quarta-feira, 19 de março de 2014

Machado de Assis (A Melhor das Noivas)

O sorriso dos velhos é porventura uma das coisas mais adoráveis do mundo. Não o era porém o de João Barbosa no último dia de setembro de 1868, riso alvar e grotesco, riso sem pureza nem dignidade; riso de homem de setenta e três anos que pensa em contrair segundas núpcias. Nisso pensava aquele velho, aliás honesto e bom; disso vivia desde algumas horas antes. Eram oito da noite: ele entrara em casa com o mencionado riso nos lábios.

— Muito alegre vem hoje o senhor! — Sim? — Viu passarinho verde? — Verde não, D. Joana, mas branco, um branco de leite, puro e de encher o olho, como os quitutes que você me manda preparar às vezes.

— Querem ver que é...

— Isso mesmo, D. Joana.

— Isso quê? João Barbosa não respondeu; lambeu os beiços, piscou os olhos, e deixou-se cair no canapé. A luz do candelabro bateu-lhe em cheio no rosto, que parecia uma mistura de Saturno e sátiro. João Barbosa desabotoou a sobrecasaca e deu saída a um suspiro, aparentemente o último que lhe ficara de outros tempos. Era triste vê-lo; era cruel adivinhá-lo. D. Joana não o adivinhou.

Esta D. Joana era uma senhora de quarenta e oito anos, rija e maciça, que durante dez anos dava ao mundo o espetáculo de um grande desprezo da opinião. Contratada para tomar conta da casa de João Barbosa, logo depois de enviuvar, entrou ali em luta com os parentes do velho, que eram dois, os quais fizeram tudo para excluí-la sem conseguirem nada. Os dois parentes, os vizinhos, finalmente os conhecidos criam firmemente que D.

Joana aceitara de João Barbosa uma posição equívoca, embora lucrativa. Era calúnia; D.

Joana sabia o que diziam dela, e não arredava pé. A razão era que, posto não transpusesse uma linha das fronteiras estabelecidas no contrato verbal que precedeu a sua entrada ali, contudo ela esperava ser contemplada nas últimas disposições de João Barbosa; e valia a pena, em seu entender, afrontar os ditos do mundo para receber no fim de alguns anos uma dúzia de apólices ou uma casa ou alguma coisa equivalente.

Verdade é que o legado, se fosse de certa consistência, podia confirmar as suspeitas da sociedade; D. Joana, entretanto, professava a máxima extremamente salutar de que o essencial é andar-se quente, embora os outros se riam.

Riam-se os outros, mas de cólera, e alguns de inveja. João Barbosa, antigo magistrado, herdara de seu pai e de um tio quatro ou cinco fazendas, que transferiu a outros, convertendo seus cabedais em títulos do governo e vários prédios. Fê-lo logo depois de viúvo, e passou a residir na corte definitivamente. Perdendo um filho que tinha, achou-se quase só; quase, porque ainda lhe restavam dois sobrinhos, que o rodeavam de muitas e variadas atenções; João Barbosa suspeitava que os dois sobrinhos estimavam ainda mais as apólices do que a ele e recusou todas as ofertas que lhe faziam para aceitar-lhes casa.

Um dia lembrou-se de inserir nos jornais um anúncio declarando precisar de uma senhora de certa idade, morigerada, que quisesse tomar conta da casa de um homem viúvo. D.

Joana tinha apenas trinta e oito anos; confessou-lhe quarenta e quatro, e tomou posse do cargo. Os sobrinhos, quando souberam disto, apresentaram a João Barbosa toda a sorte de considerações que podem nascer no cérebro de herdeiros em ocasião de perigo. O velho ouviu cerca de oito a dez tomos de tais considerações, mas ateve-se à primeira ideia, e os sobrinhos não tiveram outro remédio mais que aceitar a situação.

D. Joana nunca se atrevera a desejar outra coisa mais que ser contemplada no testamento de João Barbosa; mas isso desejava-o ardentemente. A melhor das mães não tem no coração mais soma de ternura do que ela mostrava ter para servir e cuidar do opulento septuagenário. Ela cuidava do café matinal, escolhia as diversões, lia-lhe os jornais, contava-lhe as anedotas do quarteirão, tomava-lhe ponto às meias, inventava guisados que melhor pudessem ajudá-lo a carregar a cruz da vida. Conscienciosa e leal, não lhe dava alimentação debilitante; pelo contrário punha especial empenho em que lhe não faltasse nunca o filé sanguento e o bom cálice de Porto. Um casal não viveria mais unido.

Quando João Barbosa adoecia, D. Joana era tudo; mãe, esposa, irmã, enfermeira; às vezes era médico. Deus me perdoe! Parece que chegaria a ser padre, se ele viesse repentinamente a carecer do ministério espiritual. O que ela fazia nessas ocasiões pediria um volume, e eu disponho de poucas páginas. Pode-se dizer por honra da humanidade que o benefício não caía em terreno estéril. João Barbosa agradeceu-lhe os cuidados não só com boas palavras, mas também bons vestidos ou boas jóias. D. Joana, quando ele lhe apresentava esses agradecimentos palpáveis, ficava envergonhada e recusava, mas o velho insistia tanto, que era falta de polidez recusar.

Para torná-la mais completa e necessária à casa, D. Joana não adoecia nunca; não padecia de nervos, nem de enxaqueca, nem de coisa nenhuma; era uma mulher de ferro.

Acordava com a aurora e punha logo os escravos a pé; inspecionava tudo, ordenava tudo, dirigia tudo. João Barbosa não tinha outro cuidado mais que viver. Os dois sobrinhos tentaram alguma vez separar da casa uma mulher que eles temiam pela influência que já tinha e pelo desenlace possível de semelhante situação. Iam levar os boatos da rua aos ouvidos do tio.

— Dizem isso? perguntava este.

— Sim, senhor, dizem isso, e não parece bonito, na sua idade, estar exposto a...

— A coisa nenhuma, interrompia.

— Nenhuma! — Ou a pouca coisa. Dizem que eu nutro certa ordem de afetos por aquela santa mulher! Não é verdade, mas não seria impossível, e sobretudo não era feio.

Esta era a resposta de João Barbosa. Um dos sobrinhos, vendo que nada alcançava, resolvera desligar seus interesses dos do outro, e adotou o plano de aprovar o procedimento do velho, louvando-lhe as virtudes de D. Joana e rodeando-a de seu respeito, que a princípio arrastou a própria caseira. O plano teve algum efeito, porque João Barbosa francamente lhe declarou que ele não era tão ingrato como o outro.

— Ingrato, eu? seria um monstro, respondeu o sobrinho José com um gesto de indignação mal contida.

Tal era a situação respectiva entre João Barbosa e D. Joana, quando na referida noite de setembro entrou aquele em casa, com cara de quem tinha visto passarinho verde. D.

Joana tinha dito, por brinco: — Querem ver que é...

Ao que ele respondeu: — Isso mesmo.

— Isso mesmo, quê? repetiu D. Joana daí a alguns minutos.

— Isso que a senhora pensou.

— Mas eu não pensei nada — Pois fez mal, D. Joana.

— Mas então...

— D. Joana, dê suas ordens para o chá D. Joana obedeceu um pouco magoada. Era a primeira vez que João Barbosa lhe negava uma confidência. Ao mesmo tempo que isso a magoava, fazia-a suspeitosa; tratava-se talvez de alguma que viria prejudicá-la.

Servindo o chá, depois que João Barbosa se despira, apressou-se a caseira, na forma de costume, a encher-lhe a xícara, a escolher-lhe as fatias mais tenras, a abrir-lhe o guardanapo, com a mesma solicitude de dez anos. Haveria porém uma sombra de acanhamento entre ambos, e a palestra foi menos seguida e menos alegre que nas outras noites.

Durante os primeiros dias de outubro, João Barbosa trazia o mesmo ar singular, que tanto impressionara a caseira. Ele ria a miúdo, ria para si, ia duas vezes à rua, acordava mais cedo, falava de várias alterações em casa. D. Joana começara a suspeitar a causa verdadeira daquela mudança. Gelou-se-lhe o sangue e o terror se apoderou de seu espírito. Duas vezes procurou encaminhar a conversa ao ponto essencial, mas João Barbosa andava tão fora de si que não ouvia sequer o que ela dizia. Ao cabo de quinze dias, concluído o almoço, João Barbosa disse-lhe que a acompanhasse ao gabinete.

— É agora! pensou ela; vou saber de que se trata.

Passou ao gabinete.

Ali chegando, sentou-se João Barbosa e disse a D. Joana que fizesse o mesmo. Era conveniente; as pernas da boa mulher tremiam como varas.

— Vou dar-lhe a maior prova de estima, disse o septuagenário.

D. Joana curvou-se.

— Está aqui em casa há dez anos...

— Que me parecem dez meses.

— Obrigado, D. Joana! Há dez anos que eu tive a boa ideia de procurar uma pessoa que me tratasse da casa, e a boa fortuna de encontrar na senhora a mais consumada...

— Falemos de outra coisa! — Sou justo; devo ser justo.

— Adiante.

— Louvo-lhe a modéstia; é o belo realce de suas nobres virtudes.

— Vou-me embora.

— Não, não vá; ouça o resto. Está contente comigo? — Se estou contente! Onde poderia achar-me melhor? O senhor tem sido para mim um pai...

— Um pai?... interrompeu João Barbosa fazendo uma careta; falemos de outra coisa.

Saiba D. Joana que não a quero mais deixar.

— Quem pensa nisso? — Ninguém; mas eu devia dizê-lo. Não a quero deixar, estará a senhora disposta a fazer o mesmo? D. Joana teve uma vertigem, um sonho, um relance do Paraíso; ela viu ao longe um padre, um altar, dois noivos, uma escritura, um testamento, uma infinidade de coisas agradáveis e quase sublimes.

— Se estou disposta! exclamou ela. Quem se lembraria de dizer o contrário? Estou disposta a acabar aqui os meus dias; mas devo dizer que a ideia de uma aliança... sim...

este casamento...

— O casamento há de fazer-se! interrompeu João Barbosa batendo uma palmada no joelho. Parece-lhe mau? — Oh! não... mas, seus sobrinhos...

— Meus sobrinhos são dois capadócios, de quem não faço caso.

D. Joana não contestou essa opinião de João Barbosa, e este, serenado o ânimo, readquiriu o sorriso de bem-aventurança que, durante as duas últimas semanas, o distinguia do resto dos mortais. D. Joana não se atrevia a olhar para ele e brincava com as pontas do mantelete que trazia. Correram assim dois ou três minutos.

— Pois é o que lhe digo, continuou João Barbosa, o casamento há de fazer-se. Sou maior, não devo satisfação a ninguém.

— Lá isso é verdade.

— Mas, ainda que as devesse, poderia eu hesitar à vista... oh! à vista da incomparável graça daquela... vá lá.. de D. Lucinda? Se um condor, segurando D. Joana em suas garras possantes, subisse com ela até perto do sol, de lá a despenhasse à terra, menor seria a queda do que a que lhe produziu a última palavra de João Barbosa. A razão da queda não era, na verdade, aceitável, porquanto nem ela até então sonhara para si a honra de desposar o amo, nem este, nas poucas palavras que lhe dissera antes, lhe fizera crer claramente tal coisa. Mas o demônio da cobiça produz maravilhas dessas, e a imaginação da caseira via as coisas mais longe de que elas podiam ir. Creu um instante que o opulento septuagenário a destinava para sua esposa, e forjou logo um mundo de esperanças e realidades que o sopro de uma só palavra dissolveu e dispersou no ar.

— Lucinda! repetiu ela quando pôde haver de novo o uso da voz. Quem é essa D.

Lucinda? — Um dos anjos do céu enviado pelo Senhor, a fim de fazer a minha felicidade na terra.

— Está caçoando! disse D. Joana atando-se a um fragmento de esperança.

— Quem dera que fosse caçoada! replicou João Barbosa. Se tal fosse, continuaria eu a viver tranqüilo, sem conhecer a suprema ventura, é certo, mas também sem padecer abalos de coração...

— Então é certo... — Certíssimo.

D. Joana estava pálida.

João Barbosa continuou: — Não pense que é alguma menina de quinze anos; é uma senhora feita; tem seus trinta e dois feitos; é viúva; boa família...

O panegírico da noiva continuou, mas D. Joana já não ouvia nada. posto nunca meditasse em fazer-se mulher de João Barbosa via claramente que a resolução deste viria prejudicá-la: nada disse e ficou triste. O septuagenário, quando expandiu toda a alma em elogios à pessoa que escolhera para ocupar o lugar da esposa morta há tão longos anos, reparou na tristeza de D. Joana e apressou-se a animá-la.

— Que tristeza é essa, D. Joana? disse ele. Isto não altera nada a sua posição. Eu já agora não a deixo; há de ter aqui a sua casa até que Deus a leve para si.

— Quem sabe? suspirou ela.

João Barbosa fez-lhe os seus mais vivos protestos, e tratou de vestir-se para sair. Saiu, e dirigiu-se da Rua da Ajuda, onde morava, para a dos Arcos, onde morava a dama de seus pensamentos, futura esposa e dona de sua casa.

D. Lucinda G... tinha trinta e quatro anos para trinta e seis, mas parecia ter mais, tão severo era o rosto, e tão de matrona os modos. Mas a gravidade ocultava um grande trabalho interior, uma luta dos meios que eram escassos, com os desejos, que eram infinitos.

Viúva desde os vinte e oito anos, de um oficial de marinha, com quem se casara aos dezessete para fazer a vontade aos pais, D. Lucinda não vivera nunca segundo as ambições secretas de seu espírito. Ela amava a vida suntuosa, e apenas tinha com que passar modestamente; cobiçava as grandezas sociais e teve de contentar-se com uma posição medíocre. Tinha alguns parentes, cuja posição e meios eram iguais aos seus, e não podiam portanto dar-lhe quanto ela desejava. Vivia sem esperança nem consolação.

Um dia, porém, surgiu no horizonte a vela salvadora de João Barbosa. Apresentado à viúva do oficial de marinha, em uma loja da Rua do Ouvidor, ficou tão cativo de suas maneiras e das graças que lhe sobreviviam, tão cativo que pediu a honra de travar relações mais estreitas. D. Lucinda era mulher, isto é, adivinhou o que se passara no coração do septuagenário, antes mesmo que este desse acordo de si. Uma esperança iluminou o coração da viúva; aceitou-a como um presente do céu.

Tal foi a origem do amor de João Barbosa.

Rápido foi o namoro, se namoro podia haver entre os dois viúvos. João Barbosa, apesar de seus cabedais, que o faziam noivo singularmente aceitável, não se atrevia a dizer à dama de seus pensamentos tudo o que lhe tumultuava no coração.

Ela ajudou-o.

Um dia, achando-se ele embebido a olhar para ela, D. Lucinda perguntou-lhe graciosamente se nunca a tinha visto.

— Vi-a há muito.

— Como assim? — Não sei... balbuciou João Barbosa.

D. Lucinda suspirou.

João Barbosa suspirou também.

No dia seguinte, a viúva disse a João Barbosa que dentro de pouco tempo se despediria dele. João Barbosa pensou cair da cadeira abaixo.

— Retira-se da corte? — Vou para o Norte.

— Tem lá parentes? — Um.

João Barbosa refletiu alguns instantes. Ela espreitou a reflexão com uma curiosidade de cão rafeiro.

— Não há de ir! exclamou o velho daí a pouco.

— Não? — Não.

— Como assim? João Barbosa abafou uma pontada reumática, ergueu-se, curvou-se diante de D. Lucinda e pediu-lhe a mão. A viúva não corou; mas, posto esperasse aquilo mesmo, estremeceu de júbilo.

— Que me responde? perguntou ele.

— Recuso.

— Recusa! — Oh! com muita dor do meu coração, mas recuso! João Barbosa tornou a sentar-se; estava pálido.

— Não é possível! disse ele.

— Mas por quê? — Por que... por que, infelizmente, o senhor é rico.

— Que tem? — Seus parentes dirão que eu lhe armei uma cilada para enriquecer...

— Meus parentes! Dois biltres, que não valem a mínima atenção! Que tem que digam isso? — Tem tudo. Além disso...

— Que mais? — Tenho parentes meus, que não hão de levar a bem este casamento; dirão a mesma coisa, e eu ficarei... Não falemos em semelhante coisa! João Barbosa estava aflito e ao mesmo tempo dominado pela elevação de sentimentos da interessante viúva. O que ele então esperdiçou em eloquência e raciocínio encheria meia biblioteca; lembrou-lhe tudo: a superioridade de ambos, sua independência, o desprezo que mereciam as opiniões do mundo, sobretudo as opiniões dos interessados; finalmente, pintou-lhe o estado de seu coração. Este último argumento pareceu enternecer a viúva.

— Não sou moço, dizia ele, mas a mocidade...

— A mocidade não está na certidão de batismo, acudiu filosoficamente D. Lucinda, está no sentimento, que é tudo; há moços decrépitos, e homens maduros eternamente jovens.

— Isso, isso...

— Mas...

— Mas, há de ceder! Eu lho peço; unamo-nos e deixemos falar os invejosos! D. Lucinda resistiu pouco mais. O casamento foi tratado entre os dois, convencionando-se que se verificaria o mais cedo possível.

João Barbosa era homem digno de apreço; não fazia as coisas por metade. Quis arranjar as coisas de modo que os dois sobrinhos nada tivessem do que ele deixasse quando viesse a morrer, se tal desastre tinha de acontecer — coisa de que o velho não estava muito convencido.

Tal era a situação.

João Barbosa fez a visita costumada à interessante noiva. Era matinal demais; D.

Lucinda, porém, não podia dizer nada que viesse a desagradar a um homem que tão galhardamente se mostrava com ela.

A visita nunca ia além de duas horas; era passada em coisas insignificantes, entremeada de suspiros do noivo, e muita faceirice dela.

— O que me estava reservado nestas alturas! dizia João Barbosa ao sair de lá.

Naquele dia, logo que ele saiu de casa, D. Joana tratou de examinar friamente a situação.

Não podia haver pior para ela. Era claro que, embora João Barbosa não a despedisse logo, seria compelido a fazê-lo pela mulher nos primeiros dias do casamento, ou talvez antes. Por outro lado, desde que ele devesse carinhos a alguém mais que não a ela somente, sua gratidão viria a diminuir muito, e com a gratidão o legado provável.

Era preciso achar um remédio.

Qual? Nisso gastou D. Joana toda a manhã sem achar solução nenhuma, ao menos solução que prestasse. Pensou em várias coisas, todas impraticáveis ou arriscadas e terríveis para ela.

Quando João Barbosa voltou para casa, às três horas da tarde, achou-a triste e calada.

Indagou o que era; ela respondeu com algumas palavras soltas, mas sem clareza, de maneira que ele ficaria na mesma, se não tivesse havido a cena da manhã.

— Já lhe disse, D. Joana, que a senhora não perde nada com a minha nova situação. O lugar pertence-lhe.

O olhar de dignidade ofendida que ela lhe lançou foi tal que ele não achou nenhuma réplica. Entre si fez um elogio à caseira.

— Tem-me afeição, coitada! é uma alma dotada de muita elevação.

D. Joana não o serviu com menos carinho nesse e no dia seguinte; era a mesma pontualidade e solicitude. A tristeza porém era também a mesma e isto desconsolava sobremodo o noivo de D. Lucinda, cujo principal desejo era fazê-las felizes ambas.

O sobrinho José, que tivera o bom gosto de cortar os laços que o prendiam ao outro, desde que viu serem inúteis os esforços para separar D. Joana de casa, não deixava de ali ir a miúdo tomar a bênção ao tio e receber alguma coisa de quando em quando.

Acertou de ir alguns dias depois da revelação de João Barbosa. Não o achou em casa, mas D. Joana estava, e ele em tais circunstâncias não deixava de se demorar a louvar o tio, na esperança de que alguma coisa chegasse aos ouvidos deste. Naquele dia notou que D. Joana não tinha a alegria do costume.

Interrogada por ele, D. Joana respondeu: — Não é nada...

— Alguma coisa há de ser, dar-se-á caso que...

— Que?...

— Que meu tio esteja doente? — Antes fosse isso! — Que ouço? D. Joana mostrou-se arrependida do que dissera e metade do arrependimento era sincero, metade fingido. Não tinha grande certeza da discrição do rapaz; mas via bem para que lado iam seus interesses. José tanto insistiu em saber do que se tratava que ela não hesitou em dizer-lhe tudo, debaixo de palavra de honra e no mais inviolável segredo.

— Ora veja, concluiu ela, se ao saber que essa senhora trata de enganar o nosso bom amigo para haver-lhe a fortuna...

— Não diga mais, D. Joana! interrompeu José fulo de cólera.

— Que vai fazer? — Verei, verei...

— Oh! não me comprometa! — Já lhe disse que não; saberei desfazer a trama da viúva. Ela veio aqui alguma vez? — Não, mas consta-me que há de vir domingo jantar.

— Virei também.

— Pelo amor de Deus...

— Descanse! José via o perigo tanto como D. Joana; só não viu que ela lhe contara tudo, para havê-lo de seu lado e fazê-lo trabalhar por desfazer um laço quase feito. O medo dá às vezes coragem, e um dos maiores medos do mundo é o de perder uma herança. José sentiu-se resoluto a empregar todos os esforços para obstar o casamento do tio.

D. Lucinda foi efetivamente jantar em casa de João Barbosa. Este não cabia em si de contente desde que se levantou. Quando D. Joana foi levar-lhe o café do costume, ele desfez-se em elogios à noiva.

— A senhora vai vê-la, D. Joana, vai ver o que é uma pessoa digna de todos os respeitos e merecedora de uma afeição nobre e profunda.

— Quer mais açúcar? — Não. Que graça! que maneiras, que coração! Não imagina que tesouro é aquela mulher! Confesso que estava longe de suspeitar tão raro conjunto de dotes morais.

Imagine...

— Olhe que o café esfria...

— Não faz mal. Imagine...

— Creio que há gente de fora. Vou ver.

D. Joana saiu; João Barbosa ficou pensativo.

— Coitada! A ideia de que vai perder a minha estima não a deixa um só instante. In petto não aprova talvez este casamento, mas não se atreveria nunca a dizê-lo. É uma alma extremamente elevada! D. Lucinda apareceu perto das quatro horas. Ia luxuosamente vestida, graças a algumas dívidas feitas à conta dos futuros cabedais. A vantagem daquilo era não parecer que João Barbosa a tirava do nada.

Passou-se o jantar sem incidente nenhum; pouco depois de oito horas, D. Lucinda retirou-se deixando encantado o noivo. D. Joana, se não fossem as circunstâncias apontadas, devia ficar igualmente namorada da viúva, que a tratou com uma bondade, uma distinção verdadeiramente adoráveis. Era talvez cálculo; D. Lucinda queria ter por si todos os votos, e sabia que o da boa velha tinha alguma consideração.

Entretanto, o sobrinho de João Barbosa, que também ali jantara, apenas a noiva do tio se retirou para casa foi ter com ele.

— Meu tio, disse José, reparei hoje uma coisa.

— Que foi? — Reparei que se o senhor não tiver conta em si é capaz de ser embaçado.

— Embaçado? — Nada menos.

— Explica-te.

— Dou-lhe notícia de que a senhora que hoje aqui esteve tem ideias a seu respeito.

— Ideias? Explica-te mais claramente.

— Pretende desposá-lo.

— E então? — Então, é que o senhor é o quinto ricaço, a quem ela lança, a rede. Os primeiros quatro perceberam a tempo o sentimento de especulação pura, e não caíram. Eu previno-o disso, para que não se deixar levar pelo conto da sereia, e se ela lhe falar em alguma coisa...

João Barbosa que já estava vermelho de cólera, não se pôde conter; cortou-lhe a palavra intimando-o a que saísse. O rapaz disse que obedecia, mas não interrompeu as reflexões: inventou o que pôde, deitou cores sombrias ao quadro, de maneira que saiu deixando o veneno no coração do pobre velho.

Era difícil que algumas palavras tivessem o condão de desviar o namorado do plano que assentara; mas é certo que foi esse o ponto de partida de uma longa hesitação. João Barbosa vociferou contra o sobrinho, mas, passado o primeiro acesso, refletiu um pouco no que lhe acabava de ouvir e concluiu que seria realmente triste, se ele tivesse razão.

— Felizmente, é um caluniador! concluiu ele.

D. Joana soube da conversa havida entre João Barbosa e o sobrinho, e aprovou a ideia deste; era necessário voltar à carga; e José não se descuidou disso.

João Barbosa confiou à caseira as perplexidades que o sobrinho buscava lançar em seu coração, — Acho que ele tem razão, disse ela.

— Também tu? — Também eu, e se o digo é porque o posso dizer, visto que desde hoje estou desligada desta casa.

D. Joana disse isto levando o lenço aos olhos, o que partiu o coração de João Barbosa em mil pedaços; tratou de a consolar e inquiriu a causa de semelhante resolução. D. Joana recusou explicar; afinal estas palavras saíram de sua boca trêmula e comovida: — É que... também eu tenho coração! Dizer isto e fugir foi a mesma coisa. João Barbosa ficou a olhar para o ar, depois dirigiu os olhos a um espelho, perguntando-lhe se efetivamente não era explicável aquela declaração.

Era.

João Barbosa mandou-a chamar. Veio D. Joana e arrependida de ter ido tão longe, tratou de explicar o que acabava de dizer. A explicação era fácil; repetiu que tinha coração, como o sobrinho de João Barbosa, e não podia, como o outro, vê-lo entregar-se a uma aventureira.

— Era isso? — É duro de o dizer, mas cumpri o que devia; compreendo porém que não posso continuar nesta casa.

João Barbosa procurou apaziguar-lhe os escrúpulos; e D. Joana deixou-se vencer, ficando.

Entretanto, o noivo sentia-se um tanto perplexo e triste. Cogitou, murmurou, vestiu-se e saiu.

Na primeira ocasião em que se encontrou com D. Lucinda, esta, vendo-o triste, perguntou-lhe se eram incômodos domésticos.

— Talvez, resmungou ele.

— Adivinho.

— Sim? — Alguma que lhe fez a caseira que o senhor lá tem? — Por que supõe isso? D. Lucinda não respondeu logo; João Barbosa insistiu.

— Não simpatizo com aquela cara.

— Pois não é má mulher.

— De aparência, talvez.

— Parece-lhe então...

— Nada; digo que bem pode ser alguma intrigante...

— Oh! — Mera suposição.

— Se a conhecesse havia de lhe fazer justiça.

João Barbosa não recebeu impunemente esta alfinetada. Se efetivamente D. Joana não passasse de uma intrigante? Era difícil supô-lo ao ver a cara com que ela o recebeu na volta. Não a podia haver mais afetuosa. Contudo, João Barbosa pôs-se em guarda; convém dizer, em honra de seus afetos domésticos, que não o fez sem tristeza e amargura.

— Que tem o senhor que está tão macambúzio? perguntou D. Joana com a mais doce voz que possuía.

— Nada, D. Joana.

E daí a pouco: — Diga-me; seja franca. Alguém a incumbiu de me dizer aquilo a respeito da senhora que...

D. Joana tremeu de indignação.

— Pois imagina que eu seria capaz de fazer-me instrumento... Oh! é demais! O lenço correu aos olhos e provavelmente encheu-se de lágrimas. João Barbosa não podia ver chorar uma mulher que o servia tão bem há tanto tempo. Consolou-a como pôde, mas o golpe (dizia ela) fora profundo. Isto foi dito tão de dentro, e com tão amarga voz, que João Barbosa não pôde esquivar-se a esta reflexão.

— Esta mulher ama-me! Desde que, pela segunda vez, se lhe metia esta suspeita pelos olhos, seus sentimentos em relação a D. Joana eram de compaixão e simpatia. Ninguém pode odiar a pessoa que o ama silenciosamente e sem esperança. O bom velho sentia-se lisonjeado da vegetação amorosa que seus olhos faziam brotar dos corações.

Daí em diante começou uma luta entre as duas mulheres de que eram campo e objeto o coração de João Barbosa. Uma tratava de demolir a influência da outra; os dois interesses esgrimiam com todas as armas que tinham à mão.

João Barbosa era um joguete entre ambas — uma espécie de bola de borracha que uma atirava às mãos da outra, e que esta de novo lançava às da primeira. Quando estava com Lucinda suspeitava de Joana; quando com Joana suspeitava de Lucinda. Seu espírito, debilitado pelos anos, não tinha consistência nem direção; uma palavra o dirigia ao sul, outra o encaminhava ao norte.

A esta situação, já de si complicada, vieram juntar-se algumas circunstâncias desfavoráveis a D. Lucinda. O sobrinho José não cessava as suas insinuações; ao mesmo tempo os parentes da interessante viúva entraram a rodear o velho, com tal sofreguidão, que, apesar de sua boa vontade, este desconfiou seriamente das intenções da noiva. Nisto sobreveio um ataque de reumatismo. Obrigado a não sair de casa, era a D. Joana que cabia desta vez exclusivamente a direção do espírito de João Barbosa. D.

Lucinda foi visitá-lo algumas vezes; mas o papel principal não era seu.

A caseira não se poupou a esforços para readquirir a antiga influência; o velho ricaço saboreou de novo as delícias da dedicação de outro tempo. Ela o tratava, amimava e conversava; lia-lhe os jornais, contava-lhe a vida dos vizinhos entremeada de velhas anedotas adequadas à narração. A distância e a ausência eram dois dissolventes poderosos do amor decrépito de João Barbosa.

Logo que ele melhorou um pouco foi à casa de D. Lucinda. A viúva o recebeu com polidez, mas sem a solicitude a que o acostumara. Sucedendo a mesma coisa outra vez, João Barbosa sentiu que, pela sua parte, também o primitivo afeto esfriara um pouco.

D. Lucinda contava aguçar-lhe o afeto e o desejo mostrando-se fria e reservada; sucedeu o contrário. Quando quis resgatar o que perdera, era um pouco tarde; contudo não desanimou.

Entretanto, João Barbosa voltara à casa, onde a figura de D. Joana lhe pareceu a mais ideal de todas as esposas.

— Como é que não me lembrei há mais tempo de casar com esta mulher? pensou ele.

Não fez a pergunta em voz alta; mas D. Joana pressentiu num olhar de João Barbosa que aquela ideia alvorecia em seu generoso espírito.

João Barbosa voltou a concentrar-se em casa. D. Lucinda, após os primeiros dias, derramou o coração em longas cartas que eram pontualmente entregues em casa de João Barbosa, e que este lia em presença de D. Joana, posto fosse em voz baixa. João Barbosa, logo à segunda, quis ir reatar o vínculo roto; mas o outro vínculo que o prendia à caseira era já forte e a ideia foi posta de lado. D. Joana achou enfim meio de subtrair as cartas.

Um dia, João Barbosa chamou D. Joana a uma conferência particular.

— D. Joana, chamei-a para lhe dizer uma coisa grave.

— Diga.

— Quero fazer a sua felicidade.

— Já não a faz há tanto tempo? — Quero fazê-la de modo mais positivo e duradouro.

— Como? — A sociedade não crê, talvez, na pureza de nossa afeição; confirmemos a suspeita da sociedade.

— Senhor! exclamou D. Joana com um gesto de indignação tão nobre quão simulado.

— Não me entendeu, D. Joana, ofereço-lhe a minha mão...

Um acesso de asma, porque ele também padecia de asma, veio interromper a conversa no ponto mais interessante. João Barbosa gastou alguns minutos sem falar nem ouvir.

Quando o acesso passou, sua felicidade, ou antes a de ambos, estava prometida de parte a parte. Ficava assentado um novo casamento.

D. Joana não contava com semelhante desenlace, e abençoou a viúva que, pretendendo casar com o velho, sugeriu-lhe a ideia de fazer o mesmo e a encaminhou àquele resultado. O sobrinho José é que estava longe de crer que havia trabalhado simplesmente para a caseira; tentou ainda impedir a realização do plano do tio, mas este às primeiras palavras fê-lo desanimar.

— Desta vez, não cedo! respondeu ele; conheço as virtudes de D. Joana, e sei que pratico um ato digno de louvor.

— Mas...

— Se continuas, pagas-me! José recuou e não teve outro remédio mais que aceitar os fato consumados. O pobre septuagenário treslia evidentemente.

D. Joana tratou de apressar o casamento, receosa de que, ou algumas das várias moléstias de João Barbosa, ou a própria velhice desse cabo dele, antes de arranjadas as coisas. Um tabelião foi chamado, e tratou, por ordem do noivo, de preparar o futuro de D.

Joana.

Dizia o noivo: — Se eu não tiver filhos, desejo...

— Descanse, descanse, respondeu o tabelião.

A notícia desta resolução e dos atos subsequentes chegou aos ouvidos de D. Lucinda, que mal pôde crer neles.

— Compreendo que me fugisse; eram intrigas daquela... daquela criada! exclamou ela.

Depois ficou desesperada; interpelou o destino, deu ao diabo todos os seus infortúnios.

— Tudo perdido! tudo perdido! dizia ela com uma voz arrancada às entranhas.

Nem D. Joana nem João Barbosa a podiam ouvir. Eles viviam como dois namorados jovens, embebidos no futuro. João Barbosa planeava mandar construir uma casa monumental em algum dos arrabaldes onde passaria o resto de seus dias. Conversavam das divisões que a casa devia ter, da mobília que lhe convinha, da chácara, e do jantar com que deviam inaugurar a residência nova.

— Quero também um baile! dizia João Barbosa.

— Para quê? Um jantar basta.

— Nada! Há de haver grande jantar e grande baile; é mais estrondoso. Demais, quero apresentar-te à sociedade como minha mulher, e fazer-te dançar com algum adido de legação. Sabes dançar? — Sei.

— Pois então! Jantar e baile.

Marcou-se o dia de ano bom para celebração do casamento.

— Começaremos um ano feliz, disseram ambos.

Faltavam ainda dez dias, e D. Joana estava impaciente. O sobrinho José, alguns dias arrufado, fez as pazes com a futura tia. O outro aproveitou o ensejo de vir pedir o perdão do tio; deu-lhe os parabéns e recebeu a bênção. Já agora não havia remédio senão aceitar de boa cara o mal inevitável.

Os dias aproximaram-se com uma lentidão mortal; nunca D. Joana os vira mais compridos. Os ponteiros do relógio pareciam padecer de reumatismo; o sol devia ter por força as pernas inchadas. As noites pareciam-se com as da eternidade.

Durante a última semana João Barbosa não saiu de casa; todo ele era pouco para contemplar a próxima companheira de seus destinos. Enfim raiou a aurora cobiçada.

D. Joana não dormia um minuto sequer, tanto lhe trabalhava o espírito.

O casamento devia ser feito sem estrondo, e foi uma das vitórias de D. Joana, porque o noivo falava em um grande jantar e meio mundo de convidados. A noiva teve prudência; não queria expor-se e expô-lo a comentários. Conseguira mais; o casamento devia ser celebrado em casa, num oratório preparado de propósito. Pessoas de fora, além dos sobrinhos, havia duas senhoras (uma das quais era madrinha) e três cavalheiros, todos eles e elas maiores de cinquenta.

D. Joana fez sua aparição na sala alguns minutos antes da hora marcada para celebração do matrimônio. Vestia com severidade e simplicidade.

Tardando o noivo, ela mesma o foi buscar.

João Barbosa estava no gabinete já pronto, sentado ao pé de uma mesa, com uma das mãos calçadas.

Quando D. Joana entrou deu com os olhos no grande espelho que ficava defronte e que reproduzia a figura de João Barbosa; este estava de costas para ela. João Barbosa fitavaa rindo, um riso de bem-aventurança.

— Então! disse D. Joana.

Ele continuava a sorrir e a fitá-la; ela aproximou-se, rodeou a mesa, olhou-o de frente.

— Vamos ou não? João Barbosa continuava a sorrir e a fitá-la. Ela aproximou-se e recuou espavorida.

A morte o tomara; era a melhor das noivas.

Fonte: 
www.dominiopublico.gov.br

sábado, 15 de março de 2014

Fernando Bevilacqua (Árvores)

Árvores são como pessoas – quase sempre melhores.

Alguns, que afirmam se comunicar com elas, garantem que, embora não falem, entendem e respondem aos tratos carinhosos. Outros asseguram (coincidência ou não) que outras são fulminadas por olhares impregnados de ódio, inveja e frustração (isto vale mais para plantinhas frágeis).

Não fossem as camadas atmosféricas que envolvem o planeta, a Terra teria coloração verde e não azul, tal a presença massiva das árvores.

As árvores são vaidosas, não fossem elas do sexo feminino. Quantas são vistas com seus corpos retorcidos, em poses sensuais, até mesmo as que demonstram indisfarçável e assumida obesidade. E as que se enfeitam de flores, em flagrante exibição, aguardando, sem falsa modéstia, olhares extasiados e perplexos? Vaidosas sim, vulgares quase nunca. Expõem seus adereços sazonalmente, provocando a ansiedade da próxima vez. O que dizer do Ipê, a produzir “orgasmos visuais” e não mais do que durante parcos sete dias de exposição? Embora vaidosas e sensuais, nunca se apresentam despidas de suas roupagens, modestas que sejam. Os corpos lisos, “depilados”, culminam com cabeças coroadas por “cabeleiras” de várias tonalidades, tipos e volumes pilosos. Não abrem mão de suas vaidades: à medida que envelhecem, perdem suas melenas, veem seus “membros” fraturados por pequenos traumas (como se tivessem osteoporose, à semelhança dos humanos), e como não suportam se mostrar feias, com corpos esquálidos e sem viço, secam; preferem a morte e assim serem lembradas por suas exuberâncias da juventude. Quanta sabedoria, quanto desprendimento!

As árvores são temperamentais – mulheres como nunca! Plantadas em locais onde não poderão expandir suas raízes ou seus galhos ( no sonho de alcançar o firmamento), destroem calçadas, derrubam muros, danificam telhados, entopem bueiros e calhas, em avisos contra aqueles que pretendem domá-las. Respondem às amputações de seus membros (as podas) enchendo-se de novas energias, robustecendo-se, numa advertência de como resistem às agressões. Bem tratadas, acariciadas, adubadas com amor, fornecem de tudo o que se lhes pedir: a sombra para momentos de descanso e reflexão, ramos emplumados para proteger os viajantes dos mistérios da noite, palha para forrar o solo e acolher corpos apaixonados em delírios silvestres, casca e raízes para alívio e tratamento de dores e doenças, troncos para fabricação de sua jangada que o levará de volta ao lar, aquele mesmo construído com a madeira por elas fornecida. E mais: um galho bem apontado pode servir de arma de defesa ou de caça, a salvar sua vida ou matar sua fome.

As árvores são imprevisíveis. Vão ser femininas no inferno! Vistas de longe, há sempre a expectativa de momentos alvissareiros. Nem todas, contudo, irão participar de boas lembranças. Espinhos deixam arranhões dolorosos, folhas aveludadas escondem ardências, pruridos e inchações inesquecíveis, frutos atraentes e de aparência hipnótica e ingênua intoxicam, quando não matam. Fica aqui um alerta: árvores são fantásticas, mas nem sempre confiáveis. Com quem parecem esses seres, filhas de Deus, como nós?

Árvores são necessárias, indispensáveis, da mesma forma que pensam os homens (só os mais sábios) sobre as mulheres; sendo assim, precisam ser preservadas – árvores e mulheres. Deixem que as árvores morram espontaneamente. Não as matem. Elas têm a sabedoria do adeus.

Oh! mundo insensível, oh! pessoas insanas! No encontro de uma “árvore – mulher”, proteja-a, adube-a e regue-a sem cessar.

Eis a possível salvação!

Fonte:
IV Troféu Literatura da Natureza, in http://www.reinodosconcursos.com.br

Lacy José Raymundi (Baú de Trovas)


À franga, com voz de plumas,
diz a mãe, cheia de pena:
- Aos ovos tu te acostumas,
logo após uma centena...

Alguém me disse, na esquina,
e de repetir não cesso:
"A educação é uma usina
que nos conduz ao progresso!...”

Ali moram quatro viúvas
outrora cheias de graças,
mas, daquelas quatro “uvas”
hoje restam quatro “passas...”

A noite estende seu manto
de silêncio nos caminhos,
e a aurora quebra esse encanto,
pela algazarra dos ninhos…

Ao ver um homem baixinho,
entendo porque não presto,
pois penso do coitadinho:
- "Aonde ficou o resto?..."

A visão que me produz
um vagalume na altura,
me lembra um pingo de luz
brilhando na noite escura...

Cada níquel que se gasta
em armas de fazer guerra
é mais um passo que afasta
a Paz da face da Terra!

Cai a noite. O escuro lacra
a luz dos olhos tranquilos,
e eu ouço a música sacra
da serenata dos grilos.

Da dura lida da roça,
que bem cedo principia,
os estultos fazem troça,
os sábios fazem poesia!

Deixo claro nesta pauta:
sigo tão só, no caminho,
como segue um astronauta
posto no espaço, sozinho.

Deus, para ter um modelo
de um ser que transmite amor,
tomou de um homem e fê-lo
o Primeiro Trovador.

Diz o frango, só de tanga,
dando no pai, longo amplexo:
"Galo velho! Por que a zanga
se sou do terceiro sexo?!

Dos teus lábios purpurinos
o beijo que me estás dando
lembra um licor dos mais finos
que se degusta sonhando!…

É mentira ou é verdade?
É verdade ou é mentira?
Se a mulher disser a idade
não acredite: confira!...

É na comunhão singela
da cuia do chimarrão,
que nosso pago nivela
o campeiro e seu patrão!

Esta questão se renova
sem solução, lhe asseguro:
por que razões, franga nova
se amarra em galo maduro?!…

Eu fico pasmo, por certo,
vendo Deus, perfeito assim,
esquecer o cofre aberto
do perfume do jasmim...

Felicidade, entrevejo
na comunhão que componho
entre o vinho do teu beijo
e o champanha do meu sonho.

Há, doutor, um repelente,
que me livre, volta e meia,
deste perigo iminente
do assédio de mulher feia???

Há muito tempo eu suspeito
da devoção aparente:
nem sempre uma cruz no peito
põe Cristo dentro da gente!

Num gesto brusco e banal,
de verdadeira loucura,
pinguei um ponto final
numa história de ternura...

O cravo que foi cravado
em cada chaga de Cristo,
lamentou ser fabricado
e obrigado a fazer isto!...

O licor que me apetece
e não me deixa ressábios,
não vem da vinha ou da messe,
vem do rubor dos teus lábios…

O pinguço diz, sem graça,
ante às águas da cachoeira:
- Se tudo fosse cachaça,
ah! que baita bebedeira!

Para aplacar meus cansaços,
eu, que buscava repouso,
no aeroporto dos teus braços
achei meu campo-de-pouso...

Problema, me diz um trouxa,
pensando com parcimônia,
é ter a bexiga frouxa
em festa de cerimônia...

Quando os vejo, todo o dia,
sempre me espanta, não nego,
perceber no olhar do guia
a luz dos olhos do cego!

Se a luz dos teus olhos tenho
como um farol que me guia,
não temo, por onde venho,
percalços da travessia!...

Se examino meu extrato
sinto arrepios na espinha,
que o juro não é barato
e a conta está ‘vermelhinha”!

Se o teu portão dorme aberto
me assanha um louco palpite
de que chegando bem perto
vais sussurrar-me um convite...

Sobre o veludo da mesa
deslizam sonhos fugazes
ante a total incerteza
dos coringas e dos ases. . .

Taças, champanhas, licores,
pelo chão roupas revoltas,
por certo o deus dos amores
por aqui andou às soltas…

Tanto fumo tem passado
pelos seus pulmões que até
o Raio-X tem mostrado
fuligem de chaminé…

Teu amor tem tal formato,
estás a mim tão ligada,
como um chicle no sapato
que não desgruda por nada…

Toda mulher que suspeita
que tem um marido esperto,
adormece, quando deita,
mas mantém um olho aberto...

Tu me pedes que eu aponte
o que é distância, em verdade?
- Distância é apenas a ponte
entre o amor e a saudade!...

Machado de Assis (A Mágoa do Infeliz Cosme)

I

Imensa e profunda foi a mágoa do infeliz Cosme. Depois de três anos de não interrompida ventura, faleceu-lhe a mulher, ainda na flor da idade, e no esplendor das graças com que a dotara a natureza. Uma rápida moléstia a arrebatou aos carinhos do esposo e à admiração de quantos tiveram a honra e o prazer de praticar com ela. Quinze dias apenas esteve de cama; mas foram quinze séculos para o infeliz Cosme. Por cúmulo de desgraças, expirou longe dos olhos dele; Cosme saíra para ir buscar a solução de um negócio; quando chegou à casa achou um cadáver.

Dizer a aflição em que este acontecimento lançou o infeliz Cosme pediria outra pena que não a minha. Cosme chorou logo no primeiro dia todas as suas lágrimas; no dia seguinte tinha os olhos exaustos e secos. Os seus numerosos amigos contemplavam com tristeza o rosto do infeliz e ao lançar a pá de terra sobre o caixão já depositado no fundo da cova, mais de um recordou os dias que passara ao pé dos dois esposos, tão queridos um do outro, tão venerados e amados dos seus íntimos.

Cosme não se limitou ao encerramento usual dos sete dias. A dor não é costume, dizia ele aos que o iam visitar; sairei daqui quando puder arrastar o resto dos meus dias. Ali ficou durante seis semanas, sem ver a rua nem o céu. Os seus empregados iam prestar-lhe contas, a que ele, com incrível esforço, prestava religiosa atenção. Cortava o coração ver aquele homem ferido no que havia de mais caro para ele, discutir às vezes um erro de soma, uma troca de algarismos. Uma lágrima às vezes vinha interromper a operação. O viúvo lutava com o homem do dever.

Ao cabo de seis semanas resolveu sair à rua o infeliz Cosme.

- Não estou curado, dizia ele a um compadre; mas é preciso obedecer às necessidades da vida.

- Infeliz! exclamou o compadre apertando-o nos braços.
 
II

Na véspera de sair foi visitá-lo um moço de vinte e oito anos, que podia ser seu filho, porque o infeliz Cosme contava quarenta e oito. Cosme conhecera o pai de Oliveira e fora seu companheiro nos bons tempos da mocidade. Oliveira afeiçoou-se ao amigo de seu pai, e frequentava-lhe a casa ainda antes do casamento.

- Sabe que vou casar? disse um dia Cosme a Oliveira.

- Sim? Com quem? - Adivinhe.

- Não posso.

- Com D. Carlota.

- Aquela moça a quem me apresentou ontem no teatro? - Justo.

- Dou-lhe meus parabéns.

Cosme arregalou os olhos de contente.

- Não lhe parece que faço boa escolha? - Uma excelente moça: formosa, rica...

- Um anjo! Oliveira puxou duas fumaças do charuto e observou: - Mas como arranjou isso? Nunca me falou em tal. Verdade é que sempre o conheci discreto; e meu pai costumava dizer que o senhor era uma urna inviolável.

- Por que motivo andaria eu a bater com a língua nos dentes? - Tem razão...

- Este casamento há de dar que falar, porque eu já estou um pouco maduro.

- Oh! não parece.

- Mas estou; cá tenho já os meus quarenta e cinco. Não os mostro, bem sei; apuro-me no vestir, e não tenho um fio de cabelo branco.

- E conta ainda um mérito mais: é experiente.

- Dois méritos: experiente e sossegado. Não estou na idade de andar correndo a via sacra e dando desgosto à família, que é o defeito dos rapazes. Parece-lhe então que seremos felizes? - Como dois eleitos do céu.

Cosme, que ainda não era o infeliz Cosme, esfregou as mãos de contentamento e manifestou a opinião de que o seu jovem amigo era um espírito sensato e observador.

Efetuou-se o casamento com assistência de Oliveira, que, apesar da mudança de estado do amigo de seu pai, não deixou de lhe frequentar a casa. De todos os que lá iam era o que tinha maior intimidade. Suas boas qualidades lhe davam jus à estima e veneração.

Desgraçadamente era moço e Carlota era bela. Oliveira, ao cabo de alguns meses, sentiu-se loucamente apaixonado. Era honrado e viu a gravidade da situação. Quis evitar o desastre; deixou de frequentar a casa de Cosme. Cerca de cinquenta dias deixou de lá ir, até que o amigo o encontrou e à viva força o levou a jantar.

A paixão não estava morta nem caminhava para isso; a vista da bela Carlota não fez mais do que converter em incêndio o que já era braseiro.

Eu desisto de contar as lutas em que andou o coração de Oliveira durante todo o tempo que viveu a esposa de Cosme. Evitou ele manifestar nunca à formosa dama o que sentia por ela; um dia, porém, tão patente era o seu amor, que ela claramente lho percebeu.

Uma leve sombra de vaidade fez com que Carlota não descobrisse com maus olhos o amor que inspirara ao rapaz. Não tardou, porém, que a reflexão e o sentimento da honra lhe mostrassem todo o perigo daquela situação. Carlota mostrou-se severa com ele, e este recurso fez ainda mais aumentar as disposições respeitosas em que se achava Oliveira.

- Tanto melhor! disse ele consigo.

A exclamação de Oliveira queria dizer duas coisas. Era, primeiramente, uma homenagem de respeito à amada do seu coração. Era também uma esperança. Oliveira nutria a doce esperança de que Carlota enviuvasse mais cedo do que supunha o marido, e nesse caso podia ele apresentar a sua candidatura, com certeza de que recebia uma mulher provadamente virtuosa.

Os acontecimentos dissiparam todos esse castelos; Carlota foi a primeira a sair deste mundo, e a dor de Oliveira não foi menor que a dor do infeliz Cosme. Nem teve ânimo de ir ao enterro; foi à missa, e a muito custo pôde reter as lágrimas.

Agora que seis semanas haviam decorrido depois da terrível catástrofe, Oliveira procurou o infeliz viúvo na véspera do dia em que este saía à rua, como eu tive a honra de lhes dizer.
 
III

Cosme estava assentado diante da escrivaninha examinando melancolicamente alguns papéis. Oliveira assomou à porta do gabinete. O infeliz viúvo voltou o rosto e encontrou os olhos do amigo. Nenhum deles se moveu; a sombra da moça parecia ter surgido entre ambos. Enfim, o infeliz Cosme levantou-se e atirou-se aos braços do amigo.

Não se sabe bem o tempo que eles gastaram nesta magoada e saudosa atitude. Quando se desprenderam, Oliveira enxugou furtivamente uma lágrima; Cosme levou o lenço aos olhos.

A princípio, evitaram falar da moça; mas o coração trouxe naturalmente aquele assunto de conversa.

Cosme era incansável nos louvores que tecia à finada esposa, cuja perda, dizia ele, não era só irreparável, havia de ser-lhe mortal. Oliveira procurava dar-lhe algumas consolações.

- Oh! exclamou o infeliz Cosme, para mim não há consolações. Isto agora já não é viver, é vegetar, é arrastar o corpo e a alma sobre a terra, até o dia em que Deus se compadeça de ambos. A dor que eu sinto cá dentro é um germe da morte; sinto que não posso durar muito tempo. Tanto melhor, meu caro Oliveira, mais depressa irei ter com ela.

Estou muito longe de lhe censurar esse sentimento, observou Oliveira procurando disfarçar a comoção. Não conheci eu durante três anos o que valia aquela alma? - Nunca a houve mais angélica! Cosme proferiu estas palavras levantando as mãos para o teto, com uma expressão mesclada de admiração e saudade, que abalaria as próprias cadeiras se tivessem ouvidos. Oliveira concordou plenamente com o juízo do amigo.

- Era efetivamente um anjo, disse ele. Nenhuma mulher teve ainda tantas qualidades juntas.

- Oh! meu bom amigo! Se soubesse que satisfação me está dando! Neste mundo de interesses e vaidades, ainda há um coração puro, que sabe apreciar os dotes do céu.

Carlota era isso mesmo que o senhor está dizendo. Era ainda muito mais. A alma dela ninguém a conheceu nunca como eu. Que bondade! que ternura! que graça infantil! Além destes dons, que severidade! que singeleza! E, enfim, se passarmos, melhor direi, se descermos a outra ordem de virtudes, que amor da ordem! que amor do trabalho! que economia! O infeliz viúvo levou as mãos aos olhos e ficou algum tempo acabrunhado ao peso de tão doces e amargas recordações. Oliveira também estava comovido. O que ainda mais o entristecia foi reparar que estava sentado na mesma cadeira em que Carlota costumava passar as noites, a conversar com ele e o marido. Cosme levantou enfim a cabeça.

- Perdoe-me, disse ele, estas fraquezas. São naturais. Eu seria um monstro se não chorasse aquele anjo.

Chorar, naquela ocasião, era uma figura poética. O infeliz Cosme tinha os olhos secos.

- Nem já lágrimas tenho, continuou ele traduzindo em prosa o que acabava de dizer. As lágrimas ao menos são um desabafo; mas este sentir interior, esta tempestade que não rompe, mas que se concentra no coração, isto é pior que tudo.

- Tem razão, disse Oliveira, deve ser assim, e é natural que seja. Não me tenha entretanto por um consolador banal; é necessário, não digo esquecê-la, que seria impossível, mas voltar-se para a vida, que é uma necessidade.

Cosme esteve algum tempo calado.

- Já tenho dito isso mesmo, respondeu ele, e sinto que assim acontecerá mais cedo ou mais tarde. Vida é que nunca hei de ter; daqui até a morte é apenas um vegetar. Mas, enfim, isso mesmo é preciso...

Oliveira continuou a dizer-lhe algumas palavras de consolação, que o infeliz Cosme ouvia distraído, com os olhos ora no teto, ora nos papéis que tinha diante de si. Oliveira, entretanto, precisava também de quem o consolasse, e não pôde falar muito tempo sem comover-se a si próprio. Seguiu-se um curto silêncio, que o infeliz Cosme foi o primeiro a romper.

- Sou rico, disse ele, ou antes, corre que o sou. Mas de que me servem os bens? A riqueza não me substitui o tesouro que perdi. Mais ainda; essa riqueza ainda aumenta a minha saudade, porque parte dela foi Carlota que ma trouxe. Bem sabe que eu a receberia com um vestido de chita...

- Ora! disse Oliveira levantando os ombros.

- Bem sei que me faz justiça; mas há invejosos ou caluniadores para quem estes sentimentos são apenas máscaras de interesse. Lastimo essas almas. Esses corações são podres.

Oliveira concordou plenamente com a opinião do infeliz Cosme.

O viúvo continuou: - Demais, ainda que eu fosse um homem de interesse, a minha boa Carlota devia tornar-me um amigo. Nunca vi mais nobre desinteresse que o dela. Alguns dias antes de morrer quis fazer testamento. Baldei todos os esforços para impedi-la; ela foi mais forte do que eu. Tive de ceder. Nesse testamento constituiu-me ela seu herdeiro universal. Ah! eu daria toda a herança por uma semana mais de existência para ela. Uma semana? que digo? por uma hora mais! 

IV 

Os dois amigos foram interrompidos por um escravo que trazia uma carta. Cosme leu a carta e perguntou: - Esse homem está aí? - Está na sala.

- Lá vou.

O escravo saiu.

- Veja, senhor! Não se pode durante uma hora falar ao coração; a prosa da vida aí vem.

Permite-me? - Pois não.

Cosme saiu e foi à sala; Oliveira ficou só no gabinete, onde tudo lhe recordava os tempos de outrora. Estava ainda ao pé da escrivaninha o banquinho onde Carlota pousava os pés; Oliveira teve ímpetos de beijá-lo. Tudo ali, até as gravuras de que Carlota gostava tanto, tudo ali parecia ter impressa a viva imagem da moça.

No meio das reflexões foi interrompido pelo infeliz Cosme.

- Perdão! disse este, venho buscar uma coisa; volto já.

Cosme abriu uma gaveta, tirou de dentro algumas caixas de jóias, e saiu. Oliveira teve curiosidade de saber para que fim o viúvo levava as jóias, mas ele não lhe deu tempo de o interrogar.

Nem era preciso.

O próprio Cosme veio dizer-lho cerca de dez minutos depois.

- Meu amigo, disse ele, isto é insuportável.

- Que há? - Lá se foi parte da minha existência. As jóias de minha mulher...

Não pôde acabar; caiu sobre uma cadeira e pôs a cabeça nas mãos.

Oliveira respeitou aquela explosão de dor, que ele não compreendia. Ao cabo de algum tempo, Cosme levantou a cabeça; tinha os olhos vermelhos. Esteve ainda alguns segundos calado. Enfim: - O homem a quem fui falar veio buscar as jóias de minha mulher. Obedeço a uma expressa vontade dela.

- Vontade dela? - Um capricho, talvez, mas um capricho digno do seu coração. Carlota pediu-me que não me tornasse a casar. Era inútil o pedido, porque depois de ter perdido aquele anjo, é claro que eu não tornaria ligar a minha existência à de nenhuma outra mulher.

- Oh! decerto! - Todavia, exigiu que lho jurasse. Jurei. Não se contentou com isso.

- Não? - "Tu não sabes o que pode acontecer no futuro, disse-me ela; quem sabe se o destino não te obrigará a esquecer este juramento que me fizeste? Exijo uma coisa mais, exijo que vendas as minhas jóias, a fim de que outra mulher não as ponha sobre si".

O infeliz Cosme terminou esta revelação com um suspiro. Oliveira estava interiormente dominado por um sentimento de inveja. Não era inveja somente, eram também ciúmes.

Pobre Oliveira! era completa a sua desgraça! A mulher que ele amava tanto se desfazia em provas de amor com o marido na hora solene em que se despedia da terra.

Estas reflexões fazia o triste namorado, enquanto o infeliz Cosme, todo entregue à doce imagem da esposa extinta, interrompia o silêncio com suspiros que vinham diretamente do coração.

- Vendi as jóias, disse Cosme depois de algum tempo de meditação, e o senhor pode avaliar a mágoa com que me desfiz delas. Bem vê que foi ainda uma prova de amor que dei à minha Carlota. Todavia, exigi profundo silêncio do joalheiro e o mesmo exijo do senhor... Sabe por quê? Oliveira fez sinal que não entendia.

- É porque eu não vou contar a todos a cena que se passou unicamente entre mim e ela.

Achariam ridículo, alguns nem lhe dariam crédito. De maneira, que eu não poderia escapar à reputação de avaro e mau homem, que nem uma doce lembrança sabia guardar da mulher que o amou.

- Tem razão.

O infeliz Cosme tirou melancolicamente o lenço da algibeira, assoou-se e prosseguiu: - Mas teria razão o mundo, ainda quando aquele anjo me não houvesse pedido o sacrifício que acabo de fazer? Vale mais uma lembrança representada por pedras de valor do que a lembrança representada na saudade que fica no coração? Com franqueza, eu detesto esse materialismo, esse aniquilamento da alma, em proveito de coisas passageiras e estéreis. Bem fraco deve ser o amor que precisa de objetos palpáveis e sobretudo valiosos, para não ser esquecido. A verdadeira jóia, meu amigo, é o coração.

Oliveira respondeu a esta teoria do infeliz Cosme com um desses gestos que não afirmam nem negam, e que exprimem o estado duvidoso do espírito. Efetivamente, o mancebo estava perplexo ao ouvir as palavras do viúvo. Era claro para ele que a saudade existe no coração, sem necessidade de recordações externas, mas não admitia de todo que o uso de guardar alguma lembrança das pessoas mortas fosse um materialismo, como dizia o infeliz Cosme.

Estas mesmas dúvidas expôs ele ao amigo, depois de alguns minutos de silêncio, e foram ouvidas com um sorriso benévolo da parte deste.

- O que o senhor diz é exato, observou Cosme, se atendermos unicamente à razão; mas tão entranhado se acha o sentimento no coração do homem, que eu vendi tudo, menos uma coisa. Quis que, ao menos isso, me ficasse até a morte; tão certo é que o coração tem seus motivos e argumentos especiais...

- Oh! sem dúvida! disse Oliveira. Metade das coisas deste mundo são regidas pelo sentimento. Em vão procuramos furtar-nos a ele... Ele é mais forte do que os nossos débeis raciocínios.

Cosme fez uma leve inclinação de cabeça, e ia metendo a mão na algibeira do paletó, para tirar a jóia aludida, quando um escravo veio anunciar que o jantar estava na mesa.

- Vamos jantar, disse Cosme; à mesa lhe mostrarei o que é.


Saíram do gabinete para a sala de jantar. A sala de jantar ainda mais entristeceu o amigo do infeliz Cosme. Tantas vezes jantara ali em companhia dela, tantas contemplara ali os seus olhos, tantas ouvira as suas palavras! O jantar era farto, como de costume. Cosme deixou-se cair numa cadeira, enquanto Oliveira tomava assento ao pé dele. Um criado serviu a sopa, que o infeliz viúvo comeu apressadamente, não sem observar ao amigo, que era a primeira vez que realmente tinha vontade de comer.

Não era difícil de crer que assim devia de ser após seis semanas de quase total abstinência, ao ver a celeridade com que o infeliz Cosme varria os pratos que lhe punham diante dele.

Terminada a sobremesa, Cosme ordenou que o café fosse levado ao gabinete, onde Oliveira teve ocasião de ver a jóia que a saudade de Cosme impedira de ser vendida como as outras.

Era um alfinete de esmeralda perfeito; mas a perfeição da obra não era o que lhe dava todo o valor, como observou o infeliz Cosme.

Oliveira não pôde reter um grito de surpresa.

- O que é? perguntou o dono da casa.

- Nada.

- Nada? - Uma lembrança.

- Diga o que é.

- Esse alfinete quis eu comprar, no ano passado, em casa de Farani. Não foi lá que o comprou? - Foi.

- Que singularidade! - Singularidade? - Sim; eu quis comprá-lo justamente para dar à minha irmã no dia em que fazia anos.

Disseram-me que estava vendido. Era ao senhor.

- Era a mim. Não me custou barato; mas que me importava isso, se era para ela? Oliveira continuou a examinar o alfinete. De repente exclamou.

- Ah! - Que é? - Lembra-me ainda outra circunstância, disse Oliveira. Eu já sabia que este alfinete tinha sido comprado pelo senhor.

- Disse-lho ela? - Não, minha irmã. Um dia em que aqui estivemos, minha irmã viu este alfinete no peito de D. Carlota, e gabou-o muito. Ela disse-lhe então que o senhor lho dera um dia em que foram à Rua dos Ourives, e ela ficara encantada com esta jóia... Se soubesse como eu praguejei nessa ocasião contra o senhor! - Não lhe parece muito bonito? - Oh! lindíssimo! - Ambos nós gostávamos muito dele. Pobre Carlota! Nem por isso deixava de amar a simplicidade. A simplicidade era o seu principal dote; este alfinete, de que tanto gostava, só o pôs duas vezes, creio eu. Um dia altercamos por causa disso; mas, já se vê, altercação de namorados. Eu disse-lhe que era melhor não comprar jóias, se ela as não havia de trazer, e acrescentei, brincando, que me daria muito gosto, se mostrasse que tinha bens de fortuna. Gracejos, gracejos, que ela ouvia a rir e acabávamos ambos alegres... Pobre Carlota! Durante este tempo, Oliveira contemplava e admirava o alfinete, com o coração palpitante, como se tivesse ali um pedaço do corpo que se fora. Cosme olhava atentamente para ele. Seus olhos faiscavam às vezes; outras vezes pareciam apagados e sombrios. Seriam ciúmes póstumos? O coração do viúvo adivinharia o amor culpado, ainda que respeitoso, do amigo? Oliveira surpreendeu o olhar do infeliz Cosme e prontamente lhe entregou o alfinete.

- Ela queria muito à sua irmã, disse o desventurado viúvo depois de alguns instantes de silêncio.

- Oh! muito! - Conversávamos muita vez a respeito dela... Tinham a mesma idade, penso eu? - D. Carlota era mais moça dois meses.

- Pode-se dizer que era a mesma idade. Às vezes pareciam-se duas crianças. Quantas vezes ralhei graciosamente com ambas; riam-se e zombavam de mim. Se soubesse com que satisfação as via brincar! Nem por isso era Carlota menos grave, e sua irmã, também, quando convinha que o fossem.

O infeliz Cosme continuou assim a elogiar ainda uma vez os dotes da finada esposa, com a diferença que, desta vez, acompanhava o discurso com movimentos rápidos do alfinete que tinha na mão. Um raio de sol poente vinha brincar na pedra preciosa, de onde Oliveira quase não podia arrancar os olhos. Com o movimento que lhe dava a mão de Cosme, parecia a Oliveira que o alfinete era uma coisa viva, e que parte da alma de Carlota ali brincava e sorria para ele.

O infeliz Cosme interrompeu os louvores que fazia à amada do seu coração e olhou também para o alfinete.

- É realmente bonito! disse ele.

Oliveira olhava para o alfinete, mas via mais do que ele, via a moça; não admira pois que respondesse maquinalmente: - Oh! divino! - É pena que tenha este defeito...

- Não vale nada, acudiu Oliveira.

A conversa prosseguiu ainda algum tempo a respeito do alfinete e das virtudes da finada Carlota. A noite veio interromper essas doces efusões do coração de ambos. Cosme anunciou que provavelmente saía no dia seguinte para recomeçar a lida, mas já sem o ânimo que tivera nos três anos anteriores.

- Todos nós, disse ele, ainda os que não somos poetas, precisamos de uma musa.

Separaram-se pouco depois.

O infeliz Cosme não quis que o amigo fosse sem levar uma lembrança da pessoa a quem tanto estimara, e que o prezava deveras.

- Tome lá, disse o infeliz Cosme, tome esta flor de grinalda com que ela se casou; leve esta outra para sua irmã.

Oliveira quis beijar as mãos do amigo. Cosme recebeu-o nos braços.

- Nenhuma lembrança dei ainda a ninguém, observou o viúvo depois de o apertar nos braços; nem sei se alguém receberá tanto, como estas que lhe acabo de dar. Eu sei distinguir os grandes amigos dos amigos comuns.

VI 

Oliveira saiu da casa de Cosme com a alegria de um homem que acabasse de tirar a sorte grande. De quando em quando tirava as duas flores secas, quase desfeitas, metidas numa caixinha, e olhava para elas e tinha ímpetos de as beijar.

- Oh! posso fazê-lo! exclamava ele consigo. Não me punge nenhum remorso. Saudades, sim, e muitas, mas respeitosas como foi o meu amor.

Depois: - Infeliz Cosme! Como ele a ama! Que coração de ouro! Para aquele homem já não há gozos na terra. Ainda que não fosse seu amigo de longo tempo, a afeição que ele ainda hoje tem à sua pobre esposa era bastante para que o adorasse. Bem haja o céu que me poupou um remorso! No meio destas e outras reflexões Oliveira chegou à casa. Então beijou à vontade as flores da grinalda de Carlota, e acaso verteu sobre elas uma lágrima; depois do quê, foi levar à irmã a flor que lhe pertencia.

Nessa noite teve sonhos de ouro.

No dia seguinte estava a almoçar quando recebeu uma carta de Cosme. Abriu-a com a sofreguidão própria de quem se achava ligado àquele homem por tantos laços.

- Não vem só a carta, disse o escravo.

- Que há mais? - Esta caixinha.

Oliveira leu a carta.

A carta dizia: Meu bom e leal amigo, Vi ontem o entusiasmo que lhe causou o alfinete que desejava dar à sua irmã e que eu tive a fortuna de comprar primeiro.

Tanta afeição lhe devo que não posso nem quero privá-lo do prazer de oferecer essa jóia à sua interessante irmã.

Apesar das circunstâncias em que ela se acha nas minhas mãos, refleti, e entendi que devo obedecer aos desejo de Carlota.

Cedo-lhe a jóia, não pelo custo, mas com dez por cento de diferença. Não vá imaginar que lhe faço um obséquio: o abatimento é justo.

Seu infeliz amigo Cosme.

Oliveira leu a carta três ou quatro vezes. Há fundadas razões para crer que não almoçou nesse dia.

Fonte: 
www.dominiopublico.gov.br

Rudyard Kipling (Rikki-tikki-tavi) IV

Darzee era um bobinho, incapaz de conservar na cabeça mais de uma ideia ao mesmo tempo, e unicamente porque lhe disseram que os filhos de Nagaína vinham de ovos, como os seus, não lhe parecia justo que algum os destruísse. Mas já a sua companheira tinha outro modo de pensar, e sabia que ovos de cobra querem dizer futuras cobras; por isso voou do ninho, deixando em seu lugar o marido a aquecer os filhotes e sempre cantando cantigas a respeito da morte de Nag. Darzee em muitos pontos se assemelhava bastante aos homens.

A companheira de Darzee pousou perto de Nagaína, na estrumeira, e gemeu:

- Oh, a minha pobre asa quebrada!... O menino da casa grande me jogou uma pedra...

Em seguida pôs-se a esvoaçar desesperadamente.

Nagaína ergueu a cabeça e silvou:

- Foi você quem advertiu Rikki-tikki quando eu ia apanhá-la pelas costas, não me esqueci disso - e, portanto, acho que escolheu um bem mau ponto para debater-se ...

E, rápida, esgueirou-se para o lado da avezinha.

- O menino me quebrou a asa com urna pedra! - continuava a lamuriar-se, com pios de choro, a companheira de Darzee.

- Bom! Há de ser uma consolação para você, depois de morta, saber que breve justarei contas com esse menino. Meu pobre marido jaz na estrumeira, mas antes que a noite caia o menino também estará muito caladinho na casa grande. Para que correr? Não sabe que não me escapa dos dentes? Tolinha, olhe para mim!

A companheira de Darzee conhecia muito bem o perigo de fazer tal coisa. Quando os olhos do passarinho se encontram com os da serpente, o medo o tolhe de tal modo que ele não consegue fugir. Assim, a prudente avezinha continuou a esvoaçar, fingindo-se ferida, e a piar lamentosamente, mas sem volver os olhos para a cobra. E Nagaína continuou a persegui-la.

Rikki-tikki percebeu de longe aquele jogo, que ia afastando a cobra de perto do monturo, e tratou de correr para o canteiro dos melões. Lá encontrou, habilmente escondidos, vinte e cinco ovos do tamanho dos de garnizé, mas revestidos duma pele branquicenta em vez de casca.

- Cheguei a tempo, murmurou ela, vendo por transparência as cobrinhas enroladas no interior dos ovos. Rikki não ignorava que logo ao saírem dos ovos as cobrinhas já podem matar homem ou mangusta. Fez serviço rápido. Esmagou-os. Depois passou-os em revista para verificar se não havia escapado algum. Encontrou três ainda intatos. Nesse instante riu-se, ouvindo a companheira de Darzee piar de longe:

- Rikki-tikki, eu trouxe Nagaína para a casa! Está na varanda! Venha depressa! Nagaína quer matar o menino!

Rikki-tikki esmagou dois dos ovos restantes e com o terceiro na boca precipitou-se para a varanda o mais depressa que pôde.

Teddy e seus pais lá estavam, diante do lanche do costume. Mas não comiam. Muito pálidos, conservavam-se numa imobilidade de estátuas, como que fascinados pela serpente enrolada sobre a esteira, em ótima distancia para um bote contra a perna nua do menino. Nagaína balançava a cabeça dum lado e doutro, cantando o seu próximo triunfo.

- Filho do homem que matou Nag, silvava ela, fica tranqüilo... Ainda não vou ferir... Espera um bocado... Imóveis, todos os três, hein? Insensatos que me mataram o meu Nag!

Os olhos de Teddy estavam fixos em seu pai, e tudo quanto o homem podia murmurar era:

- Não se mova, Teddy! Não faça o menor movimento... Foi quando Rikki-tikki entrou gritando:

- Eis-me aqui, Nagaína. Em guarda, que lá vai!

- Cada coisa a seu tempo, respondeu a cobra sem tirar os olhos da família apavorada. Depois justarei minhas contas com você. Olhe os seus amigos, Rikki-tikki. Estão imóveis e pálidos de morte... Estão aterrorizados e não ousam fugir... Se você se aproximar de mais um passo, dou o bote.

- Vá ver os seus ovos, respondeu Rikki-tikki. Vá ver os seus ovos lá no canteiro dos melões. Vá vê-los, Nagaína!

A serpente voltou-se então e viu rolar por terra o ovo trazido na boca pela mangusta.

- Ah! gemeu ela. Dê-mo!

Rikki-tikki pousou as patas de cada lado do ovo, enquanto seus olhos se tornavam rubros como o sangue.

- Qual o preço dum ovo de serpente? Qual o preço duma cobrinha? Qual o preço da última cobrinha? Da última da última ninhada? As formigas lá estão ocupadas em comer as outras, no canteiro dos melões.

Ao ouvir aquilo, Nagaína deu volta sobre si, esquecida de tudo por amor ao seu derradeiro ovo. Nesse momento Rikki-tikki viu o pai de Teddy estender os braços para o menino e e arrancá-lo donde estava, por cima da mesa.

- Lograda! Lograda! Lograda! Rikk-tck-tck! gargalhou a mangusta triunfante. O menino está salvo e fui eu... eu... eu quem agarrou Nag pelo capelo, esta noite, na sala de banho.

Em seguida pôs-se a saltar de todos os lados, numa alegria louca.

- Nag me sacudiu à grande, mas não conseguiu fazer-me largar cio seu pescoço - e já estava morto quando o homem lhe deu o tiro de misericórdia. Fui eu quem o matou! Rikkitikk-tck-tck ! Por aqui, Nagaína. Por aqui - e batamo-nos. Você não ficará viúva por muito tempo.

Nagaína viu que havia perdido toda a chance de matar o menino e que o ovo - seu último ovo - permanecia entre as patas da mangusta.

- Dê-me o ovo, Rikki-tikki! Dê-me o meu derradeiro ovo, que prometo ir-me para sempre, murmurou ela baixando o capelo.

- Sim, você vai daqui para sempre, porque vai para o monturo fazer companhia a Nag. Em guarda, senhora viúva! O homem já foi buscar o canudo que faz pum! Em guarda!

Rikki-tikki pôs-se a pular em torno de Nagaína, sempre fora do seu alcance, com os olhos vivos como brasas. A cobra armou o bote e arremeteu. Rikki escapou dum salto e recuou. Outro e outro bote foram lançados, mas a cabeça da cobra batia sempre num choque surdo contra a esteira e seu corpo tinha de enrolar-se de novo, como espiral de relógio. Rikk-tikki dançava-lhe em redor para a pilhar de costas e a serpente girava sobre si para ter sempre a cabeça de frente ao inimigo. O ruído da sua cauda na esteira soava como folhas mortas que o vento agita.

Rikki-tikki havia esquecido o ovo em certo ponto da varanda. A cobra foi se aproximando dele pouco a pouco, e, num momento em que Rikki tomava fôlego, segurou-o na boca e disparou de rumo ao jardim com a rapidez da flecha. Rikki a seguiu. Quando uma cobra foge para salvar a vida, toma o aspecto dum chicote ao acamar-se no pescoço do cavalo.

A mangusta sabia muito bem que, ou dava cabo da cobra, ou não haveria mais sossego na casa. Nagaína dirigia-se em linha reta para o ervaçal, perto do espinheiro, onde Darzee continuava piando o seu canto de triunfo, qual perfeito maluquinho. Já a companheira, muito mais avisada, voou do ninho e veio esvoaçar sobre a cabeça da cobra. Se Darzee fizesse o mesmo, teriam conseguido fazê-la deter-se; mas Nagaína limitou-se a achatar o capelo e prosseguiu na fuga veloz. Não obstante, a breve atrapalhação que o voejo da avezinha determinara na marcha da cobra permitiu que Rikki-tikki se aproximasse e lhe ferrasse o dente na cauda, no momento em que Nagaína se ia sumindo no buraco onde morava - e lá se
foram por ele além, a cobra e a mangusta, embora nenhuma, por mais experiente que seja, tenha o costume de seguir as cobras nos buracos.
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continua…
 
Fonte:
Rudyard Kipling. O Livro da Jângal.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Trova 267 - Maria Lúcia Daloce Castanho (A Poesia)


Trova 266 - Janske Niemann (Dia da Poesia)

Ógui Lourenço Mauri (Poesia)

Poesia vem do impulso do poeta,
Só ele mesmo a concebe e cultiva.
Inconteste linguagem subjetiva,
Nasce aos olhos e o coração completa.

Poesia é essência provinda d'alma,
Conduzindo fluidos de paz e amor.
Tomado pelas bênçãos do Senhor,
O poeta, no rimar, tudo acalma.

Poesia, eco da imaginação!
Sonhos, requintes de dor... e a verdade!
Lágrima, esperança... felicidade!...
Poeta é um dínamo de emoção.

Poesia é uma voz com ressonância,
Passaporte de sonhos, devaneios.
Instrumento para encontrar os meios
De trazer pra perto o amor à distância.

Poesia é bálsamo para a ferida;
Acenos de fé, chamando o descrente;
Canto dos passarinhos, envolvente...
A troca do "armagedon" pela vida.

Paulo Walbach Prestes (Lembrando Castro Alves... )

(no dia do aniversário de seu nascimento - 14 de março de 1847)

Oh! Bendito o que semeia
Livros… livros à mão cheia…
E manda o povo pensar!
O livro cainda n'alma
É germe - que faz a palma,
É chuva - que faz o mar.

Bravo! a quem salva o futuro!
Fecundando a multidão!…
Num poema amortalhada
Nunca morre uma nação.

Uma trova para o dia da poesia:
Hoje é dia de alegria...
ao lembrar os imortais,
é o dia da poesia
que canta os nossos ais...

Olivaldo Júnior (Os corações, mais alto)

(14 de março – Dia Nacional da Poesia)

    Era uma vez uma grande árvore que ficava no meio do bosque que se chama Solidão (lembra-se da cantiga?). Nesse bosque, a mais bonita árvore era aquela. No entanto, em vez de frutos, nela havia corações. Grandes, médios, pequenos, mais claros e mais escuros que o vermelho sangue, próprio dos músculos que suportam nossas almas, eles, os corações da grande árvore do bosque, se pendiam dos galhos frondosos, que insistiam para que alguém os visse.

    Na parte mais alta da árvore, a mais difícil de alcançar, estavam os corações mais duros, mais antigos e mais queridos, sedutores, que todos os outros. Eram os corações de quem cultivou poesia durante a vida. Não “apenas” a escrita, mas a que se vive ao correr dos dias, em pequenos hábitos que nos fazem crer na beleza infinda do mundo. Poetas não são somente autores, nem sempre escrevem. São bem mais que isso. Poetas são pessoas que se voltam para ouvir os que têm algo a dizer e, com o que escutam, tecem poemas, palavras em si.

    Frágil, cada galho da grande árvore sustentava muitos corações, e, caso alguém se atrevesse a subir para pegar os corações mais altos, sentiria o peso de querer demais o que não se deteve quando estava ali, a dois passos de um abraço, perto do peito aberto, que se fecha aos outros, sem compaixão.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Machado de Assis (A Igreja do Diabo)

 CAPITULO I



DE UMA IDÉIA MIRÍFICA

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

- Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a ideia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo:

- Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.

CAPITULO II

 ENTRE DEUS E O DIABO

Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.

- Que me queres tu? perguntou este.

- Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.

- Explica-te.

- Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...

- Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.

- Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa ideia, não vos parece?

- Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor,

- Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.

- Vai

- Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?

- Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?

O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma ideia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória, qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

- Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê- las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...

- Velho retórico! murmurou o Senhor.

- Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, - a indiferença, ao menos, - com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, - ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...

Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica, Deus interrompeu o Diabo.

- Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?

- Já vos disse que não.

- Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?

- Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.

- Negas esta morte?

- Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...

- Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!

Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.

CAPITULO III

 A BOA NOVA AOS HOMENS


Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.

- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...

Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.

Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu"... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.

As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloquência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.

Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.

Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regímen: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: - Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.

CAPITULO IV

FRANJAS E FRANJAS

A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.

Um dia, porém, longos anos depois, notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.

A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outra descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinquenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse:

- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.

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