terça-feira, 2 de agosto de 2016

Érico Veríssimo (Chico)

Chamava-se Chico. De quê? Ele mesmo não sabia…

– Gente pobre não tem nome… – costumava dizer.

Tinha sete anos. De dia vendia jornais, de noite apanhava bordoada do irmão mais velho, o Zico, que vivia embriagado.

A mãe havia muitos anos que estava atirada sobre um colchão velho, paralítica, cadavérica, tendo a todas as horas do dia, diante dos olhos baços e sem expressão, o mesmo quadro de miséria e desalento: as paredes sórdidas do quarto, donde pendiam molambos, o teto carcomido e cheio de teias de aranha, a janela sem batentes, eternamente escancarada, mostrando uma nesga de céu em que nas noites claras se vislumbrava, como uma esmola luminosa, a claridade fugidia de estrelas…

O pai – Chico mal se lembrava disto – morrera por um dia triste de inverno, de peste, e se fora, quase nu, dentro duma carroça velha que ia fazendo tóc-tóc-tóc-tóc..., aos solavancos, pela estrada barrenta e sinuosa que ia dar no cemitério.

Chico ouvia sempre dizer que havia lá em cima, no céu, um Deus muito bom e muito severo. que não queria que as crianças dissessem nomes feios nem desobedecessem aos mais velhos. Era um homem muito poderoso, que punha empenho em que todas as coisas na terra andassem direitas e bem feitas.

Surgia, então, na cabecinha do garoto um problema intrincado e insolúvel.

Chico via no mundo (mundo era a cidade em que ele, Chico, morava) gente feliz, rica, alegre; crianças que andavam bem vestidas, que tinham brinquedos surpreendentes e que comiam os doces mais saborosos desta vida. Via, ao mesmo tempo, de Outro lado, os infelizes, os desprotegidos da fortuna, os que rolam pão duro e andavam a ferir os pés descalços no pedregulho das ruas. E o pequeno não podia compreender a razão de tanta desigualdade de sorte no mundo. Como era que Deus, tão bom e tão justo, consentia em que existissem crianças felizes e protegidas, ao mesmo passo que existiam outras, desgraçadas e sós, que, pra ganhar alguns tostões, – magríssimos tostões –, tinham de andar vendendo jornais pelas ruas, à luz abrasiva do sol?…

E Chico não compreendia… Não compreendia e ficava pensando, pensando…

Mas não se detinha por muito tempo em tais cogitações, que adivinhava inúteis. A vida ensinara-o a ser prático. Bem sabia que com sonhos e elucubrações não ganharia o seu salário. Por isso se atirava ao trabalho.

– Óia o Correio da Manhã! O Correeeeio! - E assim ia vivendo…

Pedro Du Bois (Poemas Escolhidos)

Pedro é de Balneário Camboriú/SC
FORÇA E PODER

Na força
o desprezo
pelo arco em aliança

tenho no poder
a força que utilizo
em proveito

aproveito o esplendor
e me destaco perante
inimigos baratos e frágeis

no desprezo
a força do arco
sem aliança

a vista turva o alcance
do poder transferido em pedaços.

ABARCAR

         Abarco o todo
         em naufrágios
         menores de riachos
                             veios d'água
                             inundam imagens
                               (submersas)

- falamos sobre camisas, calças e roupas
  de baixo: que sustentam camisas
  e calças -

           a revista imagem
           sobre a pedra polida
           em acolhidos abraços.

NADA

O início
da temporada
     encerra
     a expectativa
     de que o ciclo
                 se renove
                  na permanência
                       da temporada
                       que conhecemos
                                           nova.

A novidade nos desconforta
em haveres desconhecidos

até
termos certeza
de que o início
continua o nada.

TEMPOS

Sufoco a vontade
afogada em prantos
disfarço a hora
                 partida

apátrida reconheço no espaço
a companheira: não me instalo.

afogo minha vontade
disfarçada no silêncio
sufocado da espera.
 
RECUAR

Recuo: a canção amadora
ressoa em vão

onde o som definido
na canção?

Canção da terra amarrada
em giros: a queda do anjo
sobre o prédio iluminado

receio não encontrar a terra prometida
ao profeta. Na insolação do corpo
revejo arestas ásperas
e do prédio menor
despenco lembranças.
 
AMANHÃS

Chamado não me apresento
ausente me faço distante
no amanhã repetido

inconsciente o preso se dirige
ao murmúrio inaudível:

escolho a pílula com que deito
e sonho silêncios
irrefletidos
dos amanhãs
nauseabundos
das canções: ofuscadas
clareiras dormentes
nos adormecimentos.

NATURAL

Na natureza decomposta
a dor exposta
em espécies
abatidas
cortadas
decepadas
depenadas
destocadas na força dos tratores
matrizes dos progressos: o homem
traz na aproximação a visão incolor do lucro
e a subsistência dos excluídos se defronta
com a terra ressecada após as passagens
a recomposição do solo exala
a acidez perpetrada
nos tempos desnecessários
das farturas: o homem
esquece o inconsentido passado
em projetos futuros inexequíveis
onde se debatem mortes
e avanços ao fim do mundo.

EFÊMEROS

A preocupação
decorre da memória
esmaecida no passar das horas
em que somos repostos
repetidos
recuperados
e apagados
nas lembranças

os que ficam para depois
devem se preocupar
com os deuses

retirantes iniciais
da efemeridade.

FOGO

Repetição do fogo: labareda e chama
                                ao encontro da terra.

Sobre a grama ressecada crepita:
decrépito senhor do fogo.

Queima o horizonte poente
e se desdobra em cores: repete o fogo
e derrete a terra. Calcina o corpo.

ESPERAR

o prédio inacabado, a estrada bloqueada,
o tempo encoberto: a espera reduz
                                     a vida
                                     ao mistério.

Ansiar o momento aventurado
e se realizar no átimo
da conquista.

Rever o terreno descoberto, o caminho
desbravado, o espaço brilhante das manhãs
de inverno. A luminosidade destaca
a contrariedade com que faz da espera
o toque de saudade.

CHAMAS

Candelabros acesos
janela aberta à noite: estranhos sentimentos
cruzando espaços. Na terra úmida a estrada
se desfaz em passos. A chama trêmula
se oferece ao vento. O ar se rarefaz
consumido pelo fogo. Fechada a janela
oferece a paisagem interior.

  AVISTAR
 

                  Avisto a terra
                             a mata
                             a tênue rede de fumaça

                                  longe o barulho
                                  multiplica a vida

(estou dentro do corpo,
tenso no desencontro. Estou
presente em mim mesmo).

QUEDAR

Assumo a responsabilidade
pela queda: os degraus
                       dobrados
                           aos pés
                              tropeçando.

O vento colocando o corpo
em descompasso

                           (dias concretados
                            em altares)

caio na leveza do traço
e invado a página; desço
os degraus e abaixo
reencontro o todo.

VISTAS

A estrada
   automóveis
   caminhões

morro recortado

no barulho da obra a nova
casa desconstruída no que contém
da paisagem

(Revisito os passos do homem
 na caminhada: não habitualidade).

DÚVIDAS

Dúvida anteposta em verdades.
O rumor do elevado momento
na concretização do nada: mal feito
                                           malfeitor.

Benefício e dúvida. A ordem artificializa
mundos inconstantes. Verdades ignoradas
em discursos. A mentira instila a dúvida
no descompasso.

PASSOS

Falo de passos cadenciados
na dança. Dos pares.
                 Digo do peso
                 das botas
                 desfilando
                 forças.

Evito a leveza em sapatilhas
de pés deformados na graça
entranhada em dores e saltos.

                  Conservo a imagem
                  singela da mulher
                  se fazendo eterna:
                              o descompasso
                              como tema.

Carlos Leite Ribeiro (A Deusa e o Mar) Capitulo 1

Novela em 8 Capítulos.

Estávamos em princípios de Julho, na tarde de um dia muito quente.

A esplanada de São Pedro de Moel, estava apinhada de gente. “Sentadas numa mesa, duas senhoras brasileiras conversavam, fazendo renda ao mesmo tempo...

Lígia: - A que horas é que vais para a praia?

Ilda: - Lá mais para a tardinha, pois agora está um calor insuportável.

Lígia: -  Vá lá que aqui na esplanada, com este agradável ventinho, estamos bem.

Ilda: - O mar hoje está muito calmo, e esta beleza... Oh São Pedro de Moel, tu és de uma beleza  incomparável, és uma das "joias" deste velho Portugal!

Lígia: - Olha quem vem ali, é o Sr. António das Ondas... Boa tarde, Sr. António!

António das Ondas: -    Olá, minhas senhoras! Fizeram boa viagem desde o Sul desse belo país que é o Brasil? ... Posso sentar-me? É que estas minhas pernas já não são o que eram. 

Ilda: - Com certeza que se pode sentar, Sr. António das Ondas. Fizemos uma boa viagem. Combinámos encontro no aeroporto de São Paulo e só parámos em Lisboa; depois, ônibus até aqui à também nossa São Pedro de Moel. Senhor está com um ótimo aspecto, e cada vez parece mais novo!

António: - Ora, ora é muita gentileza vossa essa apreciação...

Olhando em redor, António das Ondas viu numa mesa afastada, um casal ainda jovem.

António - As senhoras, por acaso não conhecem aquele casalzinho que está ali sentado, junto daquela janela da esplanada? 

Ilda: - Eu só os conheço de vista. Ele é o célebre pintor Luís Carlos, e aquela moça será a sua esposa?...

António: - É sim. É a Sandra Cristina, uma moça natural cá de São Pedro de Moel. Casaram  vai para três anos…

Lígia: - Então o Sr. António das Ondas, conhece-os bem?

António: - Conheço-os muito bem mesmo... 

Ilda: - O Sr. António está hoje muito misterioso, que se passa, hoje, consigo?

Lígia: - E também não tira os olhos do pintor e da mulher. Vê-se que são seus amigos.

António: - Muito amigos, mesmo. E têm uma bela história de amor!

Ilda: - E o Sr. António tem cá um jeitinho para contar histórias...

António: - Concordo com as senhoras, mas esta é muito especial. É uma bela história de amor...

Lígia: - Senhor António das Ondas, conte-nos a história deles, a que diz que é uma bela "história de amor”.

António: - É uma história muito comprida, e dava bem para um mês...

Ilda: - Mas isso é formidável para nós, pois contamos ficar cá durante todo este mês.

Lígia: - Comece lá a contar a história, Sr. António das Ondas!

António: - Então, se me dão licença, começarei amanhã. De acordo?

Ilda: - Mas aqui está sempre muito barulho, se nós pudéssemos ir para outro lado...

António: -  De acordo. Então, por exemplo, podemos encontramos no café da Ladeira, amanhã pelas 10 horas. As senhoras concordam?

Lígia: - Estamos plenamente de acordo!

António: - Então, minhas senhoras, até amanhã!

Luís Carlos era um jovem pintor algarvio, a quem a crítica previa um futuro brilhante na arte, chegara três dias antes a São Pedro de Moel. A beleza da paisagem e das suas gentes haviam-no conquistado, e sendo assim, até se felicitava por ter escolhido aquele recanto privilegiado da Natureza... Não era ainda a época do ano em que os turistas desembarcavam em massa, vindos de "expressos" de todos os pontos do país, passeando e saboreando a sua curiosidade, pelos recantos de São Pedro. A antiga residência de veraneio de Afonso Lopes Vieira, hoje colônia de férias de crianças da Marinha Grande, é um atestado do requinte de vida, de alguns anos atrás, quando os "Algarves" ainda não tinham sido descobertos pelo grande turismo.

- Realmente - pensava Luís Carlos - os antigos sabiam viver.

Demorava horas e horas na contemplação daquele milagre de cores e tons, em que a vegetação e o mar, os acidentes do terreno e a luminosidade do céu, se conjugavam para tudo espiritualizar, emprestando à existência esse "quê" de evasão da vulgaridade que ela vai perdendo, cada vez mais nos nossos tempos de mecanização. Ao chegar à estação da Rodoviária, vindo no "expresso" que o trouxera de Lisboa, cidade onde residia, Luís Carlos teve a ajuda de uma encantadora rapariga, que o ajudou a transportar a sua bagagem até ao alto, para os lados da piscina, onde alugara um quarto.

Ana Maria: - O senhor é pintor?... 

Luís Carlos: - Sou sim, garota. Porque perguntas?

Ana: - Com estes aparelhos todos, só podia ser pintor!

A garota chamava-se Ana Maria e tinha 18 anos. Era uma tentação da carne morena rosada, algo tisnada pelo sol, de formas elegantes e graciosas. Todas as outras raparigas de São Pedro de Moel rivalizavam entre si em beleza e graciosidade, emprestando aquele recanto da Natureza, o atrativo da sua presença e da sua voz, dos seus corpos fibroses e jovens, que eram promessas de carinho, destino apetecido de todas as carícias dos homens.

Luís: - Um dia destes, pinto o teu retrato, queres, Ana Maria?

Ana: -  Não sei para quê, pois eu até nem sou bonita. Era bem capaz de lhe estragar a pintura!

Luís: - Vaidosa é que tu és garota!

Nesse dia, também conheceu um bondoso e interessante velhote: o António das Ondas. Antigo piloto do "bacalhau" e dos "paquetes" e por fim dos "petróis", como ele por graça dizia. Durante mais de quarenta e cinco anos, andou por cima das ondas, conhecendo todos os oceanos e "meio mundo". Ninguém em São Pedro de Moel tinha segredos para ele, e quase sempre sugeria a melhor maneira para qualquer situação, tal como tinha sempre a melhor palavra para cada um e, na sua vida, nunca tinha mentido. Luís Carlos gostava do bondoso velhote, especialmente pela sua bonomia e pela sua aguda inteligência, não isenta de fina e compreensiva ironia. Nessa tarde e depois de aceitar o convite do António das Ondas para tomar uma bica (café), no café da subida, perto do chafariz, Luís Carlos foi passear sozinho pela beira mar. Começara a pintar uma garota da terra, mas ela era tão apetecível, tão provocante, mesmo que involuntariamente, que o nosso pintor decidira espaçar as sessões, e andava enchendo os olhos por aquela paisagem de sonho, povoada de gente simples e bonita, gozando profundamente a paz daquelas encostas alcantiladas, que se erguiam sobre o Atlântico, azul e revolto, rebrilhante como uma imensa gema preciosa.

Subitamente, Luís Carlos estacou surpreendido: defronte dele, mas em plano inferior na encosta que descia para o mar, ali bem perto da varanda da esplanada, acabava de descobrir o vulto airoso de uma rapariga que olhava o oceano. Estava quase de costas para ele e, um lindíssimo cabelo alourado ondulava brandamente na aragem da manhã. Não podia ver-lhe as feições, mas a sua silhueta, desenhando-se com nitidez e elegância, sobre o mar, dava-lhe um ar de estátua proporcionada e delicada, assim sentada no alto daquela rocha, de tons escuros. Sem fazer qualquer ruído, Luís Carlos, foi-se aproximando da rapariga, desviando-se o suficiente para poder vê-la de perfil. Era lindíssima, e tinha as mãos entrelaçadas na ponta dos braços, onde prendia um dos joelhos.

Tirando da sua pasta, um lápis e papel, o pintor começou a fazer um esboço daquela beleza estranha, que parecia sofrer. Quando o esboço ia quase no fim, ela deu pela presença dele, e fitou-o com certa surpresa...

Luís: - Bom dia, menina. Peço-lhe desculpa... Não pretendia perturbar-lhe os seus pensamentos, mas a tentação foi maior…

Sandra Cristina: - Olá, bom dia! Parece que já o conheço, pois no outro dia encontrei-o junto da Ana Maria. O senhor também costuma conversar com o Sr. António das Ondas. Estou certa?

Luís: - Sim costumo e gosto de falar com o Sr. António. Pelos vistos também conhece esse senhor.

Sandra: - Toda a gente aqui o conhece. Mas, o Sr. Esteve a ocupar-se de mim? Pintou o meu retrato?!

Luís: - É verdade. A beleza que você dava a este quadro era tão forte, tão comunicativa que me permitiu fixá-la num pequeno esboço. Com o mar lá em baixo, era bem "A Deusa e o Mar!..." Não se ofendeu por isso, não é verdade?

Enquanto falava, Luís Carlos ia-se enfeitiçando com a impressão que lhe provocara aquela rapariga, tão estranha, de olhos claros e distantes, e cujo sortilégio, era fascinante e inquietante ao mesmo tempo.

Sandra: - Não, não me importo, Deixe-me ver esse esboço…

Luís Carlos entregou-lhe o papel e sentiu-se mais tranquilo, quando percebeu na expressão dela, uma verdadeira admiração pelo seu trabalho. Quando a rapariga levantou os olhos, ele mais pediu que perguntou:

Luís: - Deixa-me pintar um retrato seu?

Sandra: - Tem mesmo a certeza que me quer pintar?!

Luís: - Claro que tenho a certeza! Você é uma das raparigas mais belas que vi em toda a minha vida!

Um vago sorriso indefinível perpassou pelo da jovem. Um sorriso que queria ser trocista, mas era profundamente triste. Por fim disse apenas iludindo a resposta.

Sandra: - Ainda nem sei o seu nome...

Luís: - Chamo-me Luís Carlos, sou pintor de profissão e algarvio de nascimento.

Sandra: - Eu sou a Sandra Cristina Mendes e vivo com os meus pais, numa pequena quinta que possuímos aqui em São Pedro de Moel.

Luís: - Então se me permitir procurarei seus pais, para pedir-lhe licença para pintar o seu retrato.

Sandra: - Se achar que vale a pena, não me oponho. Mas creio que brevemente mudará de opinião!

E dizendo estas palavras, saiu de cima da rocha, e caminhou vagarosamente diante dele. Luís Carlos verificou então que uma das pernas daquela beldade era sensivelmente mais curta que a outra, e que o pé não pousava normalmente no chão. O seu andar não era cadenciado, e até as ancas apresentavam uma evidente assimetria. “A voz dela soou como uma chicotada:

Sandra: -  Vê!... eu bem o preveni que decerto mudaria de opinião...

Luís: -   Mas...

Não teve tempo para articular nem uma palavra, porque ela deitou a correr subindo o carreiro que ele antes descera, com uma agilidade muito notável para o seu defeito físico... Chegada lá a cima, parou e encarou-o, dizendo numa voz patética, em que não se adivinhava nem uma lágrima.

Sandra: - Será melhor pintar qualquer dessas raparigas sadias, que há em São Pedro de Moel, do que perder tempo com uma aleijada...

Luís Carlos encarava-a alcandorada lá em cima, na beira do caminho, e não encontrava qualquer palavra acertada para dizer, que lhe tivesse ocorrido a frase certa. Entretanto, mesmo que a disse-se, ela já não a teria ouvido, pois desaparecera dos seus olhos, como que misteriosamente. Verificou então que não encontrava a folha de papel, onde esboçara a sua airosa figurinha incrustada na rocha. E, como não havia vento, o desaparecimento do papel, apenas podia a explicação de ela o ter guardado. E esta hipótese confortou-o. Nessa tarde, encontrando o António das Ondas, numa esquina de São Pedro de Moel, o pintor Luís Carlos, dirigiu-se-lhe a ele precipitadamente. O bom velhote acolheu-o com um sorriso, e pareceu esperar quaisquer palavras, que, aliás, não demoraram:

Luís: - Diga-me, Sr. António das Ondas, conhece uma família Mendes, que tem uma Quinta aqui em São Pedro de Moel? 

António: -   Conheço sim, meu rapaz! Têm uma pequena Quinta, e uma filha linda como os amores, não é verdade?... Encontrei a Sandra Cristina, que levava o esboço que lhe fizeste sem ela dar por isso. É um encanto de menina, mas muito infeliz...

Luís: -  Estou a ver... Mas diga-me como lhe aconteceu aquilo...

António: -  Foi um acidente de automóvel, quando a pobre tinha doze anos. Se tivesse acontecido mais cedo, teria sido melhor, pois os pais eram (pode-se dizer ricos), mas há cerca de cinco anos, sofreram um terrível incêndio, e ficaram praticamente arruinados... e assim, na altura em que se deu o desastre, já eles não tinham posses para levar a pequena ao estrangeiro, e fazê-la operar por algum desses grandes especialistas.

Luís: - Mas... Quase não se nota!...

António: -  Isso dizes tu com o teu entusiasmo, mas a verdade é que toda a gente a trata por coxa, ou com mais ternura, pela coxinha. E repara, para uma rapariga formosa, de dezoito anos, é um drama que eu tenho tentado atenuar, na minha qualidade de "amigo de família". Mas é difícil e delicado, pois a Sandra Cristina, é de uma personalidade riquíssima, até excessivamente sensível... Diz-me lá uma coisa, Luís Carlos, sempre queres pintar o retrato dela? 

Luís: - Claro que quero. É o rosto de mulher mais belo que vi em toda a minha vida !

António: -  Mas mesmo sendo coxa?!

Luís: -  Pelos vistos, chamam-lhe assim, mas ela, não é bem coxa. E esse aspecto em nada vai alterar o meu propósito de pintar o seu retrato!

António: -  Estás a falar verdade, Luís Carlos?

Luís: -  É verdade, Sr. António das Ondas! Muito lhe agradecia que me dissesse aonde é que fica a quinta deles, para eu ir lá pedir aos pais autorização, para lhe fazer o retrato.

António: -  Sendo assim, até calha bem, porque eu vou agora a casa dos Mendes. Se quiseres, podes vir comigo.

Luís: -  Fico-lhe muito agradecido.

António: -  Espera aí, rapaz, não andes tão rápido ... Que pressa essa! Eu quero prevenir-te que aquela gente é muito boa, e que não deves brincar com o coração de Sandra Cristina, pois ela é uma pequena de uma sensibilidade fora do comum, e aquele acidente marcou-a para toda a vida. Por favor, não vás encher a cabeça da mocinha de coisas bonitas, para depois lhe dares um desengano - prometes?! ...

Luís: -  Mas eu só quero pintá-la!

António: -  Ora, ora... Estás em São Pedro de Moel há mais de uma semana, já começaste quatro ou cinco retratos de outras tantas raparigas, e ainda não acabaste nenhum.

Luís: -  Mas hei-de acabá-los. O Senhor Sabe bem que muitas vezes, ao iniciar uma pintura, estamos convencidos de qualquer coisa, mas por vezes essa mesma pintura nos afasta. Não sei explicar porquê ... Não sei expressar o que sinto...

António: -  Nem é preciso que expliques. São os teus vinte e oito anos, o teu anseio de beleza. Bem, eu não estou a censurar-te, de maneira nenhuma, o que tens feito. Estou só a pedir-te que não o repitas com a Sandra Cristina.

Luís: -  Se eu conseguir pintá-la prometo que acabarei o quadro, e ele será a grande obra-prima da minha vida!

António: -  Assim é que é falar! E olha que também não será preciso que beijes (de certa maneira...) o teu modelo, durante as sessões de pintura - percebes, não percebes?...

Luís: -  Eu só gostava de saber como é que o Sr. António das Ondas consegue saber tudo o que se passa cá na terra!

António: -  Não te esqueças que sou amigo de toda a gente! Sinceramente, gostava muito que tu e a Sandra Cristina se entendessem bem, até para lhe tirar ideias tontas que ela tem na cabecinha, e que só podem fazê-la infeliz. E tu talvez sejas um homem capaz disso...

Luís: - Pode crer que tudo farei para consegui-lo!

António: - E com esta conversa toda, chegámos a casa dos Mendes. Vamos entrar...

continua…

Fonte:
O Autor

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Carolina Ramos (Poemas Escolhidos)

CONSELHOS DE MÃE

Meu filho, a vida é dura e fere... e nos magoa...
mas, trata-a com respeito e guarda a dignidade.
Ainda que a alma inteira sem clemência doa,
não permitas que o mal altere o que é verdade!

Sonha bem alto e segue o voo do teu sonho
sem pressa de alcança-lo e tendo-o sempre à vista!
Cada dia que passa é um dia mais risonho,
quando o amanhã promete as glórias da conquista!

“Segura a mão de Deus!” Segue o rumo sem medo.
Os caminhos, verás, se abrirão à medida
que teu passo provar firmeza e, sem segredo,
revelar o sentido e o Ideal da tua vida!

Não temas opressões nem quedas. Persevera!
Se achares que ao final o saldo não convence,
reage, continua... a vida tens à espera!
Confia em teu valor! Trabalha! Luta! E vence!

DELIMITANDO SANTOS

Manhã de sol, luminosa,
Dourando as águas do mar...
Brisa mansa... onda morosa...
Um barquinho a balouçar...

Nesse barco pequenino,
Os sonhos do pescador
Compõem o próprio destino,
Vencendo frio e calor.

Ao fundo, o azul horizonte,
Ilha das Palmas! E alçado
À frente Itaipu no monte
E a Serra do Mar, ao lado.

Ao centro, a concha serena,
De tão sublimes encantos,
Guarda pérola pequena
E tão valiosa –Santos!

E essa concha de ternura,
Sempre cercada de flores,
Oferece a alma pura
Na gama de tantas cores!

De norte a sul, leste a oeste,
Há perfume de poesia,
De orquídeas de aroma agreste,
Mesclado de maresia.

No porto, grandes navios...
Nas praias, verdes jardins,
Palmeiras, troncos esguios
Das alturas sempre afins.

E o azul por cima de tudo!
No altar do Monte, a Padroeira,
Com seu olhar de veludo,
Abraça a cidade inteira!

Santos, o berço da História!
E de tão grandes poetas
Que honram a Pátria e a memória,
Traçando brilhantes metas!

Liberdade e Caridade
Santos traz no coração...
E em troca, levam Saudade
Os que de Santos se vão!

ESPERANÇA

Que falta faz a mão do “Poverello”,
mão chagada, que lembra o Salvador!
Mão que outras mãos unia, como um elo...
Elo de luz fraterna, elo de Amor!

Que falta faz o ardor do seu anelo,
quando tentava unir a um só Pastor
as ovelhas dispersas – sonho belo
que a vida se compraz em decompor!

E a vida o quanto vale?! – Um quase nada!
Por todo lado, há só gente empenhada
em fazer gente ser mais infeliz!

- Quem sabe ainda houvesse uma esperança,
se o mundo ouvisse a voz, humilde e mansa,
do bom Francisco... nosso Irmão de Assis!...

HOJE É UM DIA DE SOL!

Esquece a mágoa e a dor! Esquece a própria vida,
e esse afã de vivê-la, alheio aos seus porquês!
Hoje é um dia de sol! O amor é quem convida
para a festa triunfal, que é tua... e tu não vês!

Hoje é um dia de sol! Deixa a angústia esquecida!
Abre as janelas da alma... agora é tua vez!
Tão doce é a sensação de encontrar refletida
no brilho de um olhar a esperança em que crês!

Hoje é um dia de sol! Dia cheio de luz!
Tenta amar e sorrir... hás de ver como encanta
transformar em fulgor a sombra de uma cruz!

O céu faz-se aquarela! Às tintas do arrebol,
vão-se as nuvens embora... a natureza canta!
E canta o Amor com ela! – Hoje é um dia de sol!

NAUFRÁGIO

Neste oceano da vida, tumultuoso,
Lancei, cheio de sonhos, um barquinho.
E ele flutuou e deslizou airoso,
Vencendo os empecilhos do caminho!

Nos momentos difíceis, sem repouso,
Depressa ia ampará-lo o meu carinho
E ansiosa eu via, com secreto gozo,
Meus sonhos desafiando os torvelinhos!

E chegaste! E de pedra era tua alma!
De papel, o barquinho... e tenso e mudo,
Ficaste, quando o mar perdeu a calma!

Contra o recife, o barco soçobrou!
E os sonhos, sem guarida, ao fim de tudo,
Um a um, impiedoso, o mar levou!

O BEIJO DO HOMEM BOM

Eu era pequenina...eu era bem pequena...
três anos, nada mais... e o ver chegar sorrindo
aquele homem tão bom, de face alegre e amena,
aos seus braços corria! E com afeto infindo,

colava o rosto ao seu, na entrega pura e plena.
E aquele homem tão bom, o meu rosto cobrindo
de beijos, encantava a minha alma serena...
Era o sol de verão, que o céu fazia lindo!

E a Vilazinha triste, feia e tão modesta,
ganhava nova cor e animação de festa,
aureolada de luz e graças imprevistas!

O homem bom que, em criança, amigo me beijava,
era um grande Poeta, eu soube, e se chamava
Martins Fontes,“Tié-fogo” - orgulho dos santistas!

O IDEAL DE TIRADENTES

Sem ser fátuo ou falaz, tem permanência
o sonho que se apoia na bravura
e mostra o seu valor na persistência
com que defende, à luz, a ideia pura!

Há quantos anos vibra a Inconfidência
na emoção do Brasil! Sol que perdura!
E o nome -Tiradentes- na consciência
de gerações, se alenta de ternura!

O sonho libertário, esquartejado,
dos quatro cantos, ressurgiu mais forte!
E esse Ideal de Justiça, estrangulado,

ganhou força maior!... Força escondida
que não teme sequer carrasco e morte,
porque vale até mais que a própria vida!

REVERSO

Se um verso meu chegar onde tu estás, um dia,
Fácil de adivinhar, dirá tua vaidade:
- Ela pensa em mim, rimou, porque sentia
No coração o agudo espinho da saudade!

Não gosto de mentir, calar é mais seguro.
Não direi sim, nem não... e nem sequer, talvez!
Porém, ao ler meu verso, em troca, eu asseguro:
Tu pensarás em mim... ao menos, nessa vez!

TÃO PERTO... E TÃO LONGE...

Andaste bem pertinho de minha alma!
Tão perto, que cheguei a acreditar
Quem desta vez, alguém teria a palma,
De compreendê-la e dela se apossar!

Mas a aventura impôs-se em teu caminho,
Equívoca, a impelir-te em rumo incerto...
Partiste em busca de um banal carinho.
Restou a dor de um sonho mal desperto!

Chamei por ti!... E a brisa, com desgosto,
Murmurou confidente, ao meu ouvido:
- Esquece, tola, que eu te enxugo o rosto...
Deixa-o partir...o mais não tem sentido;

Se o adeus rouba o sorriso à tua boca,
A saudade e a ventura são rivais!
Deixa-o partir... Esquece... Esquece, louca!
Outro virá... e há de querer-te mais!

VELHO RIO...

Deslizas velho rio, amargo e silencioso,
A esconder, bem ao fundo, a injúria e a dor calada.
Cresceste manso, puro! E teu caudal piscoso
Refletia o esplendor da luz da madrugada!

Quantas milhas coleaste! Fértil, dadivoso,
Quantos lares supriste! E se a sede saciada
Afugentou a seca, esse fantasma odioso,
Tiveste, em paga injusta, a face maculada!

Hoje, segues tristonho... sujo... moribundo...
Tendo no seio o estigma e, na alma dolorida,
Toda a angústia de ser a lixeira do mundo!

Velho rio... depois de tanto desengano,
Entendo porque, enfim, protestas contra a vida
E afogas tua dor no abismo do oceano!

VILA DOS ANDRADAS
 

Nasci naquela vilazinha feia,
sem árvores nem flores nas calçadas.
Rua? Perdão se assim chamei-a,
era apenas a Vila dos Andradas.

Saí criança e não voltei. Lembrei-a,
saudosa das cirandas nas calçadas.
Foi lá, que eu aprendi que a lua cheia
era a Mansão dos Sonhos e das Fadas!

Não mais existe a minha velha Vila,
mas, pobre e triste, seu passado atesta
que nela havia luz que ainda cintila

a ultrapassar os sóbrios horizontes:
- Naquela Vila, plácida e modesta,
viveu, rimou o nosso Martins Fontes!

Raul Pompéia (Como Nasceu, Viveu e Morreu a Minha Inspiração)

Página arrancada ao livro de lembranças de um futuro Esculápio.

Eu ia vê-la naquele dia. O dia dos seus anos! Devia estar esplêndida. Ia completar o seu décimo sétimo ano de um viver de alegrias. O meu presente era simples: uma gravatinha de fita azul; mas havia de agradar-lhe. Era o meu coração quem o dava. Ela o sabia. Sabia também que o coração de um estudante não é rico. Dá pouco, mesmo quando dá... Ela desculparia.

Que noite ia eu passar! Dançaríamos muitas vezes juntos, a começar da segunda quadrilha...

Preparei-me. Empomadei-me; escovei-me; perfumei-me; mirei-me, etc., etc. Conclusão: estava chique. Mas eram cinco horas e eu não queria chegar antes das sete. Fazer-me um pouco desejado... O que é que tem?... Todavia faltava bastante tempo!... Em que ocupar-me a fim de passar essas duas longuíssimas horas? Que fazer?... Impaciência e dúvida; dois tormentos a me angustiarem...

Eu passeava pelo meu quarto, deitando vagamente uns olhares pelos meus desconjuntados móveis: aquelas minhas cadeiras, lembrando a careta de um choramingas a entortar o queixo; a mesa, gemendo sob um mundo de livros desencapados e sebentos; o meu toalete, quero dizer um velho compêndio de anatomia com uns frascos por cima e um espelho pequeno pregado na parede; a minha cama, com a coberta a escorregar languidamente para o chão... Continuava a passear. Olhei ainda uma vez para o espelho e sorri-me, vendo lá dentro a minha gentil figura partida em quatro por duas rachaduras cruzadas no vidro... Que fazer?...

Debrucei-me na janela... Embaixo a rua, a atividade prosaica das cidades de alguma importância: idas e vindas e mais vindas do que idas, por causa da hora que era de jantar, (por tocar nisto... eu não tinha ainda jantado. É o que me cumpria fazer; mas o meu plano era economizar um jantar, vingando-me à noite nos bufetes da menina...) Meus olhos corriam pela rua como andorinhas brincalhonas. Depois de percorrem o quarto, andavam pela rua em busca de resposta à minha pergunta: - que fazer?...

Por fim foram esbarrar no frontispício da igreja... Começaram a subir... Brincaram nas janelas; contaram quantos vidros havia; examinaram os enfeites de arquitetura... Subiram mais, percorreram os sinos, o zimbório e foram pousar no para-raios.

Estavam quase no céu. Daqui para ali, menos de um passo. Os olhos lá foram. Mergulharam-se erradios no azul... Que fazer?

Ora... Enfim! Estava achada a resposta! Por que não veio ela mais cedo não o posso explicar.

Os meus olhos estavam no céu.

Era uma tarde encantadora. Que cor a do firmamento nessa hora! Que abóbada incomparável a cobrir a rua!... Depois, aquelas nuvens mimosas, desfiando-se nos ares, como brancas meadas de lá nuns dedos sedutores... O sol a descambar, batendo de través na poeira levantada do chão pelos carros, que magníficas cortinas desdobravam pelas janelas das habitações velando-as como que de douradas gazes. No horizonte, por sobre a última linha de telhados e chaminés fumegantes, como se ostentavam aquelas colinas de um azulado branco feito vapores tênues; como se recortavam sem fazer uma só volta que não fosse demorada e graciosa como as curvas de esbelto corpozinho de donzela...

Oh! Do quarto para fora, tudo o que se prendia aos céus por um raio de luz ou por uma ponta de vaporoso véu, tudo respirava poesia...

Eu achara a resposta. Que fazer?... Versos!... Feliz achado!... Um soneto ou alguns alexandrinos... Qualquer coisa que desse claro testemunho do meu amor. O laço de fita com que eu ia mimosear o meu anjo era azul... Ótimo! Sobre o laço, um soneto!... Ouro sobre azul! Com certeza não dançaríamos somente (eu e ela) trocaríamos o primeiro beijo! Não esse beijo insípido que se dá a carregar aos zéfiros, entregando-se-lhes nas pontas dos dedos, mas um ósculo açucarado de lábios ardentes sobre a maciez de uma face. Um ideal realizado. Uma coisa assim como o contato com um jambo que houvesse roubado o veludo ao pêssego...

- Bravo! Já estou quase deitando verso de improviso! Exclamei eu, notando a minha exaltação. Venha papel! Venha pena! Cérebro, soma-te com o teu companheiro, o coração! Não brigueis desta vez como é de vosso costume... Somai-vos um com o outro e vertei nesta folha de papel alguma coisa que não horrorize a Petrarca... Espírito de Dante, eu te evoco! Vem com aquele fogo que em ti acendia a tua celeste Beatriz! Dirceu, corre também em meu socorro! Poetas antigos e modernos, correi todos! Musas, vinde com eles! Transportai-me nesses êxtases que vos deram a imortalidade na memória dos homens!...

Nascera-me a inspiração! Ia metrificar alguma coisa que devia maravilhar os críticos... (aparte a modéstia: isto que escrevo não é para o público). Mas eu me sentia um pouco acima de mim mesmo... Sem dúvida era essa sensação mística a que experimentam todas essas cabeças de gênio, um momento antes de dar à luz qualquer produção sublime...

Molhei a pena, com um movimento nervoso. A minha impaciência (confesso-o) não era então para chegar à casa do meu bem, era para gravar no papel aquilo que me ardia no crânio. Molhei a pena...

Oh! desgraça! A infame pena trouxe na ponta um pingo de tinta, trêmulo, ameaçador. Desviei-a violentamente... Foi a minha perdição...

Olhei triste para o meu punho esquerdo... Estava descansado sobre a folha de papel, quando o pingo... Maldição!... Ainda havia pouco, tão alvo, luzidio como porcelana... Então, com uma feia nódoa circular negra... negra, de quase uma polegada de diâmetro e ainda a infiltrar-se pelo linho, a tomar cada vez mais vulto!...

Pobre camisa!... Estragada!... Mais pobre de mim... Esse pingo era uma catástrofe. Aquela camisa era a única. Única! Triste verdade, cujas consequências me desesperavam.

- Adeus, meu anjo! disse eu, sem poder engolir um soluço.

Já não me era possível ir vê-la. Nem um companheiro morava comigo. Se morasse, talvez o mal fosse remediável. Mas não! Não havia esperança!... Comprar outra? Onde? Era um domingo... Com que dinheiro?... Era num fim de mês. Não havia esperança.

Aquele beijo que sonhei num instante de ebriedade desfez-se-me no espírito como a má impressão de um R. Não era só isto. A minha ausência seria notada pela menina. O que pensaria ela?... Talvez que eu, por mesquinho, quis poupar-me a despesa de oferecer-lhe qualquer coisa...

- Quando, gritei eu, aí está o meu laço de fita de cinco mil réis...

Ainda mais. Um baile leva a uma casa tantos pelintras... quem sabe se ela não se agradaria de algum dessas bolas, esquecendo-se de mim?... E teria razão. A abelha, se aqui não encontra mel, vai buscá-lo acolá...

Momentos dolorosos os que passei nessa tarde! Depois de todos os pensamentos que me assaltaram brutalmente à primeira reflexão, foi que me lembrei do meu soneto...

- Soneto, para onde tu foste?...

Mais este golpe: - a minha inspiração morrera. Eu não sentia mais a exaltação auspiciosa de alguns minutos antes. Tudo perdido! Fora-se tudo!

Eu vi e jurá-lo-ei, se me não acreditarem, eu vi essa corja do Parnaso, poetas e Musas, fugir-me do quarto! Eu vi as sirigaitas de saias arregaçadas a correr, e os idiotas irem-lhe após, sobraçando liras, como os traquinas das escolas públicas, quando disparam pelas ruas, de ardósia ao sovaco...

Nessa mesma tarde, fui à janela outra vez. Estava aflito e superexcitado. Parece-me, até, que tinha os olhos molhados. Pus-me a ver os transeuntes. Cada um que passava, para os lados na morada do objeto dos meus devaneios parecia um convidado de baile. Tortura.

Em seguida avistei a maldita torre, por onde meus olhos haviam subido ao céu que me inspirava a negrejada lembrança de poetar.

Para acabar. A desgraça de que fora vítima fez-me esquecer o jantar, que positivamente era só o que eu devia perder não indo à festa. Não comi e não reparei nisso. Tornou-se inútil vingar-me da minha economia. Se neste particular não perdi, no resto ganhei.

A minha querida (soube-o depois) nem perguntou por mim na festa. Esteve alegre. Encontrou quem lhe agradasse (um sujeitinho com quem se vai casar). Melhor. Já estou consolado da desgraça, um mal que me veio para bem. Livrou-me de uma levianazinha. O aborrecimento que hoje me causam os mesmos objetos que tanto me entusiasmaram naquela tarde veio matar umas pequenas veleidades poéticas que ainda acatava. Estou descrente. Agora acabou-se... Só estudo; ergo: ganhei... Estou na expectativa de um fim de ano esplêndido.

Mais uma palavra. O laço de fita azul... guardo-o. É um talismã.

Folclore Japonês (Kinuhime: A Deusa da Seda)

Há um longo tempo, existia uma pitoresca aldeia japonesa famosa pelo cultivo da sericultura. Anualmente, durante a primavera, o local ficava lotado de trabalhadores que vinham de longe para a colheita dos casulos e o corte dos galhos das amoreiras. Consequentemente, nessa época, havia muitas festas na região. Entre os trabalhadores, destacava-se uma linda jovem chamada Kinu (seda).

Kinuhime: O Conto

No pequeno vilarejo, as pessoas eram muito unidas e todos trabalhavam felizes e com grande entusiasmo. Os bichos-da-seda alimentavam-se das folhas de amoreiras cortadas e colocadas nos barracões pelos trabalhadores, fazendo seus casulos nos galhos.

Quando terminavam os trabalhos de colheita dos casulos, os trabalhadores voltavam para suas províncias de origem e a aldeia voltava a ser pacata e até solitária.

A família de sericultores que acolheram temporariamente a jovem Kinu, percebeu que, em todos os anos em que ela trabalhou na cultura da seda em suas terras, os casulos eram maiores e mais brancos, sendo considerados pelo comprador da produção melhores até que os da China.

No final da temporada daquele ano, os sericultores fizeram grandiosa festa em agradecimento a boa colheita e serviram um delicioso banquete. Durante a festividade, tentaram descobrir de que região do Japão Kinu teria vindo, mas foi em vão. Ela nada contou, esquivando-se com respostas educadas.

Assim, ninguém ficou sabendo de onde ela veio, sobre sua família, nem para onde retornaria após a temporada de trabalho.

Na hora da partida, a família que a acolhera naquele ano pediu encarecidamente que Kinu voltasse no ano seguinte. Ela, educada, despediu-se de todos e deixou a aldeia por uma estrada estreita. Para assegurar que ela voltaria na próxima temporada, alguns aldeões a seguiram sorrateiramente no meio da mata, na tentativa de descobrir sobre sua origem.

Porém, poucas horas depois de sair da aldeia, ela desapareceu de repente. O local onde ela sumira, era na beira de um lago. Os aldeões vasculharam toda margem, mas nada encontraram. Um dos rapazes observou que no lago havia um ovo branco de serpente, fora isso, nada havia de diferente.

Na primavera seguinte, ela não apareceu, apesar de todos a esperarem ansiosamente. Alguns membros daquela família de sericultores viram várias vezes uma serpente branca andando na plantação de amora e próxima ao barracão da seda. Apesar da jovem Kinu não ter aparecido, mais uma vez os casulos colhidos naquele ano foram brancos e bonitos.

A família concluiu que aquela serpente branca que eles viram rondando a região, era Kinu. Misteriosamente transformada em serpente, ela estava protegendo os bichos-da-seda contra os ratos.

Baseado nessa crença, o povo da aldeia esculpiu uma estatueta com a forma da bela Kinu e a colocaram durante a primavera em um santuário Shintô, para que a partir de então, fosse reverenciada como a “deusa da seda”, protegendo sempre suas colheitas.

Após a temporada da seda, os aldeões, agradecidos, levaram a estatueta até um lago e a colocaram num pequeno barco, mandando-a de volta. Ainda hoje, em muitas aldeias de sericultores no Japão, esse ritual é praticado em reverência a “Kinuhime”, a zelosa deusa da seda.

Fonte: Myths and legends of ancient Japan, in Caçadores de Lendas

domingo, 31 de julho de 2016

Alexandre Dumas (Carlos Magno e o Anjo)

Por volta do ano 868, Carlos Magno tinha resolvido fazer construir um palácio que dominasse o Reno, e em 874 esse palácio estava construído. Era um magnífico edifício, metade fortaleza, metade castelo, sustido por cinquenta colunas de mármore e cinquenta colunas de granito. Estas colunas de mármore lhe tinham sido enviadas de Roma e de Ravena, pelo papa Estevão III, e as colunas de granito tinham sido tiradas de Adenwald. De modo que, vendo sua nova morada imperial tão lindamente acabada, ele resolveu convocar aí uma assembleia. Em consequência, os príncipes e os senhores das cercanias foram convocados para essa grande solenidade.

Na noite que precedeu a data em que a assembleia devia se realizar, quando o imperador acabava de adormecer, um anjo lhe apareceu e disse estas palavras: "Carlos, levanta-te e rouba". Carlos Magno se levantou depressa e sentiu um perfume celestial no quarto. Mas, como as palavras que o anjo dissera lhe soavam mediocremente em relação com os preceitos de Deus e da Igreja, afigurou-se-lhe haver sonhado, e readormeceu.

Porém, mal o imperador tinha fechados os olhos, a mesma visão lhe apareceu de novo, e, com um rosto severo, como o de um mensageiro que tem direito de censurar, se não lhe obedecem às ordens, o anjo repetiu pela segunda vez, com voz grave, as palavras que tinha dito e que o imperador acreditava ter ouvido mal. Ele abriu depressa os olhos e viu o quarto pleno de uma luz celestial, que foi, pouco a pouco, enfraquecendo, e acabou por se extinguir completamente.

Entretanto, a ordem tinha sido tão estranha, que Carlos Magno hesitou ainda em obedecer, e, repousando a cabeça no travesseiro, dormiu uma terceira vez. Dessa feita ainda, o mesmo anjo apareceu, mas com um semblante ameaçador, e reiterou a mesma ordem, com uma voz tão imperiosa, que o imperador, que, entretanto, não era absolutamente fácil de se amedrontar, estremeceu de terror e se levantou sobressaltado. Dessa vez, não somente o mesmo celestial aroma se espalhava, e a mesma luz resplandecente brilhava, mas ainda o anjo estava de pé, junto ao seu leito, e não foi senão quando teve certeza de que o imperador não podia duvidar da realidade de sua presença, que ele estendeu suas asas de ouro e desapareceu. Dessa vez, Carlos Magno não teve nenhuma dúvida de que a ordem lhe vinha do céu, porque o mensageiro era belo demais para ser um enviado do inferno.

Carlos Magno não hesitou mais, então; levantou-se depressa, vestiu-se às apalpadelas, deplorando esse mandado do céu, que lhe ordenava começar tão tarde um serviço tão infame. Mas o imperador era como Abraão, decidido a tudo sacrificar a Deus, mesmo sua honra. Em consequência, revestiu-se da couraça, cingiu a espada e tomou o capacete na mão, como se fosse comandar uma dessas expedições guerreiras, pelas quais tinha tanta simpatia, quanto tinha repugnância por aquela. Enfim, ele saiu de seu quarto e, parando numa galeria que dominava toda a região, fez uma pausa para decidir de que lado iria ser esse roubo que o embaraçava tanto realizar.

De resto, a noite estava sombria, como convém a tal expedição, mas, por inspiradora que fosse a escuridão, o imperador era de tal modo noviço na nova arte que lhe era preciso exercer, que, por mais que vagueasse no sentido do comprimento e no da largura, depois de quase uma hora, ainda não lhe tinha chegado a menor ideia, quando, de súbito, percebeu que acabavam de lhe furtar o capacete que ele tinha pousado na balaustrada da galeria. 0 imperador procurou bem de todos os lados, olhou dentro e fora, mas toda a busca foi inútil: o capacete tinha desaparecido.

Tanto o furto era audacioso, como o ladrão era hábil; e tanto mais o ladrão era hábil, mais, em semelhante circunstância, ele podia dar um bom conselho ao imperador. Assim, pareceu-lhe que esse ladrão era um novo favor do céu que, vendo seu embaraço, tinha tido piedade dele. Em consequência, levantou a voz:

- Que aquele que me furtou o capacete - gritou ele - se apresente diante de mim, e, sob minha palavra de rei, em lugar de ser castigado, ele receberá uma recompensa de cem ducados.

Logo, uma explosão de riso agudo retiniu na própria galeria, e de sob a tapeçaria que recobria uma mesa, Carlos Magno viu sair seu anão, que se aproximou e lhe estendeu o capacete, a fim de que ele jogasse ali dentro a soma prometida.

- Ah! és tu, infame ladrão - disse Carlos Magno; - eu deveria ter visto que ninguém, senão tu, seria capaz de semelhante golpe, e deveria ordenar que te dessem cem vergastadas, em lugar de te prometer imprudentemente que daria cem ducados.

- Sim, mestre - disse o anão -, teria sido mais econômico, é verdade, mas um homem honesto não tem senão uma palavra. Eis o capacete; onde estão os cem ducados?

- Tu os terás de pronto, quando me tiveres dado um bom conselho.

- Os cem ducados - disse o anão - foram prometidos pelo capacete e não pelo conselho; dá-me os cem ducados pelo capacete e terás o conselho de graça.

Carlos Magno estendeu a mão para segurar o engraçado que lhe falava com tanta ousadia, mas o anão viu o movimento, e, rápido como o pensamento, saltou por sobre a balaustrada, com a destreza e a agilidade de um macaco, pôs-se a subir ao longo de uma das colunas, e não parou senão quando ficou a cavalo numa das folhas do capitel. Lá, ele se pôs a cantar uma canção de que compunha, a um só tempo, a música e as palavras. Esta canção dizia:

"Eu já tenho um capacete, um belo capacete, um capacete encimado por uma coroa real: um capacete que me custa cem ducados".
Eu vou tratar de obter pelo mesmo preço uma couraça e uma espada, e então me farei armar cavaleiro, por algum imperador que jamais tenha faltado à sua palavra".
"Depois, quando eu tiver sido armado cavaleiro, terei uma grande espada e uma boa lâmina, ir-me-ei por montes e vales, fazendo justiça, porque nos países da Germânia e da França justiça é de grande necessidade que seja feita".
"Mas, olá! onde encontrarei, para me armar cavaleiro, um imperador que não tenha jamais faltado à sua palavra?"

0 ruído de uma bolsa que tombava nas lajes interrompeu o improviso do cantor, o anão compreendeu que a lição de moral tinha produzido seu efeito, desceu da cornija e foi apanhar a bolsa, com um olho nela e outro no imperador.

- Vamos, vem aqui, tolo - disse Carlos Magno -, e não temas. Preciso de ti.

- Ah! agora - disse o anão -, se tens necessidade de mim, é outra coisa, e não tenho mais medo.

- Eu desejaria roubar - disse Carlos Magno.

- Péssima profissão - disse o anão -, sobretudo quando se dá o caso com pessoas que prometem e que não sustentam, também, atende-me, uma vez que tiveste a infelicidade de ter nascido homem honrado, permanece honrado.

- Eu te digo que quero roubar - disse Carlos Magno com um tom que provava que ele começava a se cansar das reflexões filosóficas do seu interlocutor.

- Ah! então - disse o anão -, se é uma vocação decidida, não há nada a dizer. Que queres roubar?

- Ah! É justamente o que não sei - disse Carlos Magno. - Porém quero roubar alguém, isto imediatamente, esta noite.

- Diabo! disse o anão. Pois está bem! Roubemos.

- Mas roubar quem? - perguntou Carlos Magno.

- Presta atenção - disse o anão, estendendo a mão. - Vês esta pobre cabana?

- Sim - disse o imperador.

- Pois bem! Trata-se de um bom golpe a dar. Não pobre como te pareça, ela contém hoje cem florins. Há perto de dez anos o camponês que a habita trabalha todos os dias desde às cinco horas da manhã até às oito da noite, de maneira que, à força de remover a terra, pôs de lado esta soma. A porta fecha mal, o homem tem sono pesado, tu vês que é fácil de roubar.

- Miserável! - gritou Carlos Magno. - Tu queres que eu vá tomar a um desgraçado o fruto de dez anos de trabalho, um dinheiro todo molhado com seu suor!

- Eu! - disse o anão - eu não quero nada; tu me pedes um conselho, eu to dou, eis tudo.

- Um outro, um outro! - gritou Carlos Magno.

- Vês aquela casa de campo? - disse o anão, estendendo o dedo em outra direção.

- Vejo-a - respondeu o imperador.

- É um comerciante rico. Não são florins que tu encontrarás em casa dele, são ducados, e não os contarás por centenas, mas por milheiros.

- E sem dúvida - disse Carlos Magno - foi praticando a usura e vendendo com pesos falsos que ele adquiriu semelhante fortuna.

- Não - disse o anão -, não, foi fazendo para ele, como para os outros, cálculos rigorosamente exatos, que sua probidade tornou-se proverbial, e, por acaso, para aquele a honestidade trouxe o que traz para outros a velhacaria.

- Como! Patife! - disse o imperador. - E é justamente um homem que faz fortuna de maneira tão honesta que queres que eu arruíne?

- Eu não quero nada - disse o anão. - És tu, ao contrário, que queres roubar. Eu te digo quais são aqueles que têm o dinheiro, eis tudo.

- Sim, sem dúvida, eu quero roubar - disse o imperador -, mas não o pobre trabalhador, não o comerciante industrioso, preferia roubar algum abade, engordado pelo repouso, enriquecido com o dízimo, que não tenha jamais feito nada senão dormir, comer e beber. Eis quem eu queria roubar, se tu queres saber.

- Peste! para um principiante - disse o anão -, não está mal raciocinado; mas, roubando tal homem, seria o mesmo que roubar os pobres, porque ele saberia bem se fazer pagar, no dia seguinte, pelo povo, o dobro do que tu lhe tivesses tomado.

- Pois bem; então - disse o imperador -, eu queria roubar qualquer um desses maus cavaleiros, que não vivem senão de pilhagens e ladroeiras, que traem aqueles que deveriam servir, e que oprimem os que deveriam defender.

- Ah! então é outra coisa, porque não te explicaste em seguida? - disse o anão. - Eu tenho o que te serve. Vês aquele castelo?

- Sim - disse Carlos Magno.

- Pois bem! É do sr. Harderic, o maior malfeitor que existiu sobre a terra, desde o rei Atila e o falso profeta Maomé.

- Tanto melhor - disse o imperador.

- Mas lá, a coisa não será fácil. Ele tem o sono leve e a mão pesada. Haverá golpes para receber.

- Tanto melhor, tanto melhor! - disse o imperador.

- Pois bem! Vai colocar outra couraça, uma couraça sombria como a noite na qual é preciso que deslizemos. Toma um punhal curto, em lugar dessa longa espada. A espada é uma arma do dia, para atingir de longe. À noite não se golpeia senão o que se toca. Têm-se os olhos na mão, e não é preciso que os olhos estejam muito longe da lâmina. Vai e volta, espero aqui, contando os ducados para ver se minha conta está certa.

0 imperador não esperou que lhe dissesse duas vezes, tornou a entrar em casa, e voltou logo, coberto com uma cota de malhas de aço brunido, que lhe tomava o corpo como um gibão e se lhe encaixava na cabeça como um capuz. Ele tinha mais, na cintura uma faca larga, curta e cortante, como o gladio romano. 0 anão o examinou dos pés à cabeça, e fez um sinal de aprovação.

- Então - disse Carlos Magno -, a caminho.

- A caminho - disse o anão.

E saíram os dois do palácio, e na estrada, a mais direta, isto é, atravessando as terras, avançaram para o castelo de Harderic.

Caminhando, Carlos Magno encontrou um marco, que servia para delimitar um campo, arrancou-o da terra e colocou ao ombro.

- Que diabo fazes tu? - disse o anão.

- Acreditas que encontraremos a porta aberta? - perguntou o imperador.

- Não - respondeu o anão.

- Pois então! Eu levo com que arrombá-la.

0 anão desatou a rir.

- Isto - disse ele -, e à primeira pancada que bateres, a guarnição inteira estará de pé, e então que encontrarás tu para apanhar? Algum frango assustado, que terá escapado para os fossos. Eu te acreditava mais forte, mestre!

- 0 que é preciso então fazer? - perguntou Carlos Magno, meio confuso com a sua inexperiência.

- Isto me concerne - disse o anão.

Carlos Magno deixou-o tomar seu marco e continuou o caminho sem dizer uma única palavra.

Chegando à porta, como tinha pensado Carlos Magno, encontraram-na fechada. Então ele olhou para seu anão, como para lhe perguntar o que era preciso fazer, o anão lhe fez sinal para se manter o mais perto da porta que lhe fosse possível; e, lançando-se sobre uma figueira que crescia nos fossos, e da figueira agarrando-se à muralha, ele subiu, enfiou sucessivamente as mãos e os pés nos intervalos das pedras, até as seteiras, e desapareceu. Um instante depois, Carlos Magno ouviu uma chave ranger na fechadura: a porta se moveu pesadamente, mas sem ruído, depois permaneceu entreaberta justamente o necessário para deixar passar um homem. Carlos Magno passou, o anão fechou a porta com as mesmas precauções que tinha tomado para abri-la, e os dois ladrões se acharam dentro do pátio do castelo.

- Eis aqui vosso caminho - disse o anão, mostrando a Carlos Magno a escada que conduzia aos aposentos do castelo , e eis o meu - continuou, mostrando a cavalariça.

- Por que não vens comigo? - perguntou Carlos Magno.

- Porque eu também tenho meu golpe para dar - disse o anão.

E, pondo-se a correr de quatro patas como um cão, a fim de não ser reconhecido por nenhuma criatura humana, no caso de ser visto, ele atravessou o pátio e entrou na baia.

Essa confiança do anão excitou o amor-próprio de Carlos Magno; ele subiu a escada o mais suavemente que pode, entrou nos aposentos e, graças a um raio de luar que apareceu no céu justamente nesse momento, ele chegou até o quarto situado antes daquele em que Harderic dormia com sua mulher. Chegando lá, estendeu a mão para ver se não encontraria nada que pegar, e sua mão caiu sobre um cofre rodeado de ferro, que lhe pareceu dever conter dinheiro ou joias. Nesse momento o cavalo do castelão relinchou tão violentamente, que Carlos Magno estremeceu.

- Ei - disse Harderic, despertando, sobressaltado. - Que se passa em minha cavalariça?

- Nada - respondeu sua mulher -, é o teu cavalo que relincha.

- Meu cavalo não tem o costume de relinchar assim - disse Harderic -, é preciso que alguém que ele não conheça tente desatá-lo.

- E quem pensas que quer soltar teu cavalo?

- Quem? Por Deus! Um ladrão!

E, a essas palavras, Carlos Magno escutou Harderic descer do leito e tomar a espada. Então ele se afastou e, graças ao raio de luar, viu-o passar. Carlos Magno permaneceu num canto, amaldiçoando o anão, e mantendo, em todo caso, a mão sobre a guarda da espada. Ao fim de um instante, o castelão voltou.

- E então? - disse-lhe a mulher. - Que havia na cavalariça?

- Não havia nada - respondeu Harderic -, mas há três ou quatro noites que não consigo dormir.

- E tu não podes dormir porque meditas, sem dúvida, alguma coisa.

- É verdade disse o castelão.

- E que meditas tu?

- Posso te dizer agora - respondeu Harderic - porque o tempo em que nosso projeto deve se realizar está quase chegando; amanhã eu e onze outros condes, barões e senhores, devemos matar o rei Carlos, que nos impede de ser os donos de nossos domínios; estamos cansados de suportar isso, e não o queremos mais sofrer.

- Ah! Ah! Ah! - fez baixinho Carlos Magno.

- Oh! meu Deus, meu Deus! - disse a castelã, desolada. - E se vosso conluio malogra, vós estais perdidos.

- Impossível - disse o castelão -, estamos ligados entre nós por juramentos os mais terríveis; amanhã, convocados para a assembleia, como todos os outros, nós entramos no palácio, sem despertar nenhuma suspeita; estaremos bem armados, e ele não estará, cercaremos seu trono, bater-lhe-emos e ele cairá.

- E quais são os conjurados?

- É o que não posso dizer, mesmo a ti; mas seu compromisso assinado com seu sangue está aqui no quarto ao lado, fechado no cofre que se acha sobre a mesa.

Carlos Magno alongou a mão, o cofre estava bem ali onde havia indicado Harderic.

- Está bem - disse a castelã. - Deus ajude que tudo isto corra bem.

- Amém! disse o castelão.

E ele voltou a dormir: durante algum tempo ainda, ouviram-se os suspiros da castelã, mas bem depressa sua respiração doce e igual se misturou aos roncos do esposo; os dois tinham retomado o sono interrompido.

Então Carlos Magno apanhou o cofre, pô-lo embaixo do braço, atravessou os aposentos, desceu a escada e chegou ao pátio. Viu lá seu anão que se debatia sobre o cavalo de guerra do castelão, o qual relinchava e escavava o solo, como se julgasse indigno dele obedecer a um tão miserável escudeiro. Mas então o bom imperador se atirou sobre ele, e mal o cavalo sentiu o peso de um homem, e compreendeu com que cavaleiro exercitado tinha que se haver, tornou-se doce como um cordeiro. Então Carlos Magno pegou o anão pela gola de sua roupa, pô-lo na garupa e partiu num grande galope.

Chegando ao castelo, Carlos Magno abriu o cofre que tinha roubado, e aí encontrou o compromisso dos doze conjurados, assinado com sangue. Então fez despertar sua gente e ordenou que num dos pátios do palácio se construíssem onze forcas de proporções ordinárias e uma décima segunda mais alta que as outras, e no alto de cada um dos doze patíbulos fez gravar numa tabuleta o nome de um dos doze conjurados, e sobre a forca mais alta o nome de seu chefe Harderic.

Depois, como tinha duas entradas no palácio, ordenou que se recebessem todos os outros barões convocados por uma porta e em um outro pátio, e que não recebessem senão os conspiradores pela porta e no pátio das forcas.

E aconteceu assim como Carlos Magno tinha ordenado, tão bem, que, quando viu todos os barões reunidos, relatou-lhes a conspiração tramada contra ele, mostrou-lhes o compromisso assinado com o sangue dos doze conjurados, e lhes perguntou que pena tinham merecido: e todos os barões, a uma só voz, disseram que tinham merecido a morte.

Então Carlos Magno fez abrir as janelas que davam para o segundo pátio, e os barões viram os doze conspiradores pendurados nas doze forcas.

E, em memória da aparição celestial, à qual ele devia a vida, denominou o palácio onde isto aconteceu "Ingelheim" ou a Casa do Anjo.

Alexandre Dumas (1802 – 1870)

Seu verdadeiro nome era Alexandre David de La Pailleterie. Nasceu em Villers-Cauteret (Aisne), França, em 24 de julho de 1802.

Seu pai, que se chamava como ele e adotou o nome suposto de Alexandre Dumas para sentar praça, aos quatorze anos, no regimento de dragões da rainha, nasceu em Haiti, era fruto da união do marquês de La Pailleterie com uma negra escrava, e chegou a ser um dos mais brilhantes e valorosos generais de Napoleão I.

Quando o futuro romancista tinha apenas quatro anos de idade, morreu seu pai. A viúva não contava com outros recursos além da exígua pensão que lhe consignara o Estado, e não pode tirar seu filho da pequena cidade em que residiam, para lhe dar uma instrução mais de acordo com seu precoce talento.

Sendo ainda um rapazola, empregou-se como escrevente de um notário de sua vila, e em 1823, ansioso por mudar de rumo, mudou-se a Paris munido de cartas de apresentação para os antigos companheiros de armas de seu pai, em sua maioria afetos aos Bourbons, e somente obteve cordial acolhida do general Fay, que, admirado do belo tipo de letra do jovem Dumas, conseguiu para ele um modesto emprego na secretaria do duque Orléans, que lhe permitiu, poder entregar-se ao estudo da história de França, que sobremodo o atraia.

Aproveitando horas de descanso, de noite estudava também idiomas, fisiologia, química, física, e lia sofregamente os clássicos franceses.

Segundo ele mesmo conta em suas "Memórias", tendo assistido a uma representação de "Hamlet", experimentou, tal entusiasmo, tal ânsia de impulsionar a glória dos grandes poetas dramáticos, que resolveu seu destino ali mesmo. Escreveria para o teatro.

Depois de assistir àquela representação shakespeariana, resolveu deixar Villers-Cauteret e ir experimentar a sorte em Paris.

A 22 de setembro cie 1825 estreava-se a sua primeira obra no velho teatro de "L'Ambigu", o vaudeville "La chasse et l'amour". No ano seguinte lançou seu primeiro volume em prosa: "Nouvelles contemporaines" e estreou outro Vaudeville: "L'enterrement", com o pseudônimo de "Davy", como a peça anterior, e que como o anterior também obteve escasso êxito.

Em 1829 obteve seu primeiro triunfo de dramaturgo, com "Henri III et sa cour", cuja estreia assistiu o próprio duque de Orleans, que o promoveu, nomeando-o bibliotecário. A obra tornou-se de repertório e obteve um número apreciável de representações consecutivas.

No seguinte ano estreou a trilogia em cinco atos: "Stockolmo, Fontainebleau et Rome", cujo êxito não foi inferior a "Henri III", e o drama em verso "Christine".

Abandonou, em seguida, seu emprego para se dedicar à literatura e, ao estalar a revolução de julho de 1830, tomou parte ativa nela, às ordens de Lafayette, primeiramente, em Paris, e depois marchou para Soissons e Vendée, assegurando o triunfo do partido vencedor. Ao seu regresso foi nomeado capitão de artilharia da guarda nacional, mas não conseguiu por parte do rei Luiz Filipe maior apreciação de seus esforços em prol da casa de Orleans. Um de seus contemporâneos escreveu que Alexandre Dumas, para se vingar do seu fracasso político, em oito dias apenas escreveu seu drama "Napoléon Bonaparte" (1831).

Inspirado por sua violenta paixão por Melania Waldor, escreveu um dos seus melhores e mais célebres dramas: "Anthony", que alcançou 130 representações consecutivas, cifra insólita naquele tempo (1831).

Seguiram-se: "Charles VII" (1831); "Richard Darlington" (1831);'"Thérèse" (1832); "Le mari de la veuve"; "La tour de Nesle" (1832); "Angelo" (1833); "Catherine Howard" (1834); Don Juan de Mañara" (1836); "Keau" (1836); "Piquillo" (1837); "Calígula" (1837); "Paul Jones" (1837); "Mademoiselle de Belle Isle" (1839); "L'alchimiste" (1839); "Un mariage sous Louis XV" (1841) ; "Lorenzazio" (1842) ; "Halifax" (1842); ; "Les demoiselles de Saint-Cyr" (1843); "Louise Bernard;" (1843); "Le gard forestier (1845); escritos os mais destes dramas e comédias de parceria com diversos colaboradores.

Tendo sofrido um ataque de cólera, ficou em 1832 recuperando sua saúde e, por conselho médico, teve de mudar de ares, viajando então pela Borgonha e Suíça. Continuando suas viagens até 1858, visitou Espanha, Itália, Alemanha, Rússia, Argélia, Egito e Tunísia, que lhe serviram para escrever suas famosas "Impressões de Viagem", que tanto contribuíram para sua popularidade, e que se acham reunidas em quinze volumes.

A paixão que, a princípio, sentira pelo teatro, chegou mais tarde a consagrá-la ao romance, no qual chegou a ser o "rei dos folhetinistas", segundo a conhecida frase de Delarme.

Suas obras completas atingem a cifra assombrosa de 285 volumes, isto sem incluir as produções teatrais que, agrupadas em separado, formam outros 15 volumes...

Certamente que nem tudo por ele firmado foi por Alexandre Dumas escrito, pois seus colaboradores não foram poucos, entre eles, o mais destacado, Augusto Maquet, mas sempre ficaram relegados e no anonimato.

Seus romances mais célebres e conhecidos são: "Acté" (1839); "Maitre Adam le Calabrais" (1840); "Os Três Mosqueteiros" (1844); "Conde de Monte-Cristo" (1844); "A Rainha Margot" (1845); "La Dame de Monsoreau" (1846); "Vingt ans après" (1845); "Le Vicomte de Bragelona" (1848); "Os Quarenta e Cinco" (1848); "'Le chevalier d'Harmental" (1849); "Le chevalier de Maison-Rouge" (1846); "Mémoires d'un médecin" (Joseph Balsamo, 1848); "Angel Pitou" (1853); "La comtesse de Charny" (1855); "Les mohicans de Paris" (1858}, etc...

Acerca de sua fecundidade literária o próprio Dumas escreveu, em 1848: "Durante vinte anos trabalhei dez horas por dia, o que representa um total de setenta e três mil horas. Durante estes vinte anos escrevi quatrocentos tomos de novelas e trinta e cinco dramas. Cada um destes tomos, em edições de quatro mil exemplares, vendidos a 5 francos, dão 8.000.000 de francos; os trinta e cinco dramas, representados em média 100 vezes cada um, deram 6.300.000 francos".

Em plena guerra franco-prussiana, longe de Paris, em Puys (Dieppe), morreu a 5 de dezembro de 1870.

Fonte: Wkipedia