre os autores clássicos da Língua Portuguesa, Eça de Queirós (1845-1900) talvez só perca em popularidade para Machado de Assis (1839-1908). Já Ramalho Ortigão (1836-1915), que foi professor de Francês de Eça no Colégio da Lapa, no Porto, e deixou uma obra tão importante quanto a do ex-aluno, ainda é bem pouco conhecido.

Foi para ajudar a reparar esse desconhecimento e “por uma questão de justiça” que Ednilo Soárez, de 69 anos, diretor acadêmico da Faculdade Sete de Setembro, de Fortaleza, e membro da Academia Fortalezense de Letras, escreveu Ramalho Ortigão, um marco na literatura portuguesa (Fortaleza, Expressão Gráfica Editora, 2008), que traz ainda prefácio assinado pelo professor doutor Ernesto Rodrigues, do Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e textos de apresentação de Linhares Filho e Dimas Macedo.

José Duarte Ramalho Ortigão nasceu no Porto e estudou Direito na Universidade de Coimbra. De regresso ao Porto, dedicou-se ao ensino, dando aulas de Francês no Colégio da Lapa, do qual seu pai era diretor. Estabeleceu-se em Lisboa ao ser nomeado oficial da secretaria da Academia das Ciências, começando a colaborar em vários jornais e revistas. Fez várias viagens ao estrangeiro, idas que influenciaram o seu modo de ver Portugal, mas residiu durante a maior parte de sua vida na Calçada dos Caetanos, na freguesia da Lapa, em Lisboa.

Ortigão e Eça foram amigos da vida inteira e, inclusive, escreveram As Farpas, opúsculos de capa alaranjada que começaram a aparecer nas bancas e quiosques de Lisboa a 17 de junho de 1871. Na verdade, a publicação teve a colaboração de Eça de Queirós pelo menos até o número de setembro-outubro de 1872, quando o escritor partiu como cônsul para as Antilhas espanholas.

Já a de Ramalho estender-se-ia ao longo de 11 anos. Para quem quiser conhecer o que foi esta colaboração a quatro mãos dos escritores, diga-se que saiu em 2004 uma nova edição de As Farpas - crônica mensal da política, das letras e dos costumes, de Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, livro editado sob coordenação-geral de Maria Filomena Mônica (Cascais, Principia).

Em Ramalho Ortigão, um marco na literatura portuguesa, Soárez traça um retrato da vida literária portuguesa do século XIX, indo do Romantismo, de Alexandre Herculano (1810-1877), ao Realismo, de Eça de Queirós, além de abordar as três principais obras do autor, A Holanda, John Bull e As Farpas, na impossibilidade de analisar uma obra imensa que reúne pelo menos 21 livros, dos quais três em dois volumes. Para o autor, esta obra é um reconhecimento pelo que o povo português fez pela nação brasileira, pois “foi graças a Portugal que temos essa dimensão territorial, essa miscigenação característica e essa diversidade de religiões no Brasil”.

II

Como observa Dimas Macedo num dos textos de apresentação, Ramalho Ortigão, um marco na literatura portuguesa não constitui uma biografia no sentido clássico de uma descrição cronológica dos fatos de uma vida, mas “um tributo à historiografia das ideias que determinaram a formação e a autonomia de voo de Ramalho Ortigão”. É, acrescente-se, mais uma “viagem sentimental”, um pouco à maneira de Laurence Sterne (1813-1868), em que o ensaísta percorre de maneira figurada o Portugal dos séculos XVIII e XIX para explicar como o país caiu na chamada “questão coimbrã” que resultou da reação de uma plêiade de jovens intelectuais, insatisfeitos com a situação de inferioridade à que estava reduzida a nação.

A essa época, Ramalho Ortigão surge, ao lado de Eça de Queirós, Antero de Quental (1842-1891), Teófilo Braga (1843-1924), Oliveira Martins (1845-1894) e Guerra Junqueiro (1850-1923), formados em Coimbra, como um dos espíritos mais lúcidos e representativos deste momento da literatura portuguesa. Foi contra a paralisia à que estaria relegado Portugal que esta geração turbulenta, a chamada Geração de 70, revoltou-se, voltando os olhos especialmente contra Antonio Feliciano de Castilho (1800-1875), que representava todo o status de tradição e autoridade que os jovens de então não queriam mais aceitar. Por isso, o grupo começou a idealizar um programa de reforma social e política.

Como disse Antero de Quental numa das famosas conferências do Cassino, em duzentos anos, a Península não produzira um só único homem superior, que se pudesse colocar ao lado dos grandes criadores da ciência moderna. Para Antero e para os seus companheiros de geração, enquanto as grandes nações européias fixaram sua riqueza na indústria e na agricultura, portugueses e espanhóis, com a conquista, teriam arruinado seu comércio, indústria e agricultura, propiciando as condições para o surgimento de gerações que haviam condenado Portugal ao atraso.

Como mostra Soárez, se essas conferências inflamadas serviram para incendiar o ambiente cultural e político de Lisboa, o foi por pouco tempo porque logo, com a passagem dos anos, esses jovens veriam que não seria possível, por meio da literatura, devolver a Portugal as glórias (ainda que hiperbólicas) das grandes navegações do século XVI. Frustrados, os antigos jovens de Coimbra formaram o grupo dos Vencidos da Vida, fixado em onze componentes porque Eça de Queirós, por pura superstição, não queria que fossem treze nem doze (para evitar qualquer associação com o número considerado fatídico).

III

Munido de vasta bibliografia, Soárez recupera os caminhos cruzados de Ortigão e Eça, detendo-se especialmente no ódio que ambos devotavam à classe política portuguesa do tempo que, como no Brasil, ainda não é muito diferente da de hoje– é bem provável que, tanto lá como cá, seja ainda pior. Lembra o autor que Ortigão criticava os políticos porque usavam frases de efeito, sem consistência prática, além de cometer muitos erros. “O plebeísmo da palavra torna rasteira a opinião. Uma Câmara que fala mal é impossível que proceda bem”, dizia.

Quem quiser, por exemplo, usar esta frase, ao se referir ao Congresso brasileiro, por certo, não agirá mal. Ou ainda esta desta Eça de Queirós: “O corpo legislativo há muitos anos que não legisla. (...) vem apenas a ser uma assembléia muda, sonolenta, ignorante, abanando com a cabeça que sim”.

Soárez, porém, não só louvaminha Ortigão e Eça, pinçando as suas melhores frases aqui e ali. Destaca também que Ortigão não escapou aos preconceitos de seu século, embora tivesse sido um dos espíritos mais lúcidos de uma geração brilhante, deixando-se trair pelo espírito machista, quando afirma: “(...) Nada a prende ao colégio: nem a serenidade da vida – porque é o sangue buliçoso e sacudido dos seus quatorze anos que aspira a repousar: nem o estudo – porque a mulher pela constituição de seu cérebro não adere aos interesses do estudo e da ciência”.

Para Soárez, a vida e a obra de Ramalho Ortigão representam uma síntese perfeita do que foi o século XIX, especialmente com As Farpas, que ocupam um capítulo especial no conjunto de sua produção literária, tal a mestria com que maneja a ironia. Um exemplo pinçado por Soárez é a maneira sarcástica como pinta os diplomatas portugueses de seu tempo, que passariam apertados em razão da pouca disponibilidade do erário régio para sustentá-los no exterior. “(...) E se eles não podem alcançar bons tratados para o país – é porque andam ocupados em arranjar mais roast-beef para o estômago. Se não fossem os jantares da corte e as ceias dos bailes, a posição de diplomata português era insustentável. Lá fora sabe-se isto: e é sempre com terror que os donos da casa vêem entrar o embaixador português, à frente do seu pessoal esfomeado”.

IV

O livro de Soárez foi apresentado no dia 8 de novembro de 2008 na Reitoria da Universidade de Lisboa, em sessão que contou com a participação do professor Ernesto Rodrigues, autor do prefácio, e com a presença do reitor António Nóvoa, e do embaixador do Brasil, Celso Marcos Vieira de Sousa, abrindo o ano acadêmico da instituição.
Soárez é ainda membro da Academia Cearense de Retórica e sócio-efetivo do Instituto do Ceará e da Associação Brasileira de Bibliófilos. Escreveu o livro didático Idéias gerais para uma sala de aula feliz, a biografia Edilson Brasil Soárez, um marco na Educação, o romance A brisa do mar e o ensaio Miscigenação nos Trópicos.

Fonte:
Revista Storm

Alphonse Daudet (A Mula do Papa)

Entre todos os ditados, provérbios ou adágios com que os nossos camponeses da Provença entremeiam suas frases, não conheço nenhum outro mais pitoresco, nem mais original do que este. Numa extensão de quinze léguas ao redor do meu moinho, quando alguém se refere a um homem rancoroso, vingativo, costumam observar-lhe: “Cuidado com esse homem! É como a mula do papa, que guarda sete anos o seu coice”.

Durante muito tempo procurei a origem de tal provérbio, a fim de saber o que significava aquela mula papal e o coice guardado durante sete anos. Ninguém aqui soube esclarecer-me, nem mesmo Francet Mamai, tocador de pífaro, que conhece a fundo o legendário provençal. Francet supõe, como eu, que deve existir, envolvendo o ditado, alguma antiga crônica da região de Avinhão; mas não ouvira falar dela a não ser através do provérbio.

— O senhor só encontrará a explicação na biblioteca das Cigarras — observou o velho tocador de pífaro, rindo-se.

A idéia pareceu-me boa, e como a biblioteca das Cigarras fica perto de casa, lá me encerrei durante oito dias.

É uma maravilhosa biblioteca, admiravelmente instalada, aberta aos poetas dia e noite, e atendida por pequenos bibliotecários munidos de címbalos, que tocam música o tempo todo. Lá passei alguns dias deliciosos. Após uma semana de incessantes buscas, acabei descobrindo o que desejava, isto é, a história da mula e do famoso coice guardado durante sete anos. É um bonito conto, embora um tanto ingênuo, e vou experimentar narrá-lo tal como o li ontem de manhã num manuscrito cor do tempo, que rescendia a alfazema seca e tinha grandes fios da Virgem [1] como sinetes.

Quem não viu Avinhão no tempo dos papas, nada viu. Não havia cidade que se lhe comparasse em animação, no esplendor das festas. De manhã à noite eram procissões, peregrinações, ruas juncadas de flores, forradas com longas tapeçarias, recepções de cardeais que chegavam pelo Ródano, flâmulas ao vento, galeras embandeiradas, soldados do papa que cantavam nas praças em latim, matracas dos irmãos mendicantes; depois, nas casas que se comprimiam, zumbindo em redor do grande palácio papal como abelhas em torno da colméia, ressoavam, de cima a baixo, o tique-taque dos teares de renda, o vaivém das lançadeiras tecendo o ouro das casulas, os pequenos martelos dos cinzeladores de galhetas, as pranchas de cordas afinadas nas oficinas dos fabricantes de instrumentos musicais, os cânticos das fiandeiras; e, acima de tudo, o badalar dos sinos e o rumor dos tamborins que vinha lá do outro lado da ponte. Pois entre nós, quando o povo está satisfeito, precisa dançar; e como nesse tempo as ruas da cidade eram demasiadamente estreitas para servir de palco à farândola, tocadores de pífaros e de tamborins postavam-se na ponte de Avinhão, e à fresca aragem do Ródano o povo dançava.

Ah! que bons tempos! que ditosa cidade! Alabardas que não feriam, prisões do Estado onde o vinho era colocado para refrescar. Nem carestia, nem guerra! Aí está como os papas do condado sabiam governar o povo; e aí está por que o povo tanto lamentou a ausência deles!

Havia sobretudo um, o bom velho chamado Bonifácio... Oh! quantas lágrimas foram derramadas em Avinhão, quando ele morreu! Era um príncipe tão amável, tão agradável! De cima de sua mula ele sorria para todos. E quando alguém passava a seu lado — fosse um pobre e insignificante apanhador de garança ou o importante juiz da cidade — dava-lhe a bênção com tanta cortesia! Um verdadeiro papa de Yvetot [2], mas de um Yvetot provinciano, com algo malicioso no riso, um galhinho de manjerona no barrete e nenhuma Jeanneton [3]. A única preferência que se lhe conhecia era por sua vinha — uma pequena vinha que plantara com suas próprias mãos, a três léguas de Avinhão, entre as murtas de Châteauneuf.

Todos os domingos, ao sair das vésperas, o digno homem ia prestar-lhe homenagem; e lá, sentado ao sol, ao lado da mula, rodeado pelos cardeais estendidos junto aos troncos, ele mandava desarrolhar uma garrafa de vinho recente, do belo vinho cor de rubi, que foi chamado mais tarde Châteauneuf-du-Pape, e saboreava-o aos pequenos goles, fitando a vinha com ternura. Ao declinar do dia, esvaziada a garrafa, ele regressava alegremente para a cidade, seguido pelo capítulo. Quando passava pela ponte de Avinhão, no meio dos tambores e das farândolas, a mula, animada pela música, tomava uma andadura miúda e saltitante, enquanto ele marcava o compasso da dança com o barrete, o que muito escandalizava os cardeais, mas fazia o povo exclamar: “Ah! que bom príncipe! Ah! que ótimo Papa!”

Depois da vinha de Châteauneuf, o que o papa mais amava no mundo era a sua mula. Bonifácio era louco pelo animal. Todas as noites, antes de deitar-se, ia verificar se o estábulo estava bem fechado, se faltava alguma coisa na manjedoura, e nunca se levantava da mesa sem que mandasse preparar sob as suas vistas uma grande tigela de vinho, à francesa, com bastante açúcar e drogas odoríferas; e malgrado as observações dos cardeais, ele mesmo a levava para a mula.

É preciso observar que o animal merecia tais cuidados. Era uma bonita mula negra, mosqueada de vermelho, passo firme, pêlo brilhante, ancas largas e cheias, que sabia erguer altivamente a cabecinha fina, toda ajaezada de borlas, de laços, de guizos de prata e de fitas. Além disso, mais mansa do que um anjo, com olhos ingênuos e duas longas orelhas sempre em movimento, que lhe davam um ar bonacheirão. Avinhão inteira a respeitava, e quando ela passava pelas ruas não havia cortesias que não recebesse; pois todos sabiam que era a maneira mais segura de obterem favores na corte, e que, com o seu ar inocente, a mula do papa conduzira mais de uma pessoa aos braços da fortuna; aí estão Tistet Védène e sua prodigiosa aventura, para prová-lo.

No início, Tistet Védène era um rapazinho atrevido, a quem o próprio pai, o ourives Guy de Védène, fora obrigado a expulsar de casa, porque se recusava a trabalhar e desencaminhava os aprendizes. Durante seis meses viram-no perambular por todos os cantos de Avinhão, mas principalmente pelos lados do palácio papal; pois havia muito tempo que o patife deitara as vistas sobre a mula do papa, e veremos com que intenções malignas. Certo dia, quando Sua Santidade passeava sozinho no seu animal, sob os muros do pátio, Tistet Védène aborda-o e observa, juntando as mãos num gesto de admiração:

— Ah, meu Deus! Grande papa, que bela mula vós possuís! Permiti que a olhe um pouco... Ah! meu papa, que linda mula! nem o imperador da Alemanha tem outra igual!

E Tistet acariciava o animal e falava-lhe suavemente, como se fosse uma moça:

— Minha jóia, meu tesouro, minha pérola preciosa.

E o bom papa, comovido, dizia consigo mesmo: “Que bom rapazinho! Como é amável com a minha mula!”

E sabem o que aconteceu no dia seguinte? Tistet Védène trocou o velho paletó amarelo por uma alva de rendas, uma opa de seda violeta, sapatos de fivelas, e entrou no coro papal, onde antes dele só os filhos dos nobres e os sobrinhos dos cardeais tinham sido recebidos. Vejam só quanto pode a intriga!

Mas Tistet não se deu por satisfeito. Depois de entrar no serviço do papa, o malandro continuou a fazer o seu jogo, que tão bons resultados produzira. Insolente com todos, só reservava suas atenções e cortesias para a mula. Era sempre visto nos pátios do palácio, tendo nas mãos um punhado de aveia ou um molho de feno, cujas pencas cor-de-rosa delicadamente ele sacudia, enquanto fitava o balcão do Santo Padre, como se dissesse: “Então? Para quem é isso?”

Tanto fez, que finalmente o bom papa, que se sentia envelhecer, lhe deu a incumbência de cuidar do estábulo e de levar a tigela de vinho à francesa para a mula. Mas dessa vez os cardeais não acharam graça.

Também a mula não achou graça... Agora, à hora do vinho, ela assistia à chegada de cinco ou seis pequenos sacristães do coro papal, que se metiam no meio da palha com suas opas e suas rendas. Pouco depois, um cheiro gostoso de caramelo e de especiarias enchia o estábulo, e Tistet Védène surgia trazendo com precaução a tigela de vinho à francesa. Então começava o martírio do pobre animal.

Tinham a crueldade de levar à sua manjedoura o vinho perfumado, que ela tanto apreciava, e de fazê-la cheirá-lo; depois, quando as suas narinas se impregnavam do aroma — adeus! O belo líquido cor de chamas rosadas descia inteirinho pela garganta daqueles patifes. Se apenas se limitassem a roubar-lhe o vinho... Porém, depois de terem bebido, os pequenos sacristães se transformavam em verdadeiros demônios: um lhe puxava as orelhas; o outro, a cauda; Quiquet montava-lhe nas costas; Béluguet punha-lhe o barrete na cabeça. E nenhum desses malandros imaginava que com um golpe de flanco, ou um coice, o pacífico animal poderia enviá-los à Estrela Polar, e até mais longe. Nada disso! Nunca se esquecia de que era a mula do papa, a mula das bênçãos e das indulgências.

Por mais que a atormentassem, ela não se zangava. Se guardava rancor, era apenas contra Tistet Védène. Quando percebia que este se encontrava à sua retaguarda, sentia cócegas no casco, e na verdade sobravam-lhe motivos para tanto. Aquele tratante Tistet pregava-lhe bem boas peças. Tinha invenções cruéis depois de beber... Pois não se resolveu um dia a obrigá-la a subir ao pequeno campanário do coro, lá em cima, bem em cima, no alto do palácio?

O fato que lhes relato não é anedota, dois mil provençais presenciaram-no. Imaginem o terror da desgraçada mula quando, após ter dado voltas durante uma hora inteira numa escada de caracol, quase às cegas, e tendo subido não sei quantos degraus, subitamente se encontrou numa plataforma ofuscante de luz. A mil pés abaixo, avistou um Avinhão fantástico, onde as barracas do mercado não eram maiores do que avelãs; os soldados do papa, postados diante da caserna, pareciam formigas vermelhas; e lá longe, sobre um fio de prata, equilibrava-se uma ponte microscópica, cheia de gente que dançava, dançava... Ah! Pobre animal! que pânico!

Todos os vidros do palácio tremeram com o berro que soltou.

— Que aconteceu? que lhe fizeram? — exclamou o bom papa, precipitando-se para o balcão.

Tistet Védène, que já regressara ao pátio, fingiu que chorava e arrancava os cabelos:

— Ah! Grande papa, o que aconteceu! Aconteceu que a vossa mula... Meu Deus! que será de nós?... Aconteceu que a vossa mula subiu ao campanário.

— Sozinha?!

— Sozinha, sim, grande papa... Vede! Olhai para cima. Não vedes aparecendo lá a ponta de suas orelhas? Dir-se-iam duas andorinhas!

— Misericórdia! — exclamou o pobre papa, erguendo os olhos. — Mas ela enlouqueceu! vai matar-se... Não quer descer daí, minha pobre!...

Ai dela! Não pedia outra coisa senão descer. Mas como fazê-lo? Não podia pensar na escada. Fora-lhe possível subir por uma coisa daquelas, mas se fosse descer, arriscava-se a quebrar cem vezes as pernas. A pobre mula afligia-se, e enquanto vagueava pela plataforma com seus grandes olhos cheios de vertigem, pensava em Tistet Védène: “Ah bandido! Se eu escapar desta, que coice você levará amanhã cedo!”

A idéia do coice dava-lhe um pouco de firmeza às pernas, sem o que ela não se agüentaria. Enfim, depois de um sem-número de peripécias, conseguiram retirá-la lá de cima. Foi preciso descê-la com um guindaste, cordas, uma padiola. E imaginem que humilhação para a mula de um papa ficar suspensa de tamanha altura, agitando as patas no vácuo, como um besouro na ponta de um fio... E Avinhão inteira que a contemplava!

O infeliz animal não dormiu nessa noite. Estava sob a impressão de continuar a dar voltas na maldita plataforma, enquanto a cidade se ria lá embaixo. E também pensava no infame Tistet Védène e no belo coice com que ela o brindaria na manhã seguinte. Ah! meus amigos, que coice! Até em Pampérigouste avistariam a fumaça.

Ora, enquanto a mula preparava a Tistet Védène uma bela recepção no estábulo, sabem o que fazia ele? Descia o Ródano numa galera papal, cantando, em direção à corte de Nápoles, em companhia dos jovens nobres que a cidade enviava todos os anos para junto da rainha Jeanne, a fim de exercitarem-se na diplomacia e nas boas maneiras. Tistet não era nobre, mas o papa fazia questão de recompensá-lo pelos cuidados que prodigalizava à mula, e principalmente pela atividade que ele desenvolvera durante o salvamento da mesma.

Bem que a mula ficou desapontada no dia seguinte. “Ah! bandido! Desconfiou de alguma coisa! — ponderou ela, sacudindo violentamente os seus guizos. — Não importa, malvado! Ao regressar, você encontrará o seu coice. Vou guardá-lo”. E assim o fez.

Depois da partida de Tistet, a mula da papa voltou à sua rotina tranqüila e retomou os antigos hábitos. Nem Quiquet nem Béluguet apareciam na estrebaria. Os belos dias do vinho à francesa retornaram, e com eles o bom humor, as longas sestas e o passinho de gavota ao passar pela ponte de Avinhão. Contudo, após a aventura do campanário, a cidade esfriara um pouco em relação à mula. Cochichavam quando ela passava, os velhos balançavam a cabeça e as crianças riam, apontando o campanário. O próprio papa não depositava em sua amiga a mesma confiança. Quando se permitia um cochilo às suas costas, ao regressar da vinha, fazia-o com certa prevenção: “Se eu fosse acordar lá em cima, na plataforma!” A mula observava tudo isso e sofria, sem nada dizer. Apenas, quando pronunciavam na sua frente o nome de Tistet Védène, suas compridas orelhas estremeciam, e com um risinho mau ela aguçava no calçamento o ferro dos seus cascos.

Assim transcorreram sete anos. Ao cabo desse tempo, finalmente Tistet Védène regressou da corte de Nápoles. Ainda não concluíra o seu estágio, mas soubera que o primeiro mostardeiro do papa acabava de falecer subitamente, em Avinhão. E como o posto lhe parecera bom, embarcara às pressas a fim de incorporar-se à fila dos candidatos.

Quando o intrigante Védène entrou no salão do palácio, o santo padre mal o reconheceu, tanto ele crescera e encorpara. É preciso dizer que o bom papa envelhecera bastante, e já não enxergava tão bem. Tistet não se intimidou:

— Como! Santo papa, não me reconheceis? Eu, Tistet Védène...

— Védène?

— Sim, bem sabeis... O rapaz que levava o vinho francês à vossa mula.

— Ah! sim... sim... lembro-me. Um bom rapazinho, esse Tistet Védène. E agora, que desejais de nós?

— Oh! pouca coisa, santo papa. Vim pedir-vos... A propósito, a vossa mula ainda está viva? E vai bem? Ah! tanto melhor! Eu vinha pedir-vos o lugar do primeiro mostardeiro, que acaba de morrer.

— Primeiro mostardeiro, tu! Mas és muito jovem. Que idade tens?

— Vinte anos e dois meses, ilustre pontífice, justamente cinco anos mais que a vossa mula... Ah! senhor, que bom animal! Se soubésseis como eu gostava da vossa mula, como senti saudades dela na Itália! Ser-me-á permitido vê-la?

— Sim, meu filho, tu a verás — respondeu o bom papa, comovido. — E já que estimas tanto esse bravo animal, não quero mais que vivas longe dele. De hoje em diante ficas a meu serviço na qualidade de primeiro mostardeiro. Meus cardeais protestarão, mas tanto pior, estou habituado. Vem procurar-nos amanhã, à saída das vésperas. Nós te entregaremos as insígnias da tua nova dignidade, na presença de nosso capítulo. Depois eu te levarei para ver a mula, e nos acompanharás à vinha. Ah! ah! ótimo!

Não preciso dizer-lhes se Tistet Védène estava contente ao sair do salão, nem com que impaciência aguardou a cerimônia do dia seguinte. Contudo, havia no palácio alguém mais feliz e mais impaciente do que ele: era a mula. Desde o regresso de Védène até as vésperas do dia seguinte, o terrível animal não cessou de empanturrar-se de aveia e de bater na parede com os cascos traseiros. Também se preparava para a cerimônia.

E no dia seguinte, após terem sido rezadas as vésperas, Tistet Védène fez sua entrada no pátio do palácio papal. Todo o alto clero se encontrava presente: os cardeais em trajes vermelhos, o advogado do diabo vestido de veludo negro, os abades do convento com suas pequenas mitras, os provedores de Saint-Agricol, o coro com opas violetas, e também confrarias de penitentes, os eremitas do monte Ventoux com suas fisionomias fechadas, o pequeno clérigo atrás carregando a campainha, os irmãos flageladores, nus até a cintura, os sacristães vestidos com togas de juízes — todas, todos, até os doadores de água benta, e aquele que acende, e aquele que apaga, não faltava um só. Ah! Era uma bela ordenação! Sinos, foguetes, sol, música, e sempre aqueles danados tamborins que marcavam a dança, lá na ponte de Avinhão.

Quando Védène apareceu no meio da assembléia, seu garbo e sua bela presença fizeram perpassar um murmúrio de admiração. Era um magnífico provençal, dos louros, com longos cabelos de pontas frisadas e uma pequena barba caprichosa, que parecia feita com as lascas de metal precioso caídas do buril de seu pai, o ourives. Corriam rumores de que os dedos da rainha Joana tinham brincado algumas vezes com aquela barba loura; e efetivamente o senhor de Védène ostentava o ar glorioso e o olhar distraído dos homens que foram amados por rainhas. Nesse dia, a fim de honrar a sua terra, ele substituíra os trajes napolitanos por uma jaqueta com debruns cor-de-rosa, à provençal, e no seu chapéu tremulava uma grande pena de íbis de Camargue.

Depois de ter entrado, o primeiro mostardeiro cumprimentou com galhardia e dirigiu-se para o alto patamar onde o papa o aguardava para entregar-lhe as insígnias da sua nova dignidade: a colher de buxo amarelo e o hábito cor de açafrão. A mula permanecera ao pé da escada, toda ajaezada e pronta para seguir para a vinha. Ao passar perto dela, Tistet Védène sorriu-lhe amavelmente e deteve-se para dar-lhe dois ou três tapinhas amigáveis nas costas, enquanto observava com o canto do olho se o papa o estava vendo. O momento era propício. A mula tomou impulso: “Toma, bandido! Faz sete anos que o guardo para você!”

E deu-lhe um coice tão violento, tão terrível, que até em Pampérigouste foi vista a fumaça, um turbilhão de fumaça loura onde voltejava uma pena de íbis, tudo quanto restava do infortunado Tistet Védène.

Habitualmente os coices das mulas não costumam ser tão fulminantes. Mas era uma mula papal, e além disso, pensem bem: ela o guardava havia sete anos!
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NOTAS:
1 - Fils da la Vierge — fios escapados do fuso de Maria, segundo a imaginação popular. São produzidos por diversas aranhas nômades e que não fazem ninhos.
2 - Yvetot — vila da França que foi antigamente capital de um pequeno reino. Em virtude de uma canção popular, o rei de Yvetot ficou na literatura como o tipo do rei bonacheirão.
3 - Jeanneton — termo de gíria. Significa criada de albergue, de costumes fáceis.

Fonte:
Alphonse Daudet, Lettres de mon moulin. In http://contosbemcontados.blogspot.com.br/

Lino Mendes (Baú de Memórias: Quinta-Feira da Ascenção)

É uma “data” que ainda se festeja em várias terras do País, creio  que há dois anos em Lisboa, os “ raminhos de esperança”, assim lhe chamavam, eram vendidos a um euro e meio.”Trata-se de um ritual pagão e religioso, que tem como objectivo benzer os primeiros frutos primaveris e levar para casa um ramo florido que simboliza a fartura e a harmonia para a família”(DN).

Em tempos idos, também por aqui a “Quinta-feira da Ascensão” era tempo de festa com piqueniques e bailaricos, sendo o Pinhal das Lourenças um dos lugares de que me falam. E, claro , na parte da tarde toda a minha gente ia apanhar a espiga. Hoje, alguém se lamentava, é que tudo acabou…

Este dia de quinta-feira, corresponde ao da Ascensão de Cristo aos Céus quarenta dias após a ressurreição, por isso o dito popular de que “ da Páscoa à Ascensão quarenta dias vão”. Não se sabe no entanto, quando a mesma passou a coincidir com o “dia da espiga”, determinando que ao fator litúrgico se aliasse a componente pagã. Litúrgico , porque então e nesse dia, nos templos católicos e do meio dia à uma se celebrava a reza da hora; pagã, por toda uma série de actividades ligadas ao campo e ao camponês para quem, segundo Mircea Eliade (antropólogo e historiador) a terra era entendida como a Grande Mãe.

Há hábitos que se vêm perdendo com o decorrer dos tempos e funcionavam mesmo com um sentido apelativo à protecção, como colocar ramos de oliveira por cima das portas e das janelas para dar sorte, para combater as trovoadas. Hábitos que hoje seria interessante recordar e manter como tradição, acredite-se ou não, por exemplo, que” quem tem trigo da Ascensão todo o ano terá pão”.

“Tradicionalmente, no Alentejo deve-se colher o Ramo da Espiga do meio-dia à uma hora da tarde e consta que o ramo seja constituído por cinco folhas de oliveira, cinco espigas de trigo e o maior número possível de flores amarelas e brancas. Por vezes, e segundo as devoções de cada um, esta “apanha” era acompanhada pelo rezar de cinco Pai-Nossos, cinco Avé Marias e cinco Glórias, ”sendo “ que o número e a espécie de elementos constituintes do Ramo varia de terra para terra, de grupo para grupo, de família para família”. (Rui Arimateia—Diário do Sul-7/5/97).

Em MONTARGIL, e tanto quanto sabemos, para dar sorte, para não se acabar o dinheiro, era feito um ramo com três ou cinco espigas de centeio , trigo e cevada, um raminho de oliveira e flor do campo (papoila e malmequer), que depois se guardava em casa, pendurado até ao ano seguinte.

Fonte:
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