quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) O velho Querecas

Eram três irmãs, muito pobres, que viviam do seu trabalho aturado. Naquela terra havia uma casa em que ninguém queria morar porque lá dentro ouviam-se de noite grandes gritos e terrores; as raparigas, para pouparem o aluguel, foram pedir para as deixarem morar naquela casa. A mais nova, como mais animosa, foi morar para o último andar.

Uma noite, mal ela se tinha acabado de deitar, ouviu uma voz gritar:

– Eu caio!

– Pois cai! – respondeu-lhe a rapariga. De um buraco do teto caiu uma perna. Depois soou de novo o mesmo grito:

– Eu caio!

– Pois cai! – repetiu a rapariga; e assim foram caindo os braços, o tronco, até que ela achou diante de si um homem já muito velho e calvo. O velho chegou-se próximo da rapariga, e perguntou-lhe:

– Não tens medo de mim?

– Não.

– Fazes muito bem; és a primeira e única pessoa que resiste ao medo de me ver. Em paga da tua coragem toma lá esta bolsa, e quando te vires nalguma aflição diz sempre: Valha-me aqui o velho Querecas.

O dinheiro da bolsa nunca se acabava, e as três irmãs começaram a viver com largueza. No entanto a mais nova começou a sentir que por mais que se fechasse no seu quarto parecia-lhe que sentia meter-se alguém na cama com ela. Lembrou-se se seria o velho Querecas, e teve uma certa repugnância; mas para certificar-se, uma noite acendeu de repente a luz, e viu deitado ao pé dela um mancebo formoso, que estava adormecido. Estava tão embebida a olhar para ele, que lhe caiu um pingo de cera na cara. O mancebo acordou de repente, e disse:

– Ah! Desgraçada, o que fizeste; dobraste-me o encantamento, que estava quase no fim! Agora não me tornas mais a ver.

A menina chorou muito, e ainda mais quando conheceu o estado em que se achava. Lembrou-se então do segundo dom, e disse:

– Valha-me aqui o velho Querecas.

– Aqui estou já, e bem sei porque me chamas. Há só um modo de remediar o mal que a ti mesma fizeste. Toma lá estes três novelos, e vai andando sempre, sempre até onde eles se acabarem; onde quer que seja pede que te deem aí pousada do ar da noite.
   
A rapariga chorou por ter de deixar as irmãs, mas o que ela queria era quebrar o encantamento daquele moço; foi andando, andando até ir dar ao fim de muito tempo a um palácio cercado de um rico jardim. Espreitou pelo buraco da chave, e viu lá dentro uma sala com muitas mulheres trabalhando em lindos vestidos de noivado, e fazendo as roupinhas de uma criança. Teve receio de bater àquela porta, e foi rodeando o palácio, até que encontrou o hortelão, a quem pediu pousada. O hortelão respondeu-lhe:

– Você sabe em casa de quem está para vir assim pedir pousada?

– O que sei é que já me não tenho de cansada; e é por uma esmola.

O hortelão teve dó da rapariga e deu-lhe um canto no palheiro; ela deitou-se mais morta que viva, e ali mesmo deu um menino à luz. Tudo aquilo se transformou num quarto muito asseado e rico. Quando o hortelão veio ao outro dia, ficou pasmado com o que viu. Foi dar logo parte à rainha, que também quis certificar-se da maravilha. Quando chegou ao lugar em que estava a menina deu um grito ao ver a criança:

– Oh senhora! Quem é o pai deste menino?

A rapariga ficou muito envergonhada por não poder logo dizê-lo; no meio da sua confusão contou o caso do velho Querecas. Foi então que a rainha se lembrou:

– Esse menino é o retrato de meu filho, que me desapareceu, sem nunca mais saber dele nova má nem boa.

A rainha levou a rapariga para o palácio, tratou de lavar a criança, e quando a despiu achou-lhe nas costas um grande sinal. Reparou, e viu que era um pequeno cadeado com uma chavinha. Quis ver se o abria, mas com receio disse à mãe que experimentasse a ver se dava volta àquela chavinha. Logo que a mãe pegou na chave abriu o cadeado, e imediatamente se quebrou o encantamento do príncipe que deveu a sua liberdade ao ânimo daquela rapariga com quem casou logo.
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Notas Comparativas

À parte os episódios comuns a muitos contos, é este uma das formas do mito de Psique.

Gubernatis, na Mythologie zoologique (t. I, p. 437), traz uma variante deste conto coligida em Fucecchio, na Toscana, em que o desencantamento do príncipe é devido à coragem da donzela. As circunstâncias episódicas divergem e pertencem a outro ciclo novelesco.

Um conto coligido em Cosenza, na Calábria, por Greco, traz o episódio do ruído noturno, do pingo de cera que acorda o mancebo, e do novelo que deve guiar a menina à busca do amante. (Gubernatis, op. cit., t. II, p. 301, nota 2).

Estas uniões misteriosas acham-se ainda com carácter mítico, no Harivansa, entre Urvasi e Pururavas, e no Mahabahrata, entre Çantana e a ninfa das águas; na lenda grega de Psique, Eros desaparece, quando acorda por causa do pingo de azeite que caiu da lâmpada a cuja luz foi visto.

Bruyere, nos Contes populaires de la Grande Bretagne, p. 183, cita contos pertencentes a este ciclo na coleção sueca de Cavallius e Stephens, Svenska Folksagor och äventyr, traduzida por Thorpe, e na coleção norueguesa de Asbjørnsen e Moe, traduzida por George Webbe Dasent, aparece o episódio do pingo de cera.

Sobre o evidente caráter mítico destas tradições, acrescenta Bruyere: «Em todas estas narrativas a felicidade dos amantes não é de longa duração, porque, apesar da fé jurada, a promessa é sempre violada, e aquele dos amantes a quem o outro faltou à palavra, é forçado a desaparecer, apesar do ardente amor que o consome. M. Cox demonstra que as lendas desta natureza são a representação do mito celeste do Sol seguindo a Aurora, ou reciprocamente. Muitas vezes depois da violação da promessa e da separação dos amantes o mito continua.» (Op. cit., p. 184).

Em um artigo sobre a História do Japão, cita-se também a lenda análoga à de Psique: «Uma parenta do imperador era a esposa do deus Omonomichi. Ele jamais aparecia aos olhos da princesa, pois não se encontrava com ela senão nas trevas. Uma noite ela lhe disse: — Ainda me não foi dado olhar para a tua face; rogo-te que fiques comigo até pela manhã, para eu ter a felicidade de te contemplar.

«Tanto lhe rogou, com tal ternura e tais carinhos, que o esposo cedeu e prometeu-lhe que ficava. Por fim, as primeiras claridades da Aurora entraram no aposento da impaciente princesa, mas qual foi o seu espanto quando ela descobriu, no leito, uma serpente enroscada! Soltou um grito de pavor, e a serpente transformou-se logo num jovem formosíssimo, que lhe disse com expressão de dolorosa melancolia: — Nunca mais, agora, hei de poder estar contigo. E desapareceu. Abatida por tristeza incurável a esposa solitária foi pouco a pouco decaindo até falecer de paixão.» (Do viajante português Mesnier, Actualidade, n.º 241, do IX ano).

O despertar por meio de um raio de luz é frequente, como na Bella Aurora (Spoleto) e La Bella Rosalinda dai capelli d'ori e na novela dinamarquesa de Grandtovig. (Stanislao Prato, Quattro novelline, pp. 156 e 157).

Sobre as origens míticas indo-europeias deste conto, vide Gubernatis, Piccola Enciclopedia indiana, p. 175, em que discute a simultaneidade da representação da Aurora e da Nuvem que desaparecem quando o Sol se mostra. Este ciclo do Amor e Psique foi estudado por F. Liebrecht, Zur Volkskunde (Amor und Psyche).

Na versão do Algarve há o episódio do corpo que cai aos pedaços, para experimentar a coragem da menina; é comum a vários contos, e acha-se na lenda de Atenodoro (ap. Alexander ab Alexandro, lib. III, cap. 12), que o padre Manuel Consciência traduziu na sua Academia Universal de Erudição, p. 545.


Fonte:
Wikisource

Irmãos Grimm (Os Doze Irmãos)

Era uma vez um rei e uma rainha que viviam felizes e em harmonia e que tinham doze filhos, sendo todos garotos. Então, o rei disse para a sua esposa:

- "Se a décima terceira criança que você está para trazer ao mundo for uma garota, os doze meninos devem morrer, para que os bens dela sejam maiores, e para que o reino possa ser dela somente."

Então, ele ordenou que doze esquifes fossem fabricados, os quais já estavam cheios de pedaços de madeiras, e em cada um havia um pequeno travesseiro para o morto, e os caixões tinham sido levados para uma sala fechada, e ele deu a chave para que a rainha guardasse, e pediu para que ela não falasse sobre isso com ninguém.

A mãe todavia, se sentava e lamentava o dia todo, até que o filho mais jovem, que estava sempre com ela, e a quem ela chamava de Benjamin, nome esse que foi tirado da Bíblia, disse a ela:

- "Querida mamãe, porque você está tão triste?"

- "Querido filhinho," respondeu ela, "Não posso lhe dizer." Mas ele não a deixava sossegada até que ela foi e abriu a sala, e mostrou a ele os doze caixões que estavam terminados e cheios de pedacinhos de madeiras. Então, ela disse:

- "Meu querido Benjamin, teu pai mandou fazer estes caixões para ti e para os teus onze irmãos, pois, se eu trouxer uma garotinha no mundo, você será morto e sepultado com eles."

E enquanto ela ia dizendo isso, ela chorava, e o filho a consolava e dizia:

- "Não chore, querida mãezinha, nós vamos nos salvar, e sairemos daqui." Mas ela disse:

- "Vai para a floresta com os teus onze irmãos, e faça com que um fique permanentemente sobre a árvore mais alta que puder ser encontrada, e fique atento, olhando para a torre aqui do castelo.

Se eu der a luz a um filhinho, eu colocarei uma bandeira branca, e então, vocês poderão se arriscar a voltar, mas se eu der a luz a uma menina, eu levantarei uma bandeira vermelha, e então, vocês deverão fugir o mais rápido que puderem, e que Deus possa proteger todos vocês. E eu todas as noites levantarei e farei uma oração para vocês - no inverno, para que vocês possam se aquecer perto de uma fogueira, e no verão, para que vocês não desfaleçam com tanto calor."

Depois que ela abençoou os filhos, eles seguiram para a floresta. Todos eles, no entanto, ficavam atentos, e se sentavam no pé de carvalho mais alto da floresta e ficavam olhando em direção à torre. Quando onze dias tinham se passado, e tinha chegado a vez de Benjamin, ele viu que uma bandeira tinha sido hasteada. Não era, no entanto, uma bandeira branca, mas uma bandeira vermelha, a qual anunciava que todos eles deviam morrer.

Quando os seus irmãos souberam daquilo, eles ficaram muito bravos, e disseram:

- "Todos nós devemos sofrer por causa de uma garota? Juramos que todos nós iremos nos vingar! - quando encontrarmos uma menina, o sangue vermelho dela deve jorrar."

Então, eles penetraram mais fundo na floresta, e no meio dela, que era a parte mais escura, eles encontraram a pequena cabana abandonada de uma feiticeira, onde não havia ninguém. Então, eles disseram:

- "Vamos ficar aqui, e tu, Benjamin, que és o menor e o mais fraco, tu ficarás em casa e cuidarás dela, nós outros vamos sair para conseguir alimento."

Então, eles foram para a floresta para caçar lebres, cervos selvagens, pássaros e pombos, e qualquer coisa que houvesse para comer, eles levavam um pouco para Benjamin, que tinha de arrumar a casa para eles, para que eles pudessem matar a fome. Juntos viveram eles na pequena cabana durante dez anos, e o tempo não parecia longo para eles.

Apequena garota, que a rainha, a mãe deles, tinha dado a luz, já tinha crescido, ela era boa de coração, e tinha um rosto encantador, e na testa dela havia uma estrela de ouro. Uma vez, quando houve uma grande arrumação no palácio, ela viu doze camisas de homens entre as coisas que estavam lá, e perguntou a sua mãe:

- "A quem pertencem estas doze camisas, porque elas são pequenas demais para serem do papai? Então, a rainha respondeu com o coração dolorido:

- "Querida filhinha, estas camisas são dos teus doze irmãos." Disse a garota, então:

- "Onde estão meus doze irmãos, nunca ouvi falar deles?" A mãe respondeu:

- "Só Deus sabe onde eles estão, eles estão andando pelo mundo." Então, ela pegou a pequena e abriu a sala para a garota, e lhe mostrou os doze caixões cheios de pedaços de madeiras e com os travesseiros para a cabeça.

- "Estes caixões," disse ela, "estavam destinados para os teus irmãos, mas eles foram embora escondidos antes que tu nasceste," então, a garotinha disse:

- "Querida mãezinha, não chore, eu irei procurar os meus irmãos."

Então, ela pegou as doze camisas e partiu, e seguiu direto para a grande floresta. Ela caminhou o dia todo, e a noitinha ela encontrou a casinha da feiticeira. Então, ela entrou na casa, e encontrou um jovem garoto, que perguntou:

- "De onde você veio, e para onde você vai?" e ficou atônito como ela era linda, e usava trajes reais, e tinha uma estrela na testa.

E ela respondeu:

- "Eu sou filha da rainha, e estou procurando meus doze irmãos, e eu irei até o fim do céu azul para encontrá-los." Ela também mostrou a ele as doze camisas que um dia havia pertencido a eles. Então, Benjamin compreendeu que ela era sua irmã, e disse:

- "Eu sou Benjamin, teu irmão caçula." E ela começou a chorar de alegria, e Benjamin chorou também, e eles beijaram e se abraçaram um ao outro como muita ternura.

Depois disto ele disse:

- "Querida irmãzinha, há ainda mais um problema. Nós fizemos um acordo que toda garota a quem encontrássemos deveria morrer, porque nós fomos obrigados a deixar o nosso reino por causa dela!"

Então, ela disse:

- "Morrerei com prazer, se morrendo puder salvar os meus doze irmãos."

- "Não," respondeu ele, "tu não morrerás, fique sentada aqui debaixo deste barril até que os nossos doze irmãos cheguem, e então, eu conseguirei entrar num acordo com eles."

Ela fez o que ele pediu, e quando a noitinha os outros irmãos chegaram da caça, o jantar deles estava pronto. E quando eles estavam todos sentados na mesa, e estavam comendo, eles perguntaram:

- "Quais são as novidades?"

Benjamin respondeu: - "Vocês não souberam de nada?"

- "Não," responderam eles. Ele continuou:

- "Vocês foram para a floresta e eu fiquei em casa, no entanto, eu sei mais do que vocês."

- "Diga-nos, então," exclamaram eles.

Ele respondeu: - "Me prometam primeiro que a primeira garota que nós encontrarmos não irá morrer."

- "Sim," exclamaram todos eles, "ela terá misericórdia, mas, conte-nos logo."

Então, ele disse:

- "A nossa irmã está aqui," e ele levantou o barril, e a filha do rei apareceu com seus trajes reais e com uma estrela na testa, e ela era linda, delicada e meiga. Então, todos eles ficaram felizes, e a abraçaram, e a beijaram e a amaram de todo o coração.

Agora ela ficava em casa com Benjamin e o ajudava no trabalho doméstico. Os onze foram para a floresta para caçar veados, pássaros e pombos, para que eles pudessem se alimentar, e a irmãzinha junto com Benjamim cuidavam da preparação da caça para eles.

Ela procurou na floresta ervas e vegetais para cozinhar, e colocou as panelas no fogo para que o jantar ficasse pronto quando os onze chegassem. Ela também mantinha a ordem na pequena casa, e colocava lindos lençóis limpos e brancos nas caminhas, e os irmãos estavam sempre felizes e viviam em grande harmonia com ela.

Um dia os dois que ficavam em casa, haviam preparado uma bela surpresa, eles se sentaram e comeram e beberam e estavam todos felizes. Havia, porém, um pequeno jardim que pertencia à casa da feiticeira onde ficavam doze pés de lírios, os quais também são chamados de "estudantes." Ela queria fazer uma surpresa para os seus irmãos, e colheu as doze flores, e pensou em presentear cada um deles com uma flor durante o jantar.

Mas no exato momento que ela colheu as flores os doze irmãos se transformaram em doze corvos, e voaram pela floresta, e a casa e o jardim desapareceram também. E agora, a pobre garota estava sozinha na floresta virgem, e quando ela olhava ao redor, uma velhinha estava sentada perto dali e disse:

- "Minha criança, o que você fez? Porque você não deixou que as doze flores brancas crescessem? Eles eram teus irmãos, que agora para sempre foram transformados em corvos." A garota disse, chorando:

- "Não existe uma maneira de libertá-los?"

- "Não," disse a mulher, "só existe uma maneira no mundo todo, e isso é tão difícil que você jamais conseguirá libertá-los desse jeito, porque você precisa ficar muda durante sete anos, e não pode falar nem rir, e se você falar uma palavra, e somente uma hora dos sete anos estiver faltando, tudo estará perdido, e os teus irmãos serão mortos por causa dessa palavra."

Então, a garota falou de coração:

- "Eu tenho certeza de que libertarei os meus irmãos," e foi e procurou uma árvore bem alta e se sentou no topo dela e ficava tecendo, e não falava nem ria. Ora, aconteceu que um rei estava caçando na floresta, ele tinha um grande cão galgo que correu até a árvore onde a garota estava sentada, e pulava em torno da árvore, ganindo e latindo para ela.

Então, o rei se aproximou e viu a bela princesa que tinha uma estrela de ouro na testa, e ficou tão encantado com sua beleza, que ele a convidou para que fosse sua esposa. Ela não respondia, mas fazia pequenos acenos com a cabeça. Então, ele mesmo subiu na árvore, trouxe-a para baixo, colocou-a em seu cavalo e a levou para o seu palácio. Então, o casamento foi festejado com grande festa e muita alegria, mas a noiva não falava nem sorria.

Quando eles tinham vivido felizes juntos durante alguns anos, a mãe do rei, que era uma criatura perversa, começou a difamar a jovem rainha, e disse ao rei:

- "Ela é uma mendiga vulgar que trouxeste da caça contigo. Quem sabe que coisas horrorosas ela não faz às escondidas!"

Ainda que ela seja muda, e não consiga falar, ela poderia sorrir pelo menos, mas aqueles que não riem, tem consciências pesadas." A princípio, o rei não quis acreditar nela, mas a velha falava disso o tempo todo, e a acusava de coisas tão assustadoras, que por fim o próprio rei se deixou convencer e ela foi condenada a morte.

E aconteceu que uma grande fogueira foi acesa no pátio do palácio, onde ela deveria ser queimada, e o rei ficou em cima na janela e via tudo com lágrimas nos olhos, porque ele a amava muito. E quando ela foi amarrada bem forte à fogueira, e o fogo começou a lamber as suas roupas com sua língua vermelha, o último momento dos sete anos havia se expirado. Então, um ruflar de asas foi ouvido no ar, e doze corvos vieram voando em direção à fogueira, e pousaram, e quando eles tocaram a terra, eis que eram os doze irmãos dela, que ela tinha libertado.

E lhes apagaram totalmente a fogueira, extinguiram as chamas, libertam a irmã que amavam tanto, e beijaram e a abraçaram. E agora, que ela podia abrir a boca para falar, ela contou ao rei porque ela tinha ficado muda, e nunca podia ter dado um sorriso. O rei dava pulos de alegria ao saber que ela era inocente, e todos eles viveram em grande harmonia até o fim da vida deles. A madrasta má foi levada para o tribunal, e colocada dentro de um tonel com óleo fervente e cobras venenosas, e teve uma morte cruel.

Fonte:

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 27 – 13 de setembro de 1887

Se Deus me dissesse um dia:
— Que desejas tu, Malvólio?
Castelos na Normandia?
Uma biblioteca in-fólio?

“Um punhado de brilhantes,
Grandes como ovos de pomba?
Um batalhão de elefantes,
Marfim puro e extensa tromba?

“Moças, com as quais cantasses
A vida, e pelo estio,
Cantigas velhas que achasses,
Como esta, no peito frio:

“Cajueiro pequenino,
“Carregadinho de flores
“Eu também sou pequenino,
“Carregadinho de amores.

“Ou tendo espíritos altos,
Ir correr desejarias
Perigos e sobressaltos
De Rússias e de Turquias,

“Pegando, com alma icária
E braços impacientes
A coroa da Bulgária,
E defendê-la das gentes?”

Responder-lhe-ia eu, contrito:
— Não desejo, ó verdadeiro
Deus grande, Deus infinito,
Ser castelão nem livreiro,

Nem ter pedras preciosas,
Nem legiões de tamanhas
Alimárias pavorosas,
Vindas de terras estranhas,

Nem bonitas raparigas
Com quem eu cantar pudera
Algumas velhas cantigas,
Cantigas de primavera,

Menos inda, muito menos,
Correr sem mais nada, à toa,
Pequeno entre os mais pequenos,
A apanhar uma coroa.

Não, o que eu quisera, ó divo
Senhor, que mandais a tudo,
O meu desejo mais vivo,
Que me corrói, longo e mudo,

Era entrar pela janela
Do senado... Olhai, não digo
Pela porta. A porta é bela,
Porém já não vai comigo.

A porta, traz como agora,
Obrigações superfinas;
Li-as em prosa canora,
Sobre as eleições de Minas.

A primeira é que resida
O candidato na terra,
Pois se acaso a própria vida
A outra terra o desterra,

Perca as tristes esperanças
De conservar eleitores.
Se há exemplos, são carranças,
Outra quadra, outros amores.

Olindas, Celsos, Correias,
Nabucos e Zacharias,
São estragadas candeias,
De outros homens e outros dias.

Agora, quanto à segunda
Obrigação do diabo,
É igualmente profunda...
Não se quer nenhum nababo,

Que ande assim, como um tesouro,
Em carruagens de prata,
Cavalos ferrados de ouro,
Um jantar em cada pata;

Mas se o candidato é pobre
E passa a vida lidada,
Não entra em funduras. Dobre,
Amigo, dobre a parada.

Ora, eu que há muito suspiro
Pelo senado, e aqui moro,
Lidando, que mal respiro,
Sem o vil metal que adoro,

Uma noite adormecia
Lendo alguma velha história
De Veneza ou da Turquia,
E acordava em plena glória,

Diante do presidente
Aparecia sentado.
Ai, Deus justo, ai, Deus clemente...
Janela... curul... senado...

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Dimas Carvalho (O Manuscrito)

Epaminondas Pitágoras da Cunha trabalhava numa livraria decrépita, um prédio velho de dois andares, situado numa ruazinha decadente do centro da cidade. Era o único empregado, além de dono, seu Eleutério, muito idoso, surdo, reumático, quase cego. De modo que Epaminondas se via quase que como proprietário absoluto daqueles milhares de livros velhos e empoeirados, perfilados em estantes antigas, e aos quais praticamente ninguém procurava. Porque os clientes, como era de se esperar de tal estabelecimento, eram raros, e também eles antigos, decrépitos e decadentes.

                Os dias se passavam numa monotonia de rio amazônico… Epaminondas, entediado, dava grandes bocejos enquanto folheava páginas esquecidas. Seu Eleutério cochilava na espreguiçadeira, por trás do balcão, o jornal caído entre as pernas, a boca aberta, babando.

                Além dos dois andares, o prédio possuía um pequeno sótão, onde Epaminondas subia, quando estava mais disposto, para fazer a limpeza. Numa dessas vezes, notou que, num canto, havia uma pilha de livros, coisa que nunca antes observara. Aproximou-se e começou a verificar os títulos, manuseando com todo o cuidado as folhas amareladas. A poeira fazia com que espirrasse. Alguns livros estavam roídos pelas traças, outros eram quase ilegíveis. Mas o que chamou mesmo a sua atenção foi um manuscrito encadernado, datado do século XVII, vazado em uma língua que lhe era completamente estranha. Um pequeno texto em Português, que parecia servir de introito, dizia ser a língua o sumério, e que o felizardo capaz de traduzi-lo alcançaria a imortalidade, assim como se tornaria imensamente rico.

                Epaminondas era um homem prático, nada sonhador, bem terra a terra. Riu com desdém daquelas promessas mirabolantes. O absurdo do que lia levava-o a crispar os lábios em um sorriso irônico. Porém, alguma coisa, que ele não saberia explicar o que era, puxava-o para o manuscrito, como o ímã faz com o ferro. Quando desceu do sótão, já estava determinado a aprender o sumério, custasse o que custasse.

                A partir deste dia, a vida de Epaminondas mudou radicalmente. O que era fascinação transformou-se em mania, obsessão, delírio. Tornou-se estudioso. Consagrava todas as horas de lazer ao seu objetivo único. Esqueceu-se de viver, absorveu-se e foi absorvido pelos caracteres mágicos que o enfeitiçavam.

                Foram anos a fio de dedicação, em casa e na livraria. Era com impaciência que atendia os fregueses cada vez mais raros. Comprou livros, pesquisou na internet, fez contatos com sábios do outro lado do mundo. Assinou revistas especializadas. À medida em que prosseguia naquela viagem sem volta, os indícios de que o manuscrito dizia a verdade se avolumavam. Citações milenares, pistas criptográficas, as peças do imenso quebra-cabeças iam se encaixando. Seus olhos adestrados passaram a ver, em coisas aparentemente desconexas, relações profundas e sutis. No final de nove anos de estudos, sentiu que estava a um passo de dar o grande salto, de penetrar enfim a grande porta que guardava o Mistério.

                Foi por esse tempo que o Seu Eleutério morreu, exatamente ao meio-dia, sentado na espreguiçadeira, o jornal dobrado nos joelhos. Como o velho fosse viúvo, e não tivesse filhos ou parentes conhecidos, Epaminondas, herdeiro presuntivo, organizou o velório. A casa do velho ficava num bairro afastado, onde grandes árvores ladeavam as ruas largas, enchendo de sombras e silvos os espaços da noite. Pôs-se a velar, sozinho, o morto. Quase madrugada, a fome o levou a abandonar a câmara mortuária, onde as velas tristes eram a sua única companhia.

                Encaminhou-se a uma churrascaria, onde fez um lanche breve, biscoitos e guaraná. Pediu ainda um sanduíche, para fazer o desjejum, quando o dia nascesse.

                Ao voltar para casa, o susto foi enorme. Rodeando o caixão, quatro de cada lado, oito anciãos, vestidos de preto, murmuravam palavras estranhas em uma língua extinta. E mais ainda aumentou seu espanto quando, trêmulo e suando frio, viu o antigo patrão erguer-se e, lenta e solenemente, pronunciar, com uma voz alta e cheia de vitalidade:

                – Caríssimo Epaminondas, é nossa obrigação agradecermos; o Segredo do Manuscrito é nosso, meu e dos meus oito companheiros, há muitos milênios. Realmente, ele nos dá a imortalidade e nos cumula de incalculáveis riquezas. No entanto, tudo tem um preço. E o preço que o manuscrito exige é o sangue de uma pessoa que por nove anos completos se dedique à tarefa de decifrá-lo, vencendo todos os obstáculos e tendo chegado às raias de desvendá-lo. De cem em cem anos repetimos este ritual, e tantas vezes já o fizemos que perdi a conta.

                Então Epaminondas Pitágoras da Cunha sentiu que garras aduncas rasgavam-lhe as vestes e a pele, e enquanto a escuridão se apossava dos seus olhos, uma lâmina fria penetrou no seu ventre, atingindo-lhe o coração, rasgando-lhe as vísceras, perfurando-lhe o pulmão, ao som de litanias e imprecações sussurradas naquela língua arcaica e quase que completamente esquecida.

(Dimas Carvalho, Fábulas Perversas)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Dimas Carvalho

José Dimas de Carvalho Muniz (Acaraú, 1964), licenciado em Letras pela Universidade Federal do Ceará. Professor de Teoria da Literatura na Universidade Vale do Acaraú, em Sobral. Tem os livros de poesia Poemas (1988), Flauta Ruda, Agreste Avena (1993), Mínimo Plural (1998) e Marquipélogo (2004); o ensaio biográfico Nicodemos Araújo, poeta e historiador, em parceria, sobre seu avô; e no gênero conto publicou Itinerário do Reino da Barra (1993), Histórias de Zoologia Humana (2000), Fábulas Perversas (2003) e Pequenas Narrativas (2006).  Vencedor de vários concursos literários, como o Prêmio Literário Cidade do Recife (1996 e 2002), Prêmio Ideal Clube de Literatura (2001 e 2002) e Prêmio Literário Cidade de Fortaleza (2001, 2003 e 2004). Tem contos nas revistas Literapia, Almanaque de Contos Cearenses, Continente Multicultural, Literatura, Caos Portátil: um almanaque de contos, dentre outras, além de participar da Antologia do Conto Cearense, org. Túlio Monteiro, pela Fundação Cultural do Ceará.

            Alguns críticos opõem ao que chamam de “conto tradicional” o denominado “conto moderno”. Para Assis Brasil (A Nova Literatura – III O Conto, Ed. Americana, Brasília, INL, 1973), “Só com a quebra do episódio, com a abolição – parcial ou total – do enredo, do descritivo narrativo linear, o conto foi se libertando das outras narrativas de ficção e adquirindo sua própria forma.” Na verdade, o termo literário “conto” é genérico, serve para designar todo texto literário curto que não seja poema ou crônica. Para certos escritores, até alguns tipos de poema e crônicas são postos na categoria geral denominada conto. Há, porém, textos literários curtos que somente são classificados como conto em razão dessa “noção didática” de se chamar conto todo texto de ficção curto que não seja poema ou crônica. No Ceará este tipo de conto vem sendo praticado há alguns anos, como no livro Pluralia Tantun (1972), de Gilmar de Carvalho. Mais tarde surgiu Jorge Pieiro, com seus “contemas”. Verifica-se também nos livros de Dimas Carvalho.

Em “Os Ilustres Assassinos” (quase prefácio do próprio autor) lê-se espécie de lema literário, que se repete ou se resume em “Conto curtíssimo”. O personagem é o menos importante no conto. Mais vale a história, embora nem sempre haja enredo e muito menos ação. Ou literatura não passa de pura erudição de desocupados? Leiam-se “Esboço de um relatório”, “Oráculo para principiantes”, “O prisioneiro”. Onde está o personagem? O personagem às vezes nem é personagem, isto é, o narrador é somente narrador, não chegando a personagem (“Messias, ou os filhos do limbo”). Como se fosse apenas cronista, observador, sem nenhuma vinculação com a trama, com a história. Essa “desimportância” do personagem (ser humano) pode ser vista em “Desaniversário”, no qual animais e seres inanimados tomam o lugar do homem. Fábula? Sim, mas não somente por isto. Em “Odisseia de Bernardo Tracajá” não há personagens.

Muitos dos personagens de Dimas não são de carne e osso. Seriam simples imagens, representações, impressões de personagens, como em “O Toureiro”. Em outros contos, os personagens se transformam continuamente ou sofrem constantes mutações, metamorfoses. Há também personagem indefinido (“Âncora”): “Nunca se soube ao certo quem era: um conde russo, um pintor renascentista, um pirata levantino, um mágico, um cantor, um arquiteto, um vigarista qualquer.” Personagem “vindo do nada”. Narrador indefinido ou não identificado percebe-se também em “Nossa fronteira ao sul”.

Às vezes o personagem quer se conhecer, se descobrir, e se inventa. Dá-se a auto-invenção, como se o narrador-autor não tivesse domínio do personagem (“Glosa a uma história antiga”). Há ainda personagens “ocultos”, como em “O irmão do grande homem”, embora haja uma história, ação, tempo e lugar definidos. O mesmo se vê em “Chamado”. Quem chama? O personagem oculto? Outros são apenas vislumbrados, como se vistos de muito longe, quase envoltos em bruma, ou há muito tempo, como em “O Vidente”. Algumas formas verbais na narração dão ideia dessa distância do personagem aos olhos do leitor: “profetizava”, “cresceu sua fama”, “se propagou” sua alcunha, enquanto uma águia “soltava gritos”, até que “no dia seguinte” apareceu morto.

Os personagens são sempre emblemáticos ou simbólicos. Em “A Árvore” o homem só é uma árvore; o jardineiro é a rotina, vista como o mau; a mulher bela e atraente é o novo, o progresso, o bem. O protagonista de “O Profeta” é, ao mesmo tempo, humano e divino, pois os comerciantes o insultam, as crianças lhe jogam merda de cavalo, se deita na piçarra, ou seja, é visível, tem corpo, e, no entanto, “quando caminha pela superfície, torna-se invisível”. Em “O Gato” o narrador fala de todos os gatos, poeticamente, até contar uma historinha ou uma fabulazinha, com direito a “moral da história”: “tende cuidado com os gatos cor-de-rosa. De todos os tipos, é o mais perigoso. Não porque nos minta, ou nos iluda, ou nos roube o queijo. Mas pelo contrário”.

O personagem-escritor Eulálio Modesto Nicanor é, ao mesmo tempo, real e irreal. Real porque tem biografia e deixou vasta obra literária, impressa em jornais, almanaques e revistas. Irreal porque esta mesma obra desapareceu e o poeta (e sua obra) não passa de obra coletiva e anônima. Personagem e obra se confundem.

Há na obra de Dimas uma visível preocupação do narrador com a criação literária. Veja-se “O livro inexistente”, em que o personagem é um escritor que não escreve, diferente de Eulálio, que escreveu, mas a obra se perdeu. No fundo, a mesma coisa.  E ainda “Aqui, do meu quarto”, no qual o narrador é um escritor (maluco), um criador de fantasias, enclausurado num quarto, preso entre quatro paredes, solitário, imune aos ruídos do mundo, fechado num casulo. Leia-se “Finnegans wake”, homenagem a Domingos Olímpio ou todo escritor relegado ao esquecimento.

As personagens de Dimas Carvalho agem em espaços ilimitados ou etéreos, quando elas mesmas nem aparecem. A casa, o curral, o bosque, as igrejas, as torres das igrejas, as torres góticas, as ruas estreitas, todos os espaços são meros nomes. Para o contista não tem nenhuma importância este ou aquele lugar. Tudo é apenas adereço. Assim, que território habitam os personagens de “Os gêmeos”? Seria o espaço bíblico, homérico, indígena, indiano? Como se todos os dramas não passassem de sonhos, alucinações, visões, delírios. Os narradores e os protagonistas são seres delirantes, quase sempre, como o de “Um Sonho”, a vagar por uma cidade coberta de névoa, entre casarões antigos, com figuras de górgonas e dragões esculpidas nas portas. Em “Os quatro dragões azuis” o espaço é apenas “aquela cidade”, cheia de “grandes estátuas”, “sentinelas taciturnas” e, logicamente, os dragões azuis.

Embora delirantes, os narradores e protagonistas de Dimas são sempre pequenos, frágeis diante da vida e da trama da narrativa. “Um militar da reserva” é um exemplo dessa fragilidade. Parece até que mais importante do que o personagem, mesmo o protagonista, é o objeto ou o mistério a envolver um e outro. Em “O manual de prestidigitação” o narrador chegou à casa de poderoso feiticeiro, o qual presenteou o visitante com um livro. O feiticeiro desaparece, porque não tem mais importância na trama. O livro assume lugar de destaque. E se mantém “fechado” (misterioso), até que um dia alguém chegue “para recebê-lo”. Em “O Herdeiro” o próprio Rei “não passa de uma peça, talvez a menos importante”.

Dimas Carvalho não raras vezes abole o uso do prisma dramático univalente ou simplesmente faz do conflito apenas um esboço, como se ação não houvesse. Em “Este lugar” a ação é tão-somente expectativa – do dia fatal – pois “nada acontece”, embora o dia da resposta se aproxime e cresçam o medo e a esperança do narrador. Essa ausência de ação – esse nada acontece – é claríssima em “Nada, sempre”. Esse não-acontecer está também em “C’est la vie”. A ausência de enredo, às vezes, leva a se pensar se o enredo é apenas um enredado de ações, como em “Os doze trabalhos de Gabriel” e “A Coisa”.

Os mais variados recursos expressivos se mostram na linguagem de Dimas Carvalho, às vezes num mesmo conto curtíssimo, como em “A Vingança”, no qual se podem ver descrição (“A casa fica num alto, batida pelos ventos.”), narração (“Meia noite quase, a voz:”), fala (“– Água, por favor.”) e desenlace (“A porta que se abre, o tiro, o galope dos cavalos.”), com a presença clara de elipses de narração, preenchidas e resumidas no título. O uso do epílogo-resumo é uma constante em Dimas, como “Último ato”. Há até um conto de um só parágrafo, sem pontos (“Recordações da cidade do sol”).

                Eclético, o escritor cearense utiliza as mais diversas formas da ficção curta: da narrativa inspirada na tradição do conto linear, com enredo claro (“Grau Zero”, “Tango em Itapemba”), à fábula curta, breve, sem trama, à parábola de feição bíblica. No mais das vezes, porém, o primeiro tipo dá lugar ao segundo, este ao terceiro, na mesma “narrativa”. É o que se pode verificar em “As tartarugas”. A princípio se trata de uma narrativa linear. Logo, porém, aparece o misterioso, a quebrar a “racionalidade” do enredo, isto é, a desmontar o urdidura verificada no início da “história”.

                No mais das vezes Dimas foge do realismo e se envolve nas brumas do supra-realismo, do surrealismo, (“Encantos”) ou do realismo mágico. O realismo se apresenta aqui e ali, como em “Um dia ainda serei feliz”, com uma anti-heroína urbana. Ou em “Zé tatu”, história do sertão, “Sertão” e “Meu amigo Valenciano”, com heróis sertanejos e seus misticismos. O ambiente rural ou não-urbano se mostra ainda em “História de avô”, embora o realismo se vá aos poucos desfazendo, para dar lugar ao mistério. Mas o que é real para Dimas? Em “O Peixe” o animal era reflexo de uma imagem (quadro) irreal. A ilusão da imagem reaparece em muitos outros contos, como em “Diógenes”. Ou tudo é real ou tudo é ilusório? (“A descoberta”). Em “Visões” a mesma dúvida: Quem é? O que é? E em “A dúvida”: Quem sou?

                 Na maioria dos contos de Dimas o ponto de vista é do narrador onisciente, algumas vezes do narrador-protagonista. Em “O Sonho” o narrador está só no mundo. Em “A estátua de bronze” o narrador se vê diante de uma estátua, que seria o segundo personagem. E é, porque, no epílogo, “começa a abrir cautelosamente os olhos impassíveis”.

O narrador às vezes é plural (“Em memória de K”). Há também contos em que o foco narrativo é múltiplo, como em “Três rezas para Fortunato”: as criaturas (personagens de uma autora) e a criadora (suposta autora). Ocorre ainda o tratamento na segunda pessoa, em que o narrador ou interlocutor da segunda pessoa não se manifesta com clareza, como se fosse apenas uma voz (a consciência?). É o caso de “O Sobrevivente”. Em “Mostrando as armas” o narrador (o falante, o escritor) se dirige a outro personagem, a quem trata por “você”, e que é simplesmente “um homem”. Essa segunda pessoa pode ser protagonista ou o símbolo do homem universal (“Instruções para o fim do mundo”). Há um conto (“O dia seguinte”) em que o narrador é o morto (o que não é novidade na literatura), invertendo-se o ponto de vista narrativo. Espécie de monólogo interior do defunto, enquanto os personagens vivos se deixavam observar por ele.

Edgar Allan Poe está muito manifesto na obra de Dimas Carvalho, sem imitação. Porque também presentes estão os narradores bíblicos (Adão e Eva, o pecado e o castigo, como em “O Manuscrito”), Homero, Ovídio (metamorfoses, “Ovídio”), Dante, Kafka (“Francisco”, “O Castelo”, “Tratado da neblina”), Borges, contos de fadas (“Branca de Neve e os sete gigantes”) e toda a melhor tradição na arte de narrar.

Em suma, a linguagem de Dimas Carvalho é trabalhada, cinzelada, apurada, como se a frase surgisse depois de horas a fio de cuidados. Não se percebe, no entanto, a frase ornamentada, cheia de floreios, atavios inúteis.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Trova 266 - Dorothy Jansson Moretti (Sorocaba/SP)

Trova formatada enviada pela trovadora

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) A Cara de Boi

Recolhido em Faro, Algarve

Era um rei, que tinha três filhos. Um dia disse:

— Pois, filhos, vão correr o mundo, e aquele que trouxer a mulher mais formosa é que há de ficar com o reino.

Partiram todos; os dois mais velhos acharam logo duas raparigas muito formosas, com quem se casaram. Uma era filha de uma padeira e a outra de um ferreiro. O mais novo andou por muitas terras, sem encontrar mulher que lhe agradasse.

Indo um dia por um escampado, cheio de fadiga, desceu do cavalo e deitou-se a uma sombra. Deu-lhe então na vista uma casa muito alta sem porta nenhuma, e só lá bem alto é que tinha uma janela. Esteve ali muito tempo, até que viu vir uma velha, que chegou ao muro da casa, bateu na parede e disse:

— Arcelo, arcelo,
Deita o teu cabelo
Cá abaixo de repente,
Quero subir imediatamente.

Foi então que ele viu aparecer à janela uma trança de cabelo tão comprida, que ficou espantado com a sua beleza. A velha pegou-se a ela como se fosse uma corda e subiu para dentro de casa. Pouco tempo depois a velha tornou a sair, e o cavaleiro tendo desejo de ver de quem seria a trança, chegou-se à parede, bateu, e repetiu as palavras:

— Arcelo, arcelo,
Deita o teu cabelo
Cá abaixo de repente,
Quero subir imediatamente.

A trança desceu pela janela abaixo, e o rapaz subiu. Ficou pasmado quando viu diante de si a cara mais linda do mundo. A menina deu um grande ai de aflição:

— Vá-se embora, senhor, que pode vir minha mãe, e tem artes de lhe causar todos os males que há.

— Não vou, sem a menina vir comigo, porque eu assim ganho o reino de meu pai. E se não quiser vir, boto-me desta janela abaixo.

Desceram ambos pela parede, e fugiram a toda a pressa no cavalo que estava folgado à sombra. Ainda não iam longe, quando ouviram uma voz:

— Para, para, filha cruel, não me deixes só no mundo.

E como a filha fosse sempre fugindo com o príncipe, a velha disse-lhe:

— Olha para trás ao menos, para receberes a bênção de tua mãe.

Assim que a menina se virou para trás, ela disse-lhe:

— Eu te fado, que essa cara linda que tens se torne em uma cara de boi.

Coitadinha, ficou logo com cara de boi.

Assim que o príncipe chegou à corte puseram-se todos a rir daquela figura horrenda, sem saber como ele se tinha apaixonado por coisa tão feia, que fazia fugir. O príncipe contou a sua desventura aos irmãos, mas quem é que se fiava? Estava quase a chegar o dia em que os três irmãos haviam de apresentar as suas mulheres diante de toda a corte, para se assentar qual era a mais linda, e qual deles é que havia de ficar com o reino.

A rainha velha tinha muita pena do filho, e lembrou-se de fazer demorar a cerimônia, para ver se a velha com o tempo perdoava a menina e lhe restituía a sua formosura.

Disse a rainha, que queria que antes da cerimônia da corte cada uma das suas três noras lhe bordasse um lenço. A filha da padeira e a do ferreiro não sabiam bordar, e trataram de enganar a rainha, arranjando quem lhes fizesse os bordados; a que tinha cara de boi pôs-se a chorar, e tanto chorou que lhe apareceu a velha, e disse:

— Não te rales mais; no dia em que tiveres de entregar o lenço à rainha eu cá to virei trazer.

Chegou o dia, e a velha veio entregar-lhe uma noz muito pequenina. A cara de boi foi levá-la à rainha, dizendo que ali estava o seu lenço. A rainha quebrou a noz e ficou pasmada com a mais fina cambraia, bordada com flores e ramos e aves.

Chegou o dia de irem à corte para serem apresentadas as três noras do rei; a cara de boi pôs-se a chorar, a chorar, até que lhe apareceu a velha que era mãe dela:

— Não chores mais; trago-te aqui um vestido para a festa. – Desdobrou-o; era todo bordado de ouro e pedrarias; a filha vestiu-o, mas quando o vestido era lindo, tanto ela ficava mais horrenda. E pôs-se a chorar, a chorar cada vez mais.

Quando já todos tinham entrado para a sala, faltava só ela; a velha disse-lhe:

— Vai agora tu.

A filha obedeceu, mais ia muito triste por ver-se tão medonha. Quando ia pelo corredor do palácio, a mãe disse-lhe cá de longe:

— Olha para trás. – E assim que a filha virou a cara, continuou: – Fica com a tua formusura. Mas não te esqueças de meteres nas mangas do vestido todos os bocadinhos de toucinho que puderes para me dar.

Então ela entrou na sala pelo braço do marido, e todos ficaram pasmados. A corte toda confessou que ela é que era a mais linda, e dali foram todos para a mesa do banquete. Enquanto estiveram jantando a menina não fazia senão meter bocadinhos de toucinho nas mangas do vestido; as outras duas, que a viam fazer aquilo, trataram de fazer o mesmo pensando que era moda. Acabado o jantar, começaram as danças, e a rainha ao ver o chão todo besuntado de gordura, e que a cada passo se escorregava em bocados de toucinho, perguntou quem é que fizera aquela porcaria. As damas disseram que o viram fazer à princesa herdeira, e por isso fizeram o mesmo. Começou cada uma a sacudir as mangas dos vestidos, e das mangas da menina começaram a cair aljofres e diamantes misturados com flores; as outras envergonhadas botaram-se pelas janelas fora, pelas escadas, corridas, e a que chamavam cara de boi é que veio a ser a rainha, porque o rei entregou a coroa ao filho.
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Notas Comparativas

A donzela é evidentemente o mito da Aurora, como se comprova pelo estribilho Arcelo, Arcelo, em um romance popular do Algarve, intitulado D. Carlos de Montalvar, coligido pelo nosso amigo Reis Dâmaso, lê-se o verso: «Não permita Deus d’Arcelo» por Deus del cielo. (Enciclopédia republicana, p. 204, Lisboa, 1882).

A velha, que torna feia a menina é a Noite, e o jovem amante que a arrebata é o Sol. Consiglieri Pedroso diz-nos que também encontrou uma versão deste conto.

No Catalogo de Barrera y Leyrado, cita-se um auto [perdido][1] de Gil Vicente, intitulado A Donzela da Torre, porventura baseado sobre este tema mítico comum aos outros povos românicos.

Nos XII Conti pomiglianesi, ilustrati da Vittorio Imbriani, Nápoles, 1877, acha-se este conto desenvolvido sob o título de Persilette, no qual a donzela fechada na torre, a madeixa que serve de escada e a fuga com o namorado são simples episódios. A tradição portuguesa está mais pura na sua simplicidade, enquanto que o conto de Pomigliano é formado pela confusão de diferentes contos, como o da Filha do rei Mouro (n.º 6).

O tema do filho de um rei que vai procurar uma mulher formosa, condição essencial para suceder no reino do pai, acha-se na novela monferrina La bella d’ l’isoule Fourtiuna, publicada por Stanislao Prato (Como, 1882) com notas de abundantíssimos paradigmas.

Nas Quattro novelline popolari Livornese, do mesmo escritor, a terceira Il rè e su tre figlioli, há também este mesmo tema, em que a encantada é uma rã que depois aparece numa mulher bonita. Pertence a um vastíssimo ciclo novelesco comum a toda a Europa, o que coincide com o seu evidente sentido mítico.

Nos povos germânicos, eslavos e escandinavos, este ciclo novelesco é extensíssimo, como se infere dos estudos comparativos do Dr. Reinhold Köhler, o que mais profundamente tem investigado estes assuntos; ele encontrou paradigmas fundamentais nas coleções de contos de Bürching, Hyltén-Cavallius, Grimm, Beauvois, Jonson, Kattan, Asbjørnsen, Töppen, Schwartz, Ey, Stefanović, Radloff, Colshorn, Hahn, Zingerle, Benfey, Chavannes, Afanasieff, Böhmer, Peter e outros.

Nos Portuguese folk-tales, coleção de Consiglieri Pedroso, e tradução de Ralston, vem com o título A filha da feiticeira, n.º IV, muito desenvolvido, e contendo no seu sincretismo, os n.ºs 1, 6, 17 e 32, que coligimos separadamente e em diferentes lugares. Ralston compara esta versão com o conto The story of Sringabhuja and the Daughter of the Rackshasa, que vem no VII livro do Kathá Sarit Ságara (vol. I, pp. 335-367), tradução de Tawney.

Na versão do Algarve cita-se uma noz dentro da qual cabe o lenço bordado para a rainha; Gubernatis, diz: «A noz que esconde a fazenda de que se faz o vestido do noivado para a esposa do príncipe solar, a Aurora, parece ser propriamente a Lua. Por influência dela a donzela perseguida escapa ao poder mágico da mãe-bruxa e apresenta-se vestida com vestes esplêndidas na festa do príncipe. O vestido luminoso, imagem do céu, é tão tênue, tão sutil, que pode desdobrar-se sem fim.» (Myth. des Plantes, t. I, p. 145).


Fonte:
Wikipedia

Jangada de Versos do Ceará (6)

NIRTON VENÂNCIO 
Crateús (1955)
-
UNIDADE


Cada dia
tem sua porção de vida
tem sua imensidão de luz
tem sua solidão de gente
cada dia
cabe em si mesmo
como cabem na terra
a colheita e a semente.

Cada dia
tem seu ontem e amanhã
tem seu silêncio de espera
tem sua largura de saudade
cada dia
cabe em si mesmo
como cabem no continente
a distância e a cidade.

Cada dia
tem seu mar e os peixes
tem seus barcos e as viagens
tem seus remos e mãos fortes
cada dia
cabe em si mesmo
como cabe no porto
o rumo do sul e do norte.

PER SI

Não quero teu verso enteado
na minha poesia.
Não se meta onde é chamado.
Faça de conta
que não escuta os meus apelos
e me deixe encontrar
esse endereço errado.

Quero meu desencanto legítimo
e esse beijo desfazendo a azia.

Não me venha com tradução
simultânea
para música que me castiga.
Não me meta onde sou cantado.
Faça de conta
que não entende esse estrangeiro
e me deixe desencontrar
esse futuro passado.

Quero o ronco do meu íntimo
e este coração que a alma mastiga.

O GATO

Sob as estrelas
o gato é místico.
Passeia na noite
sobre os telhados de vidro
com suas patas silenciosas
como se tivesse planos e segredos
no percurso das suas sete vidas.

O gato vagueia nos telhados
e no meu coração,
pousa leve em cada passo
como pássaro
conspirador
misterioso
salta por cima dos que dormem
e não sonham comigo.

VIÉS
 

O poeta percebe
de forma
estranha.
Por isso percebe.

GALOPE
 

O corpo do homem
é um cavalo
onde
a alma põe a sela
e dispara no mundo
- o galope da existência
é um fato mágico
um mistério profundo
uma revolução eterna.

As esporas dos dias
atiçam o meu corpo
pelo sertão do mundo
e com as rédeas dos braços
cavalgo
pela trajetória contínua do sol
com a vida ferrada
nos olhos
e os segredos nos alforjes do peito.

Jogado no mundo
não há como se escapar:
todo passo
é decisivo
todo caminho
dá para o norte
todo corpo
é um gibão sobre a alma
toda a vida
é o lado externo da morte
todo peito
é um roçado
para toda safra
ser das rosas.

TRANSITIVO
 

A minha fala
só é
fala
quando
muda.
A minha fala
não é
fala
quando não move.
- aí
ela é muda.

A minha mudez
só é
mudez
quando
fala.
A minha mudez
não é
mudez
quando
não estala
- aí
ela cala.

PRAZO
 

Impossível
terminar o poema nos próximos dias:
falta uma vírgula aqui
aguarda um sentimento ali,
avista-se uma cidade acolá.

E essas correções, dores e risos
costumam demorar
uma vida inteira…

Fonte:
http://nirtonvenancio.blogspot.com.br

Irmãos Grimm (O Lobo e os Sete Cabritinhos)

Era uma vez uma velha cabra que tinha sete cabritinhos e os amava, como uma boa mãe pode amar os filhos. Um dia, querendo ir ao bosque para as provisões do jantar, chamou os sete filhinhos e lhes disse:

- Queridos pequenos, preciso ir ao bosque; cuidado com o lobo; se ele entrar aqui, come-vos todos com uma única abocanhada. Aquele patife costuma disfarçar-se, logo o reconhecereis, porém, pela voz rouca e pelas patas negras.

Os cabritinhos responderam:

- Podeis ir sossegada, querida mamãe, ficaremos bem atentos.

Com um balido, a velha cabra afastou-se confiante. Pouco depois, alguém bateu à porta, gritando:

- Abri, queridos pequenos; está aqui vossa mãezinha que trouxe um presente para cada um!

Mas os cabritinhos perceberam, pela voz rouca, que era o lobo.

- Não abrimos nada, - disseram - não é a nossa mamãe; a mamãe tem uma vozinha suave; a tua é rouca; tu és o lobo!

Então o lobo foi a um negócio, comprou um grande pedaço de argila, comeu-o e assim a voz dele tornou-se mais suave. Em seguida, voltou a bater à porta, dizendo:

- Abri, queridos pequenos; está aqui a vossa mãezinha que trouxe um presente para cada um!

Mas havia apoiado a pata negra na janela; os pequenos viram-na e gritaram:

- Não abrimos, nossa mamãe não tem as patas negras como tu; tu és o lobo.

O lobo correu, então, até o padeiro e lhe disse:

- Machuquei o pé, queres esparramar-lhe em cima um pouco de massa?

Quando o padeiro lhe espargiu a massa na pata, correu até o moleiro e disse:

- Espalha um pouco de farinha de trigo na minha pata.

O moleiro pensou: "Este lobo está tentando enganar alguém" e recusou-se a atendê–lo. O lobo, porém, ameaçou-o:

- Se não o fizeres, devoro-te!

O moleiro, então, se assustou e polvilhou-lhe a pata. Aliás, isso é comum entre os homens. O malandro foi, pela terceira vez, bater à porta dos cabritinhos, dizendo:

- Abri, pequenos, vossa querida mãezinha voltou do bosque e trouxe um presente para cada um de vós!

Os cabritinhos gritaram:

- Mostra-nos primeiro a tua pata para que saibamos se és realmente nossa mamãezinha.

O lobo não hesitou, colocou a pata sobre a janela e, quando viram que era branca, acreditaram no que dizia e abriram-lhe a porta. Mas foi o lobo que entrou.

Os cabritinhos, amedrontados, trataram de se esconder. O primeiro escondeu-se debaixo da mesa, o segundo meteu-se embaixo da cama, o terceiro correu para dentro do forno, o quarto foi para a cozinha, o quinto fechou-se no armário, o sexto dentro da pia e o sétimo na caixa do relógio de parede.

Mas o lobo encontrou-os todos e não fez cerimônias; engoliu-os um após o outro. O último, porém, que estava dentro da caixa do relógio, não foi descoberto.

Uma vez satisfeito, o lobo saiu e foi deitar-se sob uma árvore, no gramado fresco do prado e não tardou a ferrar no sono. Não tardou muito e a velha cabra regressou do bosque.

Ah, o que se lhe deparou! A porta da casa escancarada; mesa, cadeiras, bancos, tudo de pernas para o ar. A pia em pedaços, as cobertas, os travesseiros arrancados da cama.

Procurou logo os filhinhos, não conseguindo encontrá-los em parte alguma. Chamou-os pelo nome, um após o outro, mas ninguém respondeu. Ao chamar, por fim, o menor de todos, uma vozinha sumida gritou:

- Querida mamãezinha, estou aqui, dentro da caixa do relógio.

Ela tirou-o de lá e o pequeno contou-lhe que viera o lobo e devorara todos os outros. Imaginem o quanto a cabra chorou pelos seus pequeninos!

Saiu de casa desesperada, sem saber o que fazer; o cabritinho menor saiu-lhe atrás. Chegando ao prado, viram o lobo espichado debaixo da árvore, roncando de tal maneira que fazia estremecer os galhos. Observou-o atentamente, de um e de outro lado e notou que algo se mexia dentro de seu ventre enorme.

- Ah! Deus meu, - suspirou ela - estarão ainda vivos os meus pobres pequenos que o lobo devorou?

Mandou o cabritinho menor que fosse correndo em casa apanhar a tesoura, linha e agulha também. De posse delas, abriu a barriga do monstro; ao primeiro corte, um cabritinho pôs a cabeça de fora e, conforme ia cortando mais, um por um foram saltando para fora; todos os seis, vivos e perfeitamente sãos, pois o monstro, na sanha devoradora, os engolira inteiros, sem mastigar.

Que alegria sentiram ao ver a mãezinha! Abraçaram-na, pinoteando felizes como nunca. Mas a velha cabra lhes disse:

- Ide depressa procurar algumas pedras para encher a barriga deste danado antes que ele desperte.

Os cabritinhos, então, saíram correndo e daí a pouco voltaram com as pedras, que meteram, tantas quantas couberam, na barriga ainda quente do lobo. A velha cabra, muito rapidamente, coseu-lhe a pele de modo que ele nem chegou a perceber.

Finalmente, tendo dormido bastante, o lobo levantou-se e, como as pedras que tinha no estômago lhe provocassem uma grande sede, foi à fonte para beber; mas, ao andar e mexer-se, as pedras chocavam-se na barriga, fazendo um certo ruído. Ele então pôs-se a gritar: Dentro da pança, que é que salta e pula? Cabritos não são; parece pedra miúda!

Chegando à fonte, debruçou-se para beber; entretanto, o peso das pedras arrastou-o para dentro da água, onde se acabou afogando miseravelmente.

Vendo isso, os sete cabritinhos saíram correndo e gritando:

- O lobo morreu! O lobo morreu!

Então, juntamente com a mãezinha, dançaram alegremente em volta da fonte.

Fonte:
http://www.grimmstories.com/pt/grimm_contos/o_lobo_e_as_sete_criancas

Expressões e suas Origens III

DO ARCO DA VELHA

Do arco da velha é uma expressão popular da língua portuguesa que significa "fantástico", "incrível", "espantoso". Muitas vezes a expressão completa é: "são coisas do arco da velha". Esta expressão também pode servir para qualificar uma história ou alguma coisa que é absurda ou inverossímil.

“O meu avô começou a falar dos seus tempos de infância e contou muitas histórias do arco da velha.”

Origem

É sabido que por volta do século XIX, a expressão "arco da velha" servia para descrever o arco-íris, algo que já não é tão comum nos dias de hoje. Uma das explicações por trás dessa expressão é que essa denominação foi criada graças à história bíblica de Noé, quando depois do dilúvio, Deus criou o arco-irís para demonstrar a sua aliança com o ser humano, e que não voltaria a enviar outro dilúvio dessa magnitude. Assim, na expressão "do arco da velha", o termo "velha" representa a velha aliança que Deus formou com o Homem. Por esse motivo o arco-irís também é conhecido como arco-da-aliança.

Uma explicação alternativa para a origem desta expressão é que originalmente ela seria "arca da velha" e não "arco da velha". Isto porque senhoras de certa idade tinham o hábito de guardar coisas incríveis e espantosas nas suas arcas.

ZÉ POVINHO

Zé povinho é uma expressão popular que significa gente simples, indivíduo do povo. É usada para identificar pessoa desqualificada socialmente.

Zé, é uma forma popular de exprimir o homem do povo. Povinho, é o diminutivo de povo (habitante de uma localidade). Zé povinho é uma expressão descriminatória, usada para indicar uma pessoa simples, ralé.
 
Origem

Zé povinho foi um personagem criado pelo caricaturista português Rafael Bordalho Pinheiro, em 1875, no periódico de humor político, A Lanterna Mágica, numa charge intitulada Calendário Português, criticando de forma humorística os principais problemas sociais, políticos e econômicos do país. Tornou-se uma figura identificativa do povo português.

A imagem de cerâmica do personagem, criada pelo caricaturista, encontra-se  hoje no Museu Rafael Bordoalho Pinheiro, na freguesia de Campo Grande em Lisboa, Portugal.

MEIA TIGELA

Meia tigela ou "de meia tigela" é uma expressão popular que significa sem valor, medíocre. É usada para designar algo sem importância. Também pode ser usada para definir uma pessoa incompetente. Ex: O chefe é um administrador de meia tigela.

Quando queremos nos referir a um prestador de serviços de qualidade duvidosa, podemos usar a expressão "meia tigela". Ex: O posto de saúde faz um atendimento de meia tigela.

Origem

A origem da expressão "meia tigela" tem duas versões. Uma vem do tempo da monarquia em Portugal, onde os novos serviçais que iam morar nos castelos, eram chamados de "fidalgos de meia tigela", pois tinham poucos direitos dentro da corte.

A outra versão vem da época da escravidão. Quando os escravos faziam o serviço ao agrado do dono, recebiam uma tigela cheia de comida e, aqueles que não faziam, recebiam a tigela pela metade, significando que o trabalho estava mal feito.
 
CUSTAR OS OLHOS DA CARA

Custar os olhos da cara é uma expressão popular que significa custar muito caro, ter um preço muito alto, preço acima da média esperada.

Origem

A expressão "custar os olhos da cara",  teve origem  em costumes antigos. Na Grécia, vários poetas eram cegos. O primeiro deles foi Tâmires, que vangloriou-se de ser melhor cantor que as Musas, filhas de Zeus. As Musas zangaram-se e na sua cólera, tornaram-no cego.

Da mesma maneira, Dáfnis, Teiresias, Estesícoro e até o próprio Homero, ficaram cegos. Isso é mais que uma coincidência. Havia um motivo definido para privar os poetas da visão. Não eram as Musas que os cegavam, mas os reis gregos. Esses reis tinham ciúme dos seus poetas e os prendiam para si, arrancando-lhes os olhos.

O povo bárbaro arrancava os olhos de seus prisioneiros.

Tito Márcio Plauto, dramaturgo romano, que viveu durante o período republicano, se refere a essa expressão em uma de suas peças.

Custava os olhos da cara, ser poeta na Grécia antiga ou cair nas mãos dos bárbaros.

COMER COM OS OLHOS

Comer com os olhos é uma expressão popular que significa comer uma quantidade superior àquela necessária para passar a fome, comer além do limite, comer em excesso. Significa que a pessoa está ligada à glutonaria, ou seja, é um glutão, aquele que come muito.

A expressão também é usada quando o indivíduo está simplesmente observando atentamente a comida e por diversos motivos não pode comer. É ainda usada quando alguém está apreciando e desejando um objeto ou uma pessoa admirada.

Comer com os olhos, custar os olhos da cara, olhos de lince, são expressões populares que usam a palavra olhos no sentido figurativo.

Origem

A expressão surgiu na Roma antiga, onde nos rituais fúnebres eram realizados grandes banquetes em oferenda aos deuses. Durante o ritual não era permitido comer, apenas admirar as comidas. Se comia com os olhos.

CAVALO PARAGUAIO

Cavalo paraguaio é uma expressão usada para designar os times de futebol que iniciam um campeonato com excelente atuação e, no decorrer dos jogos, são superados pelos outros times.

A expressão "cavalo paraguaio" também é usada para nominar um jogador, quando este se destaca, com um excelente futebol, no início dos jogos e, depois cai de produção.

Cavalo paraguaio é uma expressão popular que teve origem no turfe.

Quando um cavalo dispara na largada, indicando que vai ganhar o páreo e, no meio da corrida é ultrapassado pelos outros competidores, diz-se que ele é um cavalo paraguaio.

A República do Paraguai é um país localizado na América do Sul, fazendo fronteira com o Brasil, a Bolívia e a Argentina.

Na Ciudad del Este, localizada na região conhecida como Tríplice Fronteira, encontra-se uma zona franca de comércio, o que atrai um grande número de compradores, pelos baixos preços das mercadorias.

Vários compradores identificaram produtos falsificados vendidos na zona franca de Ciudad del Este, o que fez a palavra paraguaio, ser empregada no sentido pejorativo, como algo que tem qualidade duvidosa.

Fonte:
http://www.significados.com.br/expressoes-populares/

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.º 26 – 6 de setembro de 1887

Eustáquio Primo de Seixas,
Morador em Santo Amaro
(Bahia), fez umas queixas
Sobre um caso duro e amaro.

Parece que um tal Francisco
De Paula Aragão e Souza,
Para reduzi-lo a cisco
E pôr-lhe em cima uma lousa,

Pegou de um revólver, obra
Bem feita, acabada,
Pior que dente de cobra,
Melhor que fio de espada;

E, indo ao sobredito Seixas,
Despejou-lhe, não a arma
Nem precisamente endechas,
Nem violetas de Parma,

Mas uma descompostura,
Como se diz vulgarmente,
Porque quando a gente cura
De falar mais finamente,

Diz torrentes de impropérios;
Tal foi o modo limado
Que, em seus artigos tão sérios,
Empregou este agravado.

Eustáquio estava na rua
Da Matriz — tão concorrida
De gente, que viu a sua
Pessoa assim ofendida.

De tais injúrias e acintes
Ouviu metade calado,
Até que, em tantos ouvintes,
Um houve, mais animado,

Que pôde dar escapula
Ao que ouvia tanta cousa,
Mas o diabo que açula
A alma a Aragão e Souza,

Faz com que lhe não estaque
A torrente de impropérios,
Sotaque sobre sotaque,
Ditérios sobre ditérios.

Já que em casa recolhido
Eustáquio, vai muita gente
Pôr-se ao lado do ofendido
Contra aquele ato insolente.

Vai mais; vai gente inimiga;
Vai mais; vai o próprio Souza
Pedir-lhe que o não persiga;
Que lhe perdoe tanta cousa.

Responde-lhe Seixas: “Pronto
Estou a dar-lhe o que pede,
Mas só quero um ponto, um ponto,
E cederei se me cede.

“Peço-lhe que se retrate
Das injúrias que me há dito...”
Aragão, dado ao combate,
Repete, e repete escrito

Todas as injúrias feitas...
Aqui, meu leitor amigo,
Tu que buscas, tu que espreitas
Achar sentido ao que digo,

Não decifrando a charada,
Perguntas naturalmente:
“Que tenho eu com isso?” — “Nada,
Respondo-te eu; e a Regente?”

Porque o mais rico da cousa
E' que o tal Eustáquio Seixas,
Contra o Aragão e Souza,
Trouxe à imprensa as suas queixas,

Escrevendo: “À Sereníssima
Princesa Regente”. Ó dura
Condição triste e tristíssima,
Que mal sei como se atura!

Governar para ler estas
E outras ridiculezas...
Ó sorte das régias testas!
Ó destino de princesas!

Que um homem em Santo Amaro,
Ouvindo duas graçolas
(Caso antes comum que raro)
Toque no chapéu de molas,

Enfie a casaca, e calce
As botas envernizadas,
E, todo flor e realce,
Suba as imperiais escadas,

Para contar uma cousa
Que se conta ao delegado
Isto é, que Aragão e Souza
É pouco morigerado,

Palavra que desanima
De ocupar na terra um sólio:
Antes governar a rima,
Bem ou mal como o Malvólio.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) Oitenta e Sete

Quando fui ao Amazonas expressamente para preparar terreno para um negócio de tartaruga em grande escala, negócio que, de ótimo, tornou-se péssimo, por causa dos jacarés... a minha viagem foi cheia de acontecimentos curiosos, nada vulgares, os quais para um sujeito impressionável seriam obra de mau agouro ...

Viagem assim, dá-se uma vez na vida, outra na morte... mas dá-se.

Fui em barco a vapor, de rodas; e como ia muito bem recomendado ao capitão do navio, fui sempre tratado à vela de libra. Dispensei, sim, a cama de bordo, para dormir sobre o meu costumado colchão de couros de onças, todos com as suas cabeças e garras. Estes couros, como se sabe, são muito magnéticos, e, no mar, livram do raio; em terra, espantam as pulgas, e, no mato, servem de vigia, contra as feras.

Logo ao suspender ferro, correu a bordo a voz tremida de terror, de que um dos passageiros era um famoso bandido, matador feroz de gente pacata, incendiário, saqueador...

E, realmente, um senhor indivíduo que embarcara à última hora, sorrateiramente, tinha toda a traça da maldade e do crime: enormes cicatrizes de talhos, desfiguravam-lhe o rosto; uma larga peladura, de bala, raiava-lhe a cabeça; todos os dentes molares, quebrados, e, nas costas, ainda aberta, uma grande chaga parecendo de queimadura.

Conservava na cintura um par de pistolas, de cano montado, carregadas, bem como um bruto facão, largo e afiado.

E tomava-se o indivíduo ainda mais suspeito porque estava embuçado em um amplo capote, que vinha-lhe até os pés, e completamente abotoado; no pescoço um cachenê de lã, e, na cabeça, um chapéu desabado sobre os olhos, o que tudo tapava-lhe do rosto, de forma que ninguém podia ver-lhe as feições.

O comandante e eu ficamos logo alertas, para o que desse e viesse, em defesa dos outros passageiros, ameaçados, medrosos ou inquietos, com justa razão.

O barco largou.

Ao sair o vapor a barra, debaixo de borrasca, mar desfeito em ondas colossais, nenhum passageiro resistiu; fugiram para as camarinhas, enjoados.

Eu, fiquei.

Acredito que por ser muito pitador de fumo de naco, forte, sem me sentir tonto, creio que por isso não enjoei.

Os que sofrem do enjôo do mar, principalmente as senhoras, bem podem ensaiar esse tratamento: pouco custa experimentar.

O navio subia na crista das ondas... adernava... parecia afundar-se no abismo, virar-se de quilha para cima! ... mas lá aprumava-se, e seguia avante, batendo as rodas com fragor.

O capitão assestava o óculo para o mar largo, cheirava o ar, sorria-se; e afinal disse-me, esfregando as mãos;

— Que sorte! Que fortuna! Que viajão vamos ter...

Quem não sabe é como quem não vê! O que parecia-me uma loucura, sair com tal tempo, era, ao contrário, uma bela esperteza do comandante: é que, à vista da barra, passava nadando para o norte uma colossal manta de tainha, cuja morrinha (de peixe cru) sentia-se então, fortíssima.

É mais que sabido que uma manta de tainhas, quando é grande, de conta redonda, como se diz, quebra as vagas, aplana as águas, torna o espaço de mar por ela ocupado perfeitamente manso. Navio que tem a sorte de poder meter-se no centro de uma dessas mantas, voga sereno, como em mar de rosas, ainda que ao largo estoure a tempestade, encapele-se o mar, revolto!

Pois tal manobra e marcha desenvolveu O vapor, que quando sentimos estávamos dentro da manta das tainhas, e navegando sossegados, como em água de rio.

Realmente, é... muito cômodo!

Aquele imenso cardume de milhões de tainhas formava como que uma ilha misteriosa, que se movia, de corrida, à flor d'água, marchando sempre a rumo certo, que, por acaso, era o nosso.

Ao longe sobre as beiradas da manta, pelo óculo de bordo, via-se a arrebentação do mar, fazendo ressaca, espumando e espraiando-se, violentamente, como sobre uma praia de areia.

Durante todo o resto da semana, ao almoço e ao jantar, tivemos tainha fresca; e a bordo ainda salgaram muita.

E se durante mais dias não navegamos dentro da manta foi por causa da voracidade dos próprios peixes.

Assim:

As rodas do vapor não batiam n'água... não é exagero! Moviam-se dentro da massa compacta das tainhas, que nadavam aglomeradas; e, assim, é claro, esmagavam, matavam, tonteavam milhares e milhares delas; e tanto que essas morriam, as outras devoravam-as. e esta carniça foi estabelecendo a desordem na manta. As tainhas que comiam ficavam pesadonas e preguiçosas e deixavam-se ficar para trás; as que não tinham comido... revoltavam-se - é o que parece - e começou então uma verdadeira batalha das tainhas entre si, que foram-se atirando umas às outras, tão depressa e tão vorazmente que, em pouco tempo, da manta só apenas restavam sobre as águas escamas e espinhas!

Certamente umas comeram as outras, e as outras comeram as outras...

Pra lá de Santa Catarina batemos numa baleia que provavelmente estava dormindo. Eu nunca vira semelhante animal; para espantá-la, a pedido do comandante, dei-lhe uns tiros sobre a cabeça; e sem querer meti-lhe todas as balas nos ouvidos; de forma que foi pior, porque ela ficou surda e não ouvia os apitos do vapor e os gritos que dávamos; o choque foi horrível; pensei que íamos a pique; felizmente o vapor tinha a proa muito esguia e o talha-mar muito afiado, e como apanhou a baleia em boa posição, bem a meio, cortou-a em duas metades; atoramo-la!...

Foi a nossa salvação.

Pelas alturas do Rio de Janeiro, sentimos o navio rodeado de tubarões; era um rebanho, ou manada, ou tropa, como quiserem dizer. Era uma - manta - de tubarões; fica bem assim?

Fiquei horrorizado da companhia dos tremendos devoradores, e atônito para explicar-me o porquê daquele cerco tão perigoso. O comandante porém, muito prático das cousas do mar - também era o que faltava! - tranquilizou-me em dois tempos. Ora, é simplíssimo...

Quando as rodas do vapor esmagavam as tainhas, da trituração dos corpos foi resultando uma pasta ou massa ou mingauzada de gorduras, de carnes, de ovas das vítimas; esta pasta foi pegando, besuntando o casco do navio. Da passagem à força por entre as duas metades da baleia, resultou ainda, como se fosse de caiação, mais uma mão de azeite misturado com esparmacete... Ora, os tubarões são grandes comedores de tainhas e bebedores de azeite de baleia... e mal no fundo do mar sentiram o cheiro daquela marmelada.., vieram-se!

Porém como eles têm a boca debaixo do corpo e não na frente, como os outros animais, não podiam chuchar aquela rica pastalhada pegada no navio ... e que tanto os seduzia!

Assim fomos andando, como uma grande isca, levando a reboque a manta dos tubarões.

Vivendo.., e aprendendo!

Mais ou menos a meio do arquipélago dos Abrolhos, há dois caminhos a seguir: ou pelo mar largo ou pela costa; este encurta muito o trajeto, mas é muitíssimo perigoso, por causa dos recifes à flor d'água.

Porém o comandante do nosso vapor era extraordinariamente prático desses lugares, e de mais a mais tirou um partidão dos tubarões.

Foi assim:

Os bichos, sempre ao faro da marmelada de tainha pegada no navio, vinham coalhando o mar em roda: à frente, à popa, a bombordo e estibordo!

Qualquer guinada que desse o vapor, eles orçavam, acompanhando.

Quando o capitão meteu o navio nos recifes, o bando dos tubarões da frente foi servindo de guia; se eles paravam, o navio parava, recuavam, recuava; para a esquerda, para a esquerda; para a direita, para a direita!

Compreenderam? ...

Que capitão mitrado! Servia-se dos tubarões, tal qual como em terra um general serve-se de piquetes de cavalaria, na vanguarda. Tirei o meu chapéu: aquele golpe era de mestre!

Fizemos uma travessia absolutamente - ótima.

Quando estávamos próximos a sair daquele rendado de pedras, o capitão, sempre com o óculo nos tubarões da vanguarda, chamou-me a atenção para uma certa ilhota recoberta dumas esquisitas conchas, como de ostras, mas com um feitio especial, como de ninhos de pássaros. Julguei mesmo que fossem ninhos de gaivotas.

O comandante mandou tocar as máquinas devagarinho, para eu não perder nada do que ele queria mostrar-me. E disse-me:

— Olhe, Romualdo: o mar tem, por semelhança, todos os animais que há em terra: para o elefante, a baleia; para o tigre, o tubarão; para o cavalo, o boi, o cachorro - o cavalo-marinho, o peixe-boi, o lobo-do-mar. Para os pássaros, temos o peixe voador, e para os canários belgas, cantores, temos os canarinhos do mar, que é o que você vai agora ver e ouvir, naquele ilhéu.

Nisto o vapor deslizava em frente à ilhota, e eu vi, patentemente visto, e ouvi, patentemente ouvido, com estes dois... e estes dois.., dois e dois que são quatro.., quatro que a terra há de comer... vi e ouvi, por todo o rochedo, dentro e empoleirados na borda das conchas abertas, uns peixinhos amarelos cor de ouro, muito espertinhos, dando saltinhos e cantando, cantando numa granizada de trilos e gorjeios, tão dobrados e garganteados, que efetivamente parecia um bando de canários que houvesse pousado sobre aquele rochedo! ... Eu estava maravilhado! O comandante afirmou-me ainda:

— Romualdo, para a maior sucuri de terra, a maior que você possa arranjar, temos a serpente do mar; para a cobra mais venenosa de terra, temos a cobra-farelo que, quando morde o pescador, o nadador, este se desfaz logo em miangos.

— Ah! atalhei eu: sobre cobras, fale comigo! Escute!

E ali, no quente, entupi-o com umas sete cobras ... digo, sete casos de cobras.

E a ilhota dos peixes-canários sumiu-se no horizonte ...

O navio retomou a sua marcha a todo o vapor, e a tropa dos tubarões estendeu-se também, na carreira.

Dias passados, à hora da merenda, deu-se a bordo uma avaria grande, na máquina.

O vapor esguichava e assobiava, saindo em rolos, pelos buracos abertos: foi o pânico entre foguistas e maquinistas!

A minha habilidade de atirador procurou minorar o mal; fiz vários tiros, de bala, metendo, é certo, as balas, uma em cada buraco, mas foi fraco remédio, porque o calor do vapor era tão forte que derretia o chumbo dos projetis!

Então - para os grandes males, grandes remédios! - meti os dedos nos furos, tapando assim a perda do vapor, enquanto o comandante mandava, a toda a pressa, rebater novos arrebites, por dentro da caldeira.

Não fora o meu sangue-frio e sabe Deus que desastre se poderia dar!

Eu digo sempre: caçar onças é boa escola para aprender a não se assustar!

Desejando uma linda companheira de viagem possuir uma gaivota azul das que então voavam sobre e em torno do navio, senti-me pesaroso por não poder ser-lhe agradável, por falta de munição própria: pois somente trazia uma barrica de balas.

A gaivota azul é uma ave muito maciça, e se eu atirasse-lhe com bala reduzi-la-ia a pó.

Mas lembrei que podia das balas fazer um pouco de chumbo... era um pequena questão de algum trabalho e paciência.

Espetei uma faca afiada dentro de uma tina cheia d'água e comecei.

Carregava de bala a minha espingarda: apontava ao corte da faca, descarregava, e pronto; cortava a bala em duas metades, que caíam e esfriavam logo, dentro da água da tina.

Tornava a carregar, então já com as duas metades da bala; e novo tiro, e, zás! tinha os dois pedaços cortados em quatro; outro tiro com os quatro pedaços, e, zás! cortava-os em oito.., e assim, tiro a tiro, dividi uma mancheia de balas a... chumbo miúdo.

Isto aconteceu; mas no dia seguinte não se avistou nenhuma gaivota cor-de-rosa.

Afinal, num domingo, chegava eu ao meu último porto, o de desembarque.

Pela primeira vez na travessia, o vapor largava âncoras, parava!

Corremos então um sério perigo: fomos rodeados pelos tubarões, a quererem ainda comer a pasta de tainha, que restava pegada ao casco do navio. Atiravam-se às trombadas, ou às marradas, contra o navio; julguei, mesmo, que pudessem abrir o cavername da embarcação.., mas, não, pobres! ... Eram os últimos arrancos da sua ferocidade, estavam cansados, estafados da viagem!

Atraídos e seduzidos pelo cheiro da pastalhada e danados por atirarem-se a ela, mas não tendo jeito para fazê-lo, por causa da marcha da embarcação, os tubarões haviam se esquecido de caçar outras comidas e também de dormir. E assim, em jejum e em claro por tantos dias e noites, à chegada, não puderam mais resistir à fraqueza, e com aquele último esforço foram morrendo, morrendo todos, com fundas olheiras e com as badanas em carne viva, de tanto nadar, e inflamadas, do sal da água do mar..., tal qual como gente, quando caminha muito e fica estropeada, com os pés sangrando, inchados e doloridos.

Tomei cômodos no principal hotel da cidade.

Notei que as cercanias do estabelecimento estavam apinhadas de povo, como se se tratasse de algum acontecimento de monta. No salão do hotel ia uma lufa-lufa de gente que ria, que dava as mãos, fazia caras extravagantes.

Bastante curioso, chamei o patrão da casa e indaguei do que se tratava.

Ele então explicou:

— O Senhor não sabe, porque ignora. Aqui ao lado, no sobrado, reside um casal, gente benquista e muito dada. O marido é uma pérola ... a mulher uma jóia! Pois... de há três anos para cá, cada ano a senhora apresenta sinais infalíveis de gravidez; isto e aquilo ... e aquiloutro... que não enganam nem nunca enganaram nem marido nem mulher alguma....

O homem chamou um médico.., dois, quatro, sete.., dez médicos, em consultas, exames e conferências; e todos, ao mesmo tempo e a pés juntos, juraram, à fé do seu grau, que aquilo ... aquilo..., era mais que gravidez, era parto próximo. Até marcaram mês, lua e semana.

Pois... e nada! Os sinais certos, volume, etc, desapareceram!

Marido, mulher, sogros, doutores, comadres, parentes e conhecidos..., tudo pasmou!

E o caso passou, esqueceu.

Um ano depois ... a mesma cousa! Não havia dúvida: era, agora era mesmo!

O volume então, esse, era de duplo bojo...

Doutor houve então, que jurou que aquilo agora, ou era gravidez e parto próximo, ou então.., ele queimava os livros e mandava a medicina às favas! ... E mais, que, a calcular pelo volume ... era de par de gêmeos para cima!

Novo alarme nas relações do casal; parabéns, presentes de roupinhas, promessas de missas, queima de velas bentas, etc. etc. Pois

Senhor... A sua graça?

— Romualdo, um seu criado.

— Obrigado, outro tanto. Pois, Sr. Romualdo, nada! Tudo passou, tudo voltou ao seu antigo natural...

— Com efeito, Senhor ... A sua graça?

— Figueiredo, um seu criado.

— Obrigado; outro tanto. Pois Sr. Figueiredo: é célebre!

— Muito célebre, Sr. Romualdo. Agora note: um ano depois, o terceiro portanto, que é este, o mesmíssimo sucesso se repete, está se dando, está impressionando a cidade, alarmando meio mundo!

A primeira vez, depois que tudo passou a senhora voltou a espartilhar-se, a passear, a ir a teatros e a bailes; a segunda vez.., também tudo passou, desapareceu, alisou-se, voltou ao seu antigo natural... Mas agora ... ninguém sabe em que isto irá parar!

Desde que, aqui há meses, começou a correr a notícia da terceira gravidez... e o volume - compreende? - foi aumentando... aumentando... o marido, por precaução, chamou doutores, muitos, daqui, de fora, de longe.

Estou com o hotel abarrotado deles; já reparou?

O que ninguém dá é uma explicação do mistério.

— É celebérrimo, Figueiredo!

— Celebríssimo, Romualdo!

As dores na doente seguiam o seu curso.

Uma noite, o dono do hotel, o Figueiredo, chamado às pressas para ajudar, lá foi. E veio logo chamar-me, a mim.., O homem estava pálido, trêmulo de comoções.

— Romualdo, o Senhor já é pai, ajude-me a ajudar o vizinho! Estão-lhe nascendo os filhos, muitos ... uns atrás dos outros... É um cordão... não cessa! A um de fundo!

Saímos; fomos.

Como contar o caso?

Os doutores estavam a postos, alinhados, desde junto da doente, até muito para cá; e de um para o outro, de mão para mão, vinha passando criança sobre criança...

Era um colar, um rosário, uma enfiada de criancinhas, todas pegadinhas pelas mãozinhas!

E todas guinchavam, esperneavam, fortes e saudáveis, meninas e rapazes! ... Valente senhora!

Afinal cessou aquela ... descarga de crianças, que os doutores, de lanceta em punho, começaram a separar, pois, como disse, estavam presas umas às outras, pelas pontas dos dedos. E logo tratou-se de banhá-las e enfaixá-las como foi possível em toalhas, lençóis, camisas, porque as roupinhas não chegavam para todas. Depois arrumar-se-ia tudo em ordem; o essencial agora era não deixá-las apanhar frio.

E, então, procedeu-se à contagem: eram oitenta e sete crianças!

Tudo chorava!

O pai...

A mãe...

A sogra...

Os doutores...

Eu...

Tudo chorava!

Como nenhuma das crianças tivesse morrido do mal dos sete dias, no oitavo fez-se o batizado geral. Funcionaram sete padres; além de outros senhores, todos nós, os que assistiram ao nascimento, fomos convidados para padrinhos, cada um dum pequenito.

Padrinhos, madrinhas, afilhados e amas... formavam uma procissão, salvo seja!

Como não sou abelhudo e nem me envolvo na vida alheia, não quis, no momento, dar a minha opinião sobre aquele sucesso; porém pelo que ouvi, esparso, e por informações vagas, dos antigos do lugar, cheguei a esta conclusão:

Nem a tataravó, nem a bisavó, nem a avo, nem a mãe daquela senhora, nunca tinham tido filhos; de forma que toda a fecundidade, toda a força familieira, tinha passado, acumulada, para a minha comadre... e assim se explica como veio ela, sozinha, a ter, duma só vez, todos os filhos que deviam ter vindo ao mundo repartidos em... pelo menos, cinco gerações!

O meu afilhadinho lá ficou com o meu nome, Romualdo. Era o mais bonito..., e olhem que é difícil ser o mais bonito entre oitenta e sete!

Fonte:
http://pt.wikisource.org/wiki/Casos_do_Romualdo/XX

Miguel Carneiro (Balada do Cangaceiro sem Mãe e Outras Baladas) VI, final

Malungos

Nasci nas caatingas de Riachão,
e pela beira do Rio Jacuípe,
que descia leve para alcançar o Paraguassu,
aprendi o nome dos peixes e dos bichos.
E entre tantos companheiros que se foram
levados pela enchente do implacável tempo,
ficou apenas um, pelejando contra a Besta:
Foi Manoelito de D. Dora,
que nas manhãs azuis jacuipenses,
recitava para mim os Salmos de David.
Fui ficando sozinho no ermo da estrada.
Meu pai que me presenteava com livrinhos,
e minha irmã que me cobria de carinhos.
Se perderam pelos caminhos.
Sou agora um carneiro perdido,
Desgarrado do seu rebanho,
Pastando sozinho nesse Vale de Lagrímas.

Fontes:
Miguel Carneiro. Balada do Cangaceiro Sem Mãe e outras Baladas
Imagem = Pintura em tela . textura e tinta acrílica, de Katia Almeida