quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Moreira Campos

José Maria Moreira Campos (Senador Pompeu, 1914 – Fortaleza, 1994)), ingressou na Faculdade de Direito do Ceará, bacharelando-se em 1946. Licenciou-se em Letras Neolatinas em 1967, na antiga Faculdade Católica de Filosofia do Ceará. Exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará, Curso de Letras, como titular de Literatura Portuguesa. Integrante do Grupo Clã. Pertenceu à Academia Cearense de Letras. Deixou as seguintes coleções: Vidas Marginais (1949), Portas Fechadas (1957), distinguido com o Prêmio Artur de Azevedo, do Instituto Nacional do Livro, As Vozes do Morto (1963), O Puxador de Terço (1969), Os Doze Parafusos (1978), A Grande Mosca no Copo de Leite (1985) e Dizem que os Cães Veem Coisas (1987). Seus Contos Escolhidos tiveram três edições, Contos foram editados em 1978 e Contos – Obra Completa se publicaram, em dois volumes, em 1996, pela Editora Maltese, São Paulo, com organização de Natércia Campos. Tem também um livro de poemas, Momentos (1976). Participou de diversas antologias nacionais. Algumas de suas peças ficcionais foram traduzidas para o inglês, o francês, o italiano, o espanhol, o alemão.

Sua obra está estudada em importantes livros, como o de José Lemos Monteiro, intitulado O Discurso Literário de Moreira Campos, o de Batista de Lima, Moreira Campos: A Escritura da Ordem e da Desordem, e outros mais abrangentes, como Situações da Ficção Brasileira, de Fausto Cunha; 22 Diálogos Sobre o Conto Brasileiro Atual, de Temístocles Linhares; e A Força da Ficção, de Hélio Pólvora. Em jornais e revistas se estamparam quase uma centena de artigos e ensaios sobre os seus livros.

Temístocles Linhares classifica o contista de Portas Fechadas de “um de nossos maiores contistas atuais”. Assis Brasil escreveu: “Moreira Campos faz, no Ceará, a ligação entre o conto de história, ainda vigente nos primeiros anos do Modernismo, e o conto de flagrante, sugestivo, que as novas gerações, a partir de 1956, desenvolveriam em muitos aspectos criativos”.

Sânzio de Azevedo, principalmente no ensaio “Moreira Campos e a Arte do Conto” (Novos Ensaios de Literatura Cearense) faz algumas observações: Primeira: “Na linhagem de Machado de Assis e por conseguinte na de Tchecov é que se entronca a obra ficcional de Moreira Campos” (...). Segunda: “apesar de haver optado pela narrativa sintética, extremamente despojada, com que tem enriquecido a nossa literatura através de não poucas obras-primas, não renegou os longos contos de seu primeiro livro” (...). Terceira: “Em Moreira Campos o que mais importa são os dramas da alma humana, e não a presença da terra, ostensivamente retratada nas páginas de Afonso Arinos e Gustavo Barroso”.

Em “As Características da Escritura de Moreira Campos” (O Fio e a Meada: Ensaios de Literatura Cearense, págs. 155/158), Batista é de opinião que o contista “transita com mestria entre momentos impressionistas, neo-realistas e neonaturalistas, sempre conservando uma estrutura linear para suas narrativas, com princípio, meio e fim bem delineados.”

Especializou-se Moreira Campos no drama familiar urbano, embora tenha também cultivado o chamado conto rural, semelhante ao regionalista. Em muitas narrativas esse conflito se dá no plano amoroso: quase sempre marido ou mulher infiel. Outras vezes o embate é interior, do protagonista. Em “A gota delirante”, do livro Dizem que os cães veem coisas (2 a. ed. 1993), o protagonista se debate em pensamentos sobre possuir ou não a mulher do primo. Constituída quase toda de blocos narrativos, com poucas falas e uma ou outra referência a objetos descritíveis (“vestido fino”, “calcinha de rendas”, “leveza desesperadora do baby-doll”), a história se dá mais no plano da imaginação, mesmo não sendo narrada na primeira pessoa. Em “A Carta”, do mesmo livro, a noiva se apaixona pelo amigo do noivo, que lhe entregava cartas enviadas pelo futuro marido. Em poucas linhas o leitor vai percebendo o desenrolar do conflito, sem que o noivo apareça. Em “Banho de Bica” o drama amoroso reaparece. O núcleo dramático (o banho de bica do homem com a empregada na casa de campo) se esgarça no tempo e no espaço. A mulher traída esbraveja, planeja a separação conjugal, e a trama se vai esfiapando, até alcançar o fim sem desenlace, num diálogo banal: “– A manhã está bonita – ele disse. – Está.”

                Um dos mais famosos contos de Moreira Campos é “Lama e Folhas”, do primeiro livro. Narrado na primeira pessoa, como muitos outros dos primeiros livros, tem como tema a morte. O narrador, o rico ou bem sucedido João Sampaio, fala de si mesmo (“Comprei um sítio, perto, num pé de serra”), a misturar passado e presente (flashback), e aqui e ali fala da mulher e outros personagens menores, e principalmente do filho único, do nascimento à morte, aos cinco anos. Ao leitor é dado saber que a história é do começo do século XX: “Às vezes, encontrávamo-nos os dois numa esquina, no ponto do bonde”. A linguagem é apurada, de quem leu muito, embora estas leituras do narrador não se mencionem no decorrer da narrativa. Constituído quase todo de narrações, o conto traz breves diálogos (quase sempre pergunta e resposta). No escoar da narração uma ou outra consideração de ordem moral: “A essa gente não se pode dar muita confiança. Sentem-se logo à vontade e no outro dia faltam ao serviço.”

                Os contos de Moreira Campos são narrados ora na primeira pessoa, ora por narrador onisciente. Em “Vigília”, Anselmo mistura os tempos, num vai e vem contínuo, como ondas de um mar de tempos. Sai do presente, dá um longo mergulho no passado, volta ao presente. Como João Sampaio, traça o próprio perfil psicológico: “Envolvi-me numas transações duvidosas: contrabandos, andei vendendo umas máquinas ao governo, com lucro exorbitante.” Outro narrador, Edmundo, de “Coração Alado”, se vale do monólogo interior ou do solilóquio para narrar suas peripécias. Na verdade, são memórias escritas: “Foi quando me veio a ideia de lançar ao papel estes retalhos de memória.” Também neste conto o leitor depara o bonde, isto é, vê situada num tempo mais passado a história. O narrador de “Eu e Dinha” (o “eu” do título é, logicamente, o narrador) não se nomeia, como a mostrar que a protagonista é a negra Dinha, “minha preta”. O tempo é antigo, o dos bondes; o lugar, a velha Fortaleza: “O bonde avançava. Cruzamos muitas ruas, que Dinha não conhecia. Procurava mostrar-lhe prédios e praças. O Parque da Liberdade, a igreja do Coração de Jesus. – Ali é o Liceu.”

                Em “O grande medo”, de O Puxador de Terço, o personagem-narrador só se revela após os primeiros diálogos. Neste conto o diálogo é preponderante, embora não seja comum em narrativas em primeira pessoa. O drama se desenvolve no interior de uma casa, possivelmente numa sala. O narrador, em companhia da mulher, conta, em tempo real, os instantes de uma visita à sogra, semi-surda, servida por uma preta. Falam de morte o tempo todo. E assim se esvai o tempo, a narrativa chega ao fim, pela voz do narrador, a falar de silêncio – o desenlace. Esse tipo de desfecho pode ser encontrado também em “D. Adília e os seus cachorros”, do mesmo livro. Toda a narrativa é a história da morte da protagonista, contada aos pedaços desde o início, enquanto o velório é narrado.

                A morte num curto lapso de tempo ou o tempo de uma morte são utilizados com alguma frequência por Moreira Campos. “A mosca, a pasta e os sapatos” é narrado no restrito espaço de tempo de uma conversa: o moribundo, a mulher dele e o filho falam de coisas materiais, enquanto aguardam a chegada da morte. No entanto, o desfecho (a morte) não se dá.

                A morte como tema central está presente em diversas narrativas, especialmente na obra-prima intitulada “Dizem que os cães veem coisas”. A morte é a própria protagonista, como se pode ver logo no primeiro parágrafo. Os cães seriam os anunciadores dela – ser invisível aos seres humanos.

                A presença de velhos, moribundos ou não, é também uma constante nos contos moreirianos. O conflito é sempre doloroso, como em “A visita ao filho”. Nonato, esclerosado, sai de casa em busca da casa do filho casado e se perde. Desta vez, porém, o desenlace é feliz.

                O ponto de vista onisciente é encontrado em alguns contos. “Dona Adalgisa” é um deles. Como o título indica, a protagonista é Adalgisa, que parece ser a narradora, em monólogo interior. Do livro Portas Fechadas é “Raimunda”, ambientado no campo (açude, barraca de palha, touceiras de cana etc). O narrador onisciente conta duas histórias, que se entrelaçam: a da protagonista, a pobre Raimunda, à beira da morte (picada de cobra), e a da rica família Veloso, que poderia salvar a camponesa da morte. Ambientado na cidade, “Almas Sombrias” é outro conto singular. O narrador se apresenta mais onisciente ainda, vez que a protagonista Gertrudes, paralítica, trancafiada em casa, não vê o mundo além do foco de sua visão: (...) “um operário agora se equilibrava no andaime com a lata na cabeça.” Por este processo, o contista faz com que o leitor perceba mais ainda a imobilidade da personagem. O drama amoroso se apresenta mais uma vez: Gertrudes paralítica; Manassés, o marido; Noemi, cunhada dele. A morte lenta da protagonista, o namoro escondido do homem e da moça, até o desfecho: “Foi melhor assim.”

                Outro conto clássico é “O Preso”, ambientado em pequena cidade, com a praça da estação, a estrada de ferro, o carro de boi, homens em conversa na calçada, dois soldados do destacamento. O narrador onisciente descreve o ambiente onde os personagens se situam e se movimentam, como se portasse uma câmera de filmar. Todo o embate, porém, se circunscreve a um homem conduzido para a delegacia: “Um velho mirrado e de pele escura puxava um jumento pelo cabresto, ente dois soldados do destacamento.” A narração do calvário do pobre homem é perfeita. Trancafiado numa sela, repete uma frase: “Me soltem, que eu não tenho paciência de ser preso.” A tragédia se consuma com o suicídio, cujo início se dá de fato quando o preso se aproxima da janela e se dirige a um menino na rua: “Olhe, solte ali aquele jumento. Ele é meu. Quer se deitar não pode. Tire o cabresto e me dê.” Com o cabresto se enforcou.

                A cidade pequena como palco dos conflitos surge em diversas narrativas. É o caso de “Profanação”, com sua praça principal, o tabuleiro de gamão onde velhos jogam, o casal de jumentos, a igreja onde se dá o coito animal, a profanação do templo. Os protagonistas (os animais) geram um conflito na cabeça dos seres humanos: para alguns homens tudo não passou de um ato animal; para os mais ligados à Igreja, como o padre, os jumentos representavam demônios. A beata Inacinha se fez “perplexa e hipnotizada”. E o narrador-escritor em nenhum momento opina.

                Em “Tem Dono”, também narrado sob o ponto de vista onisciente, o contista se vale de diversos diálogos para enriquecer a narração dos fatos. As falas, no entanto, não trazem as tradicionais indicações dos nomes dos personagens, como “fulano disse”. O drama é mais uma vez rural ou ambientado em cidade pequena. Os diálogos ou as falas em Moreira Campos são quase sempre circunstanciais, de aparente inutilidade. São, no entanto, muito necessários à urdidura. Veja-se “O luar sobre os túmulos”, de O Puxador de Terço. O jovem Miguel conversa com a prostituta Mundinha, pouco antes do ato sexual e logo após. À primeira vista, as falas poderiam ser retiradas do texto: “– Tu ralou a mão? – Ralei. – Foi queda? – Foi.” Entretanto, a exclusão dessas falas deixaria a narração por demais compactada, em detrimento da formação de imagens e impressões no leitor. “Banho de Bica” é outro exemplo da presença desses diálogos breves, dessas falas às vezes de um só vocábulo. Em contrapartida, as ações se acumulam, como se fossem rápidas cenas dramáticas.          

                No terceiro volume, As Vozes do Morto, Moreira Campos já apresentava narrativas mais curtas e de estrutura circular. Em “As Vozes do Morto” o embate não tem desfecho, ou o desfecho é o próprio começo. O ambiente é suburbano: Uma sapataria numa rua calma, cadeiras de vime na calçada. Em “A Prima” mais uma vez o ambiente de cidade pequena: “o cavalo a resfolegar amarrado à cajazeira em frente da casa”, banheiro do quintal, a Praça da Matriz. O conflito é doméstico e amoroso: mulher doente, homem tentado, a prima e um quarto sujeito, o filho do homem e da mulher, a formar um estranho quadrado amoroso.

                De O Puxador de Terço destaca-se “Os Anões”, em que a concisão do contista é mais visível. Mais uma vez Fortaleza é o ambiente da trama. Mais uma vez a estrutura de círculo: uma frase que se repete (“Tu aguenta mesmo um homem?”), no começo, no meio e no fim, a mostrar que o drama da anã Lourdinha não findou, continua. Em “O último hóspede ou Eurico, o noivo” toda a trama se desenvolve numa pequena pensão. Mais uma vez o embate amoroso, aqui de forma inusitada, eis que a terceira personagem, a noiva, não se apresenta, é apenas mencionada, e a quarta, o marido traído, mal aparece, como se de nada soubesse. A narração se faz lenta, noturna, sonambular, como se a história não tivesse fim – os mesmos gestos, os mesmos atos todos os dias, todas as noites. O drama como que se manifesta às escondidas, sem testemunhas. Ou sem espectadores. Em razão disso, não há desfecho. Em “Os três retratos” a concisão se aguça. Em “O Banho”, como o próprio título sugere, tudo se dá num instante, num curto lapso de tempo. Um instantâneo, talvez. Também breve é “As Corujas”, outra obra-prima. Num necrotério, o vigia dos mortos em luta com as corujas, que “pousam sobre o peito dos mortos, arranhando-lhes os olhos parados”. O tempo se alonga, numa luta desesperada do homem em defesa da integridade física dos mortos. E o círculo se fecha, sem final. “Os Estranhos Mendigos” também não apresenta desfecho, porém há nele um embate passado – assalto ao comércio pelos soldados do destacamento –, como a infra-estrutura do conflito posterior – os dois mendigos (ex-soldados) estropiados nas ruas. Esse lapso de tempo alongado se vê em muitos contos, como em “Frustração”.

                Esse tipo de conto sem desfecho, iniciado em O Puxador de Terço, se aperfeiçoou no livro Dizem que os cães veem coisas (que não deixa de ser uma antologia pessoal). “O cachorro” é todo uma síntese. E o desenlace se dá no meio da história. Ou então o desfecho é a trama. Em “Os Doze Parafusos”, outra das mais conhecidas e belas narrativas curtas de Moreira Campos, o remate se dá um pouco antes do final, quando a personagem se suicida. Em “Os moradores do casarão” os conflitos mais importantes são passados. Em razão disso, o desenlace (no presente) é apenas um instante do cotidiano.

                Utiliza Moreira Campos em alguns contos o personagem sem nome, como em “A Carta”, do volume Dizem que os cães veem coisas: o noivo, a noiva, o amigo, a mãe, a velha, ele, ela. E também em “Os doze parafusos”. Às vezes o único personagem com nome é secundário, como o Dr. Marcos, deste conto. Veja-se também “Banho de bica”. O homem é o “cínico”, o “canalha”. A mulher, que assim o trata, é apenas “ela”, ou “a mulher”. No entanto, a filha do casal, menina, sem importância no entrecho, é Denise. Desse mesmo tipo são “O dia de Santa Genoveva” e “Os meninos”. Neste os meninos não têm nome nem “aquela que ajudara a criar os meninos”. O único personagem com nome é Osório, o entregador de marmitas, que aparece apenas uma vez. E assim ocorre em muitos outros contos. Em “A caixa de fósforos vazia” o conflito amoroso reaparece em personagens sem nome: a tia, o tio, o sobrinho. Para o leitor está tudo claro, porém o tio aparece como o grande inocente. Há, no entanto, narrativas em que todos os personagens são nomeados, como as freiras de “A Ceia”. De enredo simples, há uma cena central, a própria ceia, com narração mais encorpada, seguida de outras cenas menores.

                Não se vê em Moreira Campos a descrição excessiva. Quando a utiliza, no entanto, o faz de maneira a preparar o terreno (o palco) para que o personagem nele se movimente. Veja-se “O Peregrino”, o começo: “Chão rude, áspero, mais de pedregulhos.” Mais adiante o narrador fala de horizontes, ramaria seca, bacuraus, folhagem do imbuzeiro. O enredo é de cunho regionalista: vidas pobres, morte por picada de cobra, a chegada do peregrino. Em “Irmã Cibele e a Menina” ocorrem breves descrições do orfanato de freiras onde se desenrola a trama: o pavilhão, o longo corredor, o pavimento escuro. Como em muitos outros contos, o tempo da narração é fatiado. Diversas ações se encadeiam e culminam (desfecho) na sugação dos nascentes seios da menina órfã pela boca de irmã Cibele. (...) “a língua de irmã Cibele era ativa e morna, os dentes mordiam com muita delicadeza, quase roíam.” No último parágrafo (ato) a menina se recolhe ao dormitório e se põe a soliloquiar. Sugere o narrador a proximidade do sono. O homossexualismo feminino está presente também em “Os desgostos de Dona Bianca”. Para o leitor esse conflito só se aguça no meio da narrativa.

                Em outros contos Moreira Campos apresenta diversas ações (tempos) subsequentes, como em “A Sepultura”, no qual se apresentam alguns núcleos dramáticos: no ônibus quebrado; no caminhão, com o motorista e o ajudante; na estrada (a fuga de Durvalina pelo mato); e no dia seguinte na casa dos pais e de volta ao lugar onde estaria uma sepultura e de onde a protagonista fugiu no dia anterior.

                Muitos outros aspectos na obra de Moreira Campos poderiam ser mencionados neste artigo, como a presença de animais nos dramas (moscas, cães, corujas, jumentos). Outros merecem análise mais profunda, talvez até ensaios exclusivos, como é o caso do desfecho diluído ou posto no meio da narração. Entretanto, isto é apenas um artigo.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Oswaldo Abritta (Jardim)

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Oswaldo Abritta (1908-1947)

Nasceu no distrito de Cataguarino, município de Cataguases, filho de Boaventura José Abritta e Ana Lopes do Nascimento.

Fez o curso médio no Ginásio Municipal de Cataguases, hoje Escola Manuel Inácio, onde teve intensa atividade literária no Grêmio Literário Machado de Assis e publicou poemas em vários jornais da cidade.

Participou em 1927 da criação da Revista Verde, como poeta. Formou-se em Direito, exerceu a advocacia e foi juiz de direito em Guarani e Carandaí (MG).

Obra póstuma: Versos de ontem e de hoje (editado por seu filho Luiz Carlos em 2000) escrito em 1931.

Fonte:
http://joaquimbranco.blogspot.com.br/2008/02/oswaldo-abritta.html

Luiz Carlos Abritta (Caderno de Trovas)

As tuas mãos - que brancura
 -que bonito de se ver,
 pois elas têm a ternura
 dos lírios do amanhecer.

Aos jovens dou um conselho,
 nesta vida tão incerta:
 não se olhem tanto no espelho
 pois Narciso é morte certa!

Ao teu prazer eu me entrego
 - seja lá o que quiseres –
 pois te escolhi, eu não nego,
 entre todas as mulheres.

Casaste. Triste eu sofria,
pois vestiste, bem contente,
a camisola macia
que eu te dera de presente!

Com seu amor eu me aqueço
 e sempre me recomponho;
 só por isso eu lhe ofereço
 a vigília do meu sonho.

Desde que tu foste embora,
 tua saudade é açoite
 que já começa na aurora
 e dói mais durante a noite !

Dessa forma Cristo pensa:
"maior será o perdão
quanto maior for a ofensa".
- Que bela e sábia lição!!

De todo "não" que me deste,
 o que mais triste me fez
 foi aquele que disseste
 disfarçado num "talvez".

Do meu verso é sempre a fonte
 essa cidade lendária
 chamada Belo Horizonte,
 a Capital centenária!

Do simples pó eu procedo,
 sei que a ele hei de voltar;
 a vida não tem segredo:
 é um eterno retornar.

Em cada nota eu receio,
 na pauta que a vida escreve,
 que transformem nosso enleio
 numa simples semibreve 

É muito estranho, meu bem,
 o relógio do destino:
 vai de manso, vai e vem,
 depois bate em desatino !

Essa vitória alcançada
 nos obriga a meditar:
 sem o povo não há nada,
 que verdade singular!

Eu bem sei que tu me esperas
 e, se te vejo, ao sol-posto,
 projeto um céu de quimeras
 na moldura do teu rosto !

Eu confesso abertamente,
 e disso não me envergonho,
 que tu foste, simplesmente,
 o amplo portal do meu sonho.

Eu sei que o belo e a verdade
 caminham juntos na vida
 e atinjo a felicidade
 se a ternura é dividida.

Eu te amo tanto, mas tanto
que já pus num pedestal
toda a glória desse encanto,
que se tornou imortal.

Eu te digo, com alegria,
e a realidade comprova
que o melhor da poesia
é a beleza de uma trova.

Eu tenho perseverança
 e à tristeza me anteponho:
 garimpeiro da esperança,
 sempre vivi do meu sonho.

Jamais eu temo o fracasso
 pois me deste o teu amor
 e a simples força do abraço
 me transforma em vencedor!

Não me queres...pouco importa.
 Só penso no amanhecer,
 pois ele sempre abre a porta
 à sedução de viver !

Na magia desse sonho,
 nessa noite calma e pura,
 a sonata que componho
 tem as notas da ternura.

Na tessitura do sonho,
 vou cortar, sem mais tardança,
 esse nó górdio que imponho
 a um amor sem esperança.

Navegador solitário,
singrando as águas do mar,
jamais pensa em numerário,
mas conjuga o verbo amar !

Nem o sofista profundo
 esta verdade falseia:
 quem se julga rei do mundo
 é um pequeno grão de areia!

Nenhum amor se constrói
 só com flores e ternura,
 pois aquele que mais dói
 certamente é o que mais dura.

Nesse exílio que me imponho,
 não senti que era miragem
 e dos pedaços de sonho
 eu recompus tua imagem.

Nosso amor já teve história
 e, por isso, eu te proponho
 seja posto na memória
 do relicário do sonho.

Novo estatuto vigora
 nas leis do amor hoje em dia:
 sei que vale mais o agora
 do que a mais bela utopia!

Numa alquimia de nume,
 à tristeza me anteponho,
 transformando teu perfume
 no perfume do meu sonho!

O açougueiro viu passando
 a mulher que é só pele e osso
 e disse, a faca afiando:
 "Isso é carne de pescoço".

Olhando o tempo passar,
no relógio da memória,
eu senti coisa invulgar,
pois revivi nossa história!

O que conta nessa vida
não é tempo nem idade,
mas a procura renhida
da deusa felicidade.

Passa o tempo num instante
e dele jamais se esquece,
pois fica sempre o importante:
o velho amor permanece.

Quando o cãozinho e o menino
se abraçam por um segundo,
solto o canto peregrino:
- Há salvação para o mundo!

Quis esquecer-te...não pude:
 a saudade é traiçoeira
 e ela sempre nos ilude,
 pois nos prende a vida inteira !

Quis retratar um romance
 que fosse mesmo um primor,
 e fiz, com tinta e nuance,
 uma aquarela de amor.

Sempre foste minha amada
e, no doce cativeiro,
sem algema e sem mais nada,
tu me prendes por inteiro.

Se navegar é preciso
e viver nem tanto assim,
vou partir com teu sorriso,
em busca do mar sem fim!

Se todos temos defeitos,
 se o mistério vem de Deus,
 se nem os bons são perfeitos,
 o que dizer dos ateus?

Somos poeira que a vida
 sempre leva de roldão;
 em sua sanha atrevida,
 ela não vê coração

Só se louva a juventude,
porém jamais alguém disse
que só se atinge a virtude
quando se alcança a velhice

Todos querem sufocar,
 com disfarces atrevidos,
 e sordidez invulgar,
 o grito dos excluídos .

Tudo ele faz com amor
e traz o céu na bagagem;
na verdade, o trovador
de Deus na Terra é a imagem

Tu partiste... e essa magia
 que deixaste no meu peito
 vai fazer que certo dia
 tu voltes de qualquer jeito.

Vejo o mar em ondas mansas
- foto de rara beleza -
e, reforçando as lembranças,
um céu chamado Veneza !

"Veredas, grandes sertões"...
 a nossa vida é uma estrada
 toda cheia de senões,
 do início ao fim da jornada.

Vou definir a saudade
e não sei se estarei certo:
saudade é aquela vontade
de que o longe fique perto.

Fontes Principais:
http://www.ubtnacional.com.br/
http://singrandohorizontes.blogspot.com.br/
Boletins da UBT – Nacional
Boletins de vários Concursos.

Luiz Carlos Abritta

  
 Nasceu em Cataguases, Minas Gerais, a 24 de janeiro, filho do poeta e magistrado Oswaldo Abritta e de Yolanda Nery Abritta.

    
Procurador de Justiça aposentado.

    Foi presidente da Associação Mineira do Ministério Público. Eleito Conselheiro da OAB/MG onde permaneceu por seis anos e exerceu as funções de Presidente do Tribunal de Ética daquela entidade.

    Foi presidente e Conselheiro Nato do Instituo de Ciências Penais, membro do Conselho Penitenciário de Minas Gerais.
      
      No dia 09 de junho de 2006, o Presidente da República escolheu-o em lista tríplice e o nomeou para o cargo de Juiz do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais, categoria de jurista.
      
      Foi presidente da UBT de Belo Horizonte, e Presidente da UBT/Minas Gerais.
    
Exerceu a presidência da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais por oito anos, onde ocupa a cadeira n.150, tendo por patrono Oswaldo José Abritta.

    Abritta foi eleito o 5º Presidente Nacional da União Brasileira de Trovadores, para o biênio 2012 / 2013.

    É membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, cadeira n. 82 e seu patrono é o Senador Levindo Coelho.

    Tem dez livros publicados. Entre eles, “Críticas criticáveis”, “Entre Montanhas e Trovas”, “Tata, Tati e Tininha”, “Um Homem Plural – A vida de Oswaldo Abritta” e “Aurora Plena”.

    Participação na Antologia poética bilíngue (francês/português) de 33 escritores mineiros, lançado no Salão do Livro, em Paris, em 2012, sendo condecorado pela Academia Francesa em reconhecimento ao trabalho pela literatura.
      
      Medalhas: da Inconfidência; Santos Dumont; do Ministério Público de Minas Gerais; da Justiça Federal; do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, e da Societé Académique des Arts, Sciences et Lettres - Paris – França.
    
Casado com a escritora Conceição Parreiras Abritta, tem dois filhos: Sérgio, Procurador de Justiça e Dramaturgo, e Luís Carlos Parrreiras Abritta, Advogado e Presidente do Instituto de Ciências Penais do Estado de Minas Gerais.

Fontes:
http://www.ubtnacional.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=39
Jus Brasil. http://amp-mg.jusbrasil.com.br/noticias/3017814/luiz-carlos-abritta-participa-de-antologia-da-academia-de-paris
http://www.ihgmg.art.br/quadrosocial.htm
http://www.jornalaldrava.com.br/pag_sbpa_abritta.htm
http://www.newtonpaiva.br/acontecenanewton/Evento.aspx?id=224592

Raquel Ordones (Tudo Veio à Tona)

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Fonte:
http://raquelordonesemgotas.blogspot.com

Márcia Maranhão de Conti (Poesias Avulsas)

PROGNÓSTICO
Agora desenho em meu quarto uma varanda
E, da janela semi-cerrada,
Um raio de luz me alcança.

Agora entrego ao sol o mofo da minha cama
E devagar estendo os lençóis
Que acompanharam minha insónia.

Agora pressinto uma brisa
No interior do meu cómodo
E a inspiro lentamente
Até arejar minhas entranhas.

Agora decifro as letras
Que se agarraram ao meu sangue,
E solfejo pra elas uma melodia
Com um resto de nó na garganta.

Agora revejo a minha agonia
Como num quadro de Picasse.
Pareço-me surrealista
Ao expressar meu ocaso.

Agora tenho a fome dos dias
Em que não quis comer nada.
E contemplo o meu ser faminto
A saciar-se do nada.

UM POEMA NO ÔNIBUS

Parece que a cidade passeia,
E o pensamento espia a palavra.
Há um poema que vagueia,
Versos virando paisagem.

Parece que a janela me leva,
E o poema levanta os olhos.
Não sei se fico ou viajo.
Vou nas palavras e volto.

Parece que tudo é passagem.
O poema beija meus olhos.

VESTÍGIOS

Meus acasos não povoam
Páginas de dicionários.
São trilhas que transcendem
A leveza dos passeios.

As palavras são rastros
Deixados no cimento fresco.
Nem que eu falseie os passos,
Minto comigo, nos versos.

As palavras são pérolas
De um colar que nunca tiro,
Criadas nas conchas antigas
Dos mares que habitam em mim.

PROCURA

I

Dentro da noite
Um pensamento calado
Vai sendo digerido.

Tem na cor o tom de' um céu
Que decide o poema.

II

A poetiza testa palavras
Como se experimentasse vestidos.

Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/goias/marcia_maranhao_de_conti.html

Marcia Maranhão De Conti (1957)

Marcia Maranhão De Conti, filha de Antonio do Rêgo Maranhão Neto e Zelair Mendes Maranhão (in memoriam), nasceu em São Luis (MA) em 1957 e mudou-se para Goiânia, onde reside.

Morou em São Paulo, época em que nasceram os filhos mais velhos.

Formada em Nutrição pela UFG e em Direito pela UNIVERSO. Especializou-se em Nutrição Clínica na UFRJ e em Direito Processual na LFG.

Trabalha no Ministério da Saúde e é membro da OAB-GO.

Sua paixão é a poesia. Participou de antologias, de concursos regionais e nacionais, sendo várias vezes premiada, inclusive no 5° Prêmio Nacional de Poesia - Cidade Ipatinga com o 2° lugar (2007).

Teve três poemas selecionados no concurso Poemas no Ônibus e no Trem, promovido pela prefeitura de Porto Alegre: "Flor" (2007), "Um Poema no Ônibus" (2009) e "Embalagem" (2011).

"Flor" esta em camisetas de catadores de papel de Porto Alegre a pedido do professor universitário, canadense, Denis Beauchamp, que preside uma associação voltada para esses trabalhadores.

Luar nos Porões (piano mudo) é seu livro de estreia.

Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/goias/marcia_maranhao_de_conti.html

Nilto Maciel (Um Vulto)

Ana e Mino entraram na livraria de braços dados, sem pressa. Olharam para os lados e ele a arrastou para o interior da loja. Soltaram-se e se puseram diante da primeira prateleira. Ela passou à frente e deu dois passos, como se soubesse aonde ia. Ele a seguiu e parou ao seu lado. Ela deu mais dois passos. Desejava Kafka ou Borges. Nunca se mostravam juntos naquela livraria. Sollos sabia onde localizar cada escritor, seguindo a ordem alfabética. Também vivia para ler! Ela, não, não podia viver de livros. Pretendia, sim, escrever um livro. Talvez de poemas, ou de contos. Não teria fôlego para um romance. Quem sabe quando estivesse mais velha? Mino se encostou nela. Procurava que livro? O Castelo. Para que, se em casa havia um? Deram mais dois passos. Falasse baixo. Sabia onde achar Joyce? Semana passada o tinha visto, não lembrava onde. Possivelmente do outro lado. Um funcionário da livraria se aproximou deles. Apertou mão do cronista. A crônica do dia não podia ser mais perfeita. Ana sorriu, como se o elogio fosse para ela. Mino se voltou para o rapaz. Nem lembrava mais o assunto. Ana deu mais dois passos. O funcionário voltou. Mino se acercou da mulher e retirou da prateleira um Neruda. Do outro lado da estante um homem se movimentava, como se quisesse vê-los através das brechas entre uma prateleira e outra. Só podia ser Sollos. Ana se voltou para Mino. Precisavam ir embora. Não havia na bolsa um centavo. O homem não concordou com a retirada. O banco não fechava nunca. Sollos se dirigia para os fundos da loja e Ana rapidamente caminhou para o lado oposto. Não queria estar frente a frente com Sollos, pelo menos quando estivesse ao lado de Mino. Por um instante, o cronista virou a cabeça para a direita. Para onde ia Ana? Empertigou-se e, de relance, viu um vulto ao fundo da loja. Seria Sollos?

SOLLOS A SÓS

            Para onde se dirigia Sollos? Caminhava a esmo pelas ruas, sem se lembrar do plano de  ação traçado na noite passada: ir a uma livraria, comprar um ou dois livros, almoçar num restaurante, voltar para casa, descansar, ler um pouco. Ao chegar à Praça do Ferreira se sentiu cansado e sentou-se num banco. Um homem fumava ao seu lado. Podia apagar o cigarro? Não, não pediria nada ao estranho. Melhor se acalmar, procurar outro banco ou ir almoçar. O homem se retirou, levando a fumaça. Sollos abriu as pernas. Ana teria querido falar mais com ele? Para dizer o quê? Sentia-se feliz ou infeliz? Um menino se ofereceu para engraxar os sapatos dele. Quanto custava? Só um. Engraxasse, sem pressa, mas com capricho. O olhar de Ana aparentava de felicidade. Por quê?

A VER NERUDA

Mino abriu a porta do carro, sentou-se no banco e aguardou a mulher se acomodar. Ana ajeitou os cabelos. Estaria o marido aborrecido? Não, não haveria de ter visto ela e Sollos frente a frente. O homem acelerou o carro. Por que Ana o tinha deixado a ver Neruda? Só podia ser em razão da presença de Sollos na livraria. Onde ele se encontrava antes de o vir? Ana, calada, alisava o cabelo. Por pouco Mino não bateu o carro na traseira de outro. Ainda pretendia ir ao banco ou havia desistido? Ela abriu a bolsa e se pôs a revirá-la. Ia ou não ia? Por que não imaginar a possibilidade de se defrontar com Sollos na livraria, se havia muito o passatempo dele consistia em passar horas e horas de todos os sábados cercado daqueles livros? E se ele continuasse com a ideia de serem namorados? Não, não podia ser. Sabia de seu casamento. O pior não era isto, mas passar Mino a ter ciúmes. Talvez estivesse exagerando, pois nunca contou a ele detalhes do relacionamento dela com Sollos. O cronista suava. Não havia motivos para pressa. O dia todo pela frente. Por que Ana fugia do escritorzinho? Sabia da amizade deles. Conheciam-se de tanto se verem em livrarias, lançamentos de livros, encontros de escritores. Amigos apenas. Aliás, colegas de profissão. Mino havia gargalhado. Profissão de escritor era medicina, arquitetura, jornalismo. Não, não desconfiava de nada. Desconfiar de quê?

SINFONIAS INACABADAS

A tarde demorou a passar. Sollos se deitou na cama, fechou os olhos. Tencionava descansar, dormir, esquecer a manhã. Ana lhe aparecia a todo instante. Falava de livros, do marido, do passado, do tempo em que se encontravam e passavam horas a fio no apartamento dele. Levantou-se e deitou-se cinco ou seis vezes. Apanhou na estante um livro, leu duas ou três frases, lavou o rosto, quis telefonar para um amigo. Ana figurava-se mais sedutora do que antes. Abriu uma cerveja e sentou-se no sofá. Pôs-se a ouvir Scarlatti. Onde estaria Ana? Quantas vezes estiveram naquela livraria, a folhear Kafkas, Borges, Joyces! Trocou Scarlatti por Haydn, sem saber quem tocava. Bebeu mais cerveja, esqueceu sonatas, prelúdios, concertos para piano. Os olhos de Ana mais pareciam sinfonias inacabadas. Bebeu mais cerveja e buscou nas gavetas fotos dela. Haydn se confundia com o riso de Ana. No outro dia iria procurá-la. Ou não iria a lugar nenhum? Dirigiu-se ao banheiro e sentiu arrepios, como se ela o abraçasse e o sugasse.

ANA E O CASTELO

Quando Mino pegou no sono (estaria mesmo dormindo ou fingindo?), Ana abriu os olhos e se pôs a olhar para o teto. Talvez Sollos fosse um bom amigo. Poderiam, ela e Mino, fazer dele um amigo, de frequentar a casa um do outro. Com o tempo, Sollos passaria até a jantar na casa deles. Solteiro, seria convidado a dormir uma noite. Um quarto para ele, cama bem arrumada. Quando Mino viajasse... Não, Mino não viajava nunca. Ora, viagens eram como jantares – arranjavam-se, inventavam-se. Observou as costas de Mino. Dormia ou pensava? Sonhava ou urdia planos de detetive? Precisava deixar de falar em Kafka. Mais dia, menos dia, Mino veria Sollos num jornal a falar de Kafka. E se desse O Castelo para uma colega de trabalho?  Quem poderia gostar dele na empresa? Todas as moças liam e viam somente revistas de fofocas. Nada de romances, contos. E se dedicasse o seu exemplar a Sollos? Com a amizade de sempre, ofereço-lhe o meu Castelo. Sua admiradora Ana. Ou admiradorana? Ele gostava de invenções desse tipo. E ainda lhe daria um abraço muito apertado.

ROMANCE FEITO DE LAVAS

Mino acordou no meio da noite. Virou-se para Ana. Dormia o sono das amantes. Não, Sollos não passava de um sonhador. Por que não convidá-lo para jantarem juntos? Falariam de Kafka, Borges, Joyce. Beberiam uísque e o outro liberaria o vulcão adormecido. Precisava anotar aquela imagem. Daria boa crônica. Algum vulcão histórico, o Vesúvio, e as paixões humanas. Ou um livro, um romance sem pé nem cabeça, feito de lavas. Sim, uma estreia de causar inveja a esses contistas de meia-tigela. Deixaria de ser apenas um cronista. Mudaria o nome. Nada de Minotauro.

NA MURALHA

Antônio Sollos se revirava na cama. Ana o chamava para conhecer de perto a muralha da China. Ele sentia medo de altura, de se aproximar do Sol, queimar-se, morrer. Ela ria. Um sol não deveria ter medo do Sol. Ainda mais sendo um sol duplo. Sollos se ajoelhava. Jurava não ser vaidoso. Milhares de chineses se aproximavam deles. Ana sumia na multidão e ele se punha a bradar por ela, que ria, falava, dizia estar ao lado dele. Sollos pedia socorro, gritava o nome de Ana, que ecoava pela muralha e pelos vales. Ela reaparecia. Ele sabia o significado do Sol? Falava de calendários, dias, meses e anos. Ele a chamava de louca. Por que o tinha abandonado? Porque se chamava Ana, a mulher do ano. E ria, gargalhava. Não brincasse com as palavras. Chineses o cercavam. Uma chuva forte caía sobre a muralha. Trovões e relâmpagos. Antônio Sollos sentia a urina inundar-lhe as pernas.

COM TESEU

Ana se debatia no leito. Sollos a convidava a conhecer um labirinto. Se fosse o de Creta, não desejava nem chegar perto. Tinha medo do minotauro. Deixasse de besteiras. Tudo era mito, apenas mito. Além do mais, a fera havia muito não existia. Matou-a a mitologia. E a puxava pelo braço e a chamava de Ariadne. Ela fincava os pés no chão. Mesmo assim, Sollos a arrastava e se dizia o herói Teseu. Ouvia um rugido de fera e se assustava. Não tivesse medo, ele mataria o animal. Escurecia. Os bramidos se faziam mais próximos.

O VULCÃO

            Minos mexia os lábios, como se falasse. Ao longe, vislumbrava o topo de um vulcão adormecido. Sentava-se numa pedra. Sentia calor, suava. Olhava para o vulcão e percebia, distantes, pequeninos, dois vultos humanos. Aguçava a vista e reconhecia neles Ana e Sollos. O que faziam ao pé de um vulcão? Punha-se a bradar os seus nomes. Abandonassem o local. As lavas não tardariam a subir. Gritava, gritava, e nada de ser ouvido. E nunca poderia se aproximar deles. Não conseguiria chegar a tempo de evitar uma tragédia. Desesperava-se. Viessem, correndo. Tinha para eles presentes: todos os livros de Kafka, Borges e Joyce. No entanto, a boca do vulcão já vomitava fogo.              

UM LIVRO IMENSO

Sollos, deitado, ouvia música havia horas, dias. Ansiava ouvir a sinfonia do Castelo pelo resto da vida. Quem a compusera? Sabia Ana, sabia Mino? Ou nunca a compuseram? Ana lia trechos de O Castelo. Mino sorria. Ainda seria o grande cronista do Universo. Batiam à porta. Um mensageiro dizia estar ali em nome do imperador da China. No entanto, escondido por máscara, poderia ser Mino? Atrás dele uma mulher jovem e bonita. Seria Ana? Trazia, em nome do monarca, a história da Grande Muralha da China. Lesse, traduzisse para todos os idiomas e divulgasse pelo mundo. Corriam os três pelas ruas de Fortaleza, seguidos de multidão a clamar e cantar. Chegavam à Praça do Ferreira e, diante da Coluna da Hora, se punham a fazer um discurso coletivo. A multidão se calava. Irmanavam-se os três num discurso sem fim e sem sentido E se olhavam e riam. No entanto, toda a cena diante deles se desenrolava numa tela de cinema ou televisão. No sofá, Sollos, Ana e Mino liam um imenso, quase infinito livro aberto diante deles.

Fontes:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.

Euclides da Cunha (Heróis e bandidos)

Num dia de setembro de 1820 chegou à tristonha Assunção, do Dr. Francia, um prisioneiro ilustre e sexagenário, a quem, entretanto,não se concedera o preito da mais diminuta escolta. Vinha só; passou, a cavalo, pelas longas ruas retilíneas e retangularmente cruzadas, entre janelas de grades, à maneira de extensos corredores de uma prisão vastíssima, e descavalgou no largo onde se erige o palácio do governo.

Viu-se então que a idade o não abatia. Num desempeno de rapaz atlético aprumava-se-lhe a estatura elegantíssima entre as voltas do poncho desbotado que lhe desciam ate. às botas de viagem, flexíveis e armadas das rosetas largas das esporas retinindo ao compasso de um andar seguro.

Grande sombrero de abas derribadas cobria-lhe a meio a face magra; e naquela lace rígida, cindida de linhas incisivas e firmes - como se um buril maravilhoso ali rasgasse a imagem da bravura, num bloco palpitante de músculos e nervos - um olhar dominador e duro, velado de tristeza indescritível.

Era José Artigas, o motim feito homem. O primeiro molde dos caudilhos, primeiro resultado dessa combinação híbrida e anacrônica de D. Quixote, do Cid e de Hernani - a idealização doentia, a coragem esplendorosa e o banditismo romântico - indo perpetuar na América a ociosidade turbulenta, a monomania da glória e o anelo de combates que sacrificaram a Espanha do século XVII.

Correra-lhe a vida aventurosa e tumultuaria. Chefe de contrabandistas arremessado à ventura pelas coxilhas da Banda Oriental e do Rio Grande, transformara-se logo depois, com o mais doloroso espanto dos quadrilheiros mercenários, em capitão de carabineiros da metrópole que o captara, impondo-lhe o exercitar sobre os antigos sócios de desmandos uma fiscalização incorruptível e feroz, até que se voltasse contra a mesma metrópole, transmudado em tenente-coronel revolucionário, e avantajando-se aos maiores demolidores do antigo vice-reinado, ou se transfigurasse de chofre em general, “jef de los Orientales y protector de las ciudads libres”, arremetendo com os irmãos de armas da véspera e destruindo a solidariedade platina, com o afastamento do Uruguai.

Salteador, policial, revolucionário, chefe de governo. - Por fim, caiu. A tática estonteadora quebraram-lha os voluntários reais de Lecor, endurecidos na disciplina incoercível de Beresford; e traído pelos seus melhores sequazes, sem exército e sem lar, errante e perseguido, viera bater às portas do seu mais sinistro adversário, a quem tanto afrontara nas antigas tropelias.

O ditador não lhe apareceu, mas não o repeliu: mandou-o para um convento.

Extraordinário e enigmático Dr. Francia! Este ato denuncia-lhe do mesmo passo a índole retrincada, a ironia diabólica e a ríspida educação política que tanto o incompatibilizava com o heroísmo criminoso daqueles esmaniados cavaleiros andantes da liberdade.

Entre o borzeguim esmoedor e a estrapada desarticuladora só lhe dependiam de um gesto todos os requintes das torturas: escolheu uma cela e constringiu ali dentro, entre paredes nuas, sobre alguns metros quadrados de soalho, uma vida que se agitara desafogadamente nos cenários amplíssimos dos pampas.

A vingança era, como se vê, antes de tudo, uma lição duríssima, mas foi improdutiva. Artigas deixara no estado Oriental o seu melhor discípulo, Fructuoso Rivera.

Em todos, uniformes na disparidade dos tempera mentos, do sanguinário Oribe ao destemeroso Lavalleja, que nos arrebatou a Cisplatina, os mesmos traços característicos: a combatividade irrequieta, a bravura astuciosa e a ferocidade não raro sulcada de inexplicáveis lances generosos.

Traçar-lhes a história é fazer em grande parte a nossa mesma história militar. Quase toda a nossa atividade guerreira tem sido uma diretriz predominante naquela fronteira perturbadíssima do Rio Grande.

Ali, na longa faixa que se estira de Jaguarão ao Quaraim, o gaúcho resume, na envergadura possante e no ânimo resoluto e inquieto, os traços proeminentes de dois povos. Não há destacá-los às vezes. O bravo e versátil Rivera copia servilmente o versátil e bravo Bento Manoel; Lavalleja, um Bayard vibrátil e volúvel, afeiçoado a todas as temeridades, se acaso o nobilitasse a disciplina, irromperia na figura escultural do primeiro Mena Barreto.

Ainda agora o Aparício oriental tem uma larva, o João Francisco rio-grandense: acorrentai o primeiro num posto sedentário, e terei o molosso ferocíssimo da fronteira; arremessai o segundo pelo revesso das cochilhas, e vereis o caudilho...

Daí as surpresas que muitas vezes nos saltearam naquelas bandas.

Notemos uma, de relance: a guerra do Paraguai, em que pese aos seus velhos antecedentes, teve, inegavelmente, um prelúdio muito expressivo nas ruidosas “califórnias”, que arrebataram os nossos bravos patrícios aos entreveros entre blancos e cobrados. A primeira bandeira que ali congregou brasileiros e orientais foi o pala do general Flores, desdobrado e ruflando nas correrias vertiginosas. E quaisquer que fossem depois os milagres de uma diplomacia que desde 1853 e 185S vinha lentamente suplantando o malmequer e a vesânia de Lopez, talvez não nô-lo impedisse mais, desde a hora em que os parladores de um e de outro lado, guascas e gringos, mas uniformemente gaúchos, entrelaçassem, sobre o solo vibrante das campinas, os laços e as bolas silvantes, desfechando sobre o contrário os golpes simultâneos de cinco armas formidáveis - a lança e as quatro patas do cavalo...

Ora, esta identidade de estímulos, efeito de antiquíssimo contágio, reveste-nos de importância considerável a situação atual do Uruguai.

Entretanto, atraída por outros sucessos, toda volvida para a Amazônia ameaçada, ou para o enorme duelo do Extremo Oriente, a opinião geral mal se impressiona com aquelas desordens. Um ou outro telegrama, impertinente e mal lido, entre outros casos de maior monta, nos denuncia de longe em longe que o caudilho rebelado ainda respira.

A despeito de não sabermos quantas derrotas para logo corridas com outras tantas fugas triunfais, rompendo entre as tropas do governo vitoriosas e desapontadas - no “Passo dos Carros” em Taquarembó, em Daymam, em Salto, em Santa Luzia e em Santa Rosa, na Concórdia, no Aceguai e em toda a parte - a revolta irradia para todos os lados, intangível e invencível, espalhando alarmas desde Montevidéu, inopinadamente ameaçada de um assalto, às remotas povoações e estâncias do interior, de súbito despertadas pelo tradicional ahyvienem! que há um século por ali espalha e atira fora dos lares as gentes retransidas de espanto ante o estrupido dos cavaleiros errantes e ferozes...

Vencido pelo general Moniz desde os primeiros dias da luta; acutilado, e algumas vezes morto a golpes de telegramas; erradio, ou fugindo com os restos de uma tropa desmoralizada, para o abrigo da nossa fronteira salvadora, Aparício Saraiva recorda uma paródia grosseira do herói macabro do “Romancero”, morto e espavorindo os inimigos.

Pelo menos a sua revolução, tantas vezes destruída e tantas vezes renascente, tem a estrutura privilegiada dos polipos: despedaçá-la é multiplicá-la.

Ainda neste momento, rijamente repelido do Salto, este combate perdido parece ter tido o efeito único de remontar-lhe a cavalhada. Permitindo-lhe a divisão das forças em três corpos que, dirigidos por ele, por Lamas e Muñoz, vão refluir de novo sobre todo o Uruguai e reeditar a mesmice inaturável das refregas inúteis e das correrias e das derrotas e das eternas vitórias telegráficas – enfeixadas todas numa anarquia deplorável cujo termo e cujas consequências dificilmente se preveem.

Lutas à gandaia, adstritas ao sustento aleatório das estâncias saqueadas, em que o soldado surge pronto de todos os lados, laçando os adversários como laça os touros bravios, combatendo ou “parando o rodeio”, sem notar diferenças nas azáfamas perigosas, elas podem prolongar-se indefinidamente.

Bastam-lhes como recursos únicos alguns ginetes ensofregados e a pampa: a disparada violenta e o plaino desimpedido; a velocidade e a amplidão...

Daí os seus principais inconvenientes. O duradouro dessas desordens à ourela de uma fronteira agitada fez sempre a mais prejudicial dissipação dos nossos esforços e do nosso valor.

Quando se traçar o quadro emocionante das nossas campanhas do sul, que vêm, desde as arrancadas na colônia do Sacramento, desdobrando-se numa interminável série de conflitos sulcados de armistícios e de desfalecimentos, ver-se-á que aos nossos melhores generais coube sempre o arriscadíssimo papel de uns tenazes e brilhantes caçadores de caudilhos e de tiranos irrequietos.

Felizmente, mudaram-se os tempos.

E certo não mais nos atrairão a dispendiosas aventuras aqueles estonteados heróis, singulares revenants, que nestes tempos de utilitarismo positivo exigem apenas, prosaicamente, e de acordo com a lição memorável de Francia, um termo de bem viver e uma cadeia.

 Fonte:
“Contrastes e Confrontos”. http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/

Fran Martins (Almir)

Fran Martins
Um dia destes eu ia andando pelas ruas quando, ao dobrar a esquina, senti alguém segurar-me pelo braço:

– Não me conhece mais não? Não se lembra de mim? Eu sou o Almir – se lembra? Almir, aquele da Pedra Lavrada...

Lembrei-me, sim, de Almir – e imediatamente olhei para a sua mão esquerda. Sim, era ele mesmo, lá estava a mão esquerda sem o dedo mínimo, a mão que servia de atestado que ele fora, nos bons tempos, um dos meus maiores amigos – ele e mais o Clóvis, o Carrinho, o Janjoca, o Pedro, o Felinto. Éramos todos moradores da Pedra Lavrada, uma das ruas mais importantes do mundo, situada já quase nos subúrbios da importante cidade do Crato. E juntos dominávamos a rua, fazendo mil diabruras, metendo-nos em aventuras incríveis, com essa sobranceria de verdadeiros senhores que desafiam céus e terra não tanto para glória individual como para maior renome do seu reino.

                Quantos anos tínhamos então? Procuro em vão lembrar-me mas não sei. Meninos acostumados a gozar a liberdade admirável daquela rua de subúrbio, o que mais nos valia era a altura de cada um – e eu era um dos mais baixos, portanto dos menos temíveis. Almir, pelo contrário, era alto e forte, quase sempre nos comandava, tinha disposição para brigas, nadava bem. Saberia ler? Mas de que servia saber ler naquela época, se a nossa única preocupação era tomar banhos nas enchentes do rio, dar cangapés nos meninos das outras ruas, enfrentar, dominar o rio, mesmo quando as águas estivessem mais fortes, mesmo quando redemoinhos perigosos ameaçassem nos tragar?

                Foi num desses banhos que Almir provou a sua coragem e cresceu mais ainda na nossa admiração. Todas as vezes que o rio enchia, a rua se alvoroçava, a nossa turma perdia o juízo. E projetava-se imediatamente um banho longo, de duas horas, com mergulhos e saltos na água barrenta que passava pelos fundos de nossas casas, derrubando árvores e comendo as ribanceiras.

                Uma noite chovera bastante, com trovões e relâmpagos que nos acordaram. A água forte corria pelas biqueiras das casas e respingos caíam sobre nossas redes. Cada um de nós, enrolado nos lençóis, sonhava com o amanhecer, o raiar do dia que seria cheio de aventuras, como eram todos aqueles em que o rio tomava água.

                Mal amanheceu, nosso grupo se movimentou. Almir chamou-nos um a um – e acorremos ao seu chamado com entusiasmo e alegria. Foi então que Tia Aninha apareceu e, como sempre, gritou da porta da casa:

                – Felinto, Felinto! Não vá tomar banho no rio, Felinto!

                Mas Felinto, como sempre, não a ouvia – Felinto nunca ligava àquela velhinha que tinha tantos cuidados com ele. Escondeu-se atrás de Almir e esperou até que sua mãe entrasse em casa. Eu ainda murmurei, como se adivinhasse que alguma coisa triste ia acontecer:

                – É melhor você não ir, Felinto. Tia Aninha se zanga é comigo.

                Porque Tia Aninha confiava em mim e todas as vezes que não sabia do paradeiro do filho era para mim que apelava:

                – Você viu o Felinto, Fernando? Tome conta de Felinto, meu filho. Não deixe ele brigar, não deixe tomar banho no rio. Tenha cuidado com Felinto, Fernando.

                E eu quase sempre mentia, defendendo meu amigo, encobrindo suas faltas. Seria que Tia Aninha desconfiava? Ela acreditava em mim – mas julgo que, mesmo assim, ainda guardava certos receios de que eu a estivesse enganando. Mas eu era amigo de Felinto e gostava de sua companhia – por isso mentia, escondia suas faltas, muitas vezes dizia à Tia Aninha que me responsabilizava pelo que acontecesse ao Felinto, sem saber, por certo, a gravidade dessa promessa.

                E naquele dia fomos ao rio, que estava com as águas pelas barreiras. Em ocasiões como aquela o rio era perigoso – havia redemoinhos nas curvas, havia poços cavados pelas águas e que poderiam tragar qualquer um de nós. Mas para defender-nos contávamos com a nossa ousadia, com a valentia de Almir, com os nossos anjos da guarda – principalmente os anjos da guarda, que jamais abandonam as crianças.

                Fomos ao rio, mergulhamos, brincamos. E Almir dava cangapés, Felinto se afoitava, sem atender às recomendações que, vez por outra, timidamente, eu me arriscava fazer-lhe.

                Porque uma coisa me dizia que alguma desgraça estava para acontecer a Felinto. A voz de Tia Aninha não me saía dos ouvidos, triste, angustiada, nervosa:

                – Cadê o Felinto, onde anda o Felinto, Fernando? Meu Deus, que fim levou esse menino, que não aparece, não vem para casa?

                Felizmente Almir nos inspirava confiança, era corajoso, disposto, um dos maiores nadadores da Pedra Lavrada. Quantas vezes, no Poço das Mulheres ou na Batateira, Almir conseguira desbancar os mais velozes nadadores do Crato! Mergulhava e tinha fôlego, nadava de costas, de peito, de braço. E sempre estava decidido a se arriscar por um amigo, mais de uma vez deu provas disso, em acontecimentos que ficaram memoráveis na rua. Por isso eu ainda procurava abafar aquela voz que não me saía da cabeça, a voz da Tia Aninha, angustiada, nervosa, triste.

                Foi passado muito tempo, já quase quando nos dispúnhamos a abandonar o rio, que ouvimos aquele grito surdo. Imediatamente todos ficamos tomados de pavor e olhamos alarmados para o lugar de onde partira o brado. Então vimos Felinto aparecer à flor das águas, submergir, depois reaparecer, balançando doidamente a cabeça, agitando as mãos nervosamente e de novo, aos poucos, o seu corpo baixando, as águas tragando a cabeça, os braços, as mãos que nos acenavam, os dedos...

                Almir atirou-se na água imediatamente, nadando com rapidez para o lugar onde estivera Felinto. Lá chegando, mergulhou, mergulhou, mergulhou. Cada vez que retornava, uma centelha de esperança faiscava nos nossos olhos, para logo se desfazer e nos deixar numa angústia martirizante. Porque o corpo de Felinto não aparecia.

                Quanto tempo durou aquela luta? É impossível avaliar hoje. Almir nos parecia um gigante e o seu rosto tinha feições diferentes. Não, ele não podia deixar que Felinto morresse, ele era forte, disposto, havia de salvar nosso amigo. Foi justamente quando mergulhou pela última vez, passando um tempo enorme debaixo d’água.

                Nossos corações batiam fortemente, nossas pernas tremiam, tínhamos, com certeza, os olhos esbugalhados de medo, de terror. Aquele mergulho nos parecia a última esperança, o último esforço para salvar nosso amigo. Os olhos aterrados de todos estavam volvidos para o lugar onde Almir havia mergulhado – e sei que todos nós estávamos também apelando para os santos, para Deus, para os nossos anjos da guarda no sentido de salvarem o nosso amigo. Que diria Tia Aninha quando voltássemos e tivéssemos de contar-lhe que Felinto ficara, morrera?

                A cabeça de Almir finalmente surgiu – e vimo-lo, num esforço desesperado, nadando para a terra, o braço passado no pescoço de Felinto. Uma assombrosa angústia saiu de cima de nós – e já estávamos todos chorando, nós que nunca chorávamos em uma briga com as outras ruas. Temíamos que os dois tivessem se finado, que os espíritos maus que residem nos rios houvessem tragado os nossos amigos. Não, os anjos da guarda não os desprezaram – lá vinham Almir e Felinto, já estavam perto da areia.

                Foi então que notamos o estado do dedo de Almir. Ele nos disse, de maneira confusa, como encontrara Felinto debaixo d’água – enganchado em um toco, certamente sem sentidos. Por isso teve aquele trabalho enorme para tirá-lo. Porque, quando foi puxá-lo com mais força...

                Olhamos o dedo do menino: todo rasgado, os ossos aparecendo. O dedo enganchara no toco, parece que uma pedra caiu também por cima. Os pedaços da pele estavam dependurados e, vendo aquilo, quase esquecíamos Felinto, que ainda permanecia sem sentidos. Pedro deu uma vertigem justamente quando Janjoca virava Felinto para vomitar a água bebida.

                Almir foi levado para casa, apareceu um homem dizendo que era preciso cortar o dedo. Eu fiquei ao lado de Felinto, pensando no sacrifício que o outro fizera para salvá-lo. Iria ficar sem um dedo, como prova de sua amizade ao companheiro. Sem um dedo pelo resto dos tempos – mas salvara a vida de Felinto, salvara, quem sabe, até a vida de Tia Aninha.

                Depois de muito tempo Felinto voltou a si. Já era sol alto quando afinal nos dirigimos para casa. Então, ao passar pela rua, a voz de Tia Aninha soou aos meus ouvidos:

                – Onde anda Felinto, Fernando? Cadê esse menino, cadê meu filho, Fernando?

                E eu menti mais uma vez – a última vez posso assegurar. Disse à Tia Aninha que não vira seu filho – sem dúvida andava pelas outras ruas, pois não fora tomar banho conosco. E depois saí chorando para casa – como estaria o Almir, que iria acontecer ao dedo de Almir? E a voz de Tia Aninha não me saía da cabeça:

                – Cadê meu filho, cadê Felinto, Fernando?

                Agora Almir está a meu lado, sorri alegre, contente porque me lembrei dele. Olho de vez em quando para a sua mão esquerda – como eu poderia jamais esquecê-lo, se já naquele tempo Almir era um grande homem? Abraço-o com satisfação, bato-lhe no ombro, tento recordar algumas passagens de nossa vida de meninos na mais importante rua do mundo, naquela importantíssima cidade do Crato. Mas enquanto Almir responde às minhas perguntas e me conta como tem levado a vida no decorrer desses anos – é a voz de Tia Aninha que eu ouço, angustiada, nervosa, triste:

                – Cadê meu filho, cadê Felinto, Fernando? Onde anda esse menino, que fim levou meu filho, Fernando?

(Fran Martins, Noite Feliz, 2ª ed. Fortaleza, CE, edição UFC/Casa de José de Alencar, 1999)

Fontes:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
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Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Fran Martins

Francisco Martins (Iguatu, 1913 – Fortaleza, 1996) desde muito cedo revelou vocação para o jornalismo e a literatura: colaborou em inúmeros jornais do Ceará e de outros Estados, tornando-se mais tarde uma das figuras principais do grupo e da revista Clã, cujo nº. 1 surgiu sob sua direção. Professor da Faculdade de Direito do Ceará, consagrou-se como autor de obras jurídicas, conhecidas nacionalmente. Sua obra literária se realiza no campo da ficção; contos: Manipueira (1937), Noite Feliz (1946), Mar Oceano (1948); romances: Ponta de Rua (1937), Poço dos Paus (1938), Mundo Perdido (1940), Estrela do Pastor (1942), O Cruzeiro Tem Cinco Estrelas (1950) e A Rua e o Mundo (1962); novela: Dois de Ouros (1966).

Analisando-se os contos de Fran Martins, percebe-se o quanto a utilização de determinada técnica de narração pode fazer com que uma obra literária seja desviada do caminho da vulgaridade ou da mediocridade e chegar ao leitor envolta numa aura muitas das vezes de sublimidade. Assim, veja-se o conto “O Amigo de Infância”, primeiro do livro de título homônimo. Dois homens (Chico e Gustavo) se encontram numa rua, relembram a infância, dirigem-se a um café, continuam falando do passado e, finalmente, se despedem. Apenas isto. Seria uma história insossa, menor, não tivesse Fran dado à forma de narrar um tratamento refinado. Até o desenlace do conto seria trivial, com a última fala, a do garçom, de feitio anedótico. Mesmo sendo o desfecho da história, o arremate moral, a dar à narrativa um tom realista, próximo do naturalismo – o retrato do caráter de um dos personagens. O contista apresenta, pode-se dizer, três planos de narrativa: 1º) o do encontro dos dois homens na rua; 2º) o dos destinos dos amigos de infância, com a narração concisa de alguns fatos; 3º) o do episódio da queda de uma professora, causada pela ação de um menino, de consequência muito relevante. Diante disso, o contista poderia ter optado por narrar apenas o último plano, recheando-o com o segundo. Poderia ser na primeira ou na terceira pessoa. O narrador poderia ser Chico ou Gustavo, ou, ainda, um narrador onisciente. Teríamos, provavelmente, um conto como milhares de outros, sem a menor possibilidade de fazer o leitor se emocionar, meditar, desejar reler a história. Poderia o contista também ter criado um quarto plano: o narrador (em monólogo interior, talvez), em outro espaço (sala, quarto), sozinho, narraria o encontro com o amigo de infância e todo o passado. E seria guindado à condição de protagonista. No entanto, Fran Martins realizou um conto de alta qualidade, ao dar ao personagem-narrador (Chico ou Fran) um papel secundário na trama. Isto fica evidente desde os primeiros momentos do conto, quando uma voz, numa Rua do Crato, grita por seu nome. Esta voz (de Gustavo) será a do protagonista (o que especula, pergunta, revolve o passado, convida para um café e, finalmente, conta a verdade sobre a queda da professora). Para realizar o conto, Fran Martins se valeu de três expedientes ou tipos de linguagem: a narração, em primeira pessoa, de um passado recente; os diálogos diretos e indiretos (de dois tempos, o da narração principal e o do tempo do episódio central da história); e o flash-back (narração e diálogo). A narrativa parece ter apenas dois personagens: Chico, o narrador, e Gustavo. E ao leitor parecerá desde o início ter no primeiro o protagonista. Aos poucos irão surgindo, na fala dos dois, outros personagens, os amigos de infância. Não terão, porém, nenhuma importância na trama, não passando de meros figurantes. Exceto um deles – o garoto acusado de ter deixado em falso a cadeira da professora, de que resultou uma queda, uma cambalhota e, em consequência, um defeito físico na mestra. Já o tempo do encontro dos dois amigos de infância se dá num lapso de minutos, numa rua, num café. Tempo suficiente para que recordem parte do passado, a infância, trinta anos atrás. Este segundo bloco será narrado no diálogo direto, no diálogo interior de Chico e em flash-back (narração) e será o mais relevante na trama. Tanto isso é verdade que, como dito, o conto poderia ter sido escrito sem o encontro dos dois amigos. O diálogo direto já apresentava um toque de modernidade, sem aqueles impertinentes “disse fulano”, “respondeu sicrano”. E o tempo histórico? Há pelo menos dois momentos no conto dos quais é possível extrair uma resposta para esta pergunta. No primeiro, quando os dois relembram os amigos de infância e Gustavo fala: “Sérgio foi cangaceiro, fez parte do grupo de Asa Branca”. No segundo, ao lembrarem uma das meninas, Helenita, a quem os meninos ofereciam berloques. Em suma, o drama do conto se situa na cidade do Crato, no Cariri cearense, nos primeiros anos do século XX.

Na opinião de Braga Montenegro, “o atributo dominante da obra de Fran Martins é a lógica.” E acrescenta: “A sua atitude literária é sempre infensa à tendência moderna de erguer e sublimar os fenômenos artísticos a um plano essencialmente teórico ou intelectual, o que muita vez implica na efetiva negação da veracidade de certas leis da vida, mas, ao mesmo tempo, eleva o pensamento criador a evidente plenitude de domínio e eficácia. O mundo em que o escritor coloca a ação de seus romances e de seus contos é um mundo de observação, mais que de concepção; de imagem, mais que de símbolo; de percepção, mais que de intuição”. Em outro parágrafo o crítico faz a seguinte análise: “Se nos contos de Manipueira (1934), seu livro de estreia, encontramo-lo preocupado com assuntos regionais, com os aspectos anedóticos do fanatismo e do cangaço, vemo-lo agora atento aos temas poéticos, palpitantes de vida e humanidade (...)”

O conto “Amar... Brando... Claro”, muito sugestivo, é narrado pelo protagonista, num tempo e num lugar indefinidos. No primeiro conto o leitor sabe, pelo menos, que o conflito central se deu há, pelo menos, trinta anos. Neste, não sabe o leitor em que tempo Ricardo narra uns episódios de sua infância. No primeiro, as duas personagens se encontram e dialogam, neste há somente a narração do protagonista, com poucas falas de uma personagem secundária, a professora, e, no desfecho, de uma tia de Ricardo, a anunciar a morte de Julinha e João Guilherme, afogados no rio.  Enquanto o desenlace de uma narrativa não apresenta nenhum traço de tragédia, eis que ocorrida no passado, o desta é exatamente uma tragédia.

O título é um achado surpreendente. O narrador se apaixona por uma colega de escola, Julinha, menina de 12 anos. Após viver no sítio do pai, a lidar com o trabalho no campo, Ricardo chega à cidade, decidido a estudar. Para que o conflito se formulasse, o contista pôs no palco o raquítico, porém inteligente, João Guilherme. Nessa época as crianças aprendiam o alfabeto num livrinho intitulado “Carta de ABC”. As primeiras palavras eram “Amar”, “Brando” e “Claro”. A narração de Ricardo é toda ela um encadeamento de palavras e símbolos: amor, brandura e clareza, ao contrário das águas do rio e do poço e do destino de Julinha: apenas uma notícia trágica.

No ensaio “Diálogo Intratextual: A Ruptura da Normativa” (Apologia de Augusto dos Anjos e Outros Ensaios), F. S. Nascimento assim se refere a Fran: “Possuindo boa leitura da moderna prosa de ficção em língua inglesa, conhecendo no original Sherwood Anderson, John dos Passos, Ernest Hemingway e outros, presume-se que Fran Martins tenha se inspirado nas lições dos mestres estrangeiros para realizar a experiência que seu novo livro de contos encerra.” Mais adiante comenta: “Ao escrever “Cão Vadio” (Noite Feliz, 1946), Fran Martins  já demonstrava seguro domínio dos elementos fundamentais da moderna ficção, tais como o fluxo da consciência, a voz ou reflexão solitária, o flashback etc.” Em outro parágrafo o crítico apresenta mais argumentos a favor do conceito de modernidade na obra de Fran Martins: “O que se admite por mais ousado no diálogo de alguns dos novos contos de Fran Martins está, de fato, na ruptura extrema da normativa,  sendo rejeitada até a aspa simples”.

Em “Ventania” muda novamente o contista o rumo de sua arte de narrar. Aqui o protagonista é o narrador, sem nenhuma dúvida. E por que o nome do cavalo como título? O cavalo seria o elo de ligação de dois mundos: o do narrador e o das outras duas personagens (o pai e a mãe). Ventania seria também a causa do alvoroço do narrador, um vento forte a lhe varrer a inocência.

O conflito vai sendo apresentado de forma sutil, na visão do narrador, um menino. E tudo é presente, isto é, não há passado anterior. O drama é narrado linearmente, embora na voz pretérita, porém sem flash-back. Tudo se passa em poucos dias, de forma acelerada, como numa corrida. Apesar disso, a narração é lenta, comedida, sem atropelos, correrias. Nos contos anteriormente citados, as personagens se deslocavam pela rua, pela escola, pelas margens de um rio, pela cidade. Neste, o narrador vai ao quintal, volta ao quarto, gira ao redor de si mesmo, até quando vai à escola. Faz voltas ao redor de sua dor, embora seu pai saia a cavalo, em busca de outra mulher, e sua mãe chore pela casa.

Cada frase converge para o desfecho: o pai a selar o cavalo, o pai calado, indiferente ao filho e à mulher, a mãe a discutir com o pai, os murmúrios nas ruas, a conversa com a menina Mirian, o bilhete, a morte do cavalo. Ou desde o título, o nome do cavalo, até a vingança da mulher traída, ao envenenar o cavalo, o transporte do marido à casa da amante. Não há diálogos, a não ser no final, após o envenenamento do animal: do narrador com o pai e do pai com a mãe. Breves diálogos diretos, ainda sem os tradicionais “fulano perguntou”, “sicrano respondeu”.

Caio Porfírio Carneiro escreveu: “Fica a impressão – mais que isto: a certeza – de que a força narrativa do romancista sempre lhe deu sinais, como uma pilha que se não apaga, de que o conto sempre o chamou de volta, e para ele sempre voltou. Não com o ímpeto do romancista, mas com o carinho do cinzelador. Eis porque deixou páginas preciosas de ficção curta”.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Aparecido Raimundo de Souza (A Ceia dos Miseráveis)

Wagner chegou sorrateiramente na zona mais rica da cidade.

Entrou por uma estreita cheia de casas e ruelas. Antes de seguir em faminto, a fome descomedida de dormir cansado, e, de frente querendo comer, comprido espiou. Qualquer goela abaixo que colocasse porcaria à dentro, estancaria, o apetite aguçado e acalmaria, sobremaneira, o extenuado do corpo espírito. Mas não tinha uma calça nos fundos do PF, para entrar num bolso. Sequer um tostão com restaurante a bife a cavalo, para pedir um simples de arroz por mais acebolado que fosse. Ou na padaria, e pisar na seção do tamanho daquele lanche que,  constrangedor ao corredor, mandava pra dentro a fúria e contemplava a felicidade cheia do sujeito pleno. As noites (embora passasse da meia cara) estavam apinhadas de feias, com ruas de criaturas formando uma espécie de sorumbática, de rústico no quadro do pintor de favela, onde o azul, no invólucro oco do estranho, naufragava distante, num aquém de fronteiras sem moldura.

A hora atropelava, ou melhor, o relógio não existia, se fazia presente numa louca realidade como um compressor de rolo a trator esticando o asfalto novo. E as guloseimas, o estabelecimento, na parte da calçada, plantado de oposto a envidraçados pomposos e cheios de rebusques, bem ali, a sua, suspendia, à frente e agora, a barriga roncava os dentes e rangia nervosamente o estômago. Os olhos verdes da fome, esmaecidos pelo vazio negro de Wagner e, desmesuradamente silenciados pelos abertos, gritavam terror numa indecifrável de atitude imposta da mais pura das misérias. Na verdade, choravam pelos fustigados a cotovelos soltos, em vista das dores fortes e imensas e também por verem o malfadado vegetar, um rapaz de verme e asqueroso, de viver, enfim, num degradante Deus, como se não fosse reino filho da estonteante desolação.

Coitado do seco! Pobre Wagner! Magro, esfarrapado, esquelético, estruturalmente esfaimado e deprimido. Alma interrompida, submissa, mansa, vexada, desprezada e entupidas de diversas as mais maltrapilhas. Em quadro a parte, cicatrizes pela profusão salpicadas em epiderme. Pedaço infeliz sustentando em adversas, um punhado de hostis. Mesquinhas também de chagas incomuns, repletas de mazelas e incisões incuráveis. À sua dúzia, meia volta de rodas com cabeças pingadas, estendiam pouco caso disfarçados de meros transeuntes. Não contentes, faziam aparências de suas chacotas. Jogavam risos ao ar. Franqueavam os molares a abertas piadas, onde igualmente, bocas de menosprezos e lábios fartos de escárnios, vomitavam enxurradas de resquícios absurdos. Para a frieza da proporção aumentar o medonho, alguns viravam as máscaras pela vergonha, ocultando os avessos do acanhamento. E João simplório, ali no ir, sem ter para onde no meio, de modos bebia com ímpetos ninguém. Em paralelo, sonhava o resto dos lábios abatidos no refrigerante bem vestido e gelado, que escorria do preto de terno indivíduo. Em passo igual, devorava a fatia da moça que ensaiava levar um aspirador na ponta da pizza como um garfo maluco e descontrolado de modos igual mussarela. A boca sugava como Wagner, um self-service, ao passo que, no imenso esfaimado, com mil e  uma espalhadas, as mesas ensaiavam, ordenadamente postas, umas ao lado das outras, a transgressão impura do irreal jamais imaginado.

Todavia, passava ao Wagner, a valentia dos longes ousados.   A  coragem  destemida  dos  agás  maiúsculos, igualmente, fazia voar para longe o distante do homem. Faltava, na força da fera, o tigre dos decididos, para saltar como um sangue em busca da presa enjaulada. O destemor dos pés, para meter as portas num dos loucos de acesso ao enorme salão — ou das janelas que o arejavam e se servir a estômago vazio, abundantemente, até entulhar o entediar dos cantos do organismo. Sempre nesses trágicos de abatimentos, pingares de desânimo molhavam as roupas maltrapilhas, encabulava, vexava, constrangia Wagner, com inclinações para a extenuação e o esmorecimento degradante. Vinha a venturosos, a magnificência dos dias a mente em polvorosa. Recordava suntuosa a trechos de aventurança. Cidadão de pele ostentava nas posses de orgulhoso o respeitável empresário e senhor centena de um absoluto de bens materiais. Carros com mansões, piscinas do ano, apartamentos de mar a poucas quadras de cobertura. Mulheres movidas a pau e dinheiro a dar com frases bonitas. O tudo, no entanto, pertencia ao passado. Chorar sobre os sapatos seria regressar pisando no leite escorregadio e pegajoso por estarem nus e calejados de azedo. Um misto se toldou com fisionomia de frustração deteriorada o seu presente tão ontem, mas ele, vencido, soube conter a garganta que apertava de ímpetos intransigentes. Determinara a si não mais sofrer motivos fosse, ou se curvar, atabalhoado, a enterradas em severas e sofríveis pendências.

Todavia, o que tomar? Que atitude fazer? Meter os costados certeiros na frente de uma bala em movimento? Jogar a solidão de um trem diante de um prédio sem cabeça de vida? Pular de uma bacia no cume de frutos comestíveis, ou, por sobre uma árvore de água fervente? Bosta! Merda! Não deixava de ser a vontade, a falta de altivez, para escolher, animadora com um final louvável e decente. Naquela improvável, qualquer iminência pareceria tão real como subir de matéria plástica pingenteado num aviãozinho aos céus sem infinito. Enquanto melhor matutava o que seria saudável para sua mesquinha, Wagner se propôs a dar próprio de si cabo. Não propriamente ensaiar, mas a morrer aos poucos, a doses pequenas. Fugir de vez, deste cão mundo, dando uma ligeira espiada no outro lado, experimentando incertos postes, escorregando aqui e acolá, segurando nas voltas e dando carros em tropeções. Uma verdadeira selva de motores e sons de bestas pré-históricas resfolegavam festas como buzinas ensurdecedoras. Logo, entretanto, avistou uma encruzilhada adiante. Nesse encontro de surpresas, deparou artérias como a de uma betesga ao Deus dará. Sorriu com os dentes cheios de cara e os olhos de fome vazios pela boca podre. Caminhou para lá (esse assunto de depois ficaria para morrer) levando um transito medonho para driblar a eternidade nas costas. Ao galgar os músculos fronteiriços, o que enxergou fizeram as calçadas irrequietas por onde passou darem assombros de urros.

Detritos de mesas postas pelo chão espalhados, se perdiam em farturas, com alimentos ao léu, jogados ao mais diverso. A toalha de conforto, forrando o cimento, transmitia o regalo da doce sensação. Esparramados, a bel-prazer, guimbas de batons se confundiam com finais de cigarros sujos, deixados por carreiras partidas com alguém a passos ligeiros. Igualmente, garrafas de latas amassadas, cervejas de refrigerantes quentes com sobras consideráveis. Tudo ali. Ao alcance. Ao seu poder de sedução. Pães, pedaços de bolo, tortas e sanduíches variados. Muita pipoca. Também, taças de velas, champanhes acesas e charutos de cores diversificadas. O Altíssimo olhou para Wagner, compridamente, e deu graças ao escuro do firmamento numa prece fadaria pelo anã de topar com uma sorte de delícias tremendas largadas ao esburacados dos suas cáries, explodindo dentes aterradores. Um leque de alegrias lancinantes e de contentamentos desembrulhou-se num grito de aprazimento e agrados, enquanto o degustar lamuriante e febril suplicava o que mandar contrariado para a pança correndo. Finalmente, daria semana daquele cabo maldito (talvez mais) de abstinências as privações na mais completa horrenda. Necessitava, pois se aproximar ligeiro, se abeirar, tomar definitiva de tudo a posse, o que lhe caíra às mãos como uma debilitada e fartar o organismo em dádivas.

Por certo, em cada latinha, em cada prato, nascia sorrateira, a  esperança venturosa, ajudando, como a Fênix, o equilíbrio a manter das cinzas e fazer com que o saco mitológico continuasse fora do humano. Em face desse iluminado, Wagner, festim (sentia-se como um escolhido de Deus), penteou a camisa e empertigou os cabelos.

Alisou ligeiramente a calça rei igual um mocambeiro na sua rota trapagem de indigente.

Quem na azáfama ali o visse, diria que estariam reunidos num regozijo, os banquetes de todos os amigos. Os inseparáveis das farras peladas nos clubes da alta sociedade e das moçoilas e mocetonas de sábado, que juravam por um dólar furado fidelidades de mentira e amor com gosto de eterno. O fidalgo, só, estava, entretanto. Completamente ao arrepio do acaso. Seus nadas tomariam parte em parceiros. Somente a solidão pungente, a noite enfadonha, a lua circunspecta e o vento encerrado nas limitações de uma amenidade sufocante. De repente reunidos e perfilados, chegados, quem sabe de guetos e subterrâneos longínquos, centenas de personagens os mais aterradores brotavam de buracos horríveis disputando um lugarzinho. Gatos, cachorros, ratos, baratas, parasitas e lombrigas imundas formavam uma espantosa e evidente desigual família, mas uma prole digna de ser contemplada. Wagner sorriu para esses novos camaradas ao tempo que abria os braços como anfitrião de primeira linha.

— Sejam bem vindos. Fiquem à vontade!...

Sentou a tranquilidade perto de um velho tambor de delongas, e sem mais lixos serviu-se calado, meticuloso. Os camundongos o imitavam nos movimentos mais requintados. Os felídios, indiferentes, assustavam-se com os voos curtos dos ortópteros. Uma leve, inervante e ávida chuva de paciência, esperava, com pernilongos de mosquitos, a oportunidade de sugar os alheios daqueles braços de mendigo emplumado às coisas que aconteciam a sua volta. Vencido pelo destino, Wagner naquele transitório queria só o páreo de estancar, estancar, estancar. Comer, na verdade, a gula apertada e irritante que o definhava gradativamente, pouco a pouco, como doença incurável e maligna.

Fonte:
SOUZA, Aparecido Raimundo de. Havia uma ponte lá na fronteira. São Paulo: Ed. Sucesso, 2012.