sábado, 20 de julho de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 12

CAPÍTULO IV

Havia em Catumbi uma velha de uns quarenta e tantos anos, chamada Margarida, que vivia em companhia de sua filha única — a Inezinha, e sobre quem ela firmava todas as suas esperanças e a quem dedicava todos os seus afetos.

Moravam sozinhas e, porque não dispunham de outra fonte de receita senão o trabalho, labutavam a valer desde pela manhã até ao fugir do sol. A velha era incansável, ativa como poucas, mas, por outro lado, geniosa e rezingueira como ninguém. Posto que o trabalho lhe tomava todas as horas do dia e às vezes uma boa parte da noite, ainda ela descobria algum tempo para dar à língua com os vizinhos e comentar a vida do próximo.

— Aquela almazinha não tinha um momento de descanso, murmuravam os seus conhecidos.

E isso mesmo estava a dizer a figurinha enfreneziada de D. Ernestina: pequena, seca e viva como um camundongo

Era a primeira que se levantava no seu quarteirão, e, ainda não se sabia a cara que traria o sol, já andava o demônio da velha na sua canseira de todos os dias; braços arremangados, saia puxada ao cós, a lidar, a vassourar para a direita e para a esquerda e a ralhar com a filha, que "Benza a Deus! Não parecia ter vindo de tal mãe!"

E daí atirava-se às costuras, à lavagem ou ao engomado, e era trabalhar para a frente, até dizer basta.

A Inezinha, porém, com o seu ar de mosca morta, os seus olhos sonolentos e a sua voz arrastada e frouxa, metia-lhe fezes no coração.

— Ó pequena! Gritava-lhe a velha muitas vezes, a sacudir-lhe o braço, como se quisesse acordá-la; onde diabo vais tu parar com toda essa moleza?... Deus me livre! Parece que tens chumbo nas pernas! Pois olha que é preciso puxar pelo serviço, se queremos que não nos faltem os feijões!

Mas Inezinha não endireitava nem à mão de Deus Padre e cada vez parecia mais ronceira e menos capaz de tomar caminho.

— Aí está, resmungava a mãe; aí está para que serviu saberes mais do que eu! Bem dizia teu pai, a quem Deus haja; bem dizia ele, quando, quando te pus no colégio, que nada havíamos de lucrar com isso!

— Mas eu faço o que posso... Contrapunha a rapariga. Que culpa tenho eu de não me ajeitar à lavagem da roupa e muito menos ao ferro de engomar? Se algumas vezes deixo o serviço, é porque não há outro remédio, é porque me aparece a pontada no estômago! Ora aí está!

A mãe ralava-se. Aquela filha era o seu tormento! Ainda se Inês fosse uma rapariga esperta, diligente para outras coisas, vá! Dar-se-lhe-ia um jeito; mas aquela mesmo, Deus te livre! Aquela que não sabia se mexer pelos seus pés, aquela sem vontade que só caminhava quando alguém a empurrava para a frente! Credo! Que até parecia castigo do Deus!

Foi nessa conjuntura que D. Margarida se lembrou de fazer a filha tomar criança para ensinar.

Vieram os primeiros discípulos, e tal gosto revelou Inês para esse gênero de trabalho, que o no fim de pouco tempo a sua idéia fixa era arranjar uma cadeira de professora régia.

— Mas, com que pagar a um bom explicador de português, a quem aprontasse em pouco tempo?... A coisa não podia ser tão barata, e elas, coitadas, mal ganhavam para o pão de cada dia.

A velha, entretanto, não descansou mais e tanto furou, tanto virou e tanto tagarelou sobre o caso, que afinal descobriu o Coruja, por intermédio da filha de uma sua amiga, a quem ele ensinava de graça.

Foi logo procurá-lo no colégio, levando engatilhado um arsenal de lamúrias, que havia de mover o coração do professor por mais duro que fosse. André, porém, não lhe deu tempo para lançar mão do arsenal e, logo às primeiras palavras da velha, declarou que ela estava servida.

— Deixe-me o número de sua casa, disse ele, e vá descansada, vá, que a menina há de aprontar-se para a primeira ocasião.

D. Margarida quis beijar-lhe as mãos.

— Não tem que me agradecer; vá, vá! Hoje por mim, amanhã por ti. Talvez que ainda esta noite de um pulo até lá. E adeus, adeus, que vai entrar a aula de latim.

Daí a dois dias principiara ele a dar as suas lições a Inês, com a mesma pontualidade e o mesmo inalterável zelo que empregava para com todos os seus discípulos. Chegava lá regularmente às sete horas da noite e principiava logo o trabalho, defronte de um grande candeeiro de azeite, que D. Margarida trazia para o centro da mesa.

As duas senhoras viam em André um benfeitor caído do céu e, para mostrarem o seu reconhecimento, desfaziam-se em pequeninos obséquios: davam-lhe a melhor cadeira, só lhe falavam a sorrir e obrigavam-no a aceitar todas as noites uma xícara de café.

Em pouco o bom rapaz não representava para elas um simples professor, mais um amigo, uma espécie de membro da família. No fim de alguns meses ele já as levava aos domingos a dar uma volta no Passeio Público e, lá uma vez por outra, acompanhava-as a alguma festa de arraial ou a algum espetáculo no Provisório.

E tudo isso era praticado com tamanha seriedade, com tanto afeto e respeito, que a velha principiou a enxergar no Coruja um noivo capaz de fazer a felicidade da filha e, por conseguinte, a sua felicidade dela, Margarida. Mas o pior era que, a despeito dos conselhos maternos, Inês tratava o seu dedicado professor com a mesma dubiedade de maneiras, com a mesma frieza e, pode-se dizer até, com a mesma diferença com que tratava a toda gente. Seus gestos e seus olhares estavam como a dizer:

– A mim tanto se me dá seis como meia dúzia... Casar com este ou casar com aquele, para mim é tudo a mesma coisa, contanto que não me incomodem e não me obriguem a ter de tomar uma resolução. Querem que eu case com o Sr. Miranda? Pois seja, não digo o contrário, mas, por amor de Deus, deixem-me em paz!...

A mãe, porém, que não tinha aquela fleuma e entendia que sem a sua intervenção nada se arranjaria, resolveu tomar o negócio a seu cuidado.

— O Sr. Miranda nunca pensou em casar?... Perguntou-lhe ela uma vez, sem mais preâmbulos.

André corou e respondeu que não podia ainda pensar nisso.

— Ainda é muito cedo..., Disse.

E, abaixando os olhos e a voz:

— Além de que eu não devo esperar semelhante coisa... Conheço-me perfeitamente. sei quanto sou feio... Quanto sou antipático... Onde iria descobrir uma mulher que me aceitasse?...

— Quem sabe lá!... Retrucou a velha, olhando com intenção para o lado da filha. Quem sabe lá, seu Miranda!... As; vezes a gente nem desconfia e as coisas estão nos entrando pelos olhos!.

André tornou a corar, mas desta vez sorrindo e levantando a vista para sua discípula.

Inês, porém, não fugia nem mugia. Ali estava, como uma empada, tão pronta para casar no dia seguinte como para não casar nunca. A velha, percebendo isso e confiando muito pouco no gênio iniciativo do professor, teimou com tal insistência nas suas ilusões, que o rapaz não teve remédio senão entrar no assunto.

— Ah! Eu não digo que... Sim, quer dizer, se eu encontrasse uma menina de bom gênio, que me estimasse, não digo que não; teria até multo prazer com isso.

— Pois há! Acudiu a velha; há uma menina nessas condições! E ali está ela defronte de vós! Não é verdade, Inezinha, que de bom grado aceitarias o Sr. Miranda para teu marido?

Inezinha disse que sim com a cabeça, e a velha acrescentou, muito comovida:

— Pois então, meus filhos, abracem-se em minha presença. Quero ver isto assentado de pedra e cal! Vamos, vamos! Não tem de que se mostrar tão envergonhados... Então, Inês! Então, Sr. Miranda ...

Os dois taciturnos namorados ergueram-se em silêncio e deram entre si um abraço de pura formalidade.

— Agora, volveu D. Margarida, é cuidarmos de decidir quando há de ser o grande dia!

O Coruja, sempre metódico e cauteloso, declarou que achava bom esperar um pouco. Nada de precipitações!... Ele estava no princípio de sua carreira, ainda não podia realizar o casamento; mas, se es coisas caminhassem para a frente, como era de esperar, em breve tudo se poderia fazer.

Desde então as suas constantes visitas à casa da discípula tomaram um caráter mais exclusivo e mais familiar. Aparecia agora mais cedo e assentava-se ao lado da noiva, no mesmo lugar onde, desde o princípio, se habituara a dar as suas lições. O estudo durava em geral duas horas, no fim das quais se afastavam os livros e começavam todos os três a conversar até ao bater das nove.

Coruja, fácil como era para se escravizar aos hábitos, no fim de algum tempo já não podia passar sem aqueles calmos serões à luz do velho candeeiro de D. Margarida; já não podia dispensar a xicarazinha de café, que ele ouvia moer no pilão, no quintal; e precisava sentir ao seu lado, durante aquelas horas certas, o vulto passivo e silencioso de Inês.

Seu coração imaculado e casto foi pouco a pouco se deixando vencer por um sentimento até aí desconhecido para ele. Era um amor muito transparente, muito calmo, que esperava com evangélica paciência o dia da ventura, sem a mais ligeira perturbação dos sentidos.
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continua…

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 11

CAPÍTULO III

Depois desta cena Ernestina passava a maior parte dos seus dias no segundo andar. Mas não gostava de lá ir enquanto o Coruja não tivesse saído para a rua. É que ele a intimidava com o seu ar antipático e carrancudo e com aquela repreensiva gravidade de homem sério; defronte dele sentia-se acanhada e contrafeita, como se estivesse defronte de um velho intolerante e respeitável; sentia-se  mais criminosa ao lado de André do que ao lado do próprio Almeida.

Quanto a Teobaldo, esse, longe de a constranger, fascinava-a, atraindo-a, dominando-a com a sua indiferença e com o seu orgulho gracioso e sedutor. Ao tom senhoril das palavras dele, defronte daquele olhar fidalgo ou daquele frio sorriso de adulado, ela se sentia escrava e submissa, feliz em amá-lo, mesmo com a certeza de ser mal correspondida.

E, quanto mais passiva se tornava a pobre moça, mais senhor se fazia ele; tanto que afinal já lhe dava ordens e já a repreendia, como se estivesse a falar com o Sabino.

Uma vez em que Teobaldo à secretária respondia às cartas da família, ela tomou-lhe a cabeça entre as mãos e beijou-lhe os olhos.

— Que é isso? Perguntou ele.

— Não ralhes comigo...

— Vejo fogo!

Ernestina obedeceu e foi colocar-se depois ao lado dele.

— Queres que me vá embora?... Perguntou no fim de algum silêncio.

— Pode ir.

Ela deu alguns passos para sair da sala, mas voltou na ponta dos pés.

— Por que me tratas assim!... Disse encostando a cabeça na dele.

— Ainda? Exclamou Teobaldo, sem levantar a pena do papel.

— Estás farto de mim, não é?

— É.

— Ingrato!

Ele não lhe deu mais uma só palavra e continuou a escrever até que Ernestina se foi embora, a enxugar as lágrimas.

Entretanto, nem sempre a tratava assim; às vezes chegava até a mostrar-se carinhoso com ela. Nos bons dias, ao entrar da rua, corria-lhe a mão pelos cabelos e fazia-lhe festinhas no queixo. Dependia tudo do seu bom ou mau humor.

Uma noite, ela o fitou com mais insistência e perguntou-lhe se queria que o Almeida fosse para o olho da rua.

— Mas a senhora não disse que era casada com ele?

— Tu bem sabes que não sou, e sabes igualmente que serei muito capaz de lhe fechar a porta, se o ordenares.

— Deixa-te disso, filha!

— É porque não me amas...

— Talvez.

O rapaz, com efeito, nada sentia do que ela experimentava por ele. Deixava-se adorar com uma indiferença de verdadeiro ídolo: tanto se lhe dava que aquilo acabasse logo.

— Deixa-te estar, profetizava ela; deixa-te estar, que algum dia serei vingada! Deus é grande! Hás de encontrar uma mulher que judie contigo ainda mais do tens judiado comigo!

E as angústias e dissabores de D. Ernestina foram crescendo à proporção que Teobaldo ia conhecendo a corte e à medida que ele se relacionava e desenvolvia. Dentro de um ano grandes modificações se operaram na vida dos dois rapazes. Teobaldo concluíra os preparatórios e matriculara-se na Escola de Medicina, esperançoso de largá-la de mão logo que descobrisse melhor carreira; ao passo que o Coruja não conseguira passar em nenhum dos seus exames, se bem que estivesse deveras senhor nas matérias.

E, no entanto, fora ele, o Coruja, quem fornecera ao outro os elementos daquele sucesso; fora ele quem o preparara, quem lhe metera alguma coisa na cabeça!

Teobaldo ficou furioso com as reprovações do amigo.

— Ora entendam lá esta gente! Exclamou entre um grupo de colegas. A mim, que passei pelos livros, como gato por brasas, — Distinção! Ao Coruja, que estudou por vinte, — Tome bomba! Ora bolas! Pois então reprova-se um pobre rapaz, só porque ele é acanhado?...

O Coruja, ainda assim procurava desculpar os examinadores:

— Coitados! Dizia ele; não fizeram isso por mal; supunham naturalmente que eu de fato não sabia as matérias. Quem me mandou a mim não ser mais desembaraçado?...

— Qual! Nada me convencerá de que este nosso escandaloso sistema de exames é só aproveitável para os charlatas e pomadistas! Os estudantes de tua ordem fazem sempre má figura! Ali só o que se quer é presença de espírito!... E, fica sabendo, tomei tal embirrância a tudo isto, que vou escrever ao velho, dizendo-lhe que estou resolvido a seguir para a Europa. Formo-me em Ciências naturais!

— Em ciências naturais!

— Em grande peralta é que ele se está formando! Afirmava o Sampaio, à vista do dinheiro que Teobaldo retirava por mês de sua casa. É pândega, pândega e mais pândega! O pai afinal não é nenhuma Índia! E se o doido do filho não mudar de rumo, há de dar com a família em pantanas!

O Coruja havia então conseguido, com muito custo em razão da sua tremenda antipatia, arranjar alguns discípulos, cujo produto, ligado ao do trabalho de revisão, dava-lhe já para as primeiras despesas.

Escrupuloso como era, tratou logo de conduzir a sua vida de modo a não ser pesado a ninguém, ainda que tivesse para isso de sacrificar as suas pretensões de formatura. Dava uma parte do dia aos seus discípulos e uma parte da noite ao serviço do Jornal. Deitava-se impreterivelmente à uma hora e acordava às cinco da madrugada; não tinha vícios de espécie alguma; não comia senão ao almoço e ao jantar e nem sequer pensava em mulheres.

— É um esquisitão! É um selvagem! Diziam a respeito dele os amigos de Teobaldo, enquanto que a este qualificavam de "bom rapaz".

O Coruja não se incomodava com aquele juízo e, quando o forçavam a prestar contas de suas virtudes, desculpava-se humildemente, como se estivesse a pedir perdão para elas. Se lhe ofereciam charutos: "Desculpe, não fumo". Se lhe ofereciam bebidas: "Não posso, queira desculpar"

E todo ele parecia envergonhado de ser tão puro.

Ao lado da amizade que lhe dedicava, Teobaldo ia criando por ele um certo respeito, que era o freio único para os seus excessos. Às vezes o bonito moço reunia em casa uma troça de amigos, fazia vir o que beber e, entre o fumo dos charutos, discutiam-se todos os assuntos, diziam-se todas as asneiras e a casa transformava-se em um verdadeiro inferno. Mas, sempre que algum dos rapazes se aproximava da mesa de André, que estava ausente, Teobaldo exclamava desviando-o:

— Não! Aí não mexam! É a mesa do Coruja!

Quando também levava à noite para casa algum companheiro meio ébrio, a quem oferecia hospitalidade, dizia-lhe sempre, ao subir as escadas:

— Agora, toda a atenção!... O Coruja está dormindo! É preciso não o acordar...

E, em completa antítese de gênios e de costumes, iam os dois todavia vivendo juntos. André descobriu um colégio de certa importância, que lhe dava bom ordenado, casa, comida e roupa lavada, com a condição de que ele, além do serviço de professor, havia também de fiscalizar os rapazes à hora do recreio e fazer a escrituração da casa.

Consultou Teobaldo e, depois de ouvir a opinião deste, resolveu mudar-se para o colégio.

Agora podia abandonar o trabalho de revisão e tomar ainda alguns discípulos para as horas vagas, porque nele o gosto pelo professorado começava a assumir as proporções de uma verdadeira paixão.

Ensinava latim, francês, português, história e geografia do Brasil; tudo isso com muito método, muita paciência e sem nunca parecer fatigado.

— E a respeito de tua formatura? Perguntou-lhe o amigo.

— Ora! Respondeu ele. Formar-me! Acho desnecessário! Minha vocação toda é o professorado, e para isso não preciso ter carta, basta-me saber conscienciosamente as matérias que ensinar.
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continua…

quinta-feira, 18 de julho de 2013

18 de Julho - Dia Nacional do Trovador



Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Camelô

Viajei ontem ao lado de um camelô, ou seja aquilo que outrora se chamava um bufarinheiro ou charlatão. Hoje, esta última palavra designa categorias mais ilustres de artistas da patranha; era preciso um vocábulo novo, que evitasse confusões; a lei de repartição de Bréal.

Pus-me a observar os gestos e as expressões do meu companheiro de viagem, como outros examinam, fascinados, os homens eminentes em certos ramos clássicos de atividade ou de inatividade superior.

Modesto e simples não parecia sequer sonhar que pudesse merecer a curiosidade e admiração de um seu semelhante (aliás muito diverso, no meu caso). Por vezes, até se esquecia de si, e ficava para ali murcho, com esse ar aparvalhado e desarmado que só costumam ter, em público, bem familiarizadas com a idéia da sua nenhuma importância.

Ia muito sumido no seu canto, fumando maquinalmente um cigarro meio apagado. Talvez premido por dentro, como por um parafuso, por alguma preocupação de família, ou de dinheiro, ou de saúde.

A certo momento, saltou, enfiou as mãos nos bolsos das calças - uma aragem áspera começara a dar tremuras de sezões às árvores da rua -baixou a cabeça e entrou apressadamente por uma viela, deserta e feia como um pátio de cortiço em dia de chuva.

O camelô, misto de artista, de orador, de pelotiqueiro e de meneur. A multidão, sempre bestial, despreza-o. E ele é que realmente sabe desprezar a multidão, porque a domina, a maneja, a desfruta, e para tanto tem de a enfrentar, cada dia, como um domador de olho vivo e de decisões fulmíneas.

Este exercício requer mais inteligência, mais sangue-frio e mais intrepidez do que aqueles que são consumidos por toda a roda de basbaques que se divertem com esse retalhista do heroísmo.

O camelô não é negociante; é um homem que negocia por acidente. A venda de coisas é mero pretexto, no fundo, ou mero ponto de apoio exterior, de que a sua complexa personalidade necessita para funcionar. Difere do comerciante normal em aspectos essenciais, e a vantagem estética é toda sua: faz do comércio um simples ganha-pão, e não um sistema de vida; é senhor absoluto da sua atividade e não escravo de uma atividade coletiva que o supere e o inclua como uma peça; não tira do comércio nenhuma importância pessoal, mas, ao contrário, ele é que condescende em dar ao comércio umas sobras da sua rica provisão de coragem, de inventiva, de facúndia, de dons capciosos e sedutores, e em sacrificar-lhe um pouco do seu nobre instinto de independência e de travessura.

O camelô tem consigo uma dose de força intrínseca ou um grão de bravura que falece aos da imensa turba do encostamento mútuo.

Estes procuram e arranjam a sua casa no plano das atividades normais e respeitáveis, e gozam, com um mínimo de originalidade e energia própria, ou mesmo sem nenhuma energia nem sombra de originalidade, os benefícios mais ou menos previstos e mais ou menos automáticos da organização. Aquele, porém, na sua pequeneza e na sua modéstia, cada dia sai de casa para o mundo como pela primeira vez. Sai completamente só, quase inerme sem a armadura dos mais, sem os guarda-costas dos mais, sem boas e fortes armas de combate, - só, quase nu, com uma funda na mão, como o pastorzinho Davi quando partiu em busca do membrudo Golias.

Sai escoteiro e ignorado, sem rumor de ferros, sem estropear de cavalos, sem alalis de trompa, sem atitudes nem gestos, à caça de vagas migalhas de um tesouro possível, escondido sob a guarda de um bicho-manjaléu com milhares de cabeças.

Isto é quase a reprodução, aí na rua, entre gentes frívolas e sensatas sob os olhos frios dos passantes colocados e tranqüilos, das façanhas ilustres do ágil e gracioso Sigurd quando venceu os anões e prostou o dragão Fúfnir.

Nós vivemos na plena teia dos mitos e das lendas, e não damos por isso. Perdemos o sentido poético das situações.

Fonte:
Domínio Público

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Vinicius de Moraes (Soneto do Amigo)


Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 10

CAPÍTULO II

Levavam os dois amigos uma existência bem curiosa na sua casinha de Mata-cavalos. Completavam-se perfeitamente. Teobaldo era quem determinava tudo aquilo que dependesse do gosto, era sempre quem escolhia, o outro limitava-se a conservar e desenvolver.

Ao André faltava a fantasia, a originalidade; não tinha inspirações, nem sabia comunicar às pessoas e às coisas que o cercavam o mais ligeiro reflexo individual; mas o que lhe faltava por esse lado sobrava-lhe em método, em paciência e bom senso. Era ali o espírito da ordem, o pacífico regulador do asseio e da decência; queria as coisas no seu lugar, não podia compreender o que lia ou escrevia, sem ver em torno de si a mais harmoniosa disposição nos móveis, nos livros e em todos os objetos de que se compunha a casa.

Teobaldo entrava e saía de casa, sem horas certas, mudava de roupa, atirando a camisa enxovalhada para cima do primeiro traste que encontrava, e daí a pouco perdendo a cabeça à procura do chapéu, ou da bengala, que ele próprio arrojara a um canto do quarto, por detrás de algum móvel. O Coruja, ao contrário, não punha os pés fora de casa, sem passar uma vista d’olhos por tudo, sem arrumar aquilo que estivesse desarrumado; e, às vezes, depois de estar na rua, ainda voltava para certificar-se de que havia fechado a janela da sua alcova ou a gaveta da sua secretária.

Por este modo vivia a casa sempre no mesmo pé de limpeza e ordem.

Um dia Teobaldo, entrando da rua, exclamou para o companheiro, que estudava à secretária, como era do seu costume:

— Sabes, Coruja? Decidi-me pela medicina!

— Mas tu ainda ontem disseste que ias entrar para a Escola Central!

— Mudei de intenção. O vida militar é incompatível comigo! Uma vida sem futuro e sem liberdade! Não quero!

E, gritando pelo Sabino, estendeu as pernas, para que o moleque lhe sacasse as botas.

— É verdade! Acrescentou; convidei hoje para jantar um rapaz que me foi apresentado ontem no teatro, o Aguiar, belo moço, que chegou há dias de Londres.

— Ah!

— E os teus negócios, caminham?

— Qual! Não obtive a cadeira que desejava no colégio do tal Madeiros, mas em compensação um amigo do Sampaio arranjou-me um lugar de conferente no Jornal.

— Quanto vais ganhar?

— Trinta mil réis por mês.

— Oh!

— Antes isso do que nada...

— Quantas horas de serviço?

— Das sete às onze da noite.

— É horrível.

— Prometeram-me arranjar também alguns explicandos de latim, francês e português.

Teobaldo já não o ouvia, porque estava entretido a falar com a dona da casa, que ele acabava de descobrir no andar de baixo.

— Temos então hoje um convidado? Perguntou ela, depois do que lhe disse o rapaz.

— É exato, um amigo. Pode acrescentar um talher à mesa; dos vinhos encarrego-me eu.

D. Ernestina, assim se chamava a senhoria, era uma rapariga de vinte e poucos anos, cheia de corpo, muito bem disposta, mas um tanto misteriosa na sua vida íntima. Pelo jeito possuía alguma coisinha de seu e era mulher honesta.

Viúva, casada ou solteira?

Viúva, podia ser; casada é que não, porque em tal caso não seria ela a senhora da casa e sim o marido. Solteira... Mas há tantos gêneros de mulher solteira...

Contudo ninguém podia dizer mal de sua conduta. Passava todo o santo dia ocupada com os arranjos da casa e só se mostrava à janela ou saía a passear no jardim nas tardes de muito calor, quando o corpo reclama ar livre.

Teobaldo notara que, todas as noites, entre as sete e as dez, aparecia na sala de jantar de D. Ernestina um sujeito de meia idade, gordo, semicalvo, discretamente risonho e pelo jeito homem de negócios.

A persistência deste tipo ao lado da rapariga e as maneiras carinhosas com que ele a tratava levaram o estudante a decidir para si que o homem, "Seu Almeida", como lhe chamava ela, era sem dúvida o verdadeiro dono da casa; mas nem de leve se preocupou com isso.

Às vezes D. Ernestina reunia em torno de si duas ou senhoras de amizade e palestravam antes do chá. Nessas ocasiões, Teobaldo descia quase sempre ao andar debaixo e, com a sua presença, animava a sala, cantando, tocando piano, fazendo prestidigitações e recitando poesias.

Uma vez, em que ele deixou-se ficar à mesa depois do almoço, Ernestina guardou também a cadeira e os dois principiaram a conversar:

— Ainda não tinha vindo à corte? perguntou ela.

— Vim, mas de passagem, quando saí de Minas para à Europa.

— Ah! Viajou pela Europa?

— Estive em um colégio de Londres.

— E depois voltou para junto de sua família?...

— Até o dia em que vim para aqui.

— Seu pai é fazendeiro?

— Sim, senhora.

— E pelos modos, rico...

— Remediado.

— Como se chama?

— Barão do Palmar.

— Ah!

— Ou então Emílio Henrique de Albuquerque.

— Ainda vive a senhora sua mãe?

— Ainda. Quer ver o retrato dela? Trago-o nesta medalha.

D. Ernestina levantou-se e ficou por alguns segundos debruçada sobre Teobaldo a ver a delicada miniatura em marfim que ele trazia na corrente do relógio.

— Ainda está moça... Muito bem conservada.....

— Hoje tem os cabelos quase todos brancos. Meu pai, que é muito mais velho, não está tão acabado.

— Que perfume é esse que o senhor usa?

— É dos que ainda trouxe de casa. O velho recebe-os diretamente da Inglaterra.

— É muito agradável.

— Pois, se quiser, posso ceder-lhe um frasquinho; tenho ainda muitos lá em cima.

D. Ernestina aceitou; ele correu a buscar a perfumaria e, depois de conversarem a respeito do Coruja, que fora trazido à baila e o qual declarou ela com franqueza que  achava detestável, Teobaldo entendeu chegada a sua vez de interrogar, e perguntou-lhe sem mais preâmbulos:

— A senhora é casada?

Ela respondeu que "sim", mas vacilando.

— Com o Almeida...

Outro sim dúbio.

— Há muito tempo?

— Há algum já...

— Era viúva antes disso?

— Sim, senhor.

— E não tem filhos?

— Não, felizmente.

— Felizmente, por quê?

— Ora! Os filhos fazem a gente velha...

E assim palavrearam durante uma boa hora, sem que o rapaz conseguisse precisar o seu juízo sobre aquela mulher, da qual nem mesmo a idade podia determinar.

Um homem mais velho que Teobaldo notaria entretanto que Ernestina era bem servida de formas, que tinha bons dentes, cabelos magníficos e um par de olhos bem guarnecidos e banhados de uma certa umidade voluptuosa. Mas o filho do barão estava na idade em que os homens ainda não sabem apreciar as mulheres e aceitam-nas indeterminadamente, como simples recreio dos seus sentidos. Orçava ele então pelos dezoito anos e, mais formoso do que nunca, desenvolviam-se-lhe as feições, sem detrimento da primitiva frescura. Tinha ainda alguma coisa da graciosa candura da criança e já, nos traços enérgicos de sua fisionomia e nos movimentos donairosos de seu corpo, pressentiam-se as manifestações de uma forte e precoce virilidade. Tez aveludada e pura, sorriso crespo e frio, olhar indiferente e terno a um tempo, dir-se-ia que ele, naquele todo de jovem príncipe aborrecido, realizava com a sua graciosa e pálida figura o tipo ideal do romantismo da época.

Entrando em casa uma ocasião às duas horas da tarde, disse-lhe o Coruja que D. Ernestina o mandara procurar havia pouco e que lhe pedia o obséquio de ir ter com ela, logo que chegasse.

— Para que, sabes? Perguntou.

— Creio, respondeu André, que ela recebeu hoje a notícia da morte de algum parente... Uma tia, se me não engano.

— Sim? E que diabo tenho eu com isso?

Mas, por curiosidade, Teobaldo sempre desceu ao primeiro andar. E, ao barulho de seus passos, ouviu gritar logo de um quarto.

— É o senhor, Sr. Teobaldo?

— Sou eu, sim, minha senhora.

— Venha até cá; entre. Tenha paciência!

Ele, que não conhecia ainda os quartos do primeiro andar, seguiu a direção da voz e achou-se pouco depois em uma alcova, meio atravancada de trastes, onde teve de andar às apalpadelas, tão completa lhe parecia a principio a escuridão. Entrou a tropeçar nos móveis e, de braços estendidos, tateou casualmente alguma coisa que pela macieza, seriam talvez as faces de D. Ernestina.

— Fique! Pode ficar! Disse ela a um movimento de retração que fez o estudante; o senhor não é de cerimonia, fique!

Teobaldo, que acabava de esbarrar com as pernas em uma cadeira, assentou-se e, habituando-se pouco a pouco à escuridão, foi gradualmente distinguindo o que o cercava. Só então reparou que D. Ernestina conservava uma das mãos dele entre as suas, e que ela estava estendida em uma cama larga, de casados, onde apenas a cabeça e os braços se lhe viam por entre coberta e lençóis.

— Está doente? Perguntou ele.

— Muito, Sr. Teobaldo, muito!

— Que foi isso?

— Ora! Imagine que recebi hoje pela manhã a notícia da morte da única parenta que me restava no mundo.

— Sua tia, disse-me o Coruja.

— Minha tia, não; não era só minha tia, era o meu tudo!

E a um rebote de soluços:

— Oh como aquela nunca mais encontrarei outra! Nunca encontrarei!

Dizendo isto, D. Ernestina ergueu os braços para o teto e, deixando-os cair em volta do pescoço do rapaz, encostou a cabeça no peito deste e assim ficou a chorar por longo tempo.

— Bem... Resmungou ele um tanto constrangido. Mas a senhora não lucra nada em se afligir desse modo! Faça por conformar-se com o que sucedeu... Não há de ser à força de lágrimas que sua tia voltará à vida! Console-se!

— Oh! Mas é que eu não posso! Mas é que eu não posso!

E, a cada exclamação, mais se estreitava contra o moço, a ponto de lhe fazer sentir nas faces, nas orelhas e afinal nos lábios o resfolegar ardente dos seus soluços.

— Não posso! Não posso conformar-me com semelhante desgraça!

— Mas faça por isso... Retrucou ele, quase que a soprar-lhe as palavras pela boca. Faça por ter um pouco de resignação ...

— Obrigada, muito obrigada!... Suspirou a chorosa procurando conter o pranto.

E, como em agradecimento àquelas boas palavras de condolência, levou aos lábios as duas mãos do rapaz e cobriu-as de beijos que a outro qualquer surpreenderiam, não a ele, desde o berço amimado a cada instante. Em Teobaldo era já um hábito muito antigo receber carinhos daquela espécie. Quase nunca os retribuía; aceitava-os friamente, sem comoção, como um proveito e glorioso artista recebe os elogios de um homem que lhe fala pela primeira vez.
–––––––
continua…

terça-feira, 16 de julho de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Rufina

Encontrei no bonde um homem parecido com o Coronel Ferrão, o ex-protetor de Rufina-Augusta. Esta surgiu imediatamente ao seu lado, acomodando os vestidos, sorrindo e lançando sobre mim aquele seu olhar magnético através daqueles cílios de treva, com uma ................................................. dolcezza che intender non la può chi non la prova.

Claro que era uma aparição imaginária. Mas não me impedia que ficasse olhando para o lugar onde colocara a moça e lhe dirigisse a esta um longo e confuso improviso.

"Quem és tu? De onde vens? Que fazes? Como vives?... - Na verdade, nada disso me interessa muito. Afinal de contas, nada tenho contigo."

"O que me interessou desde logo em ti foi apenas a tua figura. Apareceu-me de repente, no meio da vulgaridade fosca das coisas, como uma obra-de-arte perdida num subterrâneo na qual batesse de repente o jorro de uma lanterna furta-fogo."

"Era-me tão indiferente saber quem fosse a pessoa que havia dentro dessa figura, ou mesmo se havia uma pessoa, como seria indiferente, diante da graça de uma vela branca no mar azul, saber de onde vinha, para onde ia, se levava a bordo uma princesa errante ou um ogre sinistro.

Contudo, não me esqueci mais de ti.

Tu me entraste na alma como um farrapo que a ventania atira por uma porta descuidosamente aberta.

A porta de minha alma profunda estava aberta naquela hora. E eu fiz como a mulher pobre que, tendo achado em sua casa um farrapo de escumilha brilhante, trazido pelo vento, não tivesse ânimo de o varrer com o cisco, o levantasse e o prendesse à parede, entre um caco de espelho e um cromo descorado.

És talvez um episódio horoscópico da minha vida, posto de reserva pelo Destino para ser lançado, certo dia na desfilada heteróclita dos casos da minha biografiazinha. privada.

Como que havia em mim um lugar vago à tua espera. Vieste, caíste no lugar justo, e aí estás, fixa e luminosa como uma pedra fina que, por maravilha do acaso, saltando, perdida, viesse cair justamente no engaste vazio de um velho anel.

Devias fatalmente aparecer-me em determinada hora, como aparece a forma exata e exteriorizada de um pensamento flutuante, longamente entrevisto, longamente resolvido no espírito.

Eras um motivo que faltava ao magro concerto da minha vida consciente e que aí havia de surgir, deliciosa serpe melódica a ondular e faiscar num relvado de ritmos obtusos.

A música interior tem hoje uma dolência menos remota, um gemido menos vago, uma ânsia interrogativa mais profunda, uma angústia menos aérea e mais humana.

Por que me apareceste? Por que me agradaste? Por que não te pude falar? Por que me foges sem o querer, e por que te evito, procurando-te?

E por que vim a conhecer da tua vida, ó coisa graciosa e fugente, apenas o aspecto sombrio e grosseiro? Por que não me reapareces, para me confiar a tua história risonha e dolorosa, a celeste e bestial realidade do teu destino, a lama e a chama da tua alma, ó gentil, ó brilhante, ó miserável borboleta do brejo?

Mas a tua vida não me interessa, na verdade. Que é que eu tenho contigo, que é que tens tu comigo?

Vimo-nos duas vezes. Será uma razão para que te deva agora ver sempre? Tanta coisa bela e passageira como tu, bela passageira de bonde, tem encantado os meus olhos por uma vez necessariamente única -uma nuvem, um pássaro, uma hora de sol, um certo sorriso da felicidade que se perdeu por ser achado!"

Tudo isto era dito com os meus botões. Mas, de repente, o homem que se parecia com o coronel me encarou formalizado:

-"O senhor está estranhando alguma coisa na minha pessoa?" Olhei para o homem que se parecia com o coronel e respondi, sem saber ao certo o que dizia:

-"Desculpe-me, senhor, tenha a bondade de me desculpar. Eu não o conheço, nem conheço ninguém que se lhe assemelhe, mas estava vendo se o senhor não seria uma outra pessoa."

O homem deu-se por satisfeito com a explicação.

Fonte:
Domínio Público

Raquel Ordones (Saudade é o que fica)


Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 9

SEGUNDA PARTE

CAPÍTULO I


Dois anos depois do casamento de D. Geminiana, Teobaldo e André chegaram ao Porto da Estrela acompanha' dos por três pajens e mais por um moleque, o Sabino, que vinha para ficar ao serviço daquele durante o tempo dos estudos. Desmontaram cobertos de pó e derreados por vinte dias de viagem a cavalo. Foi recebe-los à boca do caminho o Sampaio, um negociante de meia idade, a quem Emílio recomendara os rapazes.

— Então o barão não quis dar um pulo até a corte? perguntou a Teobaldo o negociante, depois de fazer descarregar o bagageiro e providenciar para que o moleque se não extraviasse.

— Não lhe foi possível, respondeu o interrogado. Não nos pode acompanhar, a despeito do empenho que fazia nisso. Minha mãe está doente e ele não quis deixá-la sozinha.

— Sozinha, não; ficaria com a irmã.

— Já não mora conosco. Seguiu com o marido para Tijupá.

— E o que sente a senhora sua mãe é coisa de cuidado?

— Diz o velho que sim; um pouco de cuidado.

— Qual moléstia?

— Não sei. Uma complicação. Nervoso principalmente.

— Coitada! E já está assim há muito tempo?

— Há mais de ano. Foi isso que retardou a minha vinda para a corte.

— E este moço é o tal que seu pai também me recomenda?

— É, confirmou Teobaldo, apresentando o amigo. Bem! Disse o negociante

— Aí está a diligencia. Podemos ir. As bagagens já seguiram adiante.

Os três encarrapitaram-se no carro e tomaram a direção da cidade.

Teobaldo estalava de impaciência por cair nesse burburinho da corte, que de longe o atraía em silêncio, mas confessou-se prostrado pela viagem. Precisava desfazer-se de toda aquela roupa, meter-se num banho e estender--se ao comprido numa boa cama.

— Tenho pó até dentro dos miolos! Exclamou ele, a sacudir o seu poncho de brim enxovalhado. Hei de ver-me limpo e ainda me parecerá um sonho!

— E ter um bocado de paciência. Daqui a nada estaremos em casa.

— Onde mora?

— Na rua de S. Bento.

— É longe?

— Nem por isso. Este seu companheiro é que não gosta muito de falar... observou o Sampaio, querendo puxar o Coruja à conversa. — Também vem para os estudos?

— Não sei, balbuciou André secamente.

— Talvez se empregue, acrescentou Teobaldo.

— No comércio?

— Ou em outra qualquer coisa.

E Teobaldo, abrindo a boca em um bocejo:

— Não sei que mais tenho, se vontade de dormir, de comer ou tomar banho!

— Com poucas fará tudo isso. Estamos quase em casa; e descanse que nada lhe faltará. Há de ver!

Estas atenções do negociante pelo rapaz não eram puro espírito de hospitalidade e provinha sem dúvida dos interesses que o barão dava anualmente à casa comercial dele. Sampaio era o encarregado de lhe sortir a fazenda de tudo que precisava ir da corte, e nessas faturas o fornecedor de antemão pagava-se de todas aquelas galanterias.

Às nove horas da noite achavam-se os nossos rapazes, depois do indispensável banho, assentados em volta do seu hospedeiro e defronte de uma excelente ceia, que fumegava sobre a mesa.

Sampaio, enquanto eles comiam, procuravam instruí-los pelo melhor os costumes da vida fluminense, da qual se julgava grande conhecedor, sem nunca aliás ter arredado pé do burguês e acanhado círculo em que vivia.

— Isto aqui, rezava ele — É um demônio de uma terrinha, que tanto pode ser muito boa, como pode ser muito má. Depende tudo de cada um e de cada qual. Não há terra melhor e nem há terra pior! Para aqueles que desejam se fazer gente, trabalhar, dar-se ao respeito não há terra melhor; mas para os que só pensam na pândega e têm, como o senhor, ordem franca em uma casa comercia! Como esta, — não há terra mais perigosa! Estou certo, porém, de que o Sr. Teobaldo há de dar boa conta de si!

— Também eu, disse o filho do barão, recuperando o seu bom humor.

— Sim, continuou o negociante, mas com esses ares, com essa carinha de moço bonito, é preciso ter muito cuidado com as francesas!

— Com as francesas?

— Francesas é um modo de dizer. Refiro-me a todos esses diabos de que vai se enchendo o Rio de Janeiro e que não fazem outra coisa senão esvaziar as algibeiras dos tolos!

— Mas de que diabo fala o Sr. Sampaio?

— Ora essa! Das mulheres! Pois então o senhor não me compreende?

— Ah! Com que isto por aqui é fechar os olhos e...

— Um desaforo! Dantes ainda as coisas não iam tão ruins; mas ultimamente é uma desgraça! Todos os dias estão chegando mulheres de fora! Eu nem sei como o governo não toma uma medida séria a este respeito!

Teobaldo sorriu desdenhosamente, e o Sampaio acrescentou:

— Todo o cuidado é pouco para não cair nas garras de algum dos tais demônios! Encontrando o perigo — É fugir, fugir, para não chorar ao depois lágrimas de sangue! O senhor veio ao Rio foi para estudar, não é? Pois enterre a cara dentro dos livros e feche os olhos ao mais!

— Pode ficar tranqüilo, respondeu Teobaldo, levando Q seu copo à boca,

— Não digo que não se divirta... prosseguiu o Sampaio; consinto que vá ao teatro de vez em quando; se der com alguma família, pode freqüentá-la; mas tudo isso, já se vê, com muita prudência e com muito juízo. Evite as más companhias, fuja dos vadios e dos viciosos; não freqüente a rua do Ouvidor; não entre nos cafés!

E, abaixando a voz e chegando-se mais para o moço, disse, com o mistério de quem
faz uma revelação terrível: — E, principalmente, meu amigo, não se meta a escrevinhador.

Teobaldo ergueu a cabeça, surpreso:

— Como?

— Sim, confirmou o outro. — Não se meta a escrevinhador, que isso tem posto muita gente a perder! Poderia citar-lhe mais de cem nomes de estudantes, de quem fui correspondente, que perderam anos, que cortaram a carreira por causa da maldita patifaria das letras! Eu os vi, a todos, por aí, enchendo as ruas de pernas, mal alimentados, e mal vestidos, com a mesada suspensa pela família, a fazerem garbo das suas necessidades e às vezes até das suas bebedeiras!

Teobaldo ouvia agora o negociante com singular atenção.

— Fuja! Continuava aquele: fuja de semelhante porcaria! Se não quiser ver o seu nome todos os dias na boca do mundo!

— O nome?

— Sim, sim, o nome, que seu pai lhe pôs à pia do batismo! Se não quiser vê-lo de boca em boca não se meta a escrevinhador! E ainda se fosse apenas isso... Vá! É feio, mas enfim, sempre há homens sérios, cujo nome o público não ignora; o pior é que às vezes rebenta por aí cada descompostura, que é mesmo uma vergonha! Quem se deixa cair em tal desgraça não está livre das chufas da imprensa e dos comentários do mundo inteiro!

E o Sampaio, para melhor firmar os seus argumentos, principiou a citar nomes.

— Mas esses nomes — Acudiu Teobaldo recorrendo às leituras que fizera na província — Esses nomes são todos muito distintos. O senhor está citando os nossos poetas mais conhecidos!

— Ah! Ninguém nega que não sejam conhecidos, nem que não sejam poetas, mas posso afiançar-lhe que não são homens sérios.

— Homens sérios?... Que diabo entende o senhor por homem sério?

— Ora essa! Que entendo por homem sério? — É boa! Por homem sério entendo todo aquele que não dá escândalos, que não é tratante e que se ocupa em alguma coisa séria! Enfim, todo aquele que trabalha! — Então quem escreve não trabalha?

— Não digo isso, mas...

— Acabe.

— Mas não é um trabalho sério!

Teobaldo, em vez de prosseguir no diálogo, olhou para o Sampaio com um gesto que tanto podia ser de lástima como de repugnância, e, deixando escapar o seu predileto sorriso de ironia, ergueu-se, bateu-lhe levemente no ombro e disse:

— O senhor é um grande homem!... Mas eu preciso descansar. Boa noite!

Semanas depois, mudaram-se os dois rapazes para Mata-cavalos, levando em sua companhia o moleque.

Teobaldo, no meio da casa, envolvido em um robe-de-chambre de seda azul, um cigarro entre os dedos, dirigia a colocação dos móveis.

— Esse espelho ali, ó André! E a secretária deste outro lado. Assim! Agora, vejamos onde deve ficar o piano... Ah! Cá está o lugar dele, aqui, entre estas duas janelas. E anda com isso, ó Sabino! Que ao contrário não se acaba tão cedo a arrumação!

O Sampaio espantara-se quando ele lhe dera a lista dos móveis que precisava.

— Pois o senhor também quer cortinas? Exclamou arregalando os olhos.

— Quero tudo isto que aí está notado, respondeu o estudante; — o resto me encarrego de comprar pessoalmente.

— O resto? Há então ainda outras coisas além disto?...

— Sem dúvida. É preciso alegrar a casa com alguns objetos de arte,

Chegam-me quatro ou cinco estatuetas...

— Estatuetas?...

— ... Uma pêndula de bom gosto, dois jarros para flores e meia dúzia de quadros.

— Mas o senhor onde já viu casa de estudante com esse luxo?

— Não preciso ver para usar: se faço deste modo é porque assim o entendo. Compreende?

— Bem, bem! Isso é lá com o senhor... Tem ordem franca...

E jurou consigo que Teobaldo não havia de ir muito longe com aquelas tafularias.

A casa, depois de cada objeto no seu lugar, não parecia com efeito destinada à habitação de dois estudantes ainda tão novos; tal era a boa ordem o asseio, o gosto bem educado e familiar que a tudo presidia. Tanto assim que a proprietária e locadora do prédio, que a principio não se mostrara lá muito satisfeita com os novos hóspedes, rejubilava-se agora ao ponto de lhes propor que almoçassem e jantassem com ela, mediante uma estipulada mensalidade.

Instalado, cuidou Teobaldo de arranjar os necessários explicadores para os preparatórios que lhe faltavam e mais ao Coruja, e dispôs-se a estudar com afinco. Mas o seu espírito inconstante e vadio não se queria fixar sobre um ponto certo, e os dias passavam-se em repetidas polemicas a respeito da carreira que ele devia abraçar.

— Mas, afinal, é preciso que te decidas por alguma... Dizia-lhe o Coruja. — Se não saíres dessa hesitação, acabarás fatalmente por não estudares nada!

Teobaldo principiava sem dúvida a demorar muito a escolha de uma profissão. Ao sair da sua província vinha aparentemente resolvido a repetir na corte os preparatórios e seguir logo para a Academia de S. Paulo. O direito, porém, se lhe apresentava à trêfega fantasia com o insociável aspecto de um velho carregado de alfarrábios, tresandando a rapé, fanhoso, pedantesco, sem bigode e de óculos na testa.

— Abomino-o! Exclamou ele a discutir com o amigo. — Aquilo nem é ciência: e uma coisa toda convencional... Uma coisa arranjada segundo o capricho de quem a inventou! Nada possui de certo e determinado! No direito tudo admite sofismas; tudo se pode inverter; tudo está sujeito a mil e um alvarás e a duas mil e tantas reformas! Além disso, consta-me que ninguém pode se gabar de saber direito antes de lidar com ele pelo menos quarenta anos! Oh! Bela carreira! Bela carreira, que exige quase meio século de estudo para se ficar sabendo dalguma coisa dos seus mistérios!... E, demais, que diabo de vantagem oferece o tal direito?..... A magistratura? Deus me defenda! A advocacia? Mas eu detesto os advogados!

— Por quê? Atalhou o Coruja.

— Ora! Qual é o papel de um advogado, qual é a sua missão? Defender os réus; muito bem! Mas, das duas uma — Ou o réu não tem crime e nesse caso está defendido por si; ou o réu é um criminoso, e não menos será aquele que, por meio da eloqüência e da astúcia de seu talento, conseguir provar que ele é um inocente!

— Isso é asneira!

— Pois qual é a missão do advogado, senão empregar meios e modos para alterar a favor do seu constituinte o juízo feito pelos jurados? Qual é a missão do advogado, senão convencer a quem supõe um homem estar tão inocente como no dia em que vestiu o seu primeiro par de calças?...

— Enganas-te, acudiu o Coruja; o advogado serve para muitas outras coisas; serve para evitar que um inocente sofra a pena que não merece; serve para...

— Ora qual! Interrompeu Teobaldo. O advogado quase nunca se acha convencido da inocência do seu constituinte. Defende-o, porque a sua vida é defender os réus, e para isso lança mão de todos os recursos da oratória e serve-se de todos os laços e armadilhas da retórica!

— Mas...

— Ora! Se o advogado, empregando esses meios, consegue dos jurados a absolvição do réu, é um homem pernicioso, porque faz com que aqueles se pronunciem, não pelo seu juízo calmo e refletido, mas sim dominados pelos efeitos sedutores de um bom discurso; e, se o advogado não consegue vencer a opinião dos jurados, será nesse caso um fiador inútil, visto que não adianta absolutamente nada do que estava feito!

— Pois, se o direito te inspira tal repugnância, escolhe então a medicina...

— A medicina! Mas, onde iria eu buscar paciência e disposição para retalhar cadáveres e aprender os remédios que se aplicam no tratamento de tais e tais moléstias?... Acreditas lá que semelhante coisa possa ocupar a vida de um homem cheio de aspirações como eu?... Podes lá acreditar que eu chegasse a tomar interesse por um tumor ou por uma erisipela.....

— É o diabo!

— De todas as carreiras, metendo a engenharia de que não gosto, por embirrância às matemáticas, só a das armas não me desagrada totalmente.

— Pois aí tens, decide-te pelo Exército ou pela Marinha.

— Mas, valha-me Deus! O curso militar baseia-se todo nos malditos algarismos e eu nem para fazer uma conta de somar tenho jeito ...

— Então...

— Além de que eu jamais daria um bom soldado ou um bom marinheiro. Só a idéia de ficar eternamente submisso ao governo do meu país; só a idéia de que tinha de deixar de ser um homem, para ser um instrumento do militarismo, um defensor oficial da pátria, com obrigação de ser um bravo a tanto por mês e de ter uma honra telhada pelo padrão de um regulamento; só isso ou tudo isso, meu André, faz-me desanimar.

— Então não há remédio, decide-te pela engenharia...

— Impossível! Seria um engenheiro que havia de contar pelos dedos, quando precisasse somar três adições!

— Então, parte quanto entes para a Alemanha e vai estudar ciências naturais...

— Que de nada me serviriam aqui no Brasil e para as quais tenho tanta aversão quanta tenho às tais ciências exatas e moreis!

— Dedica-te à igreja...

— Se eu tivesse jeito, quem sabe?

— Ou então às belas-artes. Faz-te músico, pintor ou escultor.

— E o talento para isso, onde ir buscá-lo? Queres que eu peça ao velho que me remeta lá de Mines, todos os meses, um pouco de gênio?...

— Ora! Tu tens talento para tudo.

— O que eqüivale a não ter para coisa alguma. Entendo um pouco de desenho, um pouco de música, de canto, de poesia, de arquitetura, mas sinto-me tão incapaz de apaixonar-me por qualquer dessas artes, como por qualquer daquelas ciências. Tudo me atrai; nada, porém, me prende!

E, depois de um silêncio, durante o qual não encontrou o Coruja uma palavra para dar ao amigo:

— Queres saber qual era a carreira que eu de bom grado abraçaria, se não fossem as conveniências...

— Qual?

— O teatro! Fazia-me ator.

— Estais louco?

— Ah! Não! Ainda não estou, que, se o estivesse, já teria-me resolvido a entrar em cena.

— Havias de arrepender-te...

— Quem sabe lá?...
–––––-
continua…

segunda-feira, 15 de julho de 2013

VI Concurso Literário “Cidade de Maringá” 2013 (Resultado Final: Trovas)

TROFÉU ADEMAR MACEDO

TROVAS VENCEDORAS

LÍRICAS OU FILOSÓFICAS – Tema “ Labor”

1º. Lugar:

Não teme a seca inclemente
quem confia em seu labor;
planta a pequena semente
sentindo o cheiro da flor.
WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ
Curitiba – PR 

2º. Lugar:

Ao zelo com que atendeste
ao tempo, ao labor e à prece
deves tudo o que colheste,
se farta ou minguada a messe...
MARIA HELENA OLIVEIRA COSTA
Ponta Grossa – PR

3º. Lugar:

Pegas da pá, da marreta,
da picareta, do malho...
Pego papel, a caneta,
o pensamento... e trabalho.
OLYMPIO DA CRUZ SIMÕES COUTINHO
Belo Horizonte – MG

4º. Lugar:

Eu tenho um parceiro e tanto
na lida que dá prazer;
Eu preparo a terra e planto,
Deus faz brotar e crescer!
PEDRO ORNELLAS
São Paulo – SP

5º. Lugar:

Quem da criança o labor
explora pela ganância
mistura amargo sabor
ao doce sabor da infância...
ÉLBEA PRISCILA DE SOUSA E SILVA
Caçapava – SP

6º. Lugar:

O pai de mão calejada
bendiz ao árduo labor
pela caneta dourada
na mão do filho doutor.
 WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ
Curitiba – PR 

7º. Lugar:

É no afago dos seus braços
que me enlaçam com calor
que eu me esqueço dos cansaços
quando chego do labor.
LICÍNIO ANTÔNIO DE ANDRADE 
Juiz de Fora – SP

8º. Lugar:

Nobre é o labor de quem leva
a mensagem de Jesus
e, sob as portas da treva,
deixa envelopes de luz!!!
ANTONIO DE OLIVEIRA
Rio Claro – SP

9º. Lugar:

Pescador, em travessia,
leva a fé como se fosse,
no labor do dia a dia,
o seu cantil de água doce.
 RELVA DO EGYPTO REZENDE SILVEIRA
Belo Horizonte – MG

10º. Lugar: 

Ao labor, ergue um tributo!
Semeia o Bem! Vai! Semeia!
- Nem que a colheita do fruto
venha a ser de mão alheia!
 RODOLPHO ABBUD
Nova Friburgo – RJ  

TROVAS VENCEDORAS

HUMORÍSTICAS – Tema “Preguiça”


1º. Lugar:

Na cozinha, quebra o galho,
mas é tão lerda e pateta
que para poupar trabalho
em vez de “torta” faz reta!
REGIANE BAGNI ORNELLAS
Valinhos – SP

2º. Lugar:

Oh! A preguiça é louvada,
tem seu valor, é perfeita...
Já viste alguém fazer nada
e fazer coisa malfeita?
LUIZ CARLOS DE CARVALHO
Niterói – RJ

3º. Lugar:

Diz o preguiça à preguiça:
- Vamos fazer filhotinho?
E a preguiça, com preguiça:
- Só se for devagarinho!...
 MARISA RODRIGUES FONTALVA
São Paulo – SP

4º. Lugar:

Fez carreira na Justiça,
porque a noivinha, no leito,
ao notar sua preguiça,
disse ao gajo: - Faz direito!
EDMAR JAPIASSÚ MAIA
Nova Friburgo – RJ

5º. Lugar:

Da sua casa ao cartório
apenas um quarteirão...
Dada a preguiça, o casório
se fez por procuração.
LUCÍLIA ALZIRA TRINDADE DECARLI
Bandeirantes – PR 

Fonte:
Livro do Concurso

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Passeio Dominical

Hoje, domingo, quando cheguei ao meu posto de espera, por volta de meio-dia, lá estava, em fila, uma família pobre.

Era visível que tinham destinado o dia para passeio e que esse passeio era para eles um acontecimento. Respiravam timidamente a frescura das impressões novas.

O chefe, homem de meia-idade, ia frouxamente embrulhado num terno de brim pardo reluzente do ferro de engomar e onde mal se dissimulava uma carta topográfica de remendos e serziduras. O chapéu mole, puído e bambo tinha sido cuidadosamente armado sobre os cabelos crescidos, repuxados a pente para trás das orelhas, onde formavam caracóis. A camisa era limpa, e um sorriso satisfeito, que se diria igualmente lavado com sabão de cinza, ao jorro da torneira sobre a tina, se lhe abria na cara tostada, como uma toalha a corar ao sol.

Pois filhos buliçosos, entre os seis e os dez anos, enfarpelados à marinheira, com grandes colarinhos deitados, por cuja abertura se estripavam altos laçarotes de fita escocesa. Tinham chapéus de palha amarela com cintas atuis, nos quais se liam nomes de navios de guerra: "Aquidabá", "Timbira", em letras douradas. Traziam bengalinhas, demasiado compridas e pareciam mais atrapalhar-se do que divertir-se com esse luxo desacostumado.

A mãe, maciça no seu largo vestido de lãzinha cor chocolate, os cabelos repartidos em duas asas negras e lisas, apanhados numa rodilha farta sobre a nuca morena. Estava alegre como os outros, mas de uma alegria meio assustada, -talvez acanhamento do vestido novo, dos sapatos novos, do penteado que lhe repuxava a pele da testa.

Quando o bonde chegou, os pequenos treparam desajeitadamente, agarrando-se ao carro com as mãos ambas e foram colocar-se nas extremidades fronteiras dos dois primeiros bancos, a garantir os postos de observação.

A mãe entrou com eles, arrastando um pela blusa, empurrando outro pelo traseiro e sentou-se ao pé dos dois, ralhando em voz baixa, como se estivessem num lugar de respeito.

O pai mais senhor de si, aboletou-se a pouca distância, inspecionando tudo com um semblante meio severo meio condescendente.

Depois, todos entraram a rir e palrar. Todos se viravam para um e outro lado, a olhar os prédios, as perspectivas das ruas, as massas retangulares dos edifícios alteados ao longe, os automóveis que passavam. Divertiu-os muito um caminhão cheio de futebolistas seminus e gritadores. Também acharam bastante graça num velho de barbas bíblicas, que trazia na mão uma espécie de árvore, de folhagem toda florida de papaventos vermelhos, amarelos e azuis. E os papaventos giravam e zumbiam como um enxame assanhado.

O estridor das rodas do bonde nas curvas mal engraxadas foi ponto de partida de uma rivalidade entre os dois pequenos, cada qual mais empenhado em imitá-lo com a boca. A mãe ria-se, tapando os dentes com a mão, relanceando os olhos desconfiados pela circunvizinhança.

Quando o condutor marcava as passagens, os peque-nos queriam saber como era aquilo, porque era, e o pai dava-lhes explicações fantasiosas que eram ocasião de teimas e risos.

Enfim, como aquela família se divertia!

Ao chegarmos à cidade, saltaram para ir ver as vitrinas e, de certo, para ir a algum botequim tomar café-com-leite e comer cavacas e pães-de-ló - um festim delicioso.

Respiravam tranqüilidade e alegria. A alma boiava-lhes numa descuidosa satisfação de filhos amados da felicidade e do candor.

Passear de bonde, andar pela cidade, ver a gente, ver as vitrinas, tomar café-com-leite num botequim grande, cheio de espelhos, em chávenas de louça brilhante, -que recreio, que consolo, que temeridade jovial e dissipadora!

Nunca tenho inveja a ninguém, e aos felizes da felicidade exterior, ainda menos que a ninguém. Mas diante dessa família, tive uma espécie de inveja.

Pobre alma escalavrada e enfastiada, para quem tudo quanto divertia aquela gente era vago e distante como tudo quanto é muito próximo e muito visto, senti em certo momento uma impressão angustiosa - a impressão que teria alguém, de repente, apalpando-se, de que metade si mesmo já era coisa morta.

Fonte:
Domínio Público

Olegário Mariano (Cristais Poéticos)

O ENAMORADO DAS ROSAS

Toda manhã, ao sol, cabelo ao vento,
Ouvindo a água da fonte que murmura,
Rego as minhas roseiras com ternura,
Que água lhes dando, dou-lhes força e alento.

Cada um tem um suave movimento
Quando a chamar minha atenção procura
E mal desabrochada na espessura,
Manda-me um gesto de agradecimento.

Se cultivei amores às mancheias,
Culpa não cabe às minhas mãos piedosas
Que eles passassem para mãos alheias.

Hoje, esquecendo ingratidões mesquinhas,
Alimento a ilusão de que essas rosas,
Ao menos essas rosas, sejam minhas.

      A VELHA MANGUEIRA

No pátio da senzala que a corrida
Do tempo mau de assombrações povoa,
Uma velha mangueira, comovida,
Deita no chão maldito a sombra boa.

Tinir de ferros, música dorida,
Vago maracatu no espaço ecoa...
Ela, presa às raízes, toda a vida,
Seu cativeiro, em flores, abençoa...

Rondam na noite espectros infelizes
Que lhe atiram, dos galhos às raízes,
Em blasfêmias de dor, golpes violentos.

E, quando os ventos rugem nos espaços,
Os seus galhos se torcem como braços
De escravos vergastados pelos ventos.

ARCO-ÍRIS

Choveu tanto esta tarde
Que as árvores estão pingando de contentes.
As crianças pobres, em grande alarde,
Molham os pés nas poças reluzentes.

A alegria da luz ainda não veio toda.
Mas há raios de sol brincando nos rosais.
As crianças cantam fazendo roda,
Fazendo roda como os tangarás:

"Chuva com sol!
Casa a raposa com o rouxinol."
De repente, no céu desfraldado em bandeira,

Quase ao alcance da nossa mão,
O Arco-da-Velha abre na tarde brasileira
A cauda em sete cores, de pavão.

CASTELOS NA AREIA

— Que iluminura é aquela, fugidia,
Que o poente à beira-mar beija e incendeia?
— É apenas a criação da fantasia: —
São castelos na areia.

Andam, tontas de sol, brincando as crianças
Como abelhas que voaram da colmeia.
Erguem torreões fictícios de esperanças...
São castelos na areia.

Ao canto de um jardim adormecido:
"Por que não crês no afeto que me enleia?
E as palavras que eu disse ao teu ouvido?"
— São castelos na areia.

E o tempo vai tecendo, da desgraça,
Na roca do destino, a eterna teia.
— "E os beijos que trocamos?" — Tudo passa,
São castelos na areia.

Coração! Por que bates com ansiedade?
Que dor é a grande dor que te golpeia?
Ouve as palavras da Fatalidade:
Ventura, Amor, Sonho, Felicidade,
São castelos na areia.

CIGARRA

Figurinha de outono!
Teu vulto é leve, é sensitivo,
Um misto de andorinha e bogari.
Num triste acento de abandono,
A tua voz lembra o motivo
De uma canção que um dia ouvi.

 Quando te expões ao sol, o sol te impele
Para o rumor, para o bulício e tu, sorrindo,
Vibras como uma corda de guitarra...
É que o sol, quando queima a tua pele,
Dá-te o grande desejo boêmio e lindo
De ser flor, de ser pássaro ou cigarra

Cigarra cor de mel. Extraordinária!
Cigarra! Quem me dera
Que eu fosse um velho cedro adusto e bronco,
E tu, nessa alegria tumultuária,
Viesses pousar sobre o meu tronco
Ainda tonta do sol da primavera.

 Terias glórias vegetais sendo vivente.
Mas um dia de lívidos palores,
Tu, cigarra, que vieste não sei donde,

Morrerias de fome lentamente
No teu leito de liquens e de flores
No aconchego sutil da minha fronde.

 E eu, na dor de perder-te, no abandono,
Sem ter roubado dessa mocidade,
Do teu corpo de flor um perfume sequer,
Morreria de tédio e de saudade...
Figurinha de Outono!
Cigarra que o destino fez mulher!

DE PAPO PRO Á

I

Não quero outra vida
Pescando no rio
De jereré
Tenho peixe bom...
Tem siri-patola
De dá com o pé

Quando no terreiro
Faz noite de luá
E vem a saudade
Me atormentá
Eu me vingo dela
Tocando viola
De papo pro á

II

Se compro na feira
Feijão rapadura
Pra que trabaiá
Eu gosto do rancho
O home não deve
Se amofiná
Estribilho

DO MEU TEMPO...

Quando eu era menino e tinha cheia
A alma de sonhos bons e, fugidio,
Como a abelha que voa da colmeia,
Andava a errar do canavial bravio;

Quando em noites de junho o luar macio
Punha um lençol de rendas sobre a areia,
Tiritava de medo ouvindo o pio
Da coruja mais lúgubre da aldeia.

Feliz! Bendita essa primeira idade!
Andava como quem anda sonhando
De olhos abertos, com a felicidade.

Dormia tarde e enquanto eu não dormia,
Mamãe rezava o padre-nosso e quando
Me mandava rezar, eu não sabia.

O MEU RETRATO

Sou magro, sou comprido, sou bizarro,
Tendo muito de orgulho e de altivez.
Trago a pender dos lábios um cigarro,
Misto de fumo turco e fumo inglês.

Tenho a cara raspada e cor de barro.
Sou talvez meio excêntrico, talvez.
De quando em quando da memória varro
A saudade de alguém que assim me fez.

Amo os cães, amo os pássaros e as flores.
Cultivo a tradição da minha raça
Golpeada de aventuras e de amores.

E assim vivo, desatinado e a esmo.
As poucas sensações da vida escassa
São sensações que nascem de mim mesmo.

 O FLIRT

Retirei um breve instante
Das minhas cogitações,
Para falar-vos do Flirt,
A epidemia elegante
Dos salões.

 Nasce de um sorriso mudo,
De um quase nada que, enfim
Vale tudo
Para elas e para mim.

 O Flirt. Haverá no mundo
Quem não sinta essa embriaguez
De um momento, de um segundo,
De quinze dias, de um mês?

Ele é efêmero e fortuito,
Vale pouco ou vale muito,
Conforme o Diabo o compôs.
É um simples curto-circuito
Entre dois.

Uma carícia inflamável
Doidinha por incendiar,
Um micróbio insuportável
Que vai de olhar para olhar.

 Ou antes: um precipício
Que a gente olha sem pavor.
O divino instante, o início
Do êxtase imenso do amor.

 Um galanteio, uma frase
Intencional
Que sendo frívola, é quase
Um madrigal.

 A mão que outra mão afaga,
O pé que pisa outro pé.
Carícia lânguida e vaga...
Só quem ama e quem divaga
Pode saber o que isto é.

 A orquestra soluça um tango:
Dois. Ela folle, ele fou.
Flor de Tango. — A flor de Tango,
Diz ele baixinho, és tu.

 E assim vai num tal crescendo,
Que ela se debate em vão.
Parece que está morrendo
Nos braços do cidadão.

 Quando passa o áureo momento,
Vem a tragédia em três atos.
Três atos
Com um epílogo. Depois,
Um noivado, um casamento,
Um bruto arrependimento
E ao fim divórcio entre os dois.

Fonte:
Jornal de Poesia
Academia Brasileira de Letras

Olegário Mariano (1889 – 1958)

Olegário Mariano Carneiro da Cunha nasceu na cidade de Recife, Pernambuco, a 24 de março de 1889. Faleceu no Rio de Janeiro a 28 de novembro de 1958.

Era filho de José Mariano Carneiro da Cunha, herói pernambucano da Abolição e da República, e de Olegária Carneiro da Cunha. Fez o primário e o secundário no Colégio Pestalozzi, na cidade natal, e cedo se transferiu para o Rio de Janeiro. Frequentou a roda literária de Olavo Bilac, Guimarães Passos, Emílio de Meneses, Coelho Neto, Martins Fontes e outros. Estreou na vida literária aos 22 anos com o volume Angelus, em 1911. Sua poesia falava de neblinas, de cismas e de sofrimentos, perfeitamente identificada com os preceitos do Simbolismo, já em declínio.

Foi inspetor do ensino secundário e censor de teatro. Representou o Brasil, em 1918, como secretário de embaixada à Bolívia, na Missão Melo Franco. Foi deputado à Assembléia Constituinte que elaborou a Carta de 1934. Em 1937, ocupou uma cadeira na Câmara dos Deputados. Foi ministro plenipotenciário nos Centenários de Portugal, em 1940; delegado da Academia Brasileira na Conferência Interacadêmica de Lisboa para o Acordo Ortográfico de 1945; embaixador do Brasil em Portugal em 1953-54. Exerceu o cargo de oficial do 4o Ofício de Registro de Imóveis, no Rio de Janeiro, tendo sido antes tabelião de Notas.

Em concurso promovido pela revista Fon-Fon, em 1938, Olegário Mariano foi eleito, pelos intelectuais de todo o Brasil, Príncipe dos Poetas Brasileiros, em substituição a Alberto de Oliveira, detentor do título depois da morte de Olavo Bilac o primeiro a obtê-lo.

Além da obra poética iniciada em livro em 1911, e enfeixada nos dois volumes de Toda uma vida de poesia (1957), publicados pela José Olympio, Olegário Mariano publicou durante anos, nas revistas Careta e Para Todos, sob o pseudônimo de João da Avenida, uma seção de crônicas mundanas em versos humorísticos, mais tarde reunidas em dois livros: Bataclan e Vida Caixa de brinquedos.

Sua poesia lírica é simples, correntia, de fundo romântico, pertinente à fase do sincretismo parnasiano-simbolista de transição para o Modernismo. Ficou conhecido como o “poeta das cigarras”, por causa de um de seus temas prediletos.

Obras:
Angelus (1911);
Sonetos (1921);
Evangelho da sombra e do silêncio (1913);
Água corrente, com uma carta prefácio de Olavo Bilac (1917);
Últimas cigarras (1920);
Castelos na areia (1922);
Cidade maravilhosa (1923);
Bataclan, crônicas em verso (1927);
Canto da minha terra (1931);
Destino (1931);
Poemas de amor e de saudade (1932);
Teatro (1932);
Antologia de tradutores (1932);
Poesias escolhidas (1932);
O amor na poesia brasileira (1933);
Vida Caixa de brinquedos, crônicas em verso (1933);
O enamorado da vida, com prefácio de Júlio Dantas (1937);
Abolição da escravatura e os Homens do Norte, conferência (1939);
Em louvor da língua portuguesa (1940);
A vida que já vivi, memórias (1945):
Quando vem baixando o crepúsculo (1945);
Cantigas de encurtar caminho (1949);
Tangará conta histórias, poesia infantil (1953);
Toda uma vida de poesia, 2 vols. (1957).

Fonte:
Academia Brasileira de Letras

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 8

No dia seguinte o Coruja passeava sozinho por uma alameda sua favorita, quando o Caetano lhe foi dizer que o Sr. Teobaldo o mandava chamar e ficava à espera dele no quarto. André correu ao encontro do amigo.

— Chegaram as nossas roupas! Exclamou este ao vê-lo.

E sua fisionomia rejubilava com essas palavras.

— Ah! Fez o outro, quase com indiferença.

— Experimentemos.

— Há tempo.

O alfaiate observou que não podia demorar-se muito.

— Deve estar direito... Respondeu André. Pode deixar.

— É bom sempre ver... Insistiu o alfaiate.

— É indispensável! Acrescentou Teobaldo.

André não teve remédio senão experimentar a roupa. Era um fato preto, fato de luto, que mal deixava perceber o colarinho da camisa. E ele, pequeno, grosso, cabeçudo, e queixo saliente, os olhos fundos, com as suas bossas superciliais principiando a desenvolver-se pelo hábito da meditação; ele, enfardelado naquela roupa muito séria, toda abotoada, só precisava de uns óculos para ser uma infantil caricatura do velho Thiers.

Contudo, e apesar dos conselhos que lhe dava o amigo para mandar diminuir três dedos no comprimento do paletó e tirar um pouco de pano das costas, achou que estava magnífica.

— Ao menos, disse Teobaldo, que acabava de se vestir, manda encurtar essas calças, rapaz! E soltar a bainha dessas mangas!

— Então boas... Teimou o Coruja, esforçando-se por fazer chegar as mangas até às mãos.

— Parece que te meteste nas calças de teu avô.

E voltando-se para o alfaiate:
— Também não sei como o senhor tem ânimo de apresentar unia obra desta ordem... Está uma porcaria!

— Perdão! Respondeu o alfaiate, dispondo-se logo a modificar a roupa de André. Vossemecê poderia dizer isso se a sua roupa não saísse boa, e essa está que é uma luva, mas, quanto à deste moço, nem só é a primeira vez que trabalho para ele, como não podia acreditar que houvesse alguém com as pernas tão curtas e os braços tão compridos. Parece um macaco!

— Bem, bem, veja lá o que é preciso fazer na roupa, e deixe-se de comparações! Observou Teobaldo, defronte do espelho, a endireitar-se, muito satisfeito com a sua pessoa.

Para esse dia estava reservado ao André uma surpresa muito agradável: D. Geminiana, tendo com o casamento de separar-se. do sobrinho, queria deixar a este uma lembrança qualquer e mandou buscar da corte um bom relógio de ouro e a respectiva corrente. A encomenda chegou essa noite, Teobaldo recebeu o seu presente da tia e, ato contínuo, tomou do antigo relógio e da cadeia que até aqui usara, e deu tudo ao Coruja.

Seja dito que um dos sonhos dourados de André era possuir um relógio; desejava-o, não como objeto de luxo, mas como objeto de utilidade imediata.

— Poder contar o tempo pelas horas, pelos minutos e pelos segundos!... Isto para aquele espírito metódico e regrado era nada menos do que uma felicidade.

CAPÍTULO X

Durante o tempo que precedeu ao casamento, a fazenda do Sr. Barão do Palmar descaiu um tanto da sua patriarcal serenidade e tomou um quente aspecto de festas, porque com muita antecedência começaram a chegar os convidados. Emílio quis reunir os seus vizinhos de uma légua em derredor e não se poupou a esforços para que nada lhes viesse a faltar. Havia de ser uma festa verdadeiramente gamaquiana.

Ao lado das delicadas distrações das salas, o jogo, a Á dança, a música e a palestra, queria ele a grande fartura da mesa e da copa; queria o grosso prazer pantagruélico: — Carne para mil! — Vinho para outros tantos!

À faca as grandes reses que pastavam sossegadamente no campo; à faca os trepegos, os chibarros, os carneiros e os perus! Que não ficassem por ali, naquelas cinco léguas mais próximas, estômagos nem corações com laivos de tristeza! O casamento devia efetuar-se na própria capela da fazenda, e meio mês antes da festa já ninguém descansava em casa de Emílio. Vieram cozinheiros de longe; cada convidado trazia dois e três serventes e, apesar disso, havia trabalho para todos.

O Coruja ia pela primeira vez em sua vida assistir a um baile, e essa idéia, longe de o alegrar, trazia-lhe uni fundo ressaibo &3 amargura, como se o desgraçado estivesse à espera de uma terrível provação.

O fato de perturbarem a calma existência da fazenda, só por si já não lhe era de forma alguma agradável; quanto mais a idéia de ter de acotovelar-se com pessoas inteiramente estranhas, a quem sem dúvida não iria ele produzir bom efeito com a sua triste figura desengraçada.

Oh! Se fosse possível ao Coruja presenciar toda aquela festa, sem aliás ser descoberto por ninguém!... Se ele pudesse, por um meio maravilhoso, tornar-se em puro espírito e estar ali a ver, a observar, a ouvir o que dissessem todos, sem que ninguém desse pela presença dele — Oh! Então conseguiria desfrutar, e muito!

Chegou entretanto a véspera do grande dia, e de todos os pontos começavam a surgir, desde pela manhã, convidados a pé, a cavalo e de carro. Um enorme telheiro, que se havia engendrado de improviso nos fundos da casa, ficou cheio de cavalgaduras, troles, carroções e seges das que se usavam no tempo.

A fazenda apresentava um aspecto magnífico. Emílio, como homem de gosto que era, procurou afestoá-la quanto possível. Por toda a parte viam-se florões de murta engranzados com as parasitas mais caprichosas; jogos d’água formando esplendidos matizes à refração das luzes multicores das lanternas chinesas. Defronte da casa o fogo de artifício, que seria queimado pelo correr da noite. Às seis horas da tarde uma salva de vinte tiros de peça anunciou que estava terminada a cerimonia religiosa do casamento e que principiava o banquete. Os noivos foram tomar a cabeceira da mesa acompanhados por mais de quinhentas pessoas.

Como nenhum dos aposentos da casa podia comportar tanta gente, o barão fez levantar no vasto terreiro da fazenda uma enorme tenda de lona, sustentada por valentes carnaubeiras, engrinaldadas de verdura. Nessa festa foi que o Coruja teve ocasião de apreciar mais largamente as brilhantes qualidades do amigo. Viu-o e admirou-o ao lado das damas, cortes e cavalheiro como um homem; viu-o igualmente ao lado dos amigos do pai e notou que Teobaldo nem uma só vez caía em qualquer infantilidade, e mais, que todos, todos, até os velhos, prestavam-lhe a maior atenção, sem dúvida fascinados pelo talento e pelas graças do rapaz; viu-o na biblioteca, tomando parte nos jogos carteados, que André nem sequer conhecia de nome, e reparou que ele puxava por dinheiro e ganhava ou perdia com uma distinção sedutoramente fidalga; viu-o nas salas da dança, conduzindo uma senhora ao passo da mazurca, teso, correto, elegante mais do que nunca, e como possuído de orgulho pelo gentil tesouro que levava nos braços; viu-o à mesa erguer-se de taça em punho e fazer um brinde à noiva, levantando aplausos de toda a gente, e o Coruja, de cujas mãos saíra aliás essa festejada peça literária, chegou a desconhecer a sua obra, tal era o realce que lhe emprestavam os dotes oratórios do amigo; viu-o depois ao ar livre, debaixo das árvores, a beber ponches e a mexer com a filha do João da Cinta, a qual olhava para ele, escrava e submissa, como defronte de um Deus.

Mas tudo isso não o fez ficar tão fortemente impressionado, como quando o contemplou ao lado de Santa, ao lado daquela adorável mãe que parecia resplandecer de orgulho e satisfação a rever-se no filho idolatrado. Foi com a alma banhada pelos eflúvios da felicidade de Teobaldo que o pobre Coruja ouviu palpitar entre essas duas criaturas as seguintes palavras, mais ternas e harmoniosas que um diálogo de beijos:

— Amas-me muito, meu filho?

— Eu te adoro, minha Santa.

— E nunca te esquecerás de mim?

— Juro-te que nunca.

— Nem mesmo depois de eu ter morrido?

— Nem mesmo depois de teres ido para o céu.

— E sabes tu, meu filho, o muito que te quero?

— Queres-me tanto quanto eu a ti.

— E sabes quanto sofreria tua mãe se por instantes te esquecesses dela?

— Não, porque não sei como possa a gente se esquecer de ti.

— E, quando fores completar os teus estudos na corte, juras que...

Não pode ir adiante. A idéia da separação que já se avizinhava a passos largos, tolheu-lhe a fala com uma explosão de soluços.

— Então, Santa, então, que é isso? Murmurou Teobaldo, erguendo-se e chamando para sobre o seu peito a cabeça da baronesa — Não chores! Não te mortifiques!...

Emílio acudiu logo, afastou o filho com um gesto e, tomando o lugar deste, segredou ao ouvido da esposa:

— Vamos, minha amiga, nada de loucuras!...

— Não posso conformar-me com a idéia de que Teobaldo torna a separar-se de mim...

— Bem sabes que é indispensável...

— Perdoa-me. Ninguém melhor do que eu aprecia os teus atos e as tuas intenções. Sei que ele precisa fazer um futuro condigno do seu talento; sei que não podemos acompanhá-lo de perto, não podemos morar na corte, porque as nossas condições de fortuna já não...

— Santa! Olha que te podem ouvir!...

— Não me conformo com esta separação! É talvez um pressentimento infundado; é talvez loucura, como dizes, mas não está em minhas mãos; sou mãe, e ele é tão digno de ser amado.

— Mas, valha-me Deus! Não é uma separação eterna...

— Não sei! É que uma terrível idéia me preocupa. Afigura-se-me que nunca mais o tornarei a ver!... Oh! Nem quero pensar nisto!

E os soluços transbordaram-lhe de novo, ainda com mais ímpeto que da primeira vez. O barão, sem perder uma linha do seu donaire, passou o braço na cintura da esposa e, deixando que ela se lhe apoiasse de todo no ombro, arrastou-a vagarosamente até à sua alcova.

Coruja, ignorado a um canto da sala, viu e ouviu tudo isso, e ao ver aquelas lágrimas de mãe e ao ouvir aquelas palavras de tanto amor e aqueles beijos mais doces do que as bênçãos do céu, que estranhas amarguras sua alma não carpiu em silêncio!...

Amargura, sim, que, por menos egoísta, por menos homem que fosse ele, do fundo do seu coração havia de sair um grito de revolta contra aquela injustiça da sorte, que para uns dava tudo e para outros nada! Aquele espetáculo de tamanha felicidade havia fatalmente de amargurá-lo.

Ainda se Teobaldo, possuindo muitos dotes fosse ao menos feito como ele, o Coruja; ainda se fosse miserável ou estúpido, — Vá! Mas não! Teobaldo era lindo, era rico, era talentoso e, além de tudo — Amado! Amado por tantas criaturas e, principalmente, por aquela adorável mãe, cujos beijos e cujas lágrimas eram o bastante para lhe adoçar todos os espinhos da vida.

E André, assim considerando, via-se perfeitamente, tinha-se defronte dos olhos, como se estivesse em frente a um espelho. Lá estava ele — Com a sua disforme cabeça engolida pelos ombros, com o seu torvo olhar de fera mal domesticada, com os sobrolhos carregados, a boca fechada a qualquer alegria, as mãos ásperas e curtas, os pés grandes, o todo reles, miserável, nulo!

O desgraçado, porém, em vez de dar ouvidos a estes raciocínios, voltou-se todo para uma voz íntima, uma voz que também lhe vinha do coração, mas toda brandura e humildade. E essa voz lhe dizia:

— Pois bem, miserável! Ingrato! Tu, que és órfão; tu que não tens onde cair morto; tu, que és feio, que és o Coruja; tu, que não tens nenhum dote brilhante, que não és distinto, nem espirituoso, nem possuis mérito de espécie alguma; tu, mal agradecido! — És amado por Teobaldo, que dispõe de tudo isso à larga e que te faz penetrar sua sombra no santuário de corações onde nunca penetrarias sem ele.

E o Coruja, saindo da sala para respirar lá fora mais à vontade, pôs-se a caminhar, a caminhar à toa entre as sombras das árvores, sentindo-se arrebatado por um inefável desejo de ser bom, um desejo de ser eternamente grato a quem, possuindo todas as riquezas, o escolhia para seu íntimo, para seu irmão — A ele, que nada possuía sobre a terra.

Ser "bom"!

Mas seria isso humildade ou seria ambição e orgulho?

Quem poderá afirmar que aquele enjeitado da natureza não se queria vingar da própria mãe fazendo de si um monstro de bondade? Sim. Vingar-se, fugindo da esfera mesquinha dos homens, fugindo às paixões, às pequenas misérias mundanas e procurando refugiar-se no próprio coração, ainda receoso de que o céu, cúmplice da terra, lhe negasse também a graça de um abrigo.

Ou quem sabe então se o ambicioso, vendo-se completamente deserdado de todos os dotes simpáticos a que tem direito a sua espécie, não queria supri-los por uma virtude única e extraordinária — A bondade?

A bondade, esse pouco!

Visionário! Não se lembrava de que a bondade, á força de ser esquecida e desprezada, converteu-se em uma hipótese ou só aparece no mercado social em pequenas partículas distribuídas por milhares de criaturas; como se dessa heróica virtude houvesse apenas uma certa e determinada porção desde o começo do mundo e que, de então para cá, à medida que se multiplicaram as raças. ela se fora dividindo e subdividindo até reduzir-se a pó.
––––-
FIM DA PRIMEIRA PARTE
––––––––––
continua…

Antologia de Prosa e Poesia "DESPERTAR" (Participação)

ORGANIZAÇÃO - Isabel Cristina S. Vargas, Pelotas-RS.

REGRAS:

Ser maior de 16 anos.

A obra deve ser em português, inédita ou não.

Temática: EMOÇÕES

Publicação:
Poemas - até 35 versos(linhas) = 01 página.
Crônicas - até 3.000 caracteres com espaços = 02 páginas.
Contos - até 4.500 caracteres com espaços = 03 páginas.

Ao efetuar a inscrição o autor assume a autoria da obra e aceita as regras, aqui definidas.

O autor pode publicar quantas obras desejar.

Custo:
Publicação de um POEMA = R$ 25,00 = 01 exemplar.
Publicação de uma CRÔNICA = R$ 45,00 = 02 exemplares.
Publicação de um CONTO = R$ 60,00 = 03 exemplares.

Exemplares avulsos: R$ 20,00 (unitário).

Os autores selecionados receberão um INFO/Mail do Celeiro com as instruções para o pagamento referente à publicação/livros, que é através de boleto bancário.

Na época da editoração, o autor receberá suas páginas diagramadas em arquivo (pdf) para revisão e aprovação.

O cronograma de editoração, bem como, a relação dos autores inscritos estão disponíveis na página ACOMPANHE (link na página inicial do site).

Para esclarecimentos ou dúvidas utilize o campo de mensagem na página: FALE CONOSCO.

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domingo, 14 de julho de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) Palavras Cruzadas

Veio à minha frente, ontem à tarde, um passageiro engolfado num sobretudo enorme e num largo jogo de palavras cruzadas. Espiei um pouco por cima, o homem percebeu o meu movimento, voltou-se, reconheci-o: era o meu ex-vizinho Eulálio Peixoto, professor de Matemática e de conformidade.

-"Pois até você, Peixoto!"

- "É para você ver, Felício. Mas quem pode resistir! Todo o mundo vive às voltas com isto. Ainda hoje vi uma senhora, com um livro aberto, no bonde, dentro do livro ia um retalho de papel -era o jogo. Tenho um conhecido que traz o seu dentro do chapéu. Outros o carregam na carteira e em qualquer momento de descanso, no bonde, no café, na esquina, lá se põem a decifrar. Curioso! A que é que você atribui esta mania?"

-"Gosto de quebrar a cabeça".

-"Está enganado. Isso é o que menos influi no caso. Quantidade desprezível. A vida toda, toda, desde as grandes até às ínfimas coisas, é um tecido de quebra-cabeças."

"Dirá você que são problemas repulsivos -uns tenebrosos, como a própria vida em si, outros atenazantes, como o do pão que se há de comer no mês que vem. Perfeitamente! Mas, nesse caso, haveria uma infinidade de passatempos deste mesmo gênero à nossa disposição -os problemas de aritmética e álgebra, o xadrez, o soneto, as ações humanas, o acróstico... veja você, o acróstico tão aparentado com isto, e tão mais interessante!

"Não, o prazer do entretenimento é o que menos influi nesta epidemia. Ele existe, sem dúvida, no fundo de todos estes exercícios, mas neutro, indiferente à oscilação e variedade das aplicações."

-"Mas, então, Peixoto, onde é que está o busílis?"

-"Eis aí o grande problema das palavras cruzadas! Esse é que eu gostaria de ver discutido. Para mim, provisoriamente, o segredo só tem uma explicação, uma só: contágio mental.

-"Mas como explicará você o contágio, por sua vez?"

- "É outra questão. O contágio existe, é evidente, manifesta-se por mil formas. Sempre existiu. A moda nunca foi outra coisa que um nome diverso desse fenômeno. O joguinho apareceu um dia, lá na América do Norte, como um desses mil divertimentos com que os jornais engabelam o público. Ou porque tivesse uma feição mais atraente, ou porque o jornal que o inventou fosse de grande circulação, ou porque se anunciassem prêmios convidativos, a coisa teve êxito, despertou os êmulos e os imitadores, -e eis a epidemia armada, a alargar-se por toda uma região, por todo um país, transpondo os mares, saltando em portos distantes, explodindo em todos grandes centros, voando a todos os recantos do mundo."

"É a própria, a propriíssima curva de todas as epidemias -explicou Peixoto continuando. -Há um primeiro foco, lento, hesitante, dúbio. Repetem-se os casos, nas vizinhanças. E, à medida que se repetem, a intensidade sobe. Há um momento de máxima intensidade e máxima expansão. A epidemia alastra-se.

"Depois, vão-se extinguindo aos poucos os mil focos espalhados, bambeia a fúria do mal, os casos voltam a ser mais brandos, mais incertos, e tudo acaba como um incêndio rápido que lambesse e queimasse todas as folhas e gravetos secos disseminados por um mato verde, morrendo afinal aos pedaços, por falta de alimento e de vento."

Peixoto fez-me ver em seguida como o contágio mental vai alargando, em todas as suas formas, o seu campo de expansão.
Em outros tempos que não vão tão longe, cada país era um campo restrito de ressonâncias, e dentro de cada um desses campos havia outros, igualmente quase fechados -as classes, as categorias sociais. Um sapateiro da Idade Média estava muito mais longe de um magistrado, na mesma cidade, do que hoje um fazendeiro de Mato Grosso se acha de um professor de Heidelberg.

As modas, outrora, levavam muito mais tempo a ir de Paris à província, do que, hoje, de Nova York ao Extremo Oriente. Demais, propagavam-se em linha horizontal -dentro de certas classes; hoje propagam-se tanto no sentido horizontal como no vertical -entre as gentes colocadas em posição semelhante e entre as que ocupam qualquer outra posição na escada ascendente ou descendente.

O contágio, hoje, envolve tudo. Tudo pode transformar-se repentinamente em mania coletiva. Outrora, havia epidemias de misticismo, de guerra ou de suicídio limitadas a certas regiões. Hoje, toda a vida universal tende a ser uma sucessão de epidemias. Há epidemias universais de dança, epidemias esportivas, epidemias de jogo, epidemias políticas, epidemias artísticas, literárias, epidemias econômicas, epidemias filantrópicas.

Se algum dia houve a ilusão do que os homens fossem capazes de se deixar guiar pela razão, hoje o mundo inteiro é um só vasto campo de experiência a provar todos os dias, que os homens agem sistematicamente à revelia da razão -o que não quer dizer que uma vez por outra, não possam encontrar-se com ela, por acaso. Quanto mais se civilizam, mais imitam e copiam. Quanto mais prezam a individualidade mais a perdem. Quanto mais amam o novo e o original, mais feitos "em série" parecem.

Os motivos de ação vão-se tornando, cada vez mais, efeitos de sugestão coletiva.
Os Estados Unidos, que se diriam a terra por excelência do individualismo violento, são na verdade a terra por excelência da socialização absorvente. O que dá a aparência da liberdade é a franqueza exterior dos movimentos. Pura aparência. Não há nada que pareça tão "livre" como as peças ativas de um tear moderno, a trabalharem silenciosamente, como por si, como uma espécie de alacridade serena e de inabalável consciência do dever.

Na realidade, o homem por lá não tem a mínima liberdade, no sentido clássico, estóico, de liberdade interior, fundamental, soberana; inviolável -aquela que Emerson por lá mesmo exaltava. É sempre homem de um partido, de uma igreja de um clube, de uma corrente, -um dos caracteres de que se compõem as palavras de um pensamento coletivo, para ele proveitoso mas indecifrável.

Formidáveis, naquela terra, o volume e a rapidez dos movimentos de opinião ou sensibilidade, isto é, de contágio mental. São turbilhões que passam levantando fiumanas de almas como folhas secas. Estes movimentos tanto podem dar-se a propósito de bebidas, como de um match de box; de uma eleição, como de uma nova dança de negros; de um escândalo teatral como de uma doutrina religiosa

Enfim, o indivíduo vai sendo empastado na comunidade e arrastado nas convulsões obscuras das forças elementares que a percorrem e remexem.

Este o pendor contemporâneo da civilização. Este o seu perigo mais tétrico. Ela tende cada vez mais a absorver as personalidades, como um organismo em jejum forçado tende a alimentar-se às suas próprias expensas, esgotando os seus elementos vitais, esgotando-se...

Chegado a este ponto, Eulálio interrompeu-se por que me achou distraído. Na verdade, a minha aparente distração estava apenas em que eu lhe bebia as palavras, e as memorizava.

Mas ele tinha a sua razão de me estranhar o silêncio e a imobilidade; porque a boa educação manda que, nas conversas, se dêem todas as atenções à pessoa que fala, e nenhuma ao que ela fala.

Fonte:
Domínio Público