sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Folclore dos Bororós* (Lenda de Catira – a índia amaldiçoada)

Foi há muitos anos atrás…

No tempo em que a mamaurama se cobria de flores e os japins fabricavam seus ninhos feitos de fibras e cipós, finos, nas grimpas da maçaranduba gigantesca…

Ele era lindo, o mais lindo de todos os jovens de sua tribo.

Era forte e valente. Ninguém com mais destreza manejava a zarabatana temível, cuja flexa certeira cortava em meio o vôo da aracuã.

Somente ele sabia o segredo que lhe ensinava brandir o tacape pesado e duríssimo, desferir a flecha sibilante e traiçoeira.. .

Nunca o inimigo branco pisou a terra de seu pai que não levasse no corpo uma picada da sua uamiri. Nunca foi vencido; todos o temiam.

E o pai já velhinho sentia-se orgulhoso do filho que devia suceder-lhe na chefia da tribo, depois que o cunaua-raú gritasse pela quarta vez no tronco da tanari.

Uma tarde, o jovem bororó aprontou a sua veloz e pequena igara e pôs-se a "descer o riacho que serpeava um pouco distante de sua oca.

A tarde era bela, e o astro príncipe do universo, numa grande e triste apoteose, ia aos poucos inundando a terra de luz e de mistério.

Uma brisa soprava ciciante e fresca pela tarde a dentro e a igara pequenina, célere, ia cortando as águas ondulantes do riacho.. .
catira india do riacho

Era muito tarde quando ele voltou.

Já o lírio da noite havia fechado as suas pétalas rosadas e macias.

Sentou-se no tronco pesado de abiurana, à frente da cabana, e ficou ali durante quase toda a noite, silencioso, taciturno, olhando as estrelas piscolejar no azul claro, lavado. ..

A mãe bororó, vendo a tristeza imensa que invadia a alma perguntou-lhe:

— Filho, que tens? andas doente? O jovem bororó estremeceu.

Ergueu o olhar sombrio para a mãe e, quase de joelhos, meigo como uma criança, assim lhe falou:

— A igara, mãe, levada pela correnteza ia descendo… descendo… quando de repente ouvi, longinquamente, uma voz maviosa que cantava acompanhada por uma música dolente, tocada talvez por algum instrumento misterioso…

E eu não pude resistir… mãe… toquei a igara para lá e a vi, mãe, sentada numa grande pedra, os cabelos negros e compridos esvoaçando ao vento, e os olhos azuis como a flor da mancava a cantar, brincando com as plumas macias da enduape, uma mulher, mãe… bonita… como eu nunca tinha visto assim… Ela abriu os braços para mim, mãe, e me chamou, mas…, quando eu já estava bem próximo, as águas começaram a ferver… parei um pouco, ela olhou para mim sorriu e atirou-se na água e desapareceu …

A mãe bororó, que ouvia em silêncio a narração do filho, ergueu os olhos úmidos de pranto e falou-lhe:

— Filho, mulher bela que viste lá é Catira, ela é da tua raça, corre nas suas veias o sangue dos bororós. Ela era a mulher mais linda da tribo de seu avô. Mas um dia entregou-se a um homem branco, e o pajé achou que ela devia ser lançada ao rio para pagar a sua grande traição. As águas do riacho, porém, não quiseram receber seu corpo criminoso; jogaram-na sobre aquela pedra, onde ficou penando até hoje. Ela canta assim para atrair os bororós incautos ao lugar onde se encontra; a primeira vez foge como fugiu de ti, mas na segunda, fica ali sentada até ver as águas revoltadas, que guardam a sua caverna, tragar o corpo daquele que se atreveu a chegar até ali. É assim, meu filho, que ela se vinga dos bororós… Não volte nunca lá, meu filho nem tão pouco olhe para os olhos dela para que não sejas dominado pelo seu brilho traiçoeiro…

A mãe bororó calou-se, beijou a testa tostada do filho e retirou-se.

Era tarde já, atrás da serrania negrescente, com suas franjas de ouro, Sepi desaparecia.

Sentado no tronco pesado de abiurana, a fronte pensativa voltada para o chão, assim Sepi, o jovem bororó, amanheceu…

Mas nesse mesmo dia, ao anoitecer aprontou a sua veloz e pequena igara — esquecido da palavra de sua mãe

— rasgou as águas ondulantes — o apecuitá feito de pau vermelho — e começou a descer o riacho vagarosamente.

E foi descendo… descendo… até sumir-se na curva.

Hoje os velhos bororós dizem aos filhos a lenda de Catira a índia amaldiçoada.

— Foi Sepi o último que ali ficou…

Depois as águas se tornaram tranquilas.. . a pedra desapareceu … e nunca mais ninguém ouviu nem ninguém viu, sentada ali aquela mulher de cabelos negros e compridos esvoaçando ao vento, e de olhos azuis como a flor da mancava, a cantar… a cantar…

E os velhos bororós terminam:

E dizem que ela morreu de remorso…
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* Sobre os Bororós

Os bororos, são uma tribo indígena que habita o estado do Mato Grosso, no Brasil. Falam a língua bororo, autodenominada boe wadáru, que pertence ao tronco linguístico macro-jê2 .

Etimologia

O nome "bororo" é um nome dado pelo homem branco. Nome esse surgido quando os exploradores perguntaram qual o nome da tribo e o indígena teria entendido o nome do local onde estavam, e eles estavam no bororó, que, para a língua bororo, significa "pátio da aldeia"3 .
Características gerais

Os bororos habitam a região do planalto central de Mato Grosso e estão distribuídos em cinco terras indígenas demarcadas: Jarudore, Meruri, Tadarimana, Tereza Cristina e Perigara. Sua população atualmente é de cerca de 2 000 indivíduos, que são tradicionalmente caçadores e coletores, porém que adaptaram-se à agricultura, da qual extraem sua subsistência. Destacam-se pela confecção de seus artesanatos de plumagem (cocar e braçadeiras em pena) e também pela pintura corporal em argila.
História e distribuição

Os antigos bororos distribuíam-se por extensa região compreendida entre a Bolívia, a oeste; o rio Araguaia, o rio das Mortes, ao norte; e o rio Taquari, ao sul.

Os bororos ocidentais, extintos no fim do século passado, viviam na margem leste do rio Paraguai, onde os jesuítas espanhóis fundaram missões. Muito amigáveis, serviam de guia aos brancos, trabalhavam nas fazendas da região e eram aliados dos bandeirantes. Desapareceram como povo tanto pelas moléstias contraídas quanto pelos casamentos com não-índios.

Os bororos orientais habitavam tradicionalmente vasto território que ia da Bolívia, a oeste, ao rio Araguaia, a leste e do rio das Mortes, ao norte, ao rio Taquari, ao sul. Ao contrário dos bororos ocidentais, eram citados nos relatórios dos presidentes da província de Cuiabá como nômades bravios e indomáveis, que dificultavam a colonização. Foram organizadas várias expedições de extermínio. Estimados na época em dez mil índios, os bororos sofreram várias guerras e epidemias, com uma história de muita resistência ao avanço das frentes e expansão de territórios, até sua pacificação, no fim do século XIX, quando foram reunidos nas colônias militares de Teresa Cristina e Isabel e estimados pelas autoridades em cinco mil pessoas. Entregues aos salesianos para catequese, em 1910, os bororos somavam dois mil índios. Em 1990, com uma população de aproximadamente 930 pessoas, vivem no estado do Mato Grosso. A sua relação com pessoas não-indígenas é de extremo desprezo,pois eles estão sempre querendo as terras indígenas das duas partes saem mortes.
Organização social

A tribo obedece a uma organização social rígida. A aldeia é dividida em duas partes – exare e tugaregue – que, por suavez, se subdividem em clãs com deveres muito bem definidos. Eles reconhecem a liderança de dois chefes hereditários que sempre pertencem à metade exare, conforme determinam seus mitos. Dentro de cada clã, há uma comunhão de bens culturais (nomes, cantos, pinturas, adornos, enfeites, seres da natureza) que só podem ser usados pelos membros desse determinado clã, a não ser que este direito seja participado a outras pessoas em "pagamento" por favores recebidos.

Praticam diversos rituais, como:

    a "Festa do Milho", para celebrar a colheita do cereal, que é um alimento importante na nutrição dos índios;
    a "Perfuração de Orelha e Lábios";
    o "Ritual do Funeral", uma celebração sagrada para todos que se consideram índios.

O funeral dos bororos é o que mais chama atenção pela complexidade, podendo durar até dois meses. A morte de alguém pode provocar mudanças ou reforçar as alianças.

 
Fontes:
Seleção de Regina Lacerda. Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Ed. Iracema.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bororos

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Contemporâneos do Clã – Geraldo Mello Mourão

Gerardo Mello Mourão (Ipueiras, 1917 - Rio de Janeiro, 2007), romancista, poeta, contista, ensaísta, tradutor e jornalista, estreou em livro com Poesia do homem só, 1938. Seu primeiro romance foi O Valete de Espadas, 1960. No gênero conto publicou, em 1979, Piero Della Francesca ou As Vizinhas Chilenas, constituído de 19 narrativas. Recebeu o Prêmio Mário de Andrade, da Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1972. É tido como um dos principais poetas brasileiros

Não há nele nenhuma semelhança com outros contistas cearenses, quer pela estrutura de suas peças, quer pelo espaço geográfico dos enredos. Excetuando os transgressores do gênero (os que aboliram episódio ou enredo), a maioria dos cultores da história curta no Ceará dá ênfase à movimentação episódica e situa as histórias nos sertões, nas serras, no litoral, em pequenas cidades e em Fortaleza, embora nem sempre de forma explícita. Mourão prefere o relato em primeira pessoa, com certo sabor de crônica. O narrador, em algumas composições, é apenas testemunha, embora não se desvie do ponto de vista onisciente, isto é, mesmo não tendo presenciado determinados atos (de alcova, por exemplo), manipula a narração como se protagonista fora. Por outro lado, o contista foi buscar em países da América espanhola os seres fictícios para compor algumas narrativas. Mas há também, mesmo em pequena escala, o ambiente e personagens nordestinos, como em “O Herege”. Em “Réquiem por um testa de ferro” o narrador se refere, em diversos trechos, ao Estado de Alagoas. Entretanto, os protagonistas são Mr. Lademakers, holandês, e Mariano Figueroa, colombiano.

Uma das composições mais enigmáticas nada tem de nordestino ou hispano-americano: Winston Spencer Churchill, o narrador de “English Réquiem”, moribundo (“Venho agonizando lentamente há vários dias”...), faz confidências sobre certo momento da História mundial e seus personagens principais. Trata-se do último e único escrito do fictício Churchill.

Mourão dá preferência ao conto em primeira pessoa, parente próximo da crônica. Mas nem só de relatos à maneira de Jorge Luis Borges é composto Piero Della Francesca ou As Vizinhas Chilenas. Em “Procusto” o mito grego é recriado, de forma concisa. “A Ponte” é uma parábola, sem seres fictícios. Também o leitor pode ver na ponte o protagonista ou o próprio núcleo da história. Em “A Regra do Jogo” o personagem central é um jogador de baralho e xadrez. Durante quase toda a narração, que é curta, o narrador é somente testemunha. As ações são do jogador, sem nome explícito. No desfecho, o narrador se transforma em ser de ficção, embora sem importância: “Atualmente, frequenta comigo um professor italiano de espada, florete e sabre”. O narrador de “A Caminho de Susana” é um escritor. Susana (o ser fictício imaginário) é uma metáfora (o ser buscado, o outro, “a mais bela das mulheres”). Em “O Tédio Celestial” a estrutura é de crônica-crítica. Não há propriamente um protagonista, embora o astronauta em viagem pelo espaço seja o único ser em ação: “Comprou um pequeno livro e o escondeu ali (numa pequena bolsa)”; “Começou a ler”. Com feição de alegoria ou de ficção científica é “O Plano Quinquenal”: isolamento e transplante de uma enzima. Quanto mais biocromos tivesse uma pessoa, mais anos de vida teria. Como complemento deste é “O Falanstério”, narrado em primeira pessoa, embora não se saiba de quem se trata. Nele também não há protagonista. Os personagens se mostram imprecisos, opacos. São apenas “os rapazes de Buenos Aires” ou o Falanstério. Sátira da sociedade de consumo, do capitalismo. A science-fiction é mero pretexto para satirizar os ricos ou o capitalismo. Oferecem dinheiro aos rapazes em troca de seus biocromos. Semelhante a este é “A Empresa”.

Peça singular do livro é “Com uma carta na mão”. Narrado, em forma de diário, por uma adolescente, o conto se afasta da forma do relato-crônica e apresenta um enfoque individual e não mais social e político. Dividido em três partes, o diário vai, aos poucos, conduzindo o leitor para um desenlace inesperado. A primeira data de 1935. A jovem Rita se lastima da solidão em que vive e dos reclamos da tia Lola: “– Menina, sai da janela!” Seu maior “desejo é apenas receber um dia uma carta”. Como isto não acontecia, passou a ler romances. A segunda parte do diário tem início em março de 1945. Rita, então com trinta e dois anos, continua à janela do velho casarão amarelo e a sonhar com uma carta. Como isto não acontecia, decidiu escrever cartas. A última parte do manuscrito é de 1947 e Lola trabalha nos Correios. Um dia abre um envelope: trata-se de carta de um homem, Emílio, para sua mulher, Abigail. Fala da ideia de suicídio dela e marca encontro, na esquina do Municipal, para reconciliação. O desfecho é patético: “... fiquei parada na esquina, olhando para todos, pálida, pálida, com uma carta na mão”.

O primeiro dos relatos hispano-americanos é “O Ópio do Povo”. A feição dele é de crônica de um episódio. O narrador fala de si, muito vagamente, por ser o cronista e não o personagem central, que é o padre Camilo Torres, revolucionário colombiano. Em “A Morte do Prefeito Boliviano” o narrador pode ser confundido com o próprio escritor: “Chegado do Nordeste do Brasil, criado na palha de cana dos engenhos em que os Mourões fabricavam a rapadura serrana (...)” O protagonista, no entanto, é o menino Juan, depois Juan Martinez Barceló, político boliviano. Em “Bodas de Eyquem” o espaço é chileno. Em “As Quatro ou Cinco Mortes de D. Nicanor” mais uma vez o narrador não revela o nome e deixa no leitor a hipótese de ser o próprio Gerardo: (...) “meu parente José Mourão, bandoleiro famanaz e capitão da Renascença em pleno sertão do Ceará”. Conjetura logo anulada, com a narração da última morte de Nicanor, o personagem principal, o boliviano Nicanor Bernal Gómez. O Nordeste reaparece em “Não Há Deus”, na figura do coronel Salustiano, natural de Palmares, Pernambuco, e do caboclo Amarolino. Como em outras composições, o protagonista é latino-americano: Pepe Vial, chileno, possuidor de vasta cultura teológica. “O Coronel Paraguaio” é relato de feição heroica.

O conto que dá título à coleção pode ser visto como peça antológica. Deixando de lado a faceta heroica dos protagonistas, neste o contista se volta para o erotismo. O narrador onisciente é apenas testemunha de certo momento na vida de Raimundo Pessoa, deputado federal nos idos de 1964, em refúgio no Chile. Poderia não ser testemunha, não fossem duas ou três frases: “Não cheguei a conhecer a mulher do corneado, nem tenho qualquer elemento para julgar de sua reputação” (...) Todo o enredo gira em torno da figura de Rosa Maria Bandera, uma das vizinhas de Pessoa, até o desfecho.

A linguagem de Gerardo Mello Mourão em Piero Della Francesca ou As Vizinhas Chilenas se calca, sobretudo, na narração de fatos, com alguma ênfase na observação de determinados períodos da História do Brasil e da América Latina. As descrições são mínimas, mesmo quando o relato se foca no estrangeiro. Se há alguma prolixidade, deve-se ela à necessidade da narrativa ou à maneira de ser dos hispano-americanos. O narrador de “Réquiem por um testa de ferro” chega a afirmar: “Prolixos na guerra, os colombianos também o são em suas narrativas, como meu amigo Gabriel Garcia Márquez e o pessoal de Macondo, em geral”. Diríamos: os narradores de Mourão são prolixos porque conviveram com colombianos e seus vizinhos. Os diálogos (as falas) são mínimos, dando lugar, às vezes, ao discurso indireto: “Falou-lhe longamente do amor”. Não se veem aqueles infindáveis e monótonos diálogos artificiais. Vê-se, pelo contrário, a frase bem elaborada, mas sem floreios, capaz de dar ao leitor o prazer de ler palavra por palavra, frase por frase: “Rolaram na calçada fria, ao clamor dolorido, à delícia cruel das garras curvas, à faísca dos olhos coruscantes. Era o amor”. É a arte literária de Gerardo Mello Mourão em relatos de muita sedução.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Trova em Imagem n. 264 - Roberto Pinheiro Acruche (RJ)


Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N. 1 – 1 de novembro de 1886

Voilà ce que l'on dit de moi
Dans la “Gazette de Hollande”.


Um doutor da mula ruça,
Caolho, coxo e maneta,
É o homem que se embuça
No papel desta gazeta.

Gazeta que, se tivesse
Outra forma, outro formato,
Pode ser que merecesse
Vir com melhor aparato.

Mas é modesta, não passa
De uma folha de parreira,
Que dá uva, que dá passa,
Que dá vinho e borracheira.

Traz programa definido,
Para entrar no grande prélio;
Nem bemol, nem sustenido,
Nem Caim, nem Marco-Aurélio.

Não traz idéias modernas,
Nem antigas; não traz nada.
Traz as suas duas pernas,
Uma sã, outra quebrada.

E vem, como é de ciência,
Entre muletas segura,
A muleta da inocência,
E a muleta da loucura.

Se uma não pega, outra pega,
E fica o corpo amparado;
Se para um lado escorrega,
Fica-lhe sempre outro lado.

De modo que, quanto diga,
Seja ou não o que a lei manda,
Há de achar entrada amiga
Esta Gazeta de Holanda.

Que traga idéias a folha
Liberal que se anuncia,
Que as espalhe, que as escolha,
Como a Reforma fazia.

Vá que seja — posto seja
Tarefa das mais reversas,
Fazer uma só igreja,
De tantas seitas diversas.

A prova é que, ainda agora,
Já pronta a bagagem sua,
Somente esperando a hora
De sair a folha à rua,

Feito um capítulo apenas,
De tão diversos capítulos,
E, contando boas penas,
Já traz a folha dois títulos.

Voz da Nação, ou — Gazeta
Nacional; só falta a escolha.
Já principia a marreta,
Antes de sair a folha.

Eu cá, perfeita unidade.
Ora aprovo, ora contesto,
Sem que haja necessidade
De ouvir protesto e protesto...

Exemplo: ao ler que se trata
De fazer um edifício
Para o júri: — colunata,
Vasto e grego frontispício,

E que esta idéia bizarra
Nasceu mesmo agora, agora,
Quando foi ali à barra
Uma distinta senhora;

Quando a afluência de gente
Era tal, que o magistrado
Teve de ir incontinente
Pedir sabão emprestado;

Comigo disse: — Bem feito
Que a Joaninha expirasse
De uma moléstia do peito,
E que a Eduarda cegasse.

Só assim tínhamos prédio
Para um tribunal sem nada;
Não foi morte, foi remédio;
Foi vida, não foi pancada.

Pangloss, o doutor profundo,
Mostra que há grande harmonia
Entre as cousas deste mundo,
Entre um dia e outro dia;

Que os narizes foram dados
Para os óculos; portanto,
Trazem óculos pousados...
Pangloss é o meu padre-santo.

Logo, se uma e outra escrava
Brigaram sem sentimento,
A razão de ação tão brava
Foi termos um monumento.

Neste ponto o ponto pingo,
E despeço-me no ponto
Em que cada novo pingo,
Já não é ponto, é posponto.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Argemiro Garcia (Poemas Avulsos)

Impressão
Curioso, eu vi
as rosas de Giverny
e, como todo que vê
a obra de Monet,
sorri.

Meus anjos
Os anjos do meu caminho?
perdi-os...
(quase todos).
Mas os anjos são assim: vêm e vão,
com um jeitinho...
angelical!
Seus caminhos, diferentes dos rios,
não seguem a gravidade:
há anjos que vêm, há anjos que vão.
Os que ficam, então,
felicidade nos dão.

Caleidoscópio
Caleidoscópio.
Quero meus versos assim,
mutantes,
permanentemente dançantes,
um chá beneficente!
Murmúrios,
augúrios,
gritinhos de surpresa
- ohs! e ahs! -
e sorrisos deliciados
descobrindo
duplos sentidos.
Meus versos têm
verso
e reverso.

Janelas
Olho da janela e o que vejo?
Formigas de azulejo
escalam muros de pedra;
anjos de face rosada
velam santos e orixás;
outros anjos, de cara suja,
percorrem praias e ruas,
à cata de latas e lixo.
Em torno, um e outro bicho
passam também a fuçar.
Rabiscos riscam tapumes e uma garatuja
assina-se nas paredes. Solidão flutua no ar.
Janelas, sempre janelas!
Assisto através delas
o mundo que teima em passar.
Gotas escorrem do vidro:
lágrimas? Suor?
Liberdade, Paraíso, Amaralina,
Copacabana, Imbetiba, Ondina,
quantas ruas será que eu, ainda,
percorro até me encontrar?

Meus versos
Meus versos, eu os escrevo
com a tinta negra da noite escura;
quero-os no rasto do caipora,
perseguindo atentos na penumbra afora
os passos quentes do saci e do capeta.
Quero versos de pés sujos, lama e areia,
quero-os vivos, a correr sem peia,
percorrendo, altivos, recantos imundos,
becos abandonados e trilhas desertas,
captando aqui e ali causos e histórias incertas.
Quero meus versos de pé no chão,
calos nas mãos e olhar na imensidão.

Quatro sombras

Duas crianças caminham pela rua
conduzidas pelas mãos de dois adultos;
a visão dessa cena é muito breve,
na penumbra só diviso os quatro vultos.

Quatro sombras se perdem entre as sombras
percorrendo seu caminho – displicentes?
infelizes? inseguras? Simplesmente
percorrem seu caminho entre as gentes.

Morro acima, morro abaixo
A cidade sobe, num jeito de presépio,
pelas curvas de nível e ladeiras.
Sobem, acima dela, pipas, pássaros,
nuvens de fumaça, como um véu;
sobem sonhos e orações num escarcéu.
A cada chuva descem,
nas sarjetas,
suores, sujeiras e dissabores,
incertezas e esperanças
que aguardam outro dia,
outra chance, a loteria,
para se concretizar.

Paz

Não sou guerreiro.
Não sou herói.
Guerreiros não vacilam nas grandes batalhas.
Prefiro lençóis a mortalhas.
Não puxaria um gatilho,
mas uma enxada.
Dignidade se constrói
com tijolos e cimento,
calos, calva e cãs.
Medalhas e bravatas? Coisas vãs.

Três poetrix

Sertões
Filitas feito facas,
feito lápides, são estacas
cravadas no coração do Brasil.

Vira-latas
a Marilda Confortin e Manuel Bandeira
Revirando o lixo,
menos que um bicho
é um menino.

Marinheiros


Sobre a pedra, uma gaivota
observa o remador
e estuda sua rota.

Cantiga do meu morrer
(depois de Ferreira Gullar)

Menina que não conheço,
quando eu me for embora,
me guarde de alguma forma,
me guarde por uma hora
ou duas, no seu coração.

Se no seu coração não couber,
menina que não conheço,
nem uma lembrança minha,
guarde então nos ouvidos
alguma palavra de apreço.

Mas, mesmo se uma palavra
que eu diga lhe valha pouco,
menina que não conheço,
reserve apenas nos olhos,
a imagem de um velho louco.

Se minha imagem guardar
lhe for muito sacrifício,
se vou lhe atrapalhar,
menina que não conheço:
me lembre como um estrupício.

Se essa triste memória
lhe servir só para tormento,
não se preocupe comigo;
me deixe no esquecimento,
menina que não conheço.

Cheiro de sal

Em algum lugar na infância
o mar me cheirou salgado;
não havia esgotos ou sargaço,
apenas a espuma branca,
a água fria
e a areia de grãos finos.
Tempo! O tempo voa veloz,
como gotas salgadas escorrem
na pele dos meninos.
Meus meninos brincam na água.
Meus meninos andam na água.
Meus meninos passam na água.
Não há o que os segure crianças,
ainda que o queira.
Minha vida segue com eles.

Fonte:
Goulart Gomes (Organizador). Antologia do Pórtico. 2003.

Nilto Maciel (Hipnose)

Andrew Albee chegou a Palma numa tarde quente. Maleta à mão, desceu do ônibus. Um menino ofereceu ajuda. “O senhor vai para o hotel?” O americano perguntou onde ficava o melhor hotel. “Aqui só tem um. Ali do outro lado da praça. Hotel Canuto.”

            Após o banho, Andrew se dirigiu à sala de jantar. Pediu o menu. O hoteleiro gaguejou, andou pela sala, olhou para a hoteleira, ofereceu água e café ao visitante. “Mulher, você viu o menu?” A arrumadeira saiu em seu socorro. “Já trabalhei num restaurante na capital. Menu, cardápio, relação dos nomes dos pratos. Aqui não tem isso, né?” O hoteleiro sentou-se de novo. Não serviam jantar no hotel. Nem almoço. Porém, havia um restaurante na praça. O estrangeiro sorriu. Se a moça não se importasse, poderia fazê-la dormir naquele momento. Ela também sorriu. Ninguém a faria dormir àquele hora. “Eu não sou galinha para dormir tão cedo.” De qualquer forma, aceitou o desafio. “O senhor quer me hipnotizar, não é?”

            Cinco minutos depois do início da sessão, Maria dormia, sentada na cadeira, diante de Andrew e sob os olhares de espanto dos donos do hotel. O hóspede dava ordens e a arrumadeira obedecia. Pareceu comer um frango inteiro, lambuzar-se de gordura, lavar as mãos e a cara. O hoteleiro nem sequer piscava. Coisa do demo. Minutos depois, a moça acordou, a um bater de palmas  do estrangeiro. Um gato parou à porta e cravou o olhar no mágico.

Dizendo-se faminto, Andrew se dirigiu ao restaurante. Bebeu cerveja e jantou, sem parar de conversar com garçons e fregueses. Quem aceitava ser hipnotizado? Um dos garçons duvidou de seus poderes. Dois minutos depois parecia um robô. A plateia bateu palmas. Um rapazote se apresentou ao visitante. Queria ser hipnotizado. Novo sucesso. “João, você comeu uma barata.”

Feitos amigos, o americano e João saíram para a praça e se puseram a caminhar. As moças olhavam para Andrew e diziam coisas, baixinho: “Bonitão!” “Que louro bonito!” “Valha-me , Deus!”. Ele sorria e andava. João olhava para o alto e conversava. “Vamos tomar uma cerveja, gringo?” Uma das moças da praça aceitou a proposta de hipnotização. E até levantou a saia, sentada num banco.

A cidade se preparava para eleger prefeito e vereadores. Ananias, o prefeito, chamou o estranho ao seu gabinete. “Meu filho é candidato a prefeito.” E apresentou uma proposta a Andrew: mordomias, mulheres, passeios, segurança, tudo, em troca da hipnotização geral dos eleitores no dia da votação. O gringo sorriu. Como era o rapaz? O pai disse maravilhas de Sainan: estudioso, bonito, inteligente. João, Maria e outros eleitores disseram cobras e lagartos do filho do prefeito. Estroina, vagabundo, safado. Se dependesse do votos deles, o novo prefeito seria o  candidato da oposição. Ou qualquer outro, menos Sainan. Nunca o filho do prefeito. Preferiam votar num burro, num cachorro, num bode, em nada.

 Chamado de novo à Prefeitura, Andrew fez Ananias dormir por alguns minutos. E se retirou pé ante pé. Encontrou João à calçada. “Vamos tomar cerveja.” Jamais o prefeito se deixaria hipnotizar. Sono artificial naquele homem - nunca. Porém, no dia da eleição, Sainan e seu pai dormiram muito. E Andrew Albee fugiu da cidade, às pressas.

Fonte:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.

Hernando Feitosa Bezerra Chagall (Cantares) I

MULHER

Tens como encanto
Um sorriso
E um espanto
No brilho do olhar

Bem sei há tristezas
Profundas contidas
E bem escondidas
Num canto qualquer

Como sei que há vida
Uma vida incontida
Pronta a aflorar
De teu ventre, mulher.

LA BELLE D’JOUR

És flor delicada e bela
Que abrindo se perfuma o ar
Anuncias a primavera
No encanto do teu olhar.

Brilhas a noite mais escura
Iluminas o dia mais sombrio
Com teu jeito de menina pura
E esse corpo de mulher no cio.

És um milagre de Deus
Uma fonte inesgotável e incontida
De inspiração pros versos meus
E de alegria e tesão pela vida.

Lute batalhe experimente
O suave sabor da felicidade
Sejas cativa somente
Da beleza do amor e da liberdade.

NÁUFRAGO

Não deixes meu ser à deriva
Meu coração começa a adernar
Frágil embarcação nessa vida
Naufragando no teu lindo olhar.

Leve-me ao teu porto seguro
Bem perto do entardecer
Ouça o forte murmúrio
Deste meu peito a bater.

No teu corpo minha vida
Entrego sem nada temer
Vem curar as feridas
Que o mundo costuma fazer

Para que de novo à lida
Eu volte sem tempo ruim
Sabendo que alguém nesta vida
Ama, cuida e vela por mim.

ARS / AMOR
A poesia abre o coração
Expõe a alma
A pintura abre os olhos
Expõe a realidade
A música abre a cabeça
Expõe a percepção
A mulher abre os braços
Expõe-se à vida.

PRECE

Seu amor menina
Encanta me ensina
Seu desejo mulher
Cresce me envaidece
Deixa-me do tamanho
De quem numa prece
Encontrou Deus.

VICE OU VERSA

Te amo!
Jamais direi novamente que
Posso viver sem você.
Acredito que
Apesar de tudo
Você me ame também.
Não consigo imaginar que
Algum dia
Te esquecerei.

CANTIGA

Teus olhos belos sóis
Dois lindos arrebóis
À noite duas luas
Brilhando seminuas

E no amanhecer
Já nas primeiras horas
Iluminam teu ser
Como duas auroras.

IRIS

A gentil serenidade
De teu olhar
Desnudou meu orgulho
Ressuscitando em mim
O menino que eu matara.

LÁCRIMA
Brota nos recantos do coração
Deságua pelas janelas da alma
Rola rosto pura emoção

Essa pérola viva do ser
Rainha de uma extrema dor
Princesa de um imenso prazer.

MÃES MENINAS

Meninas tão lindas
Tão jovens ainda...
Mulheres tão puras
Tão verdes, maduras...

Deixam (sem querer)
O brinquedo, o sorriso
A pureza e o prazer
Para brincarem de sofrer.

PUPILAS
O esplendor do sol
Transforma em ouro
As espigas do trigal
As pétalas dos girassóis
E as meninas dos olhos
Do poeta.

CHEGA DE SAUDADE

A palavra cala
No gesto do abraço
Teus olhos úmidos
Meu peito em descompasso

Um beijo ardente
Silencioso e profundo
Aproxima a gente
Do paraíso no mundo.

DRUMMONDIANDO

No
Meio do caminho
Havia uma pedra
Eu!
Que esfarelou-se humana
A um simples toque
Seu.

TOGETHER

Esses teus olhos tristonhos vão sumir
Em seu lugar darei o brilho
Que ainda resta em meu olhar
Pois quero ver teu rosto se iluminar
Num sorriso simples sincero e sem medo.

Se hoje lhe ajudo também peço ajuda
Quero te ver sonhando meu sonho
Vivendo meu viver
Quero te amar bem mais que o meu coração
Quero juntar à tua minha solidão.

Pois eu também por muito tempo andei sozinho
Sem ter ninguém , sem ter amor pra me ajudar
Andei caminhos sem rumo, sem destino
Mas hoje a vida deu-me outra chance
Ao te encontrar.

WINDOW

Você é janela aberta
Em dia ensolarado;
Ilumina, areja, liberta
Meu coração trancafiado.

DOCE MISTÉRIO
Mulher
Segredo e milagre
Santa
Quando briga ou canta
Delicioso
Mistério de amor
Entre
O humano e o poder
Criador.

PERCEPÇÃO

Meus olhos muitas vezes
Vêem coisas
Que pessoas apressadas
Nem dão fé!
Se eles mentem
O fazem colorido
Num sorriso
Numa flor
Numa mulher.

SE FOSSES MINHA

Se fosses minha amiga
Darias-me uma droga
Mais forte que a vida;

Se fosses minha amante
Darias-me amor maior
Do que ontem;

Se fosses minha amada
Não deixarias morrer
Nosso conto de fada.

YES

Agradeço a Deus
Por um sorriso teu
Que seja só para mim

Pois o teu encanto
Enxugou meu pranto
E me deixou assim

Louco por teus beijos
Pleno do desejo
De chegar ao fim

Deste mar revolto
Lindo que é teu corpo
Dizendo-me sim.

Fonte:
Hernando Feitosa Bezerra. Cantares.  Universidade da Amazônia – NEAD.

Folclore da África (O Violino do Macaco)

A fome e a necessidade de satisfazê-la forçou o macaco a abandonar a sua terra e procurar outro lugar entre estranhos para o tão necessário trabalho. Bulbos, feijões da terra, escorpiões, insetos, estavam completamente extintas em sua própria terra. Mas, felizmente, ele recebeu, por enquanto, abrigo com um tio-avô dele, Orangotango, que morava em outra parte do país.

Quando ele tinha trabalhado durante certo tempo ele quis voltar para casa e, como recompensa seu tio deu-lhe um violino e um arco e flecha e lhe disse que com o arco e flecha, ele poderia acertar e matar qualquer coisa que ele desejasse, e com o violino ele poderia obrigar qualquer coisa a dançar.

O primeiro que ele encontrou em seu retorno para a sua terra foi o irmão lobo.  Este velho companheiro disse-lhe todas as novidades e também que ele estava desde cedo tentando perseguir um cervo, mas tudo em vão.

Então o macaco disse para ele todas as maravilhas do arco e flecha que ele carregava nas costas e lhe garantiu que se avistasse o cervo, ele iria acertá-lo para ele. Quando o lobo mostrou-lhe o veado, o macaco estava pronto e derrubou o cervo.

Eles fizeram uma boa refeição juntos, mas em vez do lobo ser grato, o ciúme se apoderou dele e ele pediu para o arco e flecha. Quando o macaco recusou-se a lhe dar, ele usou sua força para ameaçá-lo, e assim, quando passaram pelo chacal, o lobo disse que o macaco tinha roubado o seu arco e flecha.

O chacal tendo ouvido falar do arco e flecha, declarou-se incompetente para resolver o caso sozinho, e ele propôs que eles levassem a questão para o Tribunal do Leão, Tigre, e os outros animais. Nesse meio tempo, ele declarou que iria ficar tomando conta do que tinha sido a causa de sua discussão, de modo que seria mais seguro, como ele disse. Mas o chacal imediatamente tirou de tudo o que era comestível,  e isso gerou um longo período de matança, antes que o macaco e o lobo concordassem em levar o caso para o tribunal.

As evidências do macaco era frágeis, e para piorar, o testemunho do chacal foi contra ele.  Ele pensou que desta forma seria mais fácil obter o arco e flecha para si mesmo.

E assim a sentença foi contra o macaco. O roubo foi encarado como um grande crime: ele seria enforcado.

O violino ainda estava ao seu lado, e ele recebeu como um último desejo do tribunal o direito de tocar uma música nele.

Ele era um mestre dos truques de sua época, e além disso, tinha o maravilhoso poder de sua rabeca encantada. Assim, quando ele emitiu a primeira nota do “Canto do Galo” no violino, o tribunal começou logo a mostrar uma vivacidade incomum e espontânea, e antes de terminar a primeira estrofe da valsa da velha canção toda a corte estava dançando como um redemoinho.

Mais e mais, mais rápido e mais rápido, tocou a melodia do “Canto do Galo” no violino encantado, até que alguns dos bailarinos, exaustos, caíram, embora ainda mantendo seus pés em movimento. Mas o macaco, músico como ele era, ouviu e não viu nada do que tinha acontecido à sua volta. Com a cabeça colocada carinhosamente contra o instrumento, e seus olhos meio fechados, ele tocou, mantendo a cadência com o seu pé.

O lobo foi o primeiro a gritar em tom suplicante, sem fôlego, “Por favor, pare, primo macaco! Pelo amor de Deus, por favor, pare!”

Mas o macaco nem conseguiu sequer ouvi-lo. Mais e mais a valsa “Canto do Galo” parecia irresistível.

Depois de um tempo o leão mostrou sinais de fadiga e, quando ele rodava mais uma vez com a leoa, ele rosnou quando passou do macaco, “Todo o meu reino é vosso, macaco, se você parar com essa música!”

“Eu não quero isso”, respondeu macaco “, mas retire a sentença e devolva o arco e flecha, e você, lobo, reconheça que você o roubou de mim!”

“Eu reconheço, reconheço!” gritou o lobo, e o leão no mesmo instante, chorou anulando a punição.

O macaco ainda deixou-os girando mais uma vez ao som da valsa, e depois recolheu seu arco e flecha, e sentou-se no alto da árvore de espinhos mais próxima.

A corte e outros animais estavam com tanto medo que ele pudesse começar de novo que apressadamente correram para outras partes do mundo.

Fontes:
http://www.sacred-texts.com/afr/saft/sft05.htm
http://casadecha.wordpress.com/2013/08/28/o-violiono-do-macaco/‎
Imagem = http://portuguese.alibaba.com

Rachel de Queiroz (Tangerine-Girl)

De princípio a interessou o nome da aeronave: não ‘zepelim’ nem dirigível, ou qualquer outra coisa antiquada; o grande fuso de metal brilhante chamava-se modernissimamente blimp. Pequeno como um brinquedo, independente, amável. A algumas centenas de metros da sua casa ficava a base aérea dos soldados americanos e o poste de amarração dos dirigíveis. E de vez em quando eles deixavam o poste e davam uma volta, como pássaros mansos que abandonassem o poleiro num ensaio de voo. Assim, de começo, aos olhos da menina, o blimp existia como uma coisa em si – como um animal de vida própria; fascinava-se como prodígio mecânico que era, e principalmente ela o achava lindo, todo feito de prata, igual a uma joia, librando-se majestosamente pouco abaixo das nuvens. Tinha coisas de ídolo, evocava-se um pouco o gênio escravo de Aladim. Não pensara nunca em entrar nele; não pensara sequer que pudesse alguém andar dentro dele. Ninguém pensa em cavalgar uma águia, nadar nas costas de um golfinho; e, no entanto, o olhar fascinado acompanha tanto quanto pode águia e golfinho, numa admiração gratuita – pois parece que é mesmo uma das virtudes da beleza essa renúncia de nós próprios que nos impõe, em troca de sua contemplação pura e simples.

Os olhos da menina prendiam-se, portanto, ao blimp sem nenhum desejo particular, sem a sombra de uma reivindicação. Verdade que via lá dentro umas cabecinhas espiando, mas tão minúsculas que não davam impressão de realidade – faziam parte da pintura, eram elemento decorativo, obrigatório como as grandes letras negras U.S. Navy gravadas no bojo de prata. Ou talvez lembrassem aqueles perfis recortados em folha que fazem de chofer nos automóveis de brinquedo.

O seu primeiro contato com a tripulação do dirigível começou de maneira puramente ocasional. Acabara o café da manhã; a menina tirara a mesa e fora à porta que dá para o laranjal, sacudir da toalha as migalhas de pão. Lá de cima um tripulante avistou aquele pano branco tremulado entre as árvores espalhadas e a areia, e o seu coração solitário comoveu-se. Vivia naquela base como um frade no seu convento – sozinho entre soldados e exortações patrióticas. E ali estava, juntinho ao oitão da casa de telhado vermelho, sacudindo um pano entre a mancha verde das laranjeiras, uma mocinha de cabelo ruivo. O marinheiro agitou-se todo com aquele adeus. Várias vezes já sobrevoara aquela casa, vira gente embaixo entrando e saindo; e pensara quão distantes uns dos outros vivem os homens, quão indiferentes passam entre si, cada um trancado na sua vida. Ele estava voando por cima das pessoas, vendo-as, espiando-as, e, se algumas erguiam os olhos, nenhuma pensava no navegador que ia dentro; queriam só ver a beleza prateada vogando pelo céu.

Mas agora aquela menina tinha para ele um pensamento, agitava no ar um pano, como uma bandeira; decerto era bonita – o sol lhe tirava fulgurações de fogo do cabelo, e a silhueta esguia se recortava claramente no fundo verde-e-areia. Seu coração atirou-se para a menina num grande impulso agradecido; debruçou-se à janela, agitou os braços, gritou: “Amigo!, amigo!” – embora soubesse que o vento, a distância, o ruído do motor não deixaria ouvir-se nada. Ficou incerto se ela lhe vira os gestos e quis lhe corresponder de modo mais tangível. Gostaria de lhe atirar uma flor, uma oferenda. Mas que podia haver dentro de um dirigível da Marinha que servisse para ser oferecido a uma pequena? O objeto mais delicado que encontrou foi uma grande caneca de louça branca, pesada como uma bala de canhão, na qual em breve lhe iriam servir o café. E foi aquela caneca que o navegante atirou; atirou, não: deixou cair a uma distância prudente da figurinha iluminada, lá embaixo; deixou-a cair num gesto delicado, procurando abrandar a força da gravidade, a fim de que o objeto não chegasse sibilante como um projetil, mas suavemente, como uma dádiva.

A menina que sacudia a toalha erguera realmente os olhos ao ouvir o motor do blimp. Viu os braços do rapaz se agitarem lá em cima. Depois viu aquela coisa branca fender o ar e cair na areia; teve um susto, pensou numa brincadeira de mau gosto – uma pilhéria rude de soldado estrangeiro. Mas quando viu a caneca branca pousada no chão, intacta, teve uma confusa intuição do impulso que a mandara; apanhou-a, leu gravadas no fundo as mesmas letras que havia no corpo do dirigível: U.S. Navy. Enquanto isso, o blimp, em lugar de ir para longe, dava mais uma volta lenta sobre a casa e o pomar. Então a mocinha tornou a erguer os olhos e, deliberadamente dessa vez, acenou com a toalha, sorrindo e agitando a cabeça. O blimp fez mais duas voltas e lentamente se afastou – e a menina teve a impressão de que ele levava saudades. Lá de cima, o tripulante pensava também – não em saudades, que ele não sabia português, mas em qualquer coisa pungente e doce, porque, apesar de não falar nossa língua, soldado americano também tem coração.

Foi assim que se estabeleceu aquele rito matinal. Diariamente passava o blimp e diariamente a menina o esperava; não mais levou a toalha branca, e às vezes nem sequer agitava os braços: deixava-se estar imóvel, mancha clara na terra banhada de sol. Era uma espécie de namoro de gavião com gazela: ele, fero soldado cortando os ares; ela, pequena, medrosa, lá embaixo, vendo-o passar com os olhos fascinados. Já agora, os presentes, trazidos de propósito da base, não eram mais a grosseira caneca improvisada; caíam do céu números da Life e da Time, um gorro de marinheiro e, certo dia, o tripulante tirou do bolso o seu lenço de seda vegetal perfumado com essência sintética de violetas. O lenço abriu-se no ar e veio voando como um papagaio de papel; ficou preso afinal nos ramos de um cajueiro, e muito trabalho custou à pequena arrancá-lo de lá com a vara de apanhar cajus; assim mesmo ainda o rasgou um pouco, bem no meio.

Mas de todos os presentes o que mais lhe agradava era ainda o primeiro: a pesada caneca de pó de pedra. Pusera-a no seu quarto, em cima da banca de escrever. A princípio cuidara em usá-la na mesa, às refeições, mas se arreceou da zombaria dos irmãos. Ficou guardando nela os lápis e canetas. Um dia teve ideia melhor e a caneca de louça passou a servir de vaso de flores. Um galho de manacá, um bogari, um jasmim-do-cabo, uma rosa-menina, pois no jardim rústico da casa de campo não havia rosas importantes nem flores caras.

Pôs-se a estudar com mais afinco o seu livro de conversação inglesa; quando ia ao cinema, prestava uma atenção intensa aos diálogos, a fim de lhes apanhar não só o sentido, mas a pronúncia. Emprestava ao seu marinheiro as figuras de todos os galãs que via na tela, e sucessivamente ele era Clark Gable, Robert Taylor ou Cary Grant. Ou era louco feito um mocinho que morria numa batalha naval do Pacífico, cujo nome a fita não dava; chegava até a ser, às vezes, careteiro e risonho como Red Skelton. Porque ela era um pouco míope, mal o vislumbrava, olhando-o do chão: via um recorte de cabeça, uns braços de agitando; e, conforme a direção dos raios do sol, parecia-lhe que ele tinha o cabelo louro ou escuro.

Não lhe ocorria que não pudesse ser sempre o mesmo marinheiro. E, na verdade, os tripulantes se revezariam diariamente: uns ficavam de folga e iam passear na cidade com as pequenas que por lá arranjavam; outros iam embora de vez para a África, para a Itália. No posto de dirigíveis criava-se aquela tradição de menina do laranjal. Os marinheiros puseram-lhe o apelido de ‘Tangerine-Girl’. Talvez por causa do filme de Dorothy Lamour, pois Dorothy Lamour é, para todas as forças armadas norte-americanas, o modelo do que devem ser as moças morenas da América do Sul e das ilhas do Pacífico. Talvez porque ela os esperava sempre entre as laranjeiras. E talvez porque o cabelo ruivo da pequena, quando brilhava à luz da manhã, tinha um brilho acobreado de tangerina madura. Um a um, sucessivamente, como um bem de todos, partilhavam eles o namoro com a garota Tangerine. O piloto da aeronave dava voltas, obediente, voando o mais baixo que lhe permitiam os regulamentos, enquanto o outro, da janelinha, olhava e dava adeus.

Não sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a ideia de atirar um bilhete. Talvez pensassem que ela não os entenderia. Já fazia mais de um mês que sobrevoavam a casa, quando afinal o primeiro bilhete caiu; fora escrito sobre uma cara rosada de rapariga na capa de uma revista: laboriosamente, em letras de imprensa, com os rudimentos de português que haviam aprendido da boca das pequenas, na cidade: “Dear Tangerine-Girl. Please você vem hoje (today) base X. Dancing, show. Oito horas P.M.” E no outro ângulo da revista, em enormes letras, o “Amigo”, que é a palavra de passe dos americanos entre nós.

A pequena não atinou bem com aquele ‘Tangerine-Girl’. Seria ela? Sim, decerto... e a aceitou o apelido, como uma lisonja. Depois pensou que as duas letras, do fim: “P.M.”, seriam uma assinatura.  Peter, Paul, ou Patsy, como o ajudante de Nick Carter? Mas uma lembrança de estudo lhe ocorreu: consultou as páginas finais do dicionário, que tratam de abreviaturas, e verificou, levemente decepcionada, que aquelas letras queriam dizer ‘a hora depois do meio-dia’.

Não pudera acenar uma resposta porque só vira o bilhete ao abrir a revista, depois que o blimp se afastou. E estimou que assim o fosse: sentia-se tremendamente assustada e tímida ante aquela primeira aproximação com o seu aeronauta. Hoje veria se ele era alto e belo, louro ou moreno. Pensou em se esconder por trás das colunas do portão, para o ver chegar – e não lhe falar nada. Ou talvez tivesse coragem maior e desse a ele a sua mão; juntos caminhariam até a base, depois dançariam um fox langoroso, ele lhe faria ao ouvido declarações de amor em inglês, encostando a face queimada de sol ao seu cabelo. Não pensou se o pessoal de casa deixaria aceitar o convite. Tudo se ia passando como num sonho – e como num sonho se resolveria, sem lutas nem empecilhos.

Muito antes de escurecer, já estava penteada, vestida. Seu coração batia, batia inseguro, a cabeça doía um pouco, o rosto estava em brasas. Resolveu não mostrar o convite a ninguém; não iria ao show; não dançaria, conversaria um pouco com ele no portão. Ensaiava frases em inglês e preparava o ouvido para as doces palavras na língua estranha. Às sete horas ligou o rádio e ficou escutando languidamente o programa de swings. Um irmão passou, fez troça do vestido bonito, naquela hora, e ela nem o ouviu. Às sete e meia já estava na varanda, com o olho no portão e na estrada. Às dez para as oito, noite fechada já há muito, acendeu a pequena lâmpada que alumiava o portão e saiu para o jardim. E às oito em ponto ouviu risadas e tropel se passos na estrada, aproximando-se.

Com um recuo assustado verificou que não vinha apenas o seu marinheiro enamorado, mas um bando ruidoso deles. Viu-os aproximarem-se, trêmula. Eles a avistaram, cercaram o portão – até parecia manobra militar –, tiraram os gorros e foram se apresentando numa algazarra jovial.

E, de repente, mal lhes foi ouvindo os nomes, correndo os olhos pelas caras imberbes, pelo sorriso esportivo e juvenil dos rapazes, fitando-os de um em um, procurando entre eles o seu príncipe sonhado – ela compreendeu tudo. Não existia o seu marinheiro apaixonado – nunca fora ele mais do que um mito do seu coração. Jamais houvera um único, jamais ‘ele’ fora o mesmo. Talvez nem sequer o próprio blimp fosse o mesmo...

Que vergonha, meu Deus! Dera adeus a tanta gente; traída por uma aparência enganosa, mandara diariamente a tantos rapazes diversos as mais doces mensagens do seu coração, e no sorriso deles, nas palavras cordiais que dirigiam à namorada coletiva, à pequena Tangerine-Girl, que já era uma instituição da base – só viu escárnio, familiaridade insolente... Decerto pensavam que ela era também uma dessas pequenas que namoram os marinheiros de passagem, quem quer que seja... decerto pensavam... Meu Deus do Céu!

Os moços, por causa da meia-escuridão, ou porque não cuidavam naquelas nuanças psicológicas, não atentaram na expressão da mágoa e susto que confrangia o rostinho redondo da amiguinha. E, quando um deles, curvando-se, lhe ofereceu o braço, viu-a com surpresa recuar, balbuciando timidamente:

– Desculpem... houve engano... um engano...

E os rapazes compreenderam ainda menos quando a viram fugir, a princípio lentamente, depois numa carreira cega. Nem desconfiaram que ela fugira a trancar-se no quarto e, mordendo o travesseiro, chorou as lágrimas mais amargas e mais quentes que tinha nos olhos.

Nunca mais a viram no laranjal; embora insistissem em atirar presentes, viam que eles ficavam no chão, esquecidos – ou às vezes apanhados pelos moleques do sítio.

(Rachel de Queiroz, A Casa do Morro Branco)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Contemporâneos do Clã – Rachel de Queiróz

Além dos grandes nomes do conto cearense surgidos com o Grupo Clã, se destacaram no cultivo da narrativa curta no Ceará outros escritores nascidos nos primeiros anos do século XX ou que despontaram durante o período de ouro daquela “agremiação”, sem a ela pertencerem.

Em 1965 se editou Uma Antologia do Conto Cearense, precedido do famoso ensaio de Braga Montenegro “Evolução e natureza do conto cearense”, publicado na revista Clã nº 12 de fevereiro de 1952. Não se sabe quem organizou a antologia, se o próprio Braga, se Artur Eduardo Benevcides, se ambos, se outro. O certo é que fazem parte dela quatro novos contistas (José Maia, Juarez Barroso, Margarida Saboia de Carvalho e Sinval Sá), ao lado dos mais importantes nomes do Clã, como os mencionados Artur e Braga, Eduardo Campos, Fran Martins, João Clímaco Bezerra, Lúcia Fernandes Martins, Milton Dias e Moreira Campos. José Maia teria um conjunto de narrativas curtas intitulado A Noite a Nudez. De Juarez Barroso é dito que figurou no Panorama do Novo Conto Brasileiro, 1964, organizado por Esdras do Nascimento, e “tem pronto o livro Mundinha Panchico e o Resto do Pessoal”, publicado anos depois. De Margarida Saboia se diz que publicou crônicas, contos e artigos no jornal Diário do Povo, que circulou de 1947 a 1961. Estreou em 1964 com um livro de crônicas. Preparava o segundo volume de contos. De Sinval Sá (paraibano) é dito que em 1959 “reuniu em livro alguns contos publicados em Clã e na imprensa.”

Longe do Ceará, alguns escritores cearenses conseguiram projeção nacional, não como contistas, mas como romancistas, poetas e cronistas. É o caso de Rachel de Queiroz (1910), um dos nomes mais conhecidos da Literatura Brasileira. Seu livro O Brasileiro Perplexo (1962) aparece na análise de Braga Montenegro no ensaio muitas vezes aqui mencionado. Entretanto, seus contos se misturam às crônicas e não sobrepujam os romances.

Um que se dedicou mais ao conto é Caio Porfírio Carneiro (1928), talvez o escritor mais vocacionado para a composição ficcional curta no Ceará, depois de Moreira Campos. Sua estreia em livro de contos é de 1961, com Trapiá.

Juarez Barroso (1934), falecido muito cedo, deixou dois volumes de contos e um romance. A publicação do primeiro livro de contos ocorreu somente em 1969.

Outros escritores importantes desse período que também se dedicaram à narrativa breve são Gerardo Mello Mourão (1917), que se dedidou ao poema e ao romance e somente em 1979 apresentou o livro de contos Piero Della Francesca ou As Vizinhas Chilenas; José Alcides Pinto (1923), que estreou no gênero conto, em livro, em 1965, com Editor de Insônia; e Moacir C. Lopes (1927) – outro que, embora veterano das letras, apareceu como contista muito tarde, em 1995, com O Navio Morto e Outras Tentações do Mar.
 
Rachel de Queiroz

Rachel de Queiroz (Fortaleza, 1910 - Rio de Janeiro, 2003) estreou em 1930, com o romance O Quinze (“Prêmio Graça Aranha”). Em 1932 publicou João Miguel. Seguiram-se, em 1937, Caminho de Pedra; em 1939, Três Marias (“Prêmio Felipe d´Oliveira”); em 1950, O Galo de Ouro; e em 1975, Dora, Doralina. Colaborou por muito tempo no Diário de Notícias, nas revistas O Cruzeiro e Manchete e outros órgãos. Publicou várias coletâneas de crônicas e escreveu peças de teatro. Em 1992 editou o último romance, Memorial de Maria Moura. De sua vasta obra se destacam dois livros que contém contos mesclados com crônicas: O Brasileiro Perplexo (Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1963) e A Casa do Moro Branco (São Paulo: Ed. Siciliano, 1999). Publicou mais os seguintes volumes de crônicas e, em meio a elas, alguns contos: A donzela e a moura torta (1948); 100 Crônicas escolhidas (1958); O caçador de tatu (1967); As menininhas e outras crônicas (1976); O jogador de sinuca e mais historinhas (1980); Mapinguari (1964); As terras ásperas (1993); O homem e o tempo (74 crônicas escolhidas); A longa vida que já vivemos; Um alpendre, uma rede, um açude: 100 crônicas escolhidas; Cenas brasileiras. Foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras. Traduziu mais de quarenta obras. Traduções para o alemão, o francês, o inglês, o japonês. Diversos prêmios, condecorações e títulos.

Quando publicou, em 1965, o famoso ensaio “Evolução e Natureza do Conto Cearense”, Braga Montenegro fez a seguinte observação: “‘Monólogo’, ‘Romance’, ‘Luisinha, a Manicura’ e mais um punhado de contos a ser retirado em meio a uma avalanche de crônicas, notadamente em O Brasileiro Perplexo (1963), constituem a limitada bagagem de Rachel de Queiroz. Entretanto, a escassez não insinua a inaptidão. Rachel de Queiroz, se quisesse, seria contista na mesma altura por que é romancista, e até não há exagero em afirmar-se que poucas de suas páginas superam a humanidade, a contagiante ternura, a discreta beleza de ‘Monólogo’”.

No volume A Casa do Morro Branco, catalogado como crônicas, observa-se com nitidez a presença da contista.

Na verdade, o livro é composto de 13 contos ou narrativas curtas e um ensaio sobre a Soberba ou o Leviatã. Nas 13 histórias o espaço geográfico da ação quase nunca se repete. Em “Ma-Hôre” o drama se inicia no mar de um planeta desconhecido e, em seguida, no interior de um navio espacial. Em “Natal no Paraguai”, como o título indica, a ação se desenrola naquele país. “O mato era ralo; mas visto do chão parecia fechado” (...). O protagonista, um soldado brasileiro, se achava caído no chão, em algum lugar do Paraguai. “Não sabia onde estava. Paraguai, era. Léguas e léguas, Paraguai adentro.”

Em “A Casa do Morro Branco” os episódios ocorrem numa casa (e seus arredores) situada num morro “num desses ricos estados do Brasil adentro”, possivelmente São Paulo: “A casa caiada, cercada de alpendres, é tão antiga que certa gente pretende que ela vem dos tempos do Anhanguera.” O primeiro protagonista é fugido de Pernambuco, por crime político, ao tempo da Confederação do Equador. Em “Os dois bonitos e os dois feios” a ação se desenvolve no sertão. Não há nenhuma referência a localidades apontadas em mapas. Sabe-se apenas que os dois heróis da história “eram vaqueiros”, “campeiros da mesma fazenda”. É o sertão nordestino: novilhas, bois, cavalos, mulungus, cumarus, imburanas, veredas. Em “Isabel” as ações se dão no Ceará, “numa capoeira deserta, na seca ribeira do Sitiá”, proximidades de Quixadá. Os personagens vivem numa terra pedregosa. Isabel e o marido viviam de um “roçado pequeno, quase no quintal da casa”. Ela criava galinhas, ele “ganhava uns vinténs no corte de lenha”. Outro conto ambientado no sertão do  Ceará é “Cabeça-Rosilha”, nas fazendas Junco e Califórnia. História de touros bons de briga. E ainda no Ceará, na cidade de Aroeiras, se desenrola a narrativa intitulada “O telefone”. Um dos personagens tem casa na praça da Matriz, “com dezoito portas e janelas de frente, oito para a praça e dez no oitão”, típica casa dos ricos nas pequenas cidades do interior nordestino nos séculos XIX e XX.

Em “O vendedor de ovos” o episódio é narrado numa delegacia de polícia de cidade pequena. A trama, porém, ocorre nas ruas. O personagem Anjinho vive “pelos trens, comprando ovo aqui, vendendo ovo na cidade.” Os personagens de “O jogador de sinuca” participam de drama na cidade mineira de Lafaiete, mais precisamente no salão do Bar Campestre, onde disputam uma partida de sinuca.

Em “Vozes d’África” os personagens vivem “isolados, como num sertão longínquo”, no Estado do Rio de Janeiro. Moram numa casa de taipa com telhado de sapé. Uma comunidade de negros. Em “Cremilda e o fantasma” o drama se desenrola numa cidade grande (Rio de Janeiro?) ou, mais especificamente, numa mansão, “trabalho de mestre-de-obras português, portais de cantaria, varandim, sacadas de ferro batido, soalho de acapu e amarelo e até vitrais de cores nos janelões”. Também no Rio de Janeiro se desenvolvem as ações de “O homem que plantava maconha ou Exu Tranca-Rua”. O protagonista morava no Morro do Bugue-Iúgue e vendia diamba a um motorista de caminhão que tinha ponto no Campo de São Cristóvão.

Em “Tangerine-Girl” não há referência a nenhuma localidade específica. A narradora menciona a casa da protagonista, localizada “a algumas centenas de metros” da “base aérea dos soldados americanos”. A garota é brasileira, posto que “pôs-se a estudar com mais afinco o seu livro de conversação inglesa”, a fim de poder entender as mensagens dos marinheiros estrangeiros.

Os dramas dos contos de A Casa do Morro Branco abordam os mais variados temas. Ma-Hôre, o homúnculo da raça dos Zira-Nura, “dois palmos de estatura”, se vê diante de quatro gigantes humanos, numa nave espacial avariada. A história pode ser lida como ficção científica, mas também como mensagem aos exploradores do espaço sideral, sempre certos de que são seres superiores. Ma-Hôre é visto como “anão intruso”, “pequeno humanoide”. No entanto, acaba matando os astronautas e tripulando a nave, “na marcha de regresso à terra dos Zira-Nura”. Os heróis humanos são vítimas de um minúsculo ser de outro planeta.

A morte também está presente em “Natal no Paraguai”. E também a “vingança” do inimigo do suposto herói, no caso o soldado brasileiro. O tempo histórico aqui é o da Guerra do Paraguai, a do “tirano López” e de Pedro II, “imperador brasileiro”. Rachel utiliza na narração a mistura de falas: ora do narrador onisciente, ora do protagonista, em monólogo interior. A cena final (o surgimento de dois meninos paraguaios), até o desfecho (a morte do soldado brasileiro), é magnífica enquanto narração. Outra vingança é de Isabel, no conto que leva o seu nome. O marido vivia bêbado, a roncar na cama feita de “quatro forquilhas de palmo e meio de altura, dois caibros fazendo as barras e a estiva de varas servindo de enxerga”. Isabel vivia de “costas magoadas”, de tanto apanhar do marido: (...) “enrolou a mulher com o relho, que sibilou no ar, com um silvo de cobra”. A cena da morte do homem é de um realismo alucinante. São quase três páginas de narração: “Esteve algum tempo a olhar a criatura.” Segue-se a cena em que ela ajeita na rede o corpo dormido do homem. “Isabel tirou a agulha que enfiara no peito do casaco. E rapidamente costurou uma contra a outra, as duas beiradas da rede” (...). Finalmente “malhou a cabeça que a rede envolvia e o pilão amparava por baixo.” Dá-se a primeira pancada. O corpo se imobiliza. Mesmo assim “Isabel continuou batendo, batendo ritmicamente, até perder a força no braço.”

Em alguns contos a escritora se serve da sua vocação de cronista e vez por outra se imiscui na história. Em “A Casa do Morro Branco” é assim: “Só conheço o lugar de vista.” Ou ao dizer “nós do Nordeste”. A cronista também se mostra em “Os dois bonitos e os dois feios”. A narrativa se inicia com uma longa digressão sobre o amor: “Nunca se sabe direito a razão de um amor.” No segundo parágrafo anuncia: “O caso que vou contar” (...). E mais ainda aqui: “nós mulheres estamos habituadas” (...). Em “Cremilda e o fantasma” a narradora-escritora não se contém: “sei que pela manhã viu-se” (...). Ou: “se me permitem dizer.” E ainda: “esqueci de contar que em vida o moço” (...). Em “O jogador de sinuca” a cronista reaparece logo no início da narrativa, a tecer loas às cidades históricas de Minas Gerais. E no meio da narração: “nunca vi ninguém produzir tal impressão” (...). Em “Tangerine Girl” a narradora põe a língua de fora no meio da narração: “Não sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a ideia de atirar um bilhete.” E em “O homem que plantava maconha ou Exu Tranca-Rua”, na primeira frase: “Esta história é um pouco comprida e complicada.” No início da segunda parte do conto pergunta ao leitor: “Já falei que o nosso amigo se chamava Henrique?” Em “Cabeça-Rosilha” a narradora escreve: “ainda me lembro”. Mais adiante esclarece ao leitor que a fazenda Califórnia “era de minha avó”. Nada disso, porém, impede que denominemos de contos as histórias deste livro, exceção feita ao “ensaio” intitulado “A presença de Leviatã”.

O tempo se dilata por anos e anos em “A Casa do Morro Branco”, dividida em três partes e três tempos. Na primeira, “O avô”, é mencionado o ano de 1825, data da chegada de Chico Aruéte ao Morro Branco. Na segunda, “O filho”, “o vigário se saiu com um relaxo em latim”. Na terceira, “O neto”, apareceu “um bando de cavaleiros desconhecidos, que se diziam revoltosos da Coluna Prestes.” No mais das vezes, no entanto, o episódio ou os episódios decorrem num restrito lapso de tempo, como em “O vendedor de ovos” – apenas o tempo de um curto interrogatório numa delegacia de polícia. Em “Cremilda e o fantasma” o episódio central é narrado após uma série de delongas, até que “alguns anos atrás” “dera-se um crime impressionante.” Narrados o crime (a morte de Armando, “um moço solteiro, herdeiro universal da avó”) e suas consequências, são “passados tempos”, o personagem chamado de “o velho” ou “o apóstolo” ou “o pai de Cremilda” passa a habitar a casa onde ocorrera a morte do rapaz. “Passados os primeiros dias” (...), “em certa manhã da segunda semana”, “Armando aparecera”. Inicia-se o episódio principal, que decorre em dias e dias, depois em meses e meses, até o desfecho, com o parto de Cremilda: o menino “nasceu morto”, porque filho do fantasma de Armando.

Além desta história de espiritismo, Rachel de Queiroz dedica outro conto à religião, o de Exu. O aparecimento de “um homem morto na esquina do Tenaro” atrai curiosos e a polícia. A narradora conta fases da vida do morto, o Henrique, ou o Rico, desde quando cultivava um roçadinho de diamba em Alagoas, ao tempo do governo de Arnon de Melo. De plantador passa a consumidor ou usuário. Além disso, adota a magia negra e se transforma em cavalo de Exu. Ao mexer num despacho de outro Exu: “Baixou a mão, revolveu a farofa com o dedo, atirou longe uma moeda, sonâmbulo, sonâmbulo de todo. Apanhou o charuto, que chegou aos lábios, mas soltou antes de morder. Por fim pegou na garrafa, tirou a chapinha nos dentes – imagine que força de transe – e foi tacando o marafo na boca.” E a seguir principia a morrer, até “cair de borco por cima do despacho. Morto.”

Tirante o extraterrestre Ma-Hôre, os personagens de Rachel de Queiroz são tipos sertanejos, urbanos, metropolitanos de um Brasil atrasado (em oposição a globalizado), mas culturalmente rico, mesmo quando essa riqueza se manifesta em ardis espiritistas (fantasmáticos) ou quimbandistas. Esses tipos comuns da gente brasileira nada têm de caricatural, mesmo em contos em que a sátira ou o cômico se manifestam. Enfim, são personagens cujos nomes podem figurar nas galerias mais requintadas da arte de contar.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Francisco Miguel de Moura (Chico Miguel) (Sonetos Escolhidos 5)

NÓS E O PLANETA
-
Nascemos num oceano de incertezas,
São vidas sobre vidas, muitas vidas.
Que no combate até desconhecemos
Se são amigos nossos ou inimigos.

A ciência desvenda-nos perigos
De vírus a bactérias, faz vacinas
Contra os males fatais que nos imolam,
Pois somos nós os monstros. E sorrimos.

Também, com relação ao universo,
Somos futuros vírus já dispersos,
Na Terra, onde seremos os seus réus.

Fazemos, desta casa azul, um lixo...
Pensando (ou sem pensar) que com tudo isto
Estamos, corpo e alma, indo pro céu.
-
JANEIRO
-
Janeiro, enfim, colhe a primeira folha
Já pelas frinchas da manhã que vem,
Não sabe o que virá, não tem escolha,
Dirá amanhã: a morte, o mal, o bem...

Não olha, com olhos doces, para trás,
Nem sequer se arrepende de algum erro.
Mas vai, segue, danado como um perro,
Puxando o ano em tudo quanto faz.

Na alvorada, sozinho, só consigo,
Sem fama ou gloriolas pra contar,
Nascido forte, enfrentará o perigo.

Mas agora, na calma de quem ama,
Vendo, do dia, a clara, a acesa chama,
Confia e toca as bolas pra rolar.
-
GÊMEOS
-
Razão e sentimento – a contradança,
da natureza, em seio feminino,
onde nascem saber, suor, destino,
vida, tristeza, glória... o que se alcança.

Porém, se um prato pende da balança,
se pesa mais razão que sentimento,
de Deus se quebra todo o pensamento
e o homem perde o estribo da esperança.

Sem os tons, sem o ritmo dessa dança,
é quando a vida se transforma, ou cansa,
é quando a dor é luto... E morre a paz.

Inseparáveis dons, duplas crianças
gêmeas no corpo, na alma e nas heranças,
se se separam, morrem. Nunca mais!
-
CONTRA A TEORIA
-
Meus mestres do fazer por sentimento
me põem guardas contra as teorias,
de religiões, partidos, guerras frias,
quentes, mornas, e deuses...Que tormento!

Lendo o verbo, seus versos em poemas,
vindos de longe mas chegados cedo,
sem ter medo de ser, para que medo?
Humanidade, amor são nossos temas!

No mundo velho, o tudo é o tecer novo,
o melhor vem de nós e vem do povo,
porque, dizendo assim é que não minto.

E eu, sem acreditar em tanto aleijo,
descreio nas verdades que não vejo,
confio ao coração o que amo e sinto.
-
A VOZ DO FETO
-
Mamãe querida, tenha fé em Deus,
Não tome esse remédio que envenena,
Ainda sou pessoinha tão pequena,
Não me troque por vãos prazeres seus.

Respeite: a minha vida é sua vida,
Você pode ser boa e dar carinho,
Quando aí eu chegar com meu chorinho
Você se sentirá bem comovida.

Quando eu nascer serei a recompensa.
Ai, sou pequeno! E como defender-me?
Posso saber por que em mim não pensa?

Quero dormir, não ser expulso agora,
Não me possua qual se fosse um verme.
Só Deus nos diga: “Já chegou a hora!”
-
SUTILEZAS DO PRETO
-
Ninguém falou nem me escreveu ainda
do preto – as sutilezas e o sentido.
Serão verbais por existir o branco?
Ou o homem-natureza contradiz-se?

Da beleza e fealdade, qual o espírito?
A luz que vem do sol nos ilumina
O dia. E, à noite, então, por que esconder,
Dentro do escuro, as curvas e as esquinas?

Ser linhas sem contorno? Nesta vida,
Só existe a luz porque dois olhos temos,,
Assim, as manchas negras nunca vistas.

Furos de negro, atrás dos olhos, vejam
O que há no mundo que nós nem sonhamos,
E o que perdemos na hora de nascer.
-
A LÍNGUA
-
A língua portuguesa que falamos
palmilhou, no Brasil, ínvios caminhos,
ganhando mais bondades e carinhos,
debaixo deste sol que muito amamos.

Junto à mãe preta e junto à índia em flor,
o português saudoso em seu transporte,
aqui chegado do hemisfério norte,
pega brilho na voz, nos olhos, cor.

Selvagem, forte, dúctil, na verdade,
rica e serena, triste na saudade,
franca nas decisões, porém com calma.

A língua portuguesa é, docemente,
a minha voz (e a de milhões de gente)
como parte profunda de minh’alma.
-
A COISA BRABA
-
Quando acordo e me vejo pelo espelho
do meu quarto, a janela inda fechada,
nada do que já fui, nada do velho
me vem à frente. Onde perdi a estrada?

Sinto-me preso a um mundo que desaba,
sem graça, sem amor, sem segurança.
Não sei de onde é que vem a coisa braba,
se é por defeito meu, se é por vingança.

Tudo foge de mim. Onde está o homem?
O tórax sufocado pelo abdômen
e é tudo que me sobra do “eu” aflito.

Tento entender meus males, fecho o senho,
mas não sei por que diabos me contenho,
sem forças de gritar...Retenho o grito.
-
SONETOS BRANCOS (1)
-
Andei por outros ritmos altos, brancos,
No tempo em que as palavras me mordiam,
Porém se foram com meus devaneios...
E a vida me agarrou pelos cabelos.

Por rosto e carne, amor fui e voltei
Ao pecado do amor, na escuridão
Dos dias claros, fosse maio ou agosto,
Fosse praia ou inverno, vento ou calma.

O amor negou-me. Mas por que negar
Tranquilidade, o bom humor, a luz
Para vencer o que outros já venceram?

E eu reneguei-o então, só por vaidade,
Fui sozinho e mais triste que sozinho,
E me fiz, me desfiz em toda parte.
-
SONETOS BRANCOS (2)
-
Se sofri, se gozei, ninguém me aborda,
Que ninguém quer saber do amor alheio,
Nem do sabor dos beijos que, não dados,
Foram belas fatias noutros beijos.

O que vale é o desejo mais intenso,
Ou a paixão invisível que nos cega.
Que o mundo diga: “amigo, tu és tolo”,

Ninguém quer ter a morte sem peleja.
Das faltas, a lembrança viva e forte,
De vez em quando, rompe meus lençóis,

De verdade ou na pura indiferença.
Tantas vezes no sonho é que se vive,
Inventa e reinventa o ser feliz,
Mesmo depois de estarmos acordados.
-
SONETOS BRANCOS (3)
-
Branco é o linho e branca é a pureza,
E se eu sou branco, as cores não me atingem,
Negra, amarela, verde... No meu baile,
Todas dançam com a mesma sutileza.

Por dançar mal, conheço, sou levado,
No vai-e-vem das buscas atrasadas.
Quantas vezes não minto, contrariando,
Porque, no descansar, o gozo é ver-se!

Nada melhor que um riso feiticeiro,
Mesmo sem ter certeza pra onde vai...
Que alegria a pesar-lhe na cabeça!

Melhor nem pensar nisto e antegozar
O céu do amor num leito quente e fofo
Pondo alvorada em seus amanheceres.

Fonte:
O Autor

Ialmar Pio Schneider (Caderno de Trovas)


Acabou-se da memória
o desejo de te amar,
mas ninguém me rouba a glória
de em meus versos te cantar!...
* * *
A desculpa não aceites
de que o relógio parou,
pois na cabeça os enfeites
foi ela que te botou.
* * *
Alta noite, escrevo versos,
sentindo a falta de alguém;
quem me dera que dispersos,
ela os ouvisse também...
* * *
Amiga de muitos anos,
companheira de verdade,
enfrentando os desenganos,
ela se chama: saudade.
* * *
Amor platônico, medo
de não ser correspondido;
quando alguém ama em segredo,
depois fica arrependido…
* * *
Andei por árduo caminho
no qual não quero andar mais;
e voltei para o meu ninho
como voltam os pardais...
* * *
Anoitece lentamente
quando medito sozinho
e me quedo descontente
distante do teu carinho.
* * *
A noite desceu aos poucos
e no céu surgiu a lua
para os boêmios e loucos
que vagam a esmo na rua.
* * *
Ao tentar criar poemas
para contar minha história,
me deparei com dilemas
na fase contraditória...
* * *
Aquela que um dia fez
meu coração palpitar,
hoje não saiba, talvez,
desta saudade sem par.
* * *
Às vezes me contradigo
sem querer, naturalmente,
pois corro sempre o perigo
de te amar inutilmente.
* * *
A trova que canto agora
tem sabor de nostalgia,
por alguém que foi embora
quando mais bem a queria.
* * *
Busco na trova a harmonia
para equilibrar a vida;
é o resumo da poesia
em quatro linhas contida.
* * *
Cada paixão que me invade
surge do amor que não tive;
e representa a saudade
de quem neste mundo vive.
* * *
Chega em casa quando quer,
mas o dia já raiou,
e vai dizendo à mulher:
- O meu relógio parou!
* * *
Como tarda anoitecer
nestes dias de verão,
quanto é difícil viver
mergulhado em solidão.
* * *
Contigo no pensamento,
eu vou compondo esta trova,
porque neste sentimento
minha paixão se renova.
* * *
Coração aventureiro,
vive sonhando um amor,
que pode ser verdadeiro,
infeliz ou enganador.
* * *
Cresce a planta no jardim
por força da natureza;
e cresce dentro de mim
o amor à tua beleza.
* * *
Desejo fazer somente
o que deveras me apraz,
levando os sonhos em frente,
deixando as mágoas pra trás.
* * *
De manhã cedo levanto
e ao Senhor dos Céus imploro,
que me ajude quando canto
e me console se choro.
* * *
Desejo que o nosso amor
nunca seja de mentira;
por isto sou trovador
romântico, ao som da lira.
* * *
De tudo que amo e venero,
vem em primeiro lugar,
teu beijo doce e sincero
que me faz revigorar.
* * *
Devo te dizer cantando
para que escutes sorrindo
e assim vás acreditando
que eu não esteja fingindo...
* * *
Dos versos soltos que faço,
um deles tem mais calor;
porque lembra teu abraço
e nossos beijos de amor..
* * *
Duas coisas levo medo,...
faço pouco e até duvido:
mulher que guarde segredo,
livro ao dono devolvido!
* * *
Eis que chega a primavera,
trazendo-me novo alento,
vivo o “suspense” da espera
de te encontrar num momento…
* * *
Escrevo trovas sentidas
num desabafo de dor:
são as ilusões perdidas
de certo frustrado amor.
* * *
Esse amor que tu me deste
foi efêmero, fugaz...
Por isto a tristeza investe,
arrebatando-me a paz.
* * *
Este amor que não resiste
às tentações deste mundo,
se não fosse assim tão triste,
pudera ser mais profundo.
* * *
Estivemos frente a frente,
mas nenhum de nós sorriu;
parecias diferente
que me deixaste arredio.
* * *
És uma estrela tão alta,
brilhando no firmamento,
que a minha canção exalta
no calor do sentimento.
* * *
É tão tarde... a madrugada
daqui a pouco vai raiar;
e pensando em minha amada
quero dormir e sonhar...
* * *
Eu agora não me espanto
e nem me causa pavor,
o terrível desencanto
que sofri por teu amor.
* * *
Eu caminho lentamente
pelas areias do mar,
debaixo do sol ardente
que descamba devagar...
* * *
Eu fui ficando distante
e vivendo da saudade,
pois desejo, doravante,
somente a sinceridade...
* * *
Eu fui te ver certo dia
e apenas me confundiste;
ia cheio de alegria
e voltei magoado e triste.
* * *
Eu fui vivendo meus dias,
procurando te olvidar,
e quantas horas vazias
se arrastavam devagar...
* * *
Eu já vou me convencendo
que nada sei pra ensinar;
amei tanto e não compreendo
o que significa amar.
* * *
Eu levo a vida cantando
minhas trovas e canções;
só assim vou afastando
mágoas e desilusões.
* * *
Eu não sou navegador,
mas enfrento o mar da vida,
por causa do nosso amor
que não teve despedida.
* * *
Eu te esperei tantos anos,
até não conseguir mais
aguentar os desenganos
que o teu desprezo me traz.
* * *
Eu te quis com tanto afã,
não pude te conquistar;
pela tentativa vã,
peço perdão por te amar...
* * *
Faço de conta que penso
e me concentro demais;
todavia me convenço
que não me encontro jamais...
* * *
Faço versos para alguém
que surgiu em minha vida
e agora com seu desdém
me deixou a alma ferida.
* * *
Faze da trova teu lema
com grande satisfação
e terás em cada tema
um motivo de emoção.
* * *
Fiquei contente ao saber
que realizaste teu sonho,
pois fazes por merecer
um futuro assaz risonho.
* * *
Fora bom que tu partisses
para nunca mais voltar;
assim talvez conseguisses
que eu pudesse te olvidar...
* * *
Foste a morena brejeira
que surgiu em meu amor
como o botão da roseira
que agora não dá mais flor.
* * *
Fui feliz antigamente,
quando era um pobre menino;
e só vivia o presente,
sem me importar com o destino.
* * *
Hoje não tenho alegria
por sentir esta saudade
que nasce de quem fazia
a minha felicidade.
* * *
Iremos os dois sozinhos
em meio da multidão,
por diferentes caminhos
que jamais se encontrarão.
* * *
Já não canto por desgosto
e nem por felicidade,
mas, à tardinha, ao sol-posto,
eu me quedo na saudade...
* * *
Mesmo depois de velhinho,
se Deus me der esta graça,
quero sentir o carinho
do amor total que não passa...
* * *
Meu amor foi o mais louco,
pois nasceu de uma esperança,
que não vingou nem um pouco
e transformou-se em lembrança.
* * *
Meu amor simples em tudo
não te convenceu bastante,
porque permaneço mudo
ao te ver tão deslumbrante.
* * *
Meu coração se consterna
olhando a noite estrelada;
no mundo quem me governa
são as carícias da amada.
* * *
Meu coração se enternece
quando vejo os passarinhos,
no instante que a noite desce,
retornarem aos seus ninhos.
* * *
Meu coração treme ainda
ao lembrar-te com saudade,
porque por seres tão linda
eras a felicidade!
* * *
Minhas mágoas já são tantas
que não posso descrevê-las;
é como se pelas tantas
fosse contar as estrelas...
* * *
Nada te digo nem quero
que alguma coisa me digas;
se às vezes me desespero
eu me desfaço em cantigas...
* * *
Não estás junto comigo
nestes momentos adversos;
no entanto, pra meu castigo,
vives inteira em meus versos!
* * *
Não façamos desta vida
um motivo de revolta;
nesta estrada sem saída
é tão difícil a volta.
* * *
Não foram horas perdidas
as que passei junto a ti;
são lembranças bem vividas
que nunca mais esqueci...
* * *
Não há mentira mais louca
da que sai do coração,
pois a que nasce da boca
quase sempre é pretensão.
* * *
Não há poder que consiga
me demover da vontade,
de tê-la só como amiga
quando me assalta a saudade.
* * *
Não me iludem teus olhares
e nem tampouco teus risos:
são expansões singulares
ou desejos indecisos ?!
* * *
Não te desprezo, nem quero
o teu desprezo, igualmente;
se o amor não é sincero
procuro esquecer, somente...
* * *
Não vais chorar, certamente,
ao saberes que te quero
e creias, porém, somente
que tudo... tudo é sincero.
* * *
Nesta manhã radiante
de sol claro e resplendente,
por seres tão inconstante,
me deixas tão descontente...
* * *
Nosso amor já teve fim,
pois não esteve ao alcance
o que você quis de mim
pra ter sucesso o romance.
* * *
O amor à primeira vista
visitou meu coração,
mas no instante da conquista
vi que tudo foi em vão.
* * *
O amor de quem não desiste,
seja forte, seja brando,
há de permanecer triste
que nem flor que vai murchando.
* * *
O amor platônico vive
em minhas trovas também;
foi um que uma vez eu tive
e não me fez muito bem.
* * *
O amor tem prazer e pranto,
também mágoas e carinhos;
pois assim sendo, portanto,
não há rosas sem espinhos!
* * *
O calor convida ao mar
aonde o meu desejo vai,
preciso te procurar
quando a tarde aos poucos cai.
* * *
O que me causa tristeza
não é saber que não me amas,
é tão-somente a certeza
que sofres e não reclamas !
* * *
O tempo que tudo apaga
só deixa recordação,
que nem uma viva chaga
sangrando no coração.
* * *
Para esquecer-te procuro
me envolver na multidão,
mas não me sinto seguro
e retorno à solidão.
* * *
Para sofrer tanto assim
fora melhor não revê-la;
está tão longe de mim
como se fosse uma estrela.
* * *
Para te amar me concentro,
esperando chegar a hora;
pois quem não ama por dentro,
não adianta amar por fora.
* * *
Para tê-la novamente
andei por muitos caminhos
e retornei descontente
sem conseguir seus carinhos...
* * *
Para viver com carinho
procurei amar alguém;
hoje sinto que sozinho
eu vivia muito bem.
* * *
Pelo amor sempre sonhado
e nunca correspondido,
vou cantar um verso alado
pra que chegue ao teu ouvido.
* * *
Pelos caminhos da vida
fui deixando para trás,
como em cada despedida
um sonho que se desfaz.
* * *
Penso em ti quando a saudade
me visita de surpresa
e na minha soledade
recordo a tua beleza.
* * *
Perambulando sozinho
pelas ruas da cidade,
procuro achar o caminho
que leva à felicidade.
* * *
Perdido em divagações
sento à beira do caminho,
como se as recordações
não me deixassem sozinho.
* * *
Perto de ti me convenço
que nada posso fazer,
sem empregar o bom senso
para afinal te esquecer.
* * *
Por mais que tente esquecê-la,
não consigo meu intento,
sempre será qual estrela,
brilhando no firmamento.
* * *
Posso perder-te... que importa
se não queres me aceitar...
Há muito tempo está morta
a vontade de te amar.
* * *
Proclamas que és minha amiga...
ou foges da realidade ?!
Não te importas que eu te diga
desejar mais que amizade ?!
* * *
Quando te vejo sorrindo,
não consigo disfarçar,
este desespero infindo
de não poder te beijar.
* * *
Quantos amores têm fim
por falta de persistência,
não concretizando assim
a base da convivência.
* * *
Quem há de saber do enredo
de um romance fracassado,
se tudo fica em segredo
e nenhum quer ser culpado?!
* * *
Quem quiser ser trovador,
seja primeiro aprendiz,
mesmo em matéria de amor
se aprende pra ser feliz.
* * *
Roubei-lhe um beijo, ao passar
ao meu lado, sorridente;
e lembrando seu olhar,
de noite, dormi contente...
* * *
Saudade!... palavra viva
do que ficou no passado;
és o bem que nos cativa
para sempre ser lembrado!
* * *
Se amar causa sofrimento;
é preciso suportar...
pois não há pior tormento
do que sofrer sem amar...
* * *
Se amei e fui preterido,
pouco me importa até quando,
pois não me dou por vencido
e continuo te amando.
* * *
Se eu não sentisse saudade
daquela que tanto quis,
talvez a felicidade
não me fizesse infeliz.
* * *
Segue teu rumo que eu sigo
o meu destino também,
se não pude andar contigo
vou procurar outro alguém...
* * *
Segura o pouco que tens
e amanhã podes ter mais,
porque de todos teus bens
preponderam ideais.
* * *
Se leres os versos soltos
neste livro de lamentos,
que não te assaltem revoltos,
infelizes sentimentos...
* * *
Sempre existe na existência
pra nos fazer infeliz,
um amor sem convivência
que a gente esperou e quis.
* * *
Sendo um simples aprendiz
de saber da trova o enredo,
sinto que não sou feliz
e me condeno em segredo.
* * *
Se o amor não tem futuro
e vive só da esperança,
é qual um tiro no escuro
e sem querer você “dança”.
* * *
Se pudesses compreender
a paixão que me enlouquece,
nunca mais o teu viver
uma só mágoa tivesse...
* * *
Se tens amor e resistes
às ligações perigosas,
teus dias não serão tristes
e viverás entre rosas...
* * *
Se tens amor não escondas,
muito sofri por contê-los;
ele surge como as ondas
e foge ao não ter desvelo...
* * *
Se tens amor não o escondas,
proclame-o para quem é;
as paixões são como as ondas
que aproveitam a maré.
* * *
Se te querer foi loucura,
eu serei um triste louco,
por te dar tanta fartura
e ter em troca tão pouco.
* * *
Sócrates assim dizia:
“Eu só sei que nada sei.”
E com tal filosofia
eu também responderei.
* * *
Sofro por ti, me atormento
a cada instante que passa;
e neste martírio lento
vou vivendo na desgraça...
* * *
Tenta fazer do teu verso
uma lição de ternura;
então terás do Universo
a mais sublime ventura...
* * *
Trovas de amor e saudade
trazem mil temas diversos,
mas predomina a amizade
nascendo de tantos versos...
* * *
Tudo não passou de um sonho
tão rápido e fugidio;
um pensamento enfadonho
que de nada me serviu.
* * *
Tu me procuras sorrindo
e te recebo contente,
como se fosse surgindo
um novo amor de repente!
* * *
Tu mereces muito mais
daquilo que posso dar-te,
mas um dia entenderás
que te dei toda minha arte.
* * *
Tudo tem o seu começo
e um fim também há de ter,
mas das dores que conheço
a pior é não te ver...
* * *
Vai-se um amor... outro vem...
e assim se passam os dias.
Os nossos sonhos também
são de mágoas e alegrias.
* * *
Vida de amor e saudade,
que junto com nossos sonhos,
também traz a realidade
e momentos enfadonhos.
* * *
Vive de amor, se te apraz,
e nunca percas a calma;
porque a verdadeira paz
só se encontra dentro da alma.

Fonte:
O Autor