segunda-feira, 28 de março de 2016

Hana Haruko (Gaveta de Haicais)

A chuva pingando
Devassa o botão da flor
De / flora antes da hora…
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Alertam a todos
e cantam até morrer,
cigarras no tronco…
-
Armadilha bela:
Luz atraindo mariposa
– Destinação cruel
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asas a dançar
sobre a neve branca e leve,
anjos transparentes…
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Beija flor perplexo
sem encontrar umidade
nem no bebedouro…
-
Bichano pequeno
um móbile de lã-pluma
com garras afiadas …
Do ovo da manhã
rompe a casca a ave amarela
que se chama sol…
-
Excesso de chuvas
a desequilibrar a árvore
raízes se afogam.
-
Força dos opostos
Espirais de eternidade
Yin e yang: você e eu
-
Formas animadas
lutam boxe de carinhos:
pequenos gatinhos…
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Fruto esturricado,
não pode ficar no galho
romã na calçada…
-
Gato aquece sonhos
perto do fogão de lenha
– um verão no inverno...
Gato preto em neve
faz-me salivar lembranças:
ameixa em manjar…
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Gestação do arco-íris
Leveza atestando o efêmero
— Bolha de sabão.
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Idosos são belos
ricas sedas amassadas
não perdem a luz.
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Leve borboleta
Vitória sobre a crisálida:
Pétalas aladas…
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Mini-borboletas
Orquídeas papilonáceas
– Só não podem voar
-
Ontem,todas águas
encharcaram terras,ossos,
-pela manhã,o sol…
-
Órgãos musicais
De sonata progressiva:
Cigarra insistente
-
Os risos das crianças:
No cristal, bolas de gude
— luzes trepidantes ­
Passarada ao sol
pela estiagem, dançam , cantam
e procuram grãos…
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Pássaros canoros
Energia em expansão
Almas projetadas…
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Pássaros nos fios
Como notas musicais:
Celestiais canções…
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Pele contra pele
Proximidade de cheiros:
Mistura de humores
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Pescoços de cisne
Transformam em corações
O espaço vazio…
-
Reflexo de prata:
Luar despeja-se no mar
— Espelho do céu
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roupas no varal
bailam loucas com o vento
resolvem fugir…
-
saboreio o sol
desvisto meus agasalhos
luz cobre a alma e a pele…
-
Sons de flauta doce:
Murmúrios edulcorantes
– Vento no bambual…
-
Vento a derrubar
-bem antes da tempestade
cigarras avisam…
Verão com sol de ouro
– dourado mas inclemente
desidrata folhas.
-
Violinista freme
Libélula com o arco
Vibrações no espaço…

Contos Populares Portugueses (S. Pedro e a Ferradura)

Quando Jesus Cristo e mais S. Pedro andavam pelo mundo, toparam num caminho uma ferradura velha. Disse o Senhor:

-Pedro, apanha essa ferradura, que pode ter alguma serventia.

- Senhor, não apanho! Está velha e ferrugenta, não pode servir para nada.

O Senhor deixou ir Pedro adiante, abaixou-se e apanhou a ferradura.

Chegaram às portas de uma cidade. O Senhor deixou outra vez Pedro ir adiante e, sem ele dar por isso, vendeu-a a um ferrador por dez réis. Passou por um sítio onde se vendia fruta e comprou-os de cerejas.

Passaram depois a cidade e meteram por outra estrada. Estava muito calor e disse S. Pedro:

- Ah, se eu tivesse com que refrescar a boca!

O Senhor ia então adiante e deixou cair uma cereja na estrada. Pedro ia a passar e viu a cereja, abaixou-se para a apanhar e meteu-a na boca, depois de a limpar do pó.

O Senhor foi deixando cair, aqui e ali, uma cereja, e Pedro sempre pronto para as apanhar, sem ver que era o Senhor que as deitava. Quando já não havia mais cerejas, disse o Senhor:

- Que trabalho tiveste em apanhar as cerejas! Se tivesses apanhado a ferradura, tê-las-ias mais frescas!

- Como é isso, Senhor?

O Senhor contou-lhe tudo e ele arrependeu-se.

Fonte:
Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.

Clevane Pessoa (Poemas Avulsos)

DE ANJOS E DE PÁSSAROS

Ergo olhar deslumbramento
vejo anjos sobre cabeças humanas
dentro da catedral;
Anjos de ferro negro,
esculturas na arquitetura
de formas quase profanas
a romper tradição.

Não desabe ó figura
milenar, tu que estás
bem sobre mim ,
que não rezo orações prontas
e somente sei usar
o verbo molhado em pranto
ou a metáfora cheia de luar.

(…)
Que desabem
sobre as cabeças dos poetas
os passarinhos em alarido
dentro de um mercado,
a parecer kamikaze,
suicida em massa,
ao jogar-se do teto ao chão
apenas para bicar migalhas.

São nosso retrato:
livres, sem sermos canalhas,
videntes com olhos cheios de palhas
a pre/dizer os tempos,
cada fato envolvido
no pacote dos tesouros,
crianças e sábios a um mesmo tempo,
a chamar atenção pelos voos inusitados.

(…)

Prefiro os pássaros vagabundos
das ruas e das igrejas,
mercados e sinais.
Não são artes singulares e belas
nem enfeites de catedrais:
os anjos passarinhos
de Brasília
estão presos a cabos
e suspensos
sobre nossas cabeças
a lembrar talvez pecados ,
talento, criatividade embora.
Já os pássaros – anjos
desde o Egito antigo
têm a missão de carregar almas
entre a vida terrena
e a morada dos deuses.
ALEGORIA DAS PALAVRAS SOLTAS

Que as mãos dos poetas
libertem as palavras de conceitos e preconceitos antigos.
Que a voz dos poetas entoe cantos inusitados
e muitas vezes inaudíveis aos demais.
Mas que sejam sempre palavras olorosas,
a perfumar os poros dos amados e dos amigos.
O que vier a mais, será benesse e lucro, e dividendo
mais importante que a glória
e a libertação do proprio menestrel.
Que os versos sejam livres, com palavras soltas,
a resignificar todas as im/possíveis metáforas!
PALMEIRA SOLITÁRIA
para Luiz Lyrio, in memoriam

Do alto, para onde cresce
em busca do azul absoluto,
a palmeira (quase) antiga,
bela e conformada,
vê passar o tempo.
Suporta intempéries e poeira
rebrilha rocio ao sol,
na terra das gemas.
Um dia, voltará ao pó
e renascerá no ciclo da vida.
A ESSÊNCIA DOS POETAS

De metáforas alimenta-se o poeta
mas também dos olores mais fragrantes.
faz das eternidades,
meros instantes,
quando voa nas asas das alegorias…

Mas de denúncia também vivem os seus versos
pois sensível qual bolha de murano
destinada á beleza singular,
aquecido pelo fogo da justiça,
consome-se em seu próprio Gibraltar,
divino e humano,
mero e avatar.

O poeta tem nas mãos,
os segredos da sacra escrita,
consagrada aos deuses da Beleza,
mas também ergue o dedo acusatório:
brilha de indignação seu anular,
pois é humanista, artista, esteta
e sabe colocar-se no lugar
de seu semelhante…

O poeta escreve sobre seus sentires
e sobre os sentimentos alheios.
Sussurra ou brada, conforme a acontecência,
mas é sempre emissário da quintessência
que muitas vezes
nessa Terra não encontra lugar…
IMPRESSÃO

A terra é mais que amante-amada:
sem ela o tudo cotidiano
vira um quase nada…
Com ela, um mínimo amplia-se
parecendo a maior riqueza do universo
na transmutação dos ciclos…
DE UM SONHO

Do sonho entressonhado
entreaberta flor
de mil pétalas
holopetalar
traduz-me as sutilezas
e multiplicações
da Palavra…
Cheiro os cheiros,
coloro as cores,
abro o entreaberto
e chego ao self
das revelação.
Ao poeta é permitido sonhar
e sonhando desvendar
o segredo


PASSAGEM
A Gonçalves Dias

Poeta -saudoso, agônico, voltas à terra natal
Frágil, trêmulo, febricitante,
Mas com relembranças fortes
A plenificar-te a alma de energia
Embora estejam enfraquecidas as esperanças…
Queres chegar a São Luiz do Maranhão,
Chegar e andar pelas ruas estreitas,
Pelas calçadas de pedras,
Da ilha de praias singulares
Cujo areal extenso
É lambido pelo mar cor de rio,
Cuja extensão vai dar nas terras de Portugal…
Queres rever pessoas, ouvir os sons
Dos sinos das igrejas, da siringe dos sabiás festivos
Que não esqueceste em teu exílio.
A mulher amada acode-te em teu delírio,
a rememória faz-se musa e te inspira versos
que não mais escreverás…
Um piedoso anjo de cristal,que parece orvalho,
Cheirando a rosas e à maresia,
Faz com que olvides as razões de teu martírio
Pela separação cruel e indevida
Da mulher amada…
Que culpa tens por teu sangue a correr nas veias
Brasileiras, é mestiço,a gerar tantos preconceito .

Súbito, a vida se esvai, a breve vida

As águas em movimento, frias ao teu corpo ardente
Sereias de prata conduzem-te ao Absoluto,
O desconhecido –assustador, por ignoto,
Até que se chegue aos portais dessa outra dimensão.
Teu anjo Estelar, que tantas vezes desceu à Terra
para consolar-te e enxugar-te as lágrimas,
ampara-te, e tomando-te pela mão,
leva-te ao gênese de tua essência,,
pelo túnel pleno de magnífica luminescência…
As asas angelicais, energia em movimento,
Criam mil arco-íris deslumbrantes, o que te encanta na passagem…

Percebes que enfim, estás livre
De qualquer sofrimento e provação
Não tens cor-de pele que te torne um rechaçado,
Carne alguma, cuja carnação de mulato
Marque tua destinação!
Nada que te faça um auto-exilado…
Súbito, ouves risos e canções.
Outros poetas estão à tua espera, Gonçalves Dias.
Ajudam-te, dizem-te teus próprios versos e os deles,
Convincentes de que todos os bardos são iguais de alma
Abraçam-te, cordifraternalmente.
Nem em todas as tuas fantasias,
Te imaginaste assim, igual entre iguais,
diferente entre diferentes,
quais o são todas as criaturas de um mesmo Criador…
Percebes que nesse mundo , não há preconceitos
E que aqui, experimentarás um espaço de estar para ser…
Leve, em pianíssimo, , sentindo uma felicidade inusitada
À tua vida antes atribulada, tributada
de preços que não podias pagar,
deixas-te conduzir ,em agonia agora.
Seria o fim, mas é um recomeço
Afinal, poetas não devem morrer
-não se sua Poesia permanecer
Após sua délivrance ao contrário.
Para sempre, teus versos serão lembrados,
Enquanto houver sabiás, enquanto a serpente dormitar
Enroscada no contorno da Ilha .
Teus poemas são o retrato de teu talento,
De teu perfil, de tua história…
O mar foi o derradeiro abrigo de teu corpo.
A alma…continua em expansão!