sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Eça de Queiroz (O Senhor Diabo)

Conhecem o Diabo?

Não serei eu quem lhes conte a vida dele. E, todavia, sei de cor a sua legenda trágica, luminosa, celeste, grotesca e suave!

O Diabo é a figura mais dramática da História da Alma. A sua vida é a grande aventura do Mal. Foi ele que inventou os enfeites que enlanguescem a alma, e as armas que ensanguentam o corpo. E, todavia, em certos momentos da história, o Diabo é o representante imenso do direito humano. Quer a liberdade, a fecundidade, a força, a lei. É então uma espécie de Pã sinistro, onde rugem as fundas rebeliões da Natureza. Combate o sacerdócio e a virgindade; aconselha a Cristo que viva, e aos místicos que entrem na humanidade.

É incompreensível: tortura os santos e defende a Igreja. No século 16 é o maior zelador da colheita dos dízimos.

É envenenador e estrangulador. É impostor, tirano, vaidoso e traidor. Todavia, conspira contra os imperadores da Alemanha; consulta Aristóteles e Santo Agostinho, e suplicia Judas que vendeu Cristo e Bruto que apunhalou César.

O Diabo ao mesmo tempo tem uma tristeza imensa e doce. Tem talvez nostalgia do Céu!

Ainda novo, quando os astros lhe chamavam Lúcifer, o que leva a luz, revolta-se contra Jeová e comanda uma grande batalha entre as nuvens. Depois tenta Eva, engana o profeta Daniel, apupa Jó, tortura Sara e em Babilônia é jogador, palhaço, difamador, libertino e carrasco. Quando os deuses foram exilados, ele acampa com eles nas florestas úmidas da Gália e embarca expedições olímpicas nos navios do imperador Constâncio. Cheio de medo diante dos olhos tristes de Jesus, vem torturar os monges do Ocidente.

Escarnecia S. Macário, cantava salmos na igreja de Alexandria, oferecia ramos de cravos a Santa Pelágia, roubava as galinhas do abade de Cluny, espicaçava os olhos de S. Sulpício e à noite vinha, cansado e empoeirado, bater à portaria do convento dos dominicanos em Florença e ia dormir na cela de Savonarola.

Estudava o hebreu, discutia com Lutero, anotava glosas para Calvino, lia atentamente a Bíblia e vinha ao anoitecer para as encruzilhadas da Alemanha jogar, com os frades mendicantes, sentados na relva, sobre a sela do seu cavalo. Intentava processos contra a Virgem; e era o pontífice da missa negra, depois de ter inspirado os juízes de Sócrates.

Nos seus velhos dias, ele que tinha discutido com Átila planos de batalha, deu-se ao pecado da gula. E Rabelais, quando o viu assim, fatigado, engelhado, calvo, gordo e sonolento, apupou-o. Então o demonógrafo Wier escreve contra ele panfletos sanguinolentos e Voltaire criva-o de epigramas.

O Diabo sorri, olha em roda de si para os calvários desertos, escreve suas memórias e num dia enevoado, depois de ter dito adeus aos seus velhos camaradas, os astros, morre enfastiado e silencioso. Então Ceranger escreve-lhe o epitáfio.

O Diabo foi celebrado, na sua morte, pelos sábios e pelos poetas. Proclus ensinou a sua substância, Presul as suas aventuras da noite, S. Tomás revelou seu destino. Torquemada disse a sua maldade, e Pedro de Lancre a sua inconstância jovial. João Dique escreveu sobre sua eloquência e Jacques I de Inglaterra fez a coreografia de seus estados. Milton disse a sua beleza e Dante a sua tragédia. Os monges ergueram-lhe estátuas. O seu sepulcro é a Natureza.

O Diabo amou muito. Foi namorado gentil, marido, pai de gerações sinistras. Foi querido, na Antiguidade, da mãe de César e na Meia Idade foi amado da bela Olímpia. Casou no Brabante com a filha de um mercador. Tinha entrevistas lânguidas com Fredegonda, que assassinou duas gerações. Era o namorado das frescas serenatas das mulheres dos mercadores de Veneza.

Escrevia melancolicamente às monjas dos conventos da Alemanha. /Feminae in illius amore delectantur/, diz tragicamente o abade César de Helenbach. No século 12, tentava com olhares cheios de sol as mães melodramáticas dos Burgraves. Na Escócia havia grande miséria sobre os montes: o Diabo comprava por 15 shillings o amor das mulheres dos highlanders e pagava com o dinheiro falso que fabricava em companhia de Filipe I, de Luís VI, de Luís VII, de Filipe, o Belo, do rei João, de Luís XI, de Henrique II; com o mesmo cobre de que se faziam as caldeiras onde eram cozidos vivos os moedeiros falsos.

Mas eu quero só contar a história de um amor infeliz do Diabo, nas terras do Norte.

Ó mulheres! Vós todas que tendes dentro do peito o mal que nada cura, nem os simples, nem os bálsamos, nem os orvalhos, nem as rezas, nem o pranto, nem o sol, nem a morte, vinde ouvir essa história florida!

Era na Alemanha, onde nasce a flor do absinto. A casa era de pau, bordada, rendilhada, cinzelada, como a sobrepeliz do senhor arcebispo de Ulm. Maria, clara e loura, fiava na varanda, cheia de vasos, de trepadeiras, de ramagens, de pombas e de sol. No fundo da varanda havia um Cristo de marfim. As plantas limpavam piedosamente com as suas mãos de folhas, o sangue das chagas, as pombas, com o calor do seu colo, aqueciam os pés doloridos. No fundo da casa, o pai dela, o velho, bebia a cerveja de Heidelberg, os vinhos da Itália, e as cidras da Dinamarca. Era vaidoso, gordo, sonolento e mau.

E sempre a rapariga fiava. Preso à roca por um fio branco, sempre o fuso saltava; preso ao seu coração por uma tristeza, sempre pulava um desejo.

E todo o dia fiava.

Ora debaixo da varanda passava um lindo moço, delicado, melodioso e tímido. Vinha e encostava-se ao pilar fronteiro. Ela, sentada junto ao crucifixo, cobria os pés de Jesus com os seus grandes cabelos louros. As plantas, as folhagens, em cima, cobriam de frescura e de sombra a cabeça da imagem. Parecia que toda a alma de Cristo estava ali - consolando, em cima, sob a forma de planta, amando, em baixo, sob a forma de mulher.

Ele, o branco moço, era o peregrino daquela santa. E o seu olhar procurava sempre o coração da doce rapariga e o olhar dela, séria e branca, ia procurar a alma do caro bem-amado. Os olhos investigavam as almas. E vinham radiosos, como mensageiros de luz, contar o que tinham visto: era um encanto!

- Se tu soubesses! - dizia um olhar. - A alma dela é imaculada.

- Se tu visses! - dizia o outro. - O coração dele é sereno, forte e vermelho.

- É consolador, aquele peito onde há estrelas!

- É purificador, aquele seio onde há bênçãos!

E olhavam ambos, silenciosos, estáticos, perfeitos. E a cidade vivia, as árvores rosnavam sob o balcão dos eleitores, a trompa de caça soava nas torres, os cantos dos peregrinos nas estradas, os santos liam nos seus nichos, os diabos escarneciam na grimpa das igrejas, as amendoeiras tinham flor e o Reno cantigas de ceifeiras. E eles olhavam-se, as folhagens aninhavam os sonhos, e Cristo aninhava as almas.

Ora, uma tarde, as ogivas estavam radiosas como mitras de arcebispos, o ar estava meigo, o sol descido, os santos de pedra estavam corados, ou dos reflexos da luz, ou dos desejos da vida. Maria na varanda fiava a sua estriga. Jusel, encostado ao pilar, fiava os seus desejos.

Então, no silêncio, ao longe, ouviram gemer a guitarra de Inspruck que os pastores de Helyberg enroscam de hera, e uma voz robusta cantar:

/Os teus olhos, bem-amada, / São duas noites cerradas. E por aí vai.../

 E ao cimo da rua apareceu um homem forte, de uma bela palidez de mármore. Tinha os olhos negros como dois sóis legendários do país do Mal. Negros eram os cabelos, poderosos e resplandecentes. Tinha presa ao peito do corpete uma flor vermelha de cacto. Atrás vinha um pajem perfeito como uma das antigas estátuas que fizeram da Grécia a lenda da beleza. Andava convulsivamente como se ferisse os pés no lajedo. Tinha os olhos inertes e fixos dos Apolos de mármore. Dos seus vestidos saía um cheiro de ambrosia. A testa era triste e serena como as dos que têm a saudade imortal de uma pátria perdida. Trazia na mão uma ânfora esculpida em Mileto, onde se sentia a suavidade dos néctares olímpicos.

O homem da palidez de mármore veio até junto a varanda e, entre as súplicas gemidas da guitarra, disse sonoramente:

- A gentil moça, a linda Yseult da varanda, deixa que estes beiços de homem vão, como dois peregrinos corados de sol, em doce romaria de amor, das suas mãos ao seu colo?

E olhando para Jusel, que desfolhava uma margarida, cantou lentamente, com grandes risadas frias e metálicas:

/Quem de pena um rouxinol / E rasga uma triste flor,/
/Mostra que dentro do peito / Só tem farrapos de amor./

 E ergueu para a varanda os seus olhos terríveis e desoladores, como blasfêmias de luz.

Maria tinha levantado a sua roca e só havia na varanda as aves, as flores e Jesus.

- A toutinegra voou - disse jovialmente. E indo para Jusel:

- É que talvez sentisse a vizinhança do abutre. Que diz o Bacharel?

Jusel, com os olhos serenos, desfolhava a margarida.

- No meu tempo, senhor Suspiro - disse o homem dos olhos negros, cruzando lentamente os braços - já havia aqui duas espadas, a fazer rebentar na sombra flores de faíscas. Mas os heróis vão-se, e os homens nascem cada vez mais da dor das mulheres. Vejam isso! É um coração com gibão e gorra. Mas coração branco, pardo, alvacento, de todas as cores, menos vermelho e sólido. Pois bem! Aquela rapariga tem uns cabelos louros que dizem bem com os meus cabelos pretos. As cintas delgadas querem braços fortes. Os lábios vermelhos de desejam gostam as armas vermelhas de sangue. É minha a dama, senhor Bacharel!

Justel tinha descido as suas grandes pálpebras elegíacas e via as pétalas arrancadas da margarida caírem como desejos assassinados, desprendidos do seu peito.

O homem dos olhos resplandecentes tomou-lhe rigidamente a mão.

- Bacharel Ternura - disse - há aqui perto um lugar onde os goivos nascem expressamente para os inocentes que morrem. Se tens alguns bens a deixar, recomendo-te este excelente Rabil.

 - Era o pajem. - É necessário proteger as aves da noite. Os abutres bocejam desde que findou a guerra. Vou-lhes dar ossos tenros. Se queres deixar o coração à bem-amada, à moda dos trovadores, eu me encarrego de lho trazer, bem embalsamado, em lama, na ponta da espada. Tu és formoso, amado, branco, delicado, perfeito. Vê-me isto, Rabil. É uma farsa bem feita ao Compadre lá de cima dos sóis, dilacerar-lhe esta beleza! Se namoravas alguma estrela, eu lhe mandarei por bom portador os teus últimos adeuses. Enquanto aos sacramentos, são inúteis; eu me encarrego de te purificar pelo fogo.  Rabil, toca na guitarra o rondó de defuntos: anuncia no Inferno, o Bacharel Suspiro! A caminho, meus filhos! Ah! Mas em duelo secreto, armas honradas!

E batendo heroicamente nos copos da espada:

- Eu tenho aqui esta debilidade, onde está a tua força?

- Ali! - respondeu Jusel, mostrando Cristo na varanda, entre a folhagem, agonizante entre as palpitações das asas.

- Ah! - disse cavamente o homem da flor de cacto. A mim, Rabil! Lembras-te de Actéon, de Apolo, de Derceto, de Íaco e de Marte?

- Eram os meus irmãos - disse lentamente o pajem, hirto como uma figura de pedra.

- Pois bem, Rabil, para a frente, através da noite. Cheira-me aqui às terras de Jerusalém.

Na noite seguinte havia pela Alemanha um grande luar purificador. Maria estava debruçada na varanda. Era a hora celeste em que os jasmins concebem. Em baixo, o olhar de Jusel, que estava encostado ao pilar, suspirava para aquele corpo feminino e branco, como nos jardins a água que sobe em repuxo suspira para o azul.

Maria disse suspiradamente:

- Vem.

Jusel subiu à varanda, radioso. Sentaram-se ao pé da imagem. O ar estava tão sereno como na pátria das armas. Os dois corpos dobraram-se, um para o outro, como se estivessem aproximando os braços de um Deus. As folhagens escuras que envolviam Cristo estendiam-se sobre as duas cabeças louras com gestos de bênção. Havia na moleza das sombras um mistério nupcial. Jusel tinha as mãos dela presas como pássaros cativos e dizia:

- Queria bem ver-te, assim, ao pé de mim. Se soubesses! Tenho receios infinitos. És tão loura, tão branca! Tive um sonho que me assustou. Era num campo. Tu estavas de pé, imóvel. Ouviu-se um coro que cantava dentro do teu coração! Em redor andava uma dança nebulosa de espíritos. E diziam uns: "Aquele coro é dos mortos: são os amantes infelizes que choram no coração daquela mulheres." Outros diziam: "Sim, aquele coro é de mortos: são os nossos deuses queridos que choram ali no exílio." E então adiantei-me e disse: "Sim, aquele coro é dos mortos, são os desejos que ela teve por mim, que se lembram e que gemem." Que sonho tão mau, tão mau!

- Por que estás tu - dizia ela - todos os dias encostado ao pilar, com as mãos quase postas?

- Estou a ler as cartas de luz que os teus olhos me escrevem.

Calaram-se. Eles eram naquele momento alma florida da noite.

- Quais são os meus olhos? Quais são os teus olhos? Dizia Jusel. - Nem eu sei!

E ficaram calados. Ela sentia os desejos que se desprendiam dos olhos dele, virem, como pássaros feridos, que gemem, cair no fundo da sua alma, sonoramente.

E inclinando o corpo:

- Conheces meu pai? - disse ela.

- Não. Que importa?

- Ai, se tu soubesses!

- Que importa? Estou aqui. Se ele te quer bem, há de gostar deste meu amor, sempre aos teus pés, como um cão. És uma santa. Os cabelos de Jesus nascem do teu coração. O que quero eu? Ter a tua alma presa, bem presa, como um pássaro esquivo. Esta paixão toda, deixa-te tão imaculada, que se morresses podias ser enterrada na transparência do azul. Os desejos são uma hera: queres que os arranque? Tu és o pretexto da minha alma. Se me não quisesses deixavas me andar esfarrapado. Tens lá a fé de Jesus e a saudade de tua mãe; deixa estar: damo-nos todos bem, lá dentro, contemplando o interior do teu olhar, como um céu estrelado. Que quero de ti? As tuas penas. Quando chorares, vem a mim. Farei a alma em farrapos para tu limpares os olhos. Queres tu? Casemo-nos no coração de Jesus. Dá-me essa agulheta, que te prende o cabelo. Será a nossa estola.

E com a ponta da agulheta, gravou sobre o peito de Cristo as letras dos dois nomes enlaçadas - J. e M.

- É o nosso noivado - disse ele. O céu atira-nos os astros, confeitos de luz. Cristo não se esquecerá deste amor que chora aos seus pés. As exalações divinas que saírem do seu peito aparecerão, lá em cima, com a forma das nossas letras. Deus saberá este segredo. Que importa? Eu já lho tinha dito, a ele, às estrelas, às plantas, aos pássaros, porque, vês tu? As flores, as constelações, a graça, as pombas, tudo isso, toda esta efusão de bondade, de inocência, de graça, era simplesmente, ó adorada, um eterno bilhete de amor que eu te escrevia.

E ajoelhados, estáticos, calados, sentiam misturar-se ao seu coração, às suas confidências, aos seus desejos, toda a vaga e imensa bondade da religião da graça. E as suas almas falavam cheias de mistério.

- Vês tu? - dizia a alma dela - Quando te vejo, parece que Deus diminui, e se contrai, e se vem aninhar todo no teu coração; quando penso em ti, parece-me que o teu coração se alarga, se estende, abrange o céu, e os universos, e encerra por toda a parte Deus!

- O meu coração - suspirava a alma dele - é uma concha. O teu amor é o mar. Muito tempo esta concha viverá afogada e perdida neste mar. Mas se tu expulsares de ti, como numa concha abandonada se ouve ainda o rumor do mar, no meu coração abandonado se escutará sempre o sussurro do meu amor!

- Olha - dizia a alma dela - eu sou como um campo. Tenho árvores e relvas. O que há em mim de maternidade é árvore para te cobrir, o que há em mim de paixão é relva para tu pisares!

- Sabes tu? - dizia a alma dele - No céu há uma floresta invisível de que apenas se vêem as pontas das raízes que são as estrelas. Tu eras a toutinegra daqueles arvoredos. Os meus desejos feriram-te. Eu, há muito que te vejo vir caindo pelo ar, gemendo, resplandecente, se o sol te alumia, triste, se a chuva te molha. Há muito que te vejo descendo – quando cairás tu nos meus braços?

E a alma dela dizia: "Cala-te". Não falavam. E as duas almas, desprendidas dos corpos bem-amados, subiam, tinham o céu por elemento, os seus risos eram os astros, a sua tristeza a noite, a sua esperança a madrugada, o seu amor a vida, e sempre mais ternas e mais vastas envolviam tudo o que do mundo sobre de justo, perfeito, casto, as
orações, os prantos, os ideais, e estendiam-se por todo o céu, unidas e imensas - para Deus passar por cima!

E então à porta da varanda houve uma risada metálica, imensa e sonora. Eles ergueram-se resplandecentes, puros, vestidos de graça. À porta estava o pai de Maria, hirto, gordo, sinistro. Atrás, o homem de palidez de mármore balançava vaidosamente a pluma escarlate da gorra. O pajem ria, fazendo uma claridade na sombra.

O pai lentamente foi para Jusel e disse, com escárnio:

- Onde queres ser enforcado, vilão?

- Pai, pai! - E Maria, aflita, com uma convulsão de lágrimas, enlaçava o corpo do velho. - Não. É meu marido, casamos as almas. Olhe, ali está. Veja! Ali, na imagem!

- O quê?

- Ali, no peito, veja. Os nossos nomes enlaçados. É meu marido. Só me quer bem. Mas seja, sobre o peito de Jesus, no lugar do coração. Mesmo sobre o coração. E ele, o doce Jesus, deixou que lhe fizessem mais esta ferida!

O velho olhava as letras como uns esponsais divinos que se tinham refugiado no seio de Cristo.

- Raspa, meu velho, que isso é marfim! - gritou o homem dos olhos negros.

O velho foi para a imagem com a faca no cinturão. Tremia. Ia arrancar as raízes daquele amor, até ao peito imaculado de Jesus!

E então a imagem, sob o justo e incorruptível olhar da luz, despregou uma das suas mãos feridas, e cobriu sobre o peito as letras desposadas.

- É ele, Rabil! - gritou o homem da flor de cacto.

O velho soluçava.

E então o homem pálido, que tocava guitarra, veio tristemente junto da imagem, enlaçou os braços dos namorados, como se vê nas velhas estampas alemãs, e disse ao pai:

- Abençoa-os, velho!

E saiu batendo rijamente nos copos da espada.

- Mas quem é? - disse o velho apavorado.

- Mais baixo! - disse o pajem da ânfora de Mileto - É o senhor Diabo... Mil desejos, meus noivos.

Pelas horas da madrugada, na estrada, o homem dos cabelos negros dizia ao pajem:

- Estou velho. Vai-se-me a vida. Sou o último dos que combateram nas estrelas. Os abutres já me apupam. É estranho: sinto nascer cá dentro, no peito, um rumor de perdão. Gostava daquela rapariga. Lindos cabelos louros, quem vos dera no tempo do céu. Já não estou para aventuras de amor. A bela Impéria diz que me vendi a Deus.

- A bela Impéria! - disse o pajem. - As mulheres! Vaidades, vaidades! As mulheres belas foram-se com os deuses belos. Hoje os homens são místicos, frades, santos, namorados, trovadores. As mulheres são feias, avaras, magras, burguesas, finadas de cilícios, com uma pouca de alma incômoda, e uma carne tão diáfana que se vê através do lodo primitivo.

- Vou achando risível a obra dos Seis Dias. As estrelas tremem de medo e de dor. A Lua é um sol fulminado. Começa a escassear o sangue pelo mundo. Eu tenho gasto o mal. Fui pródigo. Se eu no fim da vinha tinha de me entreter perdoando e consolando - para não  morrer de tédio. Fica-te em paz, mundo! Sê infame, lamacento, podre, vil e imundo, e sê, todavia, um astro no céu, impostor! E todavia o homem não mudou. É o mesmo. Não viste? Aquele, para amar, feriu com uma agulheta o peito da imagem. Como nos tempos antigos, o homem não começa a gozar um bem, sem primeiro rasgar a carne a um Deus! É esta minha última aventura. Vou para o meio da Natureza, para junto do livre mar, pôr-me sossegadamente a morrer.

- Também os diabos se vão. Adeus, Satã!

- Adeus, Ganímedes!

E o homem e o pajem separaram-se na noite.

A poucos passos, o homem encontrou um cruzeiro de pedra.

- Estás também deserto - disse, olhando para a cruz. Os infames pregaram-te e voltaram-te as costas! Foste maior que eu. Sofreste calado.

E sentando-se nos degraus do cruzeiro, enquanto vinha a madrugada, afinou a guitarra e cantou no silêncio:

Quem vos desfolhou estrelas, / Dos arvoredos da luz?
E com uma risada melancólica: / Chegará o Outono ao Diabo? / Virá o Inverno a Jesus?

 Fonte:
http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/download/O_Senhor_Diabo.pdf

Oscar Nakasato (Homem no Sofá com os Sapatos Fora)

Ilustração: Rômolo D’Hipólito
Estou sozinho. Lembro-me de que esta manhã, quando os beijei, lamentei não poder ir junto. Fiquei parado na plataforma do terminal de ônibus, acenando, incapaz de perceber o que é ficar quando os outros se vão. Para mim, a ausência é uma experiência inédita.

Sozinho. E perplexo, com um copo na mão e Mozart no aparelho de som, descubro que não ter ido significou ficar com. Sexta-feira, quando pegar o carro e vencer os trezentos e tantos quilômetros que me separam de minha esposa e de meus filhos, estarei finalmente deixando-os para encontrá-los. Então poderei abraçá-los, beijá-los, sentir que existem além da ideia. Ou talvez telefone para a fazenda dizendo que não irei porque para sexta-feira faltam apenas dois dias e não sei aonde me levará a companhia da ausência.

Esta ausência que me preenche de forma ainda indefinida. Tento entender o que, aos poucos, sem ter buscado, surge. Sinto um leve temor de que transborde e não saiba o que fazer. Se transbordar, perderei o que estou ganhando sem conquistar? Preciso aprender a estar só sem transbordar. Essa será a minha conquista.

Beber uísque e ouvir Mozart é um requinte. Mesmo longe dos olhos do mundo, mantenho essa característica que me distingue dos ordinários. E da janela do apartamento decorado com quadros e móveis caros, vejo as luzes da cidade com certo fastio.

Longe, depois dos trilhos de trem, onde vejo poucas luzes, lá vivia a minha gente. Quando nasci, os anjos disseram amém. E caminhei bastante, dia após dia, ano após ano, e atravessei os trilhos. Continuei caminhando e cheguei a este apartamento, de onde não se ouvem os trens.

Beber uísque é um requinte, mas devo parar de beber porque quero estar absolutamente sóbrio para a minha conquista. Deixo a janela e coloco o copo na mesinha de centro. Deito-me no sofá sem o cuidado de deixar os sapatos fora. Dora sempre pede, mas se na sua presença é a minha que se impõe, na sua ausência é muito mais fácil ignorá-la. E ela pede tão pouco. Desde o namoro, como se temesse não ser atendida e então precisasse baixar os olhos, humilhada, incapaz de levantar a voz ou dizer pela segunda vez.

Eleodora, minha esposa, como a apresento aos amigos do escritório e do clube. E ela fica ao meu lado, bonita, calada, esposa. Ela distante, e assim a vejo, e sinto pena de sua beleza inexpressiva. Deve estar ocupada com os meninos, ajudando na cozinha e preocupada em ser gentil com a tia. E mais tarde, quando todos já tiverem se recolhido, ela estará em frente ao espelho, cansada, satisfeita.

Essa Eleodora que me faz companhia eu sempre a conheci? Casei-me com uma mulher bonita, mas todos os homens desejam as mulheres bonitas. E ela estava naquela mesa de bar como se estivesse esperando toda a vida. Suas companheiras falando muito, e ela, calada, esperando para que eu a tirasse daquele lugar, daquela cerveja que tomava sem gostar.

Mais tarde, quando todos já tiverem se recolhido, ela estará em frente ao espelho, cansada, satisfeita. E eu? Eu estarei aniquilado. Preciso desistir e ligar a televisão para assistir a algum filme e me salvar. Mas já é tarde. E amanhã preciso acordar às oito horas, tomar o meu banho, fazer a barba e ir ao meu escritório. Amanhã ainda serei um advogado? Encontrarei nas páginas do código civil, nos compromissos de minha agenda ou no meio de algum processo o que estou perdendo agora? ... Perder é conhecer o que não pensávamos existir, perder é achar o que não procuramos.

Mas neste momento preciso permanecer assim, quieto, deitado no sofá, agora com os sapatos fora, porque algo inédito me transpõe para fora de mim e eu me vejo como Dora me vê: um homem no sofá com os sapatos fora. E ela ama o homem que descubro agora. Mudo um pouco a posição, fico meio de lado, como alguém que se arruma para uma fotografia. Sim, eu aprovo o homem que ela ama. Mas ele não é somente esse homem deitado no sofá com os sapatos fora, e eu preciso vê-lo em outros lugares. Ela ama todos os homens que ainda conhecerei esta noite?

Sinto fome. Olho o relógio da parede. Há vinte minutos eu pedi uma pizza. Saberei ainda comer uma pizza? Eu costumava levar Dora e os meninos à pizzaria quando morávamos no apartamento menor e não bebia uísque. As crianças ficavam sentadas naquelas cadeirinhas que toda pizzaria tem. O maior se divertia fazendo desenhos no prato com a mostarda. Às vezes, passávamos na casa da avó e a levávamos. Então a festa era maior para os meninos. Eu quase chegava a simpatizar com aquela senhora vestida de preto, circunspecta, que esquecia a solitária viuvez e brincava com os netos. Me odiava aquela mulher. Ela me via por trás daqueles óculos redondos e pensava numa maneira de me contrariar.

A avó está morta. No céu, com os anjos, diz Dora aos meninos. No inferno, com os diabinhos, penso em dizer a eles. E agora os seus olhos de sogra voltam a me censurar. Eu estou em todos os cantos do apartamento e ela pode me encontrar em qualquer um deles. Inútil dispensar um morto que volta. E muitos estão, agora, povoando o meu silêncio. Eles se desnudam à minha frente sem nenhum constrangimento porque sua condição os torna invulneráveis. É injusta essa relação de nudez porque na troca de olhares eu procuro as minhas roupas inutilmente. Mas se os mortos povoam o meu silêncio, os mortos sou eu.

Sim, os mortos sou eu. Não que eu seja eles, pois descubro que a minha maior qualidade é estar vivo, o que me fascina e me assusta. Estou diante de um precipício que não me revela o seu fundo. Devo pular?

Toca o interfone, e o porteiro me avisa que o rapaz da pizza chegou. Digo que ele pode subir e adio a minha decisão. Mas será que eu já não pulei?

Aguardo a campainha tocar tentando me lembrar se sobrou um pouco de suco de laranja do café da manhã.

A surpresa ao ver o rapaz da pizza é a surpresa de me ver no espelho e não me reconhecer. Porque o rapaz da pizza não é um rapaz, é um velho sorridente. E eu não sei como agir diante de um velho-sorridente-entregador de pizzas. Ele está parado na porta e me estende a embalagem de papelão. Ele se apresenta a mim como um logro, sabe que eu sei que é um logro, mas finge não saber que eu sei. Por isso me sinto duplamente logrado.

Pago a pizza e dou uma gorjeta ao velho. Ele agradece com um sorriso absolutamente sincero. Fico observando o entregador se dirigir ao elevador de serviço. Sorrio quando ele já não pode mais me ver. Ele não tem culpa se eu pulei e a desorganização me surpreende. Então eu já estou caindo. Quando eu pulei?

Estou caindo, e a agonia que sinto é a agonia de alguém que cai num poço sem fundo. Mas não é um pesadelo. Eu não tropecei, eu pulei. E, pelo menos por enquanto, eu não quero despertar.

Minha queda no meu precipício é lento, colorido e sonoro.

Eu não caio sozinho. Levo comigo minha esposa e meus filhos, meus pais e meus irmãos, meus amigos e Sônia Braga, a Gabriela dos meus devaneios. Eles são como asas que retardam minha descida, mas são incapazes de me levar para cima. Para cima nunca mais, porque os anos vividos me deram peso.

Cair assim como estou caindo me levará a mim. Sim, agora sei que desde o início — quando se deu o início? — estou a conquistar. Conquistar é também perder.

Estou sentado à mesa de tampo de vidro com um pedaço de pizza num prato e um copo de suco de laranja. Mozart se calou e agora ouço o movimento da avenida distante quinze andares.

Vejo através do vidro as minhas pernas de homem saudável. Foi por mim que comprei esta mesa? Uma mesa é somente uma mesa, posso tentar acreditar, mas eu não sou ingênuo. Estou caindo e a mesa me acompanha. Fui eu quem a escolheu na loja porque tinha um tampo de vidro bisotado de 16 milímetros e base de carvalho. Fui eu quem paguei por ela. Comprar algo faz o comprador pertencer àquilo que comprou.

Esta mesa me revela a mim. No canto direito vejo refletida a minha face de cidadão. Afinal, esta mesa sou eu. E agora a levo na minha queda com a culpa de quem possui.

Esta mesa me roubou a parte de mim que eu havia reservado para ser um homem que poderia viver com uma mesa qualquer.

Por fim, esta mesa tem os olhos da avó. Mas agora, por causa da mesa, sei que eu era responsável pelos olhos da avó. Jamais saberei como ela realmente me olhava. Eram meus aqueles olhos desafiadores, cheios de uma luz que eu conseguia ver tão bem, que eu definia tão sabiamente com a minha sabedoria de genro. Ah, como eu era genro! E dizia a todos, maldizia a avó, repetia piadas de sogra, eu, que sempre fora criativo.

Bela mesa que meus olhos não suportam mais. Vou ao sofá, que foi comprado por Dora, foi escolhido por Dora. Nos seus braços macios e silenciosos eu sempre encontro abrigo. Da vida que me persegue. Sua cor suave e seus traços simples me confortam. Mas eu derramo suco de laranja sobre ele. Vejo a mancha crescendo em círculo. Então sinto disparar o coração e me tremer os dedos e me formigar a face. O desespero me paralisa. Quando me ocorre ir à cozinha pegar um pano, a mancha já tem a sua forma definitiva, escura, ameaçadora. Corro, volto com o guardanapo, esfrego o sofá, a mancha clareia um pouco. Mas ela jamais deixará de existir. Ainda que eu a esfregue a noite inteira até eu não conseguir mais enxergá-la, ainda assim a mancha existirá. Não se pode manchar um sofá e querer se eximir da responsabilidade só porque a mancha não aparece mais.

Mas assim farei: esfregarei a mancha até que ela desapareça. E nada direi a ninguém. Não confessarei um crime que não deixará vestígios.

Fonte:
Jornal Cândido. Disponivel em http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=451#

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 38

CAPÍTULO X

Enquanto isto se dava, Branca, aflita e estrangulada de indignação, chegava a casa. Enfiou logo para seu quarto e, atirando a capa à criada, disse-lhe com a voz trêmula:

— Chama o João ou o Caetano, aquele que se aprontar mais depressa. É preciso entregar quanto antes uma carta, que vou escrever.

E, depois de esgotar de um trago um copo d’água, assentou-se à secretária e escreveu o seguinte com a mesma precipitação com que bebera:

Conselheiro. — Se V. Exa. preza sua honra de homem casado, vá imediatamente à rua do Catete n. 15 e aí encontrará sua mulher nos braços do marido de quem lhe faz esta denúncia.

E declarou a hora e o dia em que era escrito o bilhete, sem contudo expor a sua assinatura. Depois, meteu a folha de papel em um envelope e sobrescritou-a.

— Leve imediatamente esta carta ao seu destino. É muito perto daqui. Não se demore.

O criado saiu e ela se atirou à cama soluçando. No fim de alguns minutos ergueu-se de novo; teve um instante de arrependimento, mas sacudiu logo os ombros, chamou pela criada já com a voz firme, despiu-se, recomendou que dissessem ao marido, no caso que este perguntasse por ela, que se achava indisposta e não queria falar a ninguém. Em seguida fechou por dentro a porta do seu quarto e recolheu-se ao leito, aguardando a explosão que julgava ter provocado com a carta dirigida ao conselheiro.

Criança! Pensava ter lançado uma faísca na pólvora, e a faísca tinha apenas se cravado na lama.

A carta, segundo a declaração do criado que a levara, foi entregue em mão própria. S. Exa. abriu-a leu-a imperturbavelmente, rasgou-a depois e disse ao portador:

— Está entregue.

Só no dia imediato foi que Branca se encontrou com o esposo; estranhou muito não lhe descobrir na fisionomia a mais ligeira sombra de contrariedade e procurou não deixar igualmente transparecer na sua o menor vestígio das amarguras que desde a véspera sofria.

Baldado esforço! O marido, logo às primeiras palavras que trocou com ela, perscrutou que alguma coisa a constrangia e empregou os meios de descobrir o que era.

— Nada! Nervoso! Respondia a pobre senhora, disfarçando as lágrimas.

— Não, não; tens seja lá o que for. É que não queres dizer.

— Ilusão, pura ilusão tua! De que posso eu me queixar? Sou a mais feliz das criaturas! Nada me falta: tenho o teu amor, tenho a estima de meus amigos, vejo-te prosperar, crescer! Que mais desejo?

Teobaldo aproximou-se dela para lhe dar um beijo; Branca fugiu com o rosto.

— Que significa esta recusa? Perguntou ele.

— Não sei, mas não posso agora suportar as tuas carícias.

— E por que?

— Caprichos dos nervos, naturalmente...

— Tu então repeles os meus beijos, Branca?

— Sim, e peço-te que não insistas em querer saber a razão por quê.

— E até quando durará o tal capricho de teus nervos?

— Não sei; é natural que durem enquanto eu viver.

— Confesso que te estranho. Tu, que eras tão meiga, tão amorosa para comigo...

— É exato. Vê como a gente se transforma de um momento para outro.

— Mas é indispensável que haja uma causa para semelhante transformação.

— Não sei; apenas te afianço que não contribuí absolutamente para ela.

— Se tens alguma razão de queixa contra mim, melhor será que falas logo com franqueza. Ao menos dar-me-ás o direito da defesa.

— Razão de queixa? Mas, valha-me Deus! Seria uma injustiça, uma tremenda injustiça à tua bondade, ao teu caráter e a todos os teus princípios de moral. Queixar-me? Que idéia! Pois se jamais fui tão lealmente amada e tão dignamente respeitada por ti...

— Não te compreendo, nem te reconheço. Estás irônica.

— Não; estou simplesmente orgulhosa de ser tua esposa. Pressinto que caminhas para um futuro brilhante; as tuas relações não podem ser melhores: o conselheiro adora-te, o conselheiro! Um homem de bem às direitas, um velho respeitável por todos os motivos!

— E é a verdade o que dizes...

— Oh! Verdade pura. Estou convencida de que o teu comparecimento à sessão de ontem, há de ainda mais engrandecer-te aos olhos dele. Não há dúvida que vais em uma carreira por todos os motivos invejável!

— Branca, disse Teobaldo, com ar muito sério, se tens algum ressentimento contra mim, peço-te de novo que fales abertamente. Não sei em que possa eu ter incorrido no teu desagrado; a minha consciência está tranqüila, mas desejo apagar de teu espírito toda e qualquer sombra de suspeita, de que me julgues merecedor.

— Já disse que não tenho acusação nenhuma a fazer.

— Mas então por que te mostras tão diferente do que és; por que estás desse modo?

— De que modo? Eu nunca me vi de tão bom humor!

— És cruel filha!

— Eu? Pois então o meu bom humor já é uma crueldade?... Ora! Tem paciência; mas não sei que fizeste de tua lógica, chegas a ser incoerente! Até aqui tu me lançavas em rosto todos os dias as minhas tristezas, os meus ciúmes, as minhas repetidas queixas de amor; e agora exprobras-me, porque me sinto bem disposta e com vontade de rir. Hás de confessar que isto não é lógico!

— Pois é justamente a tua rápida transformação o que me impressiona e do que desejo saber o motivo.

— Oh! Não tem que saber! É que caí em mim...

— Caíste em ti? Como assim?

— É que ontem eu via as coisas por um certo prisma e hoje as encaro por outro.

— Explica-te.

— Desfizeram-se as ilusões, dissolveram-se-me as fantasias; vejo o mundo e vejo as criaturas por um prisma talvez menos consolador, com a certeza, porém, mais justo, mais razoável e muito mais lúcido.

— Não compreendo onde queres chegar com isso...

— Não me compreendes? Oh!

— Juro-te que não!

— Então ainda menos me compreendeste até hoje. Imagine o senhor meu esposo que eu, até agora, via a sociedade e os homens de um ponto de vista ideal, cheia de confiança e de boa-fé; mas era só meu, individual, próprio, escolhido a meu capricho, sem mescla do que nos ensina a experiência e a dura realidade dos fatos.

— Bem...

— Pois calcula que, de um momento para outro, senti rasgarem-se-me defronte dos olhos os véus da minha ignorância, e desde então vejo tudo às claras, vejo certo, posso julgar com justeza, dando a cada figura, a cada grupo, a cada ação e a cada fato o valor que lhe compete, a sua capacidade, a sua grandeza ou a sua pequenez, determinando os seus fins e calculando as suas intenções boas ou más.

— E a que deves tu essa milagrosa lucidez inesperada?

— Não sei, talvez a um sonho, que tive esta noite.

— Um sonho?

— É verdade. Adormeci ainda no meu ridículo estado de credulidade e sonhei que me achava entre todos os meus amigos e conhecidos; via-os a todos, como te estou vendo a ti, tão bons, tão afáveis e tão meigos! Mas, de súbito, senti unia grande agitação em torno de mim, olho espantada; então um singular espetáculo se apresenta: a máscara de cada um havia caído por terra e um grande montão de fisionomias misturava-se a meus pés, imóveis e frias como rostos de defunto. E todas aquelas figuras humanas, que acabavam de despir a máscara, começaram a rir e a escarnecer umas das outras, descaradamente, sem rebuços de delicadeza. E as mais vergonhosas confissões saíram de cada boca. Um gritava:

"Eu finjo que te amo, mas no fundo eu te aborreço!" Outro dizia: "Afeto respeito à moral, mas a minha paixão verdadeira é a crápula e o aviltamento!" Este afiançava que lhe era indiferente o mundo inteiro e que só a sua própria pessoa o interessava; aquele outro declarava que o seu fim único era enganar o próximo em proveito de si mesmo; mais adiante ouvia-se dizer: "Eu, se não cometo certas baixezas, é só porque com isto atraso a minha vida"; outro protestava em como, se exercia algumas vezes o bem, era para que o glorificassem e acatassem; uma mulher gritava que se fingia virtuosa, porque era mais cômodo e vantajoso ser honesta do que dissoluta; ao lado dela um sujeito confirmava essas palavras, dizendo que a virtude na mulher é como a honra no homem — Um passaporte para a consideração pública. E então vi deslizar por defronte de mim o mais estranho batalhão de monstros! Velhos sérios a fazerem momices de criança; crianças com os vícios e os achaques da velhice; vi homens feios e bons, outros maus e encantadores; vi o amor ao lado da ingratidão e do abandono; o ódio e a indiferença de braço dado à dedicação e ao sacrifício; vi a força ao lado da covardia; vi a franqueza e a incompetência ao lado da valentia e do atrevimento; vi o generoso perseguido; vi o egoísta aclamado; vi o preguiçoso triunfante; vi o trabalhador estendido no meio do caminho; vi a franqueza e a lealdade cobertas de ridículo e de vergonha e vi a hipocrisia, a mentira, a falsidade, recebendo o aplauso, a confiança e a veneração de todos. E, quando passei a mão pelo meu rosto, notei que este também já não era o mesmo, e vi aos meus pés a máscara da minha inocência, da minha boa-fé e da minha credulidade! Acordando, circunvaguei o olhar em torno de mim, evoquei a memória das pessoas conhecidas, examinei-as, uma por uma, e verifiquei que todas elas traziam cada qual a sua cara postiça.

— Até eu?

— Sim, até tu, hipócrita!

— E qual era minha máscara?

— Essa que tens agora.

— E a feição verdadeira?

— A de um homem vulgar, sem coração, sem talento e sem dignidade!

— Um homem vulgar, eu?

— Tão vulgar como o teu grande amigo, o conselheiro!

Teobaldo empalideceu ouvindo estas últimas palavras da mulher e abaixou os olhos defronte da enérgica serenidade que notou na fisionomia dela.

Depois quis toma-la pela cintura; Branca desviou-se lançando-lhe um gesto de desprezo:

Mas ouve! Disse ele, deixa ao menos que eu me explique!

— Não é preciso! Nada mais há de comum entre nós dois...

CAPÍTULO XI

Principiou então a formar-se entre Branca e o marido uma inalterável frieza. Viam-se todos os dias, falavam-se, às vezes chegavam mesmo a conversar algumas horas assentados um defronte do outro na sala de jantar mas despediam-se depois com um aperto de mão, e cada qual se recolhia ao competente quarto.

Teobaldo, longe de se incomodar com isto, parecia até rejubilar-se, pois que mais em liberdade se podia dar às suas preocupações exteriores. A princípio, entretanto, quando via a esposa mais triste e mais indiferente, mostrava por ela certo interesse e chegava a indagar o motivo de tamanha transformação; Branca respondia-lhe em geral com um gesto de tédio, e, se lhe dava alguma palavra, era para pedir que não a estivesse importunando com a sua mal fingida solicitude.

E, quanto mais Teobaldo se preocupava com armar ao efeito lá fora para os estranhos, mais a pobre senhora se retraía em casa, amparando-se unicamente ao seu orgulho de mulher honesta.

E com as suas ilusões de amor foram também fenecendo as graças do seu espírito e as galhardias do seu corpo; a pouco e pouco ia-se fazendo estátua, ia perdendo a originalidade do querer; já não tinha caprichos, já não tinha desejos: aceitava a vida como a vida se apresentava, sem de leve opor a sombra de uma queixa.

No seu entristecido olhar de rola abandonada pelo esposo, não transparecia o mais leve indício da tremenda revolta que mantinha sua alma contra aquela sociedade de mentirosos em que ela vivia; homens como mulheres, todos se lhe afiguravam os mesmos; todos ruins; todos ordinários.

No entanto, afetava em público a mais completa harmonia com seu marido, a quem no íntimo ela execrava com asco, e, sempre por amor e respeito de si mesma, não arredava um ponto da linha dos seus deveres de mulher casada, se bem que o Aguiar lhe rondasse os passos com insistência digna de melhor intuito.

Ele a porfiar e Branca a fingir que não o compreendia, desviando-se das garras do sedutor com a imperturbável calma de quem tem toda a confiança em si. Mas o demônio não desanimava, e, com quanto mais força a prima o repelia, tanto mais prontamente ele voltava aos pés dela, como o trapézio que o acrobata arremessa e logo torna na proporção do impulso recebido.

E aquela constante repressão dos desejos o atormentava dia e noite; aquele amor enjaulado dentro dele, como uma fera, indo e vindo incessantemente, sem encontrar descanso, nem repousar um instante, deixava-o prostrado e cada vez mais sôfrego.

Contudo, não desanimava: Ah! Ele tanto havia de lançar aos pés daquela estátua o fogo de sua paixão que o bronze acabaria derretendo-se.

E Aguiar, seguro de que não a venceria só com a força do seu amor, começou a fingir-se desinteressado e generoso; com tal ciência que Branca foi aos poucos abrindo para ele uma excepção no terrível juízo que fazia dos homens, chegando até a arrepender-se de o ter julgado tão mal e transformando-o insensivelmente em amigo íntimo, a quem por último já confiava os segredos das suas mágoas e as queixas que tinha contra o marido. E o velhaco aproveitava com muito jeito tais regalias para denunciar as culpas e as fraquezas de Teobaldo, que por este próprio lhe eram reveladas.

Branca o ouvia sempre com a mesma calma, imperturbável e altiva, os olhos meio cerrados, os lábios contraídos numa dura expressão de asco.

— Ah! Mas não devemos condená-lo por isso... Dizia o traiçoeiro. — Nele, aquilo é uma questão de gênio!... Teobaldo nunca poderia dar um bom marido; nunca seria capaz de dedicar-se durante a vida inteira por qualquer pessoa, fosse esta, a mais adorável das criaturas. Todo ele é pouco para pensar em si mesmo; tudo que não for ele; tudo que não for a sua querida e respeitável individualidade, nenhum valor tem a seus olhos; tudo que não for ele, é público e faz parte do resto da humanidade, a quem, na sua louca pretensão, ele considera um simples complemento de sua pessoa. Então, na eterna febre de armar ao efeito e não desgostar seja lá a quem for, jamais tem franqueza para ninguém: se lhe pedem qualquer obséquio, ele nunca diz que não, promete sempre, ainda que um instante depois já nem se lembre de semelhante coisa; se uma mulher lhe lança um sorriso de provocação, ele responde com outro, ainda que a deteste; não tem amigos — Tem auditório; não tem amor — Tem amantes. É uma simples questão de vaidade, no sentido positivista da palavra.

Ele, enquanto fala, não se dirige à pessoa com quem conversa, mas sim às que o observam de parte, só preocupando com o efeito que está produzindo sobre elas. E, como é na conversa, é em todos os atos de sua vida. Branca ficou muito surpreendida e perdeu por instantes a sua calma habitual, uma vez em que o primo lhe declarou que Teobaldo, antes da mulher do conselheiro, já tivera tido muitas outras amantes de igual espécie.

— E depois dessa? Perguntou ela.

— Ora! Respondeu Aguiar, com um sorriso de quem perdoa. Hoje, em certas rodas aristocráticas, ser amante de Teobaldo é um indispensável atestado de bom-gosto; as senhoras da moda o adoram e cuidam dele como de um objeto de sua propriedade. O desgraçado não se pertence; não pode dar um passo sem ter de voltar-se para a direita e para a esquerda, sempre a fingir que ama, sempre a enganar. Para o que, diga-me, quais são as noites que ele passa aqui? Depois que a prima se retraiu e desertou das festas, quase nunca o vê, não é verdade?

Entretanto, no Rio de Janeiro não há função de certa ordem em que ele não seja ouvido e consultado previamente. Se há concerto na festa, foi ele quem organizou o programa; se há dança, é ele quem tem de dirigir o cotilhão; se é preciso um discurso qualquer, uma poesia, aí está o Teobaldo recitando! Em todas as salas, quer esteja ou não esteja presente, só se ouve o nome dele; velhos e rapazes procuram imitá-lo em tudo; ele é sempre quem dá a nota do tom, quem decreta a moda; qualquer modificação no seu penteado ou no feitio de sua barba levanta um formidável escândalo entre os seus imbecis admiradores, a sua presença é mais indispensável para o sucesso das festas do que mesmo a presença do Imperador, de quem ele aliás já conseguiu as simpatias, graças a habilidade com que o seduziu.

Quando aquele demônio chega a qualquer parte, ouve se logo de todos os lados: "Aí está o Teobaldo! O Teobaldo! O Teobaldo!" Os que ainda não o conhecem correm logo a vê-lo; os outros apressam-se a mostrar que tem a honra de se dar com ele, e todos se mexem e tudo se agita para lhe dar passagem. Chega e daí a pouco está cercado de gente, sem que ninguém saiba explicar lucidamente por que razão lhe fazem tamanha roda. Ele descerra os lábios? diz qualquer coisa? é um sucesso infalível, e a sua frase, ainda que seja mais banal, a mais piegas, corre logo de boca em boca, é repetida e logo aclamada como o verbo da sabedoria divina. Opinião boa, apareça por aí a respeito de qualquer fato, ou de qualquer produção artística, ou de qualquer homem notável, não se pergunta de quem é, atribui-se logo a ele!

Branca, todas as vezes em que o primo lhe falava dessa maneira sentia, malgrado a energia do seu caráter, ir crescendo e subindo em torno de seu coração a irresistível torrente daquelas verdades, como se ela estivera em meio de um dilúvio. Não era que fizesse empenho em reconquistar o esposo, mas sim como que uma espécie de revolta contra o destino, que entendera não lhe dar a felicidade a que ela se julgava com direito, sendo tão amorosa, tão leal e tão digna. E a onda implacável, que o primo lhe despejava intencionalmente contra a delicadeza de suas mágoas, depois de afogar-lhe o coração, transbordava-lhe pelos olhos e pela garganta desfeita em lágrimas e soluços.

Era isso o que ela com tanto empenho queria evitar era isso justamente o que ele queria que sucedesse, para a tomar de surpresa, e segurar-lhe as mãos, e dizer-lhe como se falasse delirando.

— Mas não se aflija, não se aflija por amor de Deus! Repare que os seus soluços me enlouquecem! Creio que aquele ingrato não lhe merece essas lágrimas tão puras e tão sentidas!

— Não é por ele que eu choro, respondia Branca, sem descobrir o rosto, — Choro por mim própria, pela minha desgraça, pelo muito que padeço!

Aguiar então, com extrema delicadeza, aproximava-se da prima e principiava a afagá-la que nem a uma criança.

— Então! Então... Dizia-lha meio repreensivo. Vamos, não se aflija! Veja se consegue tranqüilizar-se!...

Ela, muito envergonhada por deixar a descoberto os seus desgostos, acabava queixando-se com franqueza.

— É que, dizia, já não tenho ânimo de sair de casa ao menos; de ir a qualquer divertimento, a qualquer parte; porque a presença de toda a gente me faz um mal horroroso! Quando saio com meu marido e me acho no meio das salas ao lado dele, sinto-me ainda mais só do que se fico entre as quatro paredes do meu quarto; sinto-me ridícula, desamparada, submissa a um homem que pertence a todo o mundo, menos a mim. Oh! Esta posição é degradante!

— Mas, porventura não estou eu ao seu lado? porventura não pode minha prima contar ainda com um irmão, um amigo delicado, que tudo daria para a ver tranqüila e venturosa?

— Obrigada; não me conformo, porém, com esta viuvez a que me condenou injustamente o homem a quem confiei a minha felicidade, o homem a quem entreguei todos os meus sonhos e todo o meu amor!

— E ainda o ama talvez!...

— Não, já não o amo, e é isso justamente o que não lhe perdoarei nunca! É ter-me obrigado a desprezá-lo, é ter feito de mim uma esposa sem amor, uma mulher casada que não ama ao seu marido e que por conseguinte há de fatalmente ser mártir, quer submetendo-se à sua desgraça, quer tentando disfarçá-la com outra ainda pior!

— Pior?! Pior do que o eterno suplício de aturar junto de si uma pessoa que abominamos?... Pior do que sacrificar tudo, a mocidade, o futuro de todos os gozos a que temos direito?.

— Sim, pior, porque no outro caso o sacrifício que se tem a fazer é o sacrifício da honra! Bem ou má sou mulher casada e como tal hei de proceder enquanto durar meu marido!

Aguiar, que não esperava por estas palavras, estacou defronte delas, mas sem se dar ainda por vencido.
––––––––
continua…

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 37

CAPÍTULO VIII

Chegaram sem o menor incidente ao destino que levaram.

Aguiar fez conduzir o carro pela rua dos fundos da casa e apeou-se defronte de um portão, dizendo à prima:

— Entre sem receio.

— Mas...

— Calculando a sua vinda, dei todas as providências para que nada nos estorvasse.

— Como?

— A sala, onde seu marido há de estar com a sujeita, tem uma janela que despeja para aqueles lados.

— Ah!

— Essa janela parece dar simplesmente para a montanha, mas tanto dá para a tal montanha como para um pequeno terraço que existe perto dela, meio oculto pela folhagem de algumas árvores.

— Um terraço?

— Sim. E é ali que os vamos observar.

— E se a janela estiver fechada?

— Tão tolo não era eu que consentisse em tal...

— Como assim?

— Ora, preguei muito de propósito as folhas da janela contra a parede. Além disso, eles não terão empenho em fechá-la, não só porque nem sequer desconfiam de que possam ser espreitados, como também abafariam de calor. Só por essa janela entra o ar no quarto.

Branca deixou-se conduzir até ao terraço; o primo a seguiu, afetando o maior acatamento e o mais solícito respeito.

— Eis a janela, segredou ele ao ouvido da prima.

E apontou para uma janela que de fato estava aberta, deixando devassar parte de uma boa sala bem guarnecida e bem iluminada. Sobre a mesa do centro via-se um grande véu preto, de mulher, ao lado de uma bolsa e mais um chapéu de homem e uma bengala.

Branca reconheceu estes dois últimos objetos, mas não disse uma palavra.

— Venha agora para esta outra banda... Segredou-lhe de novo o rapaz, tomando-a delicadamente pela mão e conduzindo-a à extremidade oposta do terraço.

Ao chegar aí, ela sentiu um choque mais violento e amparou-se contra o ombro do primo, escondendo o rosto nas mãos e chorando. É que vira o marido, de pé, tendo nos braços a senhora do conselheiro. Agora, Branca já não podia ficar iludida; vira perfeitamente: Ele estava todo de preto, vergando-se para alcançar com os lábios o beijo que a sua cúmplice lhe oferecia. E viu que os dois se estreitavam nos braços um do outro, dizendo entre si alguma coisa em segredo: palavras de amor sem dúvida.

Branca enxugou as lágrimas, puxou de novo sobre o rosto a sua capa, que ela havia afastado para melhor ver, e com um gesto pediu ao primo que a acompanhasse.

— Agora está convencida?... Perguntou este meigamente.

— Estou. Obrigada.

E ela tomou a direção da saída do terraço.

Aguiar acompanhou-a, sem arriscar uma palavra ou um gesto a favor das suas pretensões amorosas. Percebia que era ainda cedo demais para isso, e que poderia comprometer todo o seu jogo, se naquele momento lhe faltasse a calma.

Ah! Ele conhecia perfeitamente o caráter orgulhoso da prima; tinha plena certeza de que a comoveria muito mais resistindo ao desejo de aproveitar aquela ocasião do que lhe caindo aos pés com uma declaração de amor.

— Nada de precipitar os acontecimentos... Considerou, resolvido a esperar que o dia da sua felicidade chegasse por si.

Foi, pois, com todo o respeito que ele seguiu a prima, dando-lhe a mão quando era preciso descer algum degrau, afastando solicitamente os galhos das roseiras, quando atravessaram o jardim, e afinal conduzindo-a até a carruagem e perguntando-lhe, com a cabeça descoberta, o ar muito sério, se ela queria que ele a acompanhasse a casa.

— Não, obrigada; não há necessidade disso. Adeus.

E Branca, estendeu-lhe a mão, que Aguiar beijou com toda a cortesia:

— Olhe, ouça, ia a dizer o rapaz; mas, nessa ocasião, um vulto de mulher, que saíra da sombra da rua, assomara pelo lado oposto da carruagem e, metendo a cabeça na portinhola, dissera claro:

— Bom! É quanto me basta ver! Estou satisfeita!

Branca retraiu-se no fundo do carro, soltando um pequeno grito assustado, enquanto Aguiar, que havia reconhecido a outra, ordenou ao cocheiro que seguisse, e foi ter com ela.

— Ora, Leonília, que imprudência a tua!...

— Não! Deves dizer antes "Que felicidade!" Não imaginas quanto estou satisfeita!

CAPÍTULO IX

Leonília, logo em seguida àquela célebre visita que lhe fez o Coruja, isto é, logo que embolsou o dinheiro que ele lhe levou, fez vir o Aguiar à presença dela e lhe disse:

— Sabes? Resolvi largar de mão o casamento de Teobaldo e parto no primeiro paquete que daqui sair.

— Pois tu vais deixar o Rio de Janeiro em semelhante ocasião? Perguntou o rapaz, sinceramente espantado; vais partir sofrendo em silêncio o que acaba de te fazer aquele miserável?

— É verdade.

— Pois nem ao menos procuras vingar-te?

— Oh! Quanto a isso, mais devagar, meu amigo!

— Ah!...

— Era preciso que eu não o tivesse amado apaixonadamente e não me tivesse abaixado até à última humilhação a que conduz o amor, para não guardar contra ele um ódio terrível e uma terrível necessidade de fazer-lhe mal.

— Bom.

— Mas, por enquanto, não quero. Seria tolice. Ele que se case, que siga o seu destino; mais tarde hei de estar ao seu lado.

Aguiar tentou ainda convencê-la de que a melhor coisa a fazer contra Teobaldo era desmanchar-lhe o casamento; nada, porém, conseguiu e pôs à disposição dela o seu auxílio.

Leonília partiu com efeito no primeiro paquete que encontrou a sair do Rio de Janeiro; foi em busca do seu incorrigível banqueiro e, durante quatro anos, ajudou-o a liquidar o resto de dinheiro que ainda lhe encontrou.

Quando o viu reduzido a espinha, bateu de novo a bela plumagem, completando o bilhete que lhe deixara da outra vez com esta frase: "Até nunca". E tornou então para o Rio de Janeiro, não com os mesmos encantos e as mesmas pedrarias que trouxera da primeira viagem, porque ia já se enterrando muito em idade e fazendo-se demasiadamente gorda, mas voltou com a mesmíssima preocupação que levara a respeito de Teobaldo.

Um dos seus primeiros cuidados, chegando à corte, foi pedir notícias dele. É inútil dizer que as obteve, ainda mais completas do que procurava, porque no Rio de Janeiro essas coisas se conseguem com extrema facilidade, principalmente quando é uma Leonília quem as busca. Mas de tudo o que lhe constou a respeito do pérfido amante, só uma circunstância lhe encheu deveras as medidas: — A inesperada intimidade de Aguiar em casa de Branca.

Conhecendo o caráter "daquele tipo"; sabendo quais foram os esforços que ele empregou para casar com a prima e quão grande a sua decepção por não o conseguir, calculou logo que espécie de intenções o levaram a se fazer de novo amigo do homem que lhe roubara a mulher amada. Entretanto, por conhecer também de que força era o Aguiar em manha e disfarce, receava que o hipócrita realizasse os seus intentos contra a esposa de Teobaldo, mas, com tamanho jeito e habilidade, que ninguém viesse a descobri-los. E isto, que para ele representaria sem dúvida o complemento da vingança, para Leonília não era mais do que um fato do qual podia se tirar o melhor partido, metendo-o em circulação.

Interrogou o Aguiar sobre esse ponto, e o Aguiar respondeu jurando que a prima era um modelo de honestidade conjugal.

— Bom, disse Leonília, é o que vamos ver...

E esperou.

Esperou e de olhos bem abertos. Nos passeios de carro que ela costumava fazer à tarde ou à noite, preferia em geral as bandas de Botafogo, circunstância em que nada havia de extraordinário, porque este bairro era então o mais próprio e usado para isso.

Mas, chegando em certa altura da praia, mandava sempre abaixar a cúpula do carro e afrouxar o passo dos animais; às vezes, chegava até a estacionar por alguns minutos debaixo de alguma árvore, como quem espera por alguém ou pretende descobrir alguma coisa; outras vezes saltava em terra e entretinha-se a uma pequena volta pelo caís.

Foi assim que ela, na tal noite da entrevista da mulher do conselheiro, viu o Aguiar surgir na porta de Teobaldo com a mulher deste pelo braço.

— Olé! Disse consigo e, auxiliada pela escuridão, pode observá-los à vontade, sem ser pressentida.

Viu-os trocarem em segredo algumas palavras, depois meterem-se resolutamente rio carro que os esperava na rua e que tomou logo a direção da cidade. Leonília acompanhou-os, recomendando ao seu cocheiro de guardá-los a certa distância e não os perder de vista.

Durante todo o tempo que Branca levou no terraço a espreitar o marido, ela rondou a porta da casa; casa aliás já sua conhecida, pois que até pernoitara aí uma noite com Teobaldo, depois de uma grande ceia, que o Aguiar oferecera aos amigos num dia de seus anos.

O primo de Branca estava longe de se supor espiado, e não procurou esconder a sua contrariedade defronte de Leonília.

— Mas com que diabólica intenção fizeste semelhante coisa? perguntou ele, depois de ouvir da cortesã a confissão de que ela o seguira desde Botafogo.

— Ora essa! Respondeu Leonília, sem dominar o seu contentamento, para vingar-me, está claro! Quero que repitas agora o que disseste da inquebrantável honestidade de tua prima!

— Pois olha, juro-te que não mentiria sustentando o que afirmei a respeito dela.

— Tem graça!

— Não posso te explicar as circunstâncias muito especiais, que determinaram o que acabas de ver, mas afianço-te que Branca tem sido até hoje uma esposa verdadeiramente casta...

— Ora deixa-te disso, e fala com franqueza.

— Mas, filha, juro-te que estou dizendo a verdade. As aparências muitas vezes enganam.

— Bem! Não queres falar, tanto pior para ti... Outros descobrirão aquilo que não me queres confessar.

— Mas se não há nada!

— Não tratemos mais disto; acabou-se!

— Não! Mas é que tu me podes comprometer muito seriamente...

— Pois se tens medo de mim, fala com franqueza e eu farei as coisas de modo a não ficares comprometido. Não admito é que me queiras convencer a mim, de que levas a estas horas uma mulher à tua casa de rapaz solteiro, talvez para discutirem algum ponto de moral doméstica!... Isso, hás de ter paciência, mas não passa... E, por conseguinte, dize lá o que entenderes, mas desde já te previno de que tenho sobre o fato o meu juízo formado.

— Se tens já o teu juízo formado, para que diabo queres então que eu fale?

— Porque com isso não fico sabendo menos do que já sei.

— E se eu não quiser falar?

— Nesse caso darei parte desta entrevista a Teobaldo; e ele que proceda como entender.

— E como conseguirias provar?

— Ora! Isso seria o menos! Bastava-me o cocheiro, que é meu conhecido antigo; e demais não sabes se eu estou só; posso ter testemunhas.

— Mas que diabo lucras tu com a minha confissão?

— Não é disso que se trata! Quero saber é se confessas ou não confessas que és o amante de tua prima?

— Desde que afianças que, se eu não confessar, vais perde-la para sempre... Confesso!

— Confessas então que és o amante da mulher de Teobaldo?

— Que remédio!

— E há quanto tempo?

— Desde que a conheço. Bem sabes que ela é a única mulher que amei até hoje...

— Não! Pergunto desde quando ela é a tua amante de fato, desde quando a possuís!

— Não sei, já não me lembro.

— E que tencionas fazer?

— A que respeito?

— A respeito dela. Pergunto se tencionas continuar como até agora, ou visto que a amas, se tens a intenção de tirá-la do marido.

— Isso não é coisa que preciso que ela consentisse.

— Ela não quer?

— Creio que não.

— Não lhe perguntaste?

— Nunca.

— Não creio.

Ele sacudiu os ombros.

— Bem... Murmurou Leonília, depois de uma pausa. — Adeus.

— Posso então confiar em ti, não é verdade? Perguntou Aguiar, apertando-lhe a mão.

— Podes confiar abertamente. Adeus.

— Até outra vez.

Leonília afastou-se, tomou o seu carro e desapareceu. Aguiar, muito contrariado com o que acabava de suceder, foi-se deixando ir pelas ruas, procurando consolar-se com a idéia que ainda havia de possuir como amante aquela que o rejeitou para marido.

E, já sentado à mesa do hotel, onde ele costumava cear, dizia de si para si enquanto esperava o chá:

— No fim de contas fui muito feliz em não me ter casado com ela!
-----------------------
continua...

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Bernardo Guimarães (Poemas Humorísticos e Irônicos : À Moda)

1878

Balão, balão, balão, perdão te imploro,
Se outrora te maldisse,
Se contra ti em verso mal sonoro
Soltei muita sandice.
Tu sucumbiste, mas de tua tumba
Ouço uma gargalhada, que retumba.

“Atrás de mim virá inda algum dia,
Que bom me há de fazer!”
Tal foi o grito, que da campa fria
Soltaste com satânico prazer.
Ouviu o inferno tua praga horrenda,
E pior que o soneto veio a emenda.

Astro sinistro no momento extremo
De teu ocaso triste,
Do desespero no estertor supremo
O bojo sacudiste,
E surgiram de tua vasta roda
Os burlescos vestidos hoje na moda.
Moda piramidal, moda enfezada,
Que donairoso porte
Da moça a mais esbelta e bem talhada
Enfeia por tal sorte,
Que a torna semelhante a uma chouriça,
Que em pé desajeitada se inteiriça.

***

Se vires pelas ruas aos saltinhos
Mover-se um obelisco,
Como quem vai pisando sobre espinhos,
Com a cauda varrendo imenso cisco,
Do espectro esguio a forma não te espante
Não fujas, não, que ali vai uma elegante.

Mas se de face a moça assim se ostenta
Esguia e empertigada,
Sendo por um dos lados contemplada
Diversa perspectiva se apresenta,
E causa assombro ver sua garupa
Que área imensa pelo espaço ocupa.

Formidável triângulo desenha-se
Com base igual à altura,
De cujo ângulo vértice despenha-se
Catadupa, que atrás se dependura,
De fofos e babados
Com trezentos mil nós empantufados.

A linha vertical pura e correta
Eleva-se na frente;
Atrás a curva, alinha do poeta
Em fofos ondulando molemente
Nos apresenta na suave escarpa
A figura perfeita de uma harpa.

Pela esguia fachada nua e lisa,
Qual maciço pilar,
Se brincar co’a roupagem tenta a brisa,
Não acha em que pegar;
E só o sopro de um tufão valente
Pode abalar da cauda o peso ingente.

***

Onde vais, virgem cândida e formosa,
Assim cambaleando?!...
Que zombeteira mão despiedosa
O teu donoso porte torturando,
Te amarrou a essa cauda, que carregas,
Tão atufada de medonhas pregas?!...

Trazes-me à idéia a ovelha timorada,
Que trêmula e ofegante
Do tosqueador se esquiva à mão ingrata,
E em marcha vacilante
Vai arrastando a lã despedaçada
Atrás em rotos velos pendurada.

Assim também a corça malfadada,
Que às garras do jaguar
À custo escapa toda lacerada,
Co’as vísceras ao ar,
De rojo pela senda das montanhas
Pendentes leva as tépidas entranhas.

***

Onde estão os meneios graciosos
De teu porte gentil?
O nobre andar, e os gestos majestosos
De garbo senhoril?...
Abafados morreram nessa trouxa,
Que assim te faz andar cambeta e couxa.i

E a fronte, a bela fronte, espelho d’alma,
Trono do pensamento,
Que com viva expressão, turvada e calma,
Traduz o sentimento,
A fronte, em que realça-se a beleza
De que pródiga ornou-te a natureza,

Tua fronte onde está?... Teus lindos olhos
Brilhar eu vejo apenas
Na sombra por debaixo de uns abrolhos
De aparadas melenas...
Ah! modista cruel, que por chacota
Te pôs assim com cara de idiota.

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 36

CAPÍTULO VI

Uma noite, Afonso de Aguiar assistia à representação dos Huguenotes ao lado de sua prima; Teobaldo muito pouco se mostrava no camarote e parecia extremamente preocupado com a ausência de alguém. Tratava-se de um conselheiro, a quem ele devia ser apresentado durante o espetáculo e de quem esperava a realização de uma ideia que nesse momento o possuía todo Essa ideia era nada menos do que a criação de um jornal político, jornal de luta, com que ele pudesse fazer pressão sobre o partido dominante no país e determinar sua individualidade perante o público; ao lado, porém, deste interesse, todo moral e decisivo, tinha vagas esperanças de obter do governo algum vantajoso privilégio ou algum bom lugar em qualquer legação ou, se as coisas tomassem outro caminho, preparar terreno para uma provável candidatura de deputado geral.

Inconstante e leviano como sempre não firmava em um só ponto as suas pretensões e aspirava em grosso, abrangendo com a sua desnorteada e vacilante ambição tudo aquilo que se podia articular de qualquer modo ao objeto do seu desejo.  Assim, logo que lhe veio a ideia de fazer-se jornalista, pensou em ser concessionário, pensou em ser diplomata e pensou em ser deputado, sem se decidir por nenhuma das três carreiras, aliás tão diversas e tão opostas. E tanto teve de entusiasmo pelo comércio, ao fazer-se negociante, quanto agora o detestava e maldizia a cada momento.

Se eu conseguir criar a folha, planeava ele, espaceando no corredor do teatro, conservo-me ainda por algum tempo no comércio, apenas na qualidade de sócio comanditário, e dedico-me de corro e alma ao jornalismo. Com o meu talento e com a minha vivacidade, não dou um ano à minha folha para ser a primeira do Império. E já se via aclamado e aplaudido pelo público, já se via influindo sobre os destinos da pátria, e determinando com uma penada as mais graves questões políticas.

Uma enorme sede de luzir, de parecer grande, de dominar, o assoberbava ultimamente, fazendo-o esquecer-se de tudo e de todos, para só cuidar do seu nome. Apoderava-se dele a febre do avô, a paixão da altura; queria subir até onde chegava sua ambição. Não havia nisso a menor sombra de amor pelo trabalho, nem desejo de ser útil à pátria ou aos seus semelhantes, mas só vaidade, essa mesma vaidade que fora sempre a sua única soberana, e pela qual ele seria capaz dos maiores heroísmos e também das maiores perversidades.

E enquanto Teobaldo devaneava e passeava no corredor, entusiasmando-se com o alto conceito que fazia de si mesmo, o outro, o Aguiar, quedava-se no camarote, acompanhando em silêncio todos os gestos da prima. Estavam já no penúltimo ato, em meio do grande dueto de Raul de Nangis e Valentina; Branca não despregava o binóculo da cena e parecia arrebatar-se com a magia daquela música suprema e apaixonada; os seus desgostos, as suas profundas mágoas de amor, acordavam todas, uma por uma, no fundo de sua alma; e, quando o tenor soltou a última frase do dueto, uma lágrima brilhou nos olhos dela e um longo suspiro desdobrou-se-lhe nos lábios.

Só então, despertando do seu enlevo, atentou para Afonso, que a devorava com a vista.

— Como sofre... Disse ele entredentes, não tão baixo, porém que a prima não o ouvisse.

Ela balbuciou ainda uma frase de desculpa, mas o rapaz acrescentou em segredo:

— Para que há de esconder de mim os seus sofrimentos? Julgará que é de hoje que os observo e acompanho?... Melhor faria, minha prima, em derramá-los no meu coração, porque só os que também sofrem poderão compreende-los e...

— Eu é que não compreendo... Respondeu Branca, fazendo-se muito séria.

— As palavras de um bom amigo só não as compreende quem de todo não quer.

— Nesse caso repita-as a Teobaldo, que ele as compreenderá melhor do que eu.

— Duvido.

— Não acredita então na amizade de meu marido?...

— Não.

— Como assim?

— Teobaldo não estima a ninguém. Ele só cuida si, só pensa na sua própria pessoa, só de si se preocupa.

— Não é isso o que meu primo costuma dizer a respeito dele.

— Ah! Certamente, porque desejo engrandecê-lo aos olhos de todos.

— Mas então com que fim?

— Com o fim de ser — Para ele — Útil e para a prima agradável.

— Pretende então agradar-me?

— Decerto, visto que sou seu amigo.

— E como, se é meu amigo, procura convencer-me de que Teobaldo não estima a ninguém?... Esquece-se, meu primo, porventura de que, se eu chegasse a acreditar em semelhante falsidade, seria a mais infeliz das mulheres, porque adoro meu marido e suponho ser amada por ele?

— Se a prima acreditasse no amor de Teobaldo, não sofreria como sofre.

— Quem lhe disse que eu sofro?

— Diz-me tudo: dizem-me as suas lágrimas mal disfarçadas, a sua melancolia, os seus suspiros; dizem-me esses pobres olhos entristecidos e queixosos!...

Branca abaixou as pálpebras instintivamente, e o rapaz, aproveitando o efeito daquelas palavras, acrescentou:

— Quando uma mulher é correspondida no seu amor, toda ela ressumbra contentamento e felicidade; de cada beijo que dá ou recebe da pessoa amada, fica-lhe
na alma o gérmen de um sorriso e não da lágrima, que ainda há pouco lhe vi saltar dos olhos.

— Mas, quando assim fosse, retorquiu a senhora, dada a hipótese de que com efeito tenho qualquer motivo para sofrer, que lucraria eu em confessá-lo? Que lucraria? Oh! Lucraria muito! Lucraria em desabafar, lucraria em dividir com alguém a sua mágoa!

— Não! Isso só se pode fazer com um ente, um único, quando o possuímos, e eu o possuí tão pouco!...

— Quer falar de sua mãe?

— É verdade.

— E não se lembra de que eu, por bem dizer, sou seu irmão, que a vi pequenina e que me habituei a estimá-la e a respeitá-la, como se tivéssemos bebido o mesmo leite materno?...

— Mas que lhe podem interessar meus desgostos? São tão íntimos... Tão meus !...

— Por isso mesmo me interessam, porque eles são muito seus. Oh! Era preciso não ser seu amigo, seu companheiro de infância, seu irmão, para não me interessar por eles, como me interesso por tudo que lhe diz respeito!

E chegando-se ainda mais junto dela:

— Juro-lhe, minha prima, que, apesar da tremenda decepção que sofri com o seu casamento, apesar de a ter desejado ardentemente para minha esposa, só a idéia de que Teobaldo faria a sua felicidade levou-me a esquecer tudo! Nunca mais a possuiria, é exato; nunca mais a vida seria para mim outra coisa mais do que a morte sem as regalias da morte, sem o descanso, sem o esquecimento e sem a dor; consolava-me, porém, a idéia de ter contribuído para a ventura daquela que eu idolatrava, daquela que foi a única mulher que amei, que amarei sempre! E contava. pois, que, em a vendo satisfeita e alegre, eu teria também, do fundo da minha desgraça, o meu quinhão de alegria! Vendo-a gozar, eu gozaria também! Ah! Mas quando dei pelo procedimento de seu marido; quando descobri que ele covardemente a enganara, fazendo-lhe acreditar que a amaria por toda a vida; quando cheguei a compreender qual fora a verdadeira intenção daquele miserável, arrancando-a brutalmente da casa paterna; ah! Então, confesso-lhe, minha prima, transformei-me todo; confesso-lhe que senti indignação tão grande como seria a indignação de seu pai, se ainda vivesse!

— Meu pai! Oh! Não me fale nele, por amor de Deus!

— Sim, seu pai, que juntou a vida ao dote cobiçado pelo seu raptor.

— Meu primo!

— Perdoe-me! Deixe-me desabafar por uma vez, que estou cansado de reprimir a minha indignação! Juro-lhe que, se Teobaldo fosse um bom marido, teria em mim um amigo para a vida e para a morte; mas, fazendo-a sofrer, desprezando-a como a despreza, desdenhando de todas essas virtudes e de todos esses encantos que a prima possui como nenhuma outra mulher no mundo, preferia vê-lo atravessado por uma bala!

— Cale-se por amor de Deus!

— Não tem que se revoltar com o que estou dizendo! É na qualidade de amigo e de irmão que lhe falo! Ninguém terá maior empenho do que eu em protegê-la!

— Não posso aceitar uma proteção que acusa e ofende meu marido...

— Em sua defesa, eu acusaria o próprio Deus, se ele a desgostasse!...

— Pois se assim é, proteja-me estimando Teobaldo, perdoando-lhe as faltas e defendendo aos olhos dele a minha causa. Só por essa forma provaria o primo que me estima deveras.

Mas, justamente nessa ocasião, Teobaldo, em um camarote defronte do da esposa, fazia a corte à mulher do tal conselheiro de quem dependia a criação do seu jornal.

Experiente e vivo como era, sabia que as mulheres são o melhor conduto para se chegar aos maridos. — Porque, considerava ele — das duas uma: ou a sujeita é boa e por bondade cederá ao meu pedido; ou não é, e neste caso eu a farei solidária nos meus interesses, desde que a converta em minha amante. A senhora do conselheiro, posto não fosse de todo desengraçada e despida de seduções, era já uma gordachuda quarentona que em ninguém acenderia delírios de amor, e muito menos em Teobaldo, que, a respeito de mulheres, só tinha tido até ali boas fortunas. Não se tratava, porém, de satisfazer ao gosto e sim de arranjar proteção, e como ele, logo ao primeiro ataque, descobriu que a esposa do conselheiro pertencia à segunda daquelas duas ordens, tratou de dar toda força aos seus recursos de insinuação e aos seus artifícios de conquistador.

Foi tiro e queda! No fim de pouco tempo de conversa a senhora do conselheiro se interessava visivelmente pelo marido de Branca. Ouvia-o com toda a atenção, abanando-se indolentemente, a sorrir e a contemplá-lo em silêncio. Ele falava de tudo, promiscuamente, tocando apenas com a ponta da asa do seu espírito no assunto que se oferecia; não esteve calado um instante; depois ergueu-se de súbito e, o claque em punho, o ar todo restrito, pediu as ordens da excelentíssima senhora, lamentando ainda uma vez a ausência do conselheiro, a quem fazia empenho de ser apresentado.

— Pois então apareça-nos sexta-feira. Está convidado. Eu prevenirei meu marido de que o senhor não faltará. Vai?

Teobaldo vergou-se todo defronte destas palavras, disse que sim com um gracioso sorriso e, requintando a sua cortesia, beijou a mão que a senhora do conselheiro lhe havia estendido.

— É interessante este rapaz! Anotou ela consigo, depois de sair a visita.

— Estou garantido! Pensou ele, quando se viu em liberdade.

Entretanto, o Aguiar, que não perdera um só dos movimentos do marido de sua prima, chamou a atenção desta sobre o modo pelo qual ele se despedia da outra.

— Não há de ser por mal... Considerou Branca, afetando tranqüilidade, mas no íntimo ressentida.

É que acabava de cair por terra mais uma das pedras do pobre castelo das suas ilusões.

CAPÍTULO VII

Por esse tempo o Coruja, sempre lutando com o seu coração, com a sua natural antipatia, com o seu trabalho excessivo e com as exigências da velha Margarida e mais da filha, achava-se em uma situação especial.

O diretor do colégio, em que ele trabalhava havia tantos anos, um viuvão preso ultimamente à cama pelo reumatismo, acabava de sucumbir pedindo-lhe, antes de morrer, que ficasse com o estabelecimento e fizesse o possível para mantê-lo sem quebra dos créditos até aí conquistados.

André prometeu; mas, feito o inventário do colégio, verificou-se que este devia dez contos de réis, ficando por conseguinte quem tomasse conta dele obrigado a fazer frente a esse débito.

Ora, o Coruja não tinha dez contos de réis, nem donde os haver, pois que Teobaldo, único a quem ele poderia recorrer, já não se achava em circunstâncias de servi-lo. Entretanto, mesmo com algum sacrifício, pagava a pena de ficar com o colégio, porque, em primeiro lugar, o que havia dentro deste valia bem a metade daquela quantia, e, em segundo lugar, o estabelecimento era um dos mais acreditados da corte e contava um bonito número de alunos. Notando-se ainda que a ninguém convinha como ao Coruja ficar com ele a dirigi-lo, visto que de há muito fazia as vezes do diretor, e, valha a verdade, com vantagem sobre o verdadeiro, já por introduzir no estabelecimento muitas das reformas do ensino primário, já por desenvolver várias aulas que encontrou quase que em estado de abandono.

Ora, se o Banco do Brasil, que era o principal credor, cedesse dois anos de moratória, o Coruja, empregando todo o seu esforço, bem podia dar conta do recado. Tratou-se do negócio. O Banco mediante a hipoteca do colégio, dava um ano para a entrada da metade da dívida e outro ano para a entrada do resto. André teria, pois, se fechasse o acordo, de apresentar seis contos de réis daí a um ano e outros seis daí a dois, submetido, já se vê, aos juros da lei.

Verificou o que conseguira economizar depois da moléstia de D. Margarida, calculou ao certo o produto líquido do colégio e, tomando a resolução de reduzir ainda mais as suas despesas e largar de mão por algum tempo a sua história do Brasil, resolveu afinal assinar o contrato.

Tudo isso fez ele sem o menor entusiasmo, com uma inalterável confiança nos seus esforços. E desde então com efeito não descansou um segundo: dispensou alguns professores, cujo serviço tomou a seu cargo e começou a lecionar por dia nada menos do que oito aulas, inclusive a de música.

Pois, ainda assim, descobria tempo para fazer a escrituração da casa e, lá uma vez por outra, para adiantar uma página à sua querida história do Brasil. Embalde protestava-lhe o corpo contra tanto excesso de trabalho. Coruja não se deixava vencer e reagia energicamente; é verdade que, ao chegar a noite, já se não podia ter nas pernas e só com muito sacrifício agüentava-se acordado até às onze horas, trabalhando ainda; mas em compensação trazia agora o espírito mais tranqüilo a respeito do seu compromisso com Inês, a quem desposaria, mal visse o colégio desembaraçado.

A nova situação de André por qualquer forma animou a velha Margarida, que ultimamente se havia convertido para ele em um verdadeiro tormento.

— Ora, Deus queira que desta vez você desembuche, criatura! Disse-lhe ela, quando o rapaz lhe levou a notícia. — Já não vem sem tempo!

— Ah! Desta vez creio que ficará tudo realizado!... Considerou André — É que as coisas, Sra. D. Margarida, nem sempre caminham à medida dos nossos desejos...

— Ora, seu Miranda, se você quisesse, há muito tempo que já teria dado um jeito ao negócio !.

— Mas para que fazer as coisas no ar? E muito melhor ir pelo seguro! Olhe, logo que eu liquide o meu débito com o Banco, posso casar sem receio, porque já terei certo o necessário para sustentar mulher e os filhos que vierem. O colégio, uma vez desembaraçado, dará perfeitamente para isso o talvez até para se por de parte alguma coisinha... Não acha a senhora, D. Margarida, que sempre é melhor assim, do que casar-se a gente em um dia e já no outro estar arrependida?

A velha, em vez de responder às considerações de André, limitou-se a exclamar:

— Hei de ver este casamento pelas costas e ainda me parecerá um sonho!

— Agora há de vê-lo realizado!

— Com um ano de espera pelo menos... Arriscou Inês. — Em um ano o mundo dá tantas voltas!...

E sua cara era tão feia e tão apoquentada com semelhantes palavras, que fazia desconfiar que as tais voltas do mundo haviam de ser por cima dela.

— O que não sei é se ele ainda deitará um ano ... Considerou a velha, quando o Coruja a deixou com a filha. Acho-o agora tão não sei como!... O diabo do homem parece que fica mais feio de dia para dia!

— A mim, o que lhe acho, acrescentou a outra — É mais bodega do que nunca: já não se sabe de que cor é o paletó que ele trás no corpo, e o chapéu parece que está a se acabar aos nacos!

Tais considerações sobre o mau trajar do Coruja não eram privilégio exclusivo das duas senhoras; em casa de Teobaldo já todos haviam também notado a mesma coisa, sem que ninguém aliás se animasse a censurá-lo, porque bem sabiam a que ponto levava ele a economia depois de tomar o colégio à sua conta. Mas se aí lhe perdoavam a penúria de roupa, o mesmo não sucedia nas outras partes, e o pobre Coruja ia ganhando fama de sumítico e miserável.

Comentavam amargamente aquela extrema restrição de despesas; acusavam-no de nunca ter sido visto a gastar um só vintém com pessoa alguma, e muita gente garantia que ele aferrolhava dinheiro. Em verdade, não podia ser mais rigorosa a abstinência do Coruja, nem podia o seu tipo ser mais farandolesco e miserável do que era ultimamente; mas, também, quem o surpreendesse à noite no seu cubículo, depois de recolhido, ver-lo-ia tirar de uma gaveta diversos títulos do Banco e diversos maços de cem mil réis em papel, que ele contava e recontava com uma voluptuosidade de avarento; como, se à força de conferir o dinheiro, pretendesse engrossá-lo.

O Aguiar embirrava com ele progressivamente. Ao topá-lo em casa do amigo, tão maltrapilho e tão esquerdo de maneiras, torcia sempre o nariz e às vezes chegava a exprobrar à prima aquela relação.

— Também não sei, dizia, — Como Teobaldo, que é aquele mesmo, conserva este tipo dentro de sua casa...

— São muito amigos, respondia Branca secamente.

— De acordo, mas, que diabo! Semelhante figura é o bastante para desmoralizar uma casa... Parece um mendigo! Um verdadeiro mendigo!

— É um homem honesto, afianço-lhe.

— Oh! Nem podia deixar de ser! Com tal aspecto ser honesto não é favor: ele tinha obrigação de ser, pelo menos, santo.

— E talvez meu primo acertasse. O Coruja tem coisas de um verdadeiro santo.

— Menos a figura, que essa é marca de Judas.

— Com efeito, é antipático, mas também não é tanto assim... Repare bem e verá.

— Não. Tenho medo. Aquela cara seria capaz de me por doente se eu a fitasse.

A atitude do Aguiar ao lado da prima continuava a ser a de um seu parente chegado e amigo da casa; Branca, todavia, ao conversar com ele, sentiu por várias vezes orçar-lhe pelo pudor as antenas de uma estranha intenção, que ela procurava não compreender e contra a qual se retraía toda. Mas o sedutor nem por isso perdia as esperanças, e, sempre com o seu sistema artificioso, ia empregando todos os meios de insinuar-se-lhe no ânimo, até que chegasse uma boa ocasião para a empolgar.

A ocasião, porém, não queria apresentar-se, e ele teria talvez precipitado os acontecimentos, se o acaso não fosse ao seu encontro, avivando-lhe a coragem e fazendo-lhe antever um desfecho ainda mais rápido do que esperava para a sua campanha.

Aguiar estava muito ao corrente das pretensões jornalísticas de Teobaldo e, melhor ainda, sabia em que pé caminhavam as intimidades deste com a senhora do conselheiro; de sorte que, um belo dia, ouvindo Branca teimar que o marido tinha de passar a noite em importante conferência comercial com alguns amigos, ele sorriu e disse:

— E o que perderia a prima se eu lhe provasse o contrário?

— Perderia mais uma ilusão a respeito de meu marido, respondeu ela. — Até aqui ainda não o apanhei mentindo, e confesso que o julgo incapaz de tamanha baixeza.

— E se eu provasse que ele, em vez de passar a noite nessa fantástica conferência, estará por esse tempo aos pés da mulher do conselheiro?...

— Creio que ainda assim eu não acreditaria.

— E se as provas fossem irrecusáveis?

— Nunca perdoaria a ele semelhante infâmia.

— E jura que não fará o mesmo a meu respeito, se eu provar o que disse?

— Pode estar tranqüilo por esse lado, porque nós, as mulheres, só condenamos os atos maus e as faltas da pessoa que amamos. Em nós o ódio é sempre o avesso do amor e só aparece quando este se esconde; o nosso coração é uma capa de duas vistas, cujos lados não podemos usar ao mesmo tempo: ou bem que amamos, ou bem que odiamos.

— Quem me dera então ser odiado pela prima...

Branca sentiu o roçar das tais antenas e tratou logo de cortar a conversa, retirando-se para o seu quarto, a pretexto de sentir-se indisposta. Aguiar ficou na sala, mas a denúncia dele acompanhou-a, grudando-se-lhe ao coração com tanta insistência, que afinal já a oprimia.

— Um mentiroso! Pensava ela, deixando-se cair sobre o divã.

E vieram os soluços.

— Mentir, enganar-me, trair-me como o mais baixo dos homens não faria com sua mulher!... Oh! Isso não! Isso já é demais! Isso já não é uma fraqueza, é uma vilania e uma perversidade! Se ele está farto de mim, se não me pode suportar, por que então não fala com franqueza? Por que não confessa tudo dignamente? Por que me traz nesta dúvida ridícula e mais dolorosa do que a pior das evidências?...

E ainda chorava sobre estes raciocínios quando Teobaldo chegou à tarde.

Ela disfarçou as suas lágrimas, acompanhou-o ao jantar, depois conversaram juntos, como de costume, debaixo de um caramanchão que havia na chácara e, só à noite, ao vê-lo já pronto para sair, perguntou-lhe com os braços em volta do pescoço dele:

— Vais sempre à tal reunião?

— Vou, e creio que me demorarei alguma coisa; mas fica descansada, que não irei muito além da meia-noite.

E beijou-a na testa e teria desaparecido logo, se a mulher não o prendesse com mais força.

Ele estranhou:

— Então! Disse. Creio que não vou empreender alguma viagem aos pólos! A esposa tomou coragem e interrogou-o abertamente:

— Quero que me digas uma coisa, mas não mintas! Fala com franqueza.

— Não te compreendo, filha.

— Dize-me: onde vai tu agora?

— Oh! Estou farto de repetir! E estalando as sílabas: — Vou a uma reunião comercial, que tem hoje de deliberar sobre um sindicato, apresentado ao governo, pedindo privilégio para o fornecimento de certos materiais de guerra que tencionamos mandar ao Paraguai. Oh!

— Jura! Dá tua palavra de honra!

— Ora essa!

— Então não acredito.

— Paciência!

— E vejo que as minhas desconfianças têm razão de ser...

— Desconfianças?

— Sim. Não acredito na tua reunião.

— E com que direito?

— Com o direito de quem tem ciúmes.

— Ciúmes, tu?

— Eu mesma.

— E duvidas de mim?

— Só não duvidarei se renunciares a essa tal reunião.

— Não posso.

— Fica. Peço-te.

— É impossível! Teria um grande prejuízo!

— Fica Teobaldo.

— Não. Seria uma tolice, que eu a mim mesmo nunca perdoaria! Bem sabes que os meus negócios não vão bem, atravesso uma crise muito séria, extraordinariamente séria! A guerra tem me feito um mal diabólico! Se me descuidar, estará tudo perdido, tudo! Nesta reunião de hoje vou tratar do nosso futuro; é o interesse que me conduz e não devo faltar!

— Bem, vai!

— Adeus.

— Adeus.

Ele tornou a beijá-la na fronte e depois saiu.

Branca ficou imóvel, junto à porta, a segui-lo com os olhos. Viu-o descer muito lépido a escadaria de pedra, atravessar a chácara e ouviu depois rodar o carro lá fora.

— Qual dos dois será o mentiroso? Este ou o outro?... Balbuciou ela, deixando pender a cabeça para o peito e entregando-se a uma cisma atormentadora e ensombrecida pela dúvida: Qual dos dois será o infame? Talvez ambos ...

Despertou com a voz do primo.

— Então? Ele sempre foi? Perguntou este com um sorriso.

Branca respondeu sem falar, procurando esconder a sua preocupação. Deu uma pequena volta pela sala, afinal foi colocar-se ao lado do primo:

— Onde é a entrevista, sabe?

— No Catete.

— Em casa de quem?

— Na minha.

— Na sua casa?

— Ele pediu-ma e eu não podia negar. Não acha?

— Fez bem.

E ela acrescentou, depois de uma pausa aflita, aproximando-se mais de Aguiar:

— Meu primo, o senhor disse que é meu amigo, não é verdade?

— E sustento.

— Pois bem, prove-o, não dando uma palavra a respeito do que eu vou fazer.

— Juro que não darei, mas peço em troca uma promessa do mesmo gênero.

— Fale.

— A prima não dirá a Teobaldo quem foi que o denunciou.

— Pode ficar descansado.

Dito isto, Branca foi ao tímpano e vibrou-o.

Apareceu um criado.

— O Caetano que se apronte para sair e venha imediatamente aqui; você vá chamar um carro. Depressa!

— Vai certificar-se? Perguntou Aguiar à prima, feliz com aquela intimidade que o aproximava mais dela e como que o fazia seu cúmplice, estabelecendo entre eles um segredo, um pacto e um juramento.

Branca respondeu que sim, queria certificar-se com os seus próprios olhos.

— E que meios tenciona empregar para isso?

— Espiá-los.

— Mas, de que modo?

— Postando-me defronte da casa.

— E se eles já tiverem entrado e se fechado por dentro?

— Espero que saiam.

— Mas é que dessa forma a prima será descoberta e terá de passar longas horas a esperar na rua, metida em um carro de aluguel, talvez arriscando a sua reputação...

— Que então hei de fazer?

— Seguir os meus conselhos. Eu me comprometerei a levá-la a um lugar, donde a prima poderá observá-los a vontade e sem ser vista.

— Ir em sua companhia?...

— Parece-me que sempre é mais prudente do que ir em companhia do Caetano... Lembre-se de que esse velho a ninguém preza neste mundo como a Teobaldo e que não resistirá por conseguinte ao desejo de contar-lhe tudo!

— Pouco me importaria eu com isso!.

— Sim, mas importo-me eu. Se Teobaldo chegasse a descobrir a armadilha, descobriria também quem a armou. Ao passo que, indo a prima só comigo, eu a faria entrar misteriosamente pelos fundos da casa e levá-la-ia a um lugar seguro donde, já disse, os poderia ver, sem que ninguém desconfiasse da sua presença.

O velho Caetano acabava de aparecer à porta da sala, todo paramentado com a sua libré nova, a cabecinha já muito branca e vergada ao peso dos seus setenta anos.

— Espere, Caetano, disse-lhe Branca, encostando-se a um móvel, como para melhor resistir às idéias que a acabrunhavam.

É que ao seu espírito altivo e leal repugnava tudo aquilo, sentia-se mal, como se estivesse premeditando uma infâmia.

— Você já não é necessário, declarou Aguiar ao criado, enquanto ela pensava.

O velho Caetano fez uma respeitável continência e apartou-se sem dar palavra, arrastando os seus cansados pés e afagando lentamente com a mão a nuca encanecida.

Branca teve afinal um gesto resoluto de cabeça, foi ter com o primo o perguntou-lhe com a voz tão firme quanto era firme o seu olhar:

— Dá-me a sua palavra de honra em como não deixará de ser cavalheiro um só instante enquanto estiver ao meu lado?

— Dou-lhe a minha palavra de honra em como a respeitaria como minha irmã ou minha mãe!

— Bem. Aceito a sua companhia.

E retirou-se por alguns segundos para ir por uma capa.

— Podemos ir, disse ao reaparecer na sala.

O primo deu-lhe o braço e os dois saíram juntos.
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continua

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Luiz Otávio (Carolina)

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Fonte:
RAMOS, Carolina. Príncipe da Trova. São Paulo: EditorAção, 1999. p.148.
Imagem = montagem da trova sobre imagens  obtidas na internet e no livro acima, reformatadas para se adaptar ao tema, por José Feldman