domingo, 29 de novembro de 2015

A. A. de Assis (Revista Virtual de Trovas Trovia - n. 188 - dezembro de 2015)






Fiz trovas para vencer,
mas já me dei por vencido.
Ganhar... é saber perder,
sem merecer ter perdido!
Ademar Macedo – RN
-
Xepeiro de olhos tristonhos,
à noite, exausto e sozinho,
cato no chão dos meus sonhos
a xepa do teu carinho.
Antônio Roberto Fernandes
-
Neste mundo desumano,
em que brinquei de sonhar,
fui simples bola de pano
para o destino chutar!...
Célio Grünevald
-
Natal... repicam os sinos...
banha-se o mundo de luz...
Há nos lábios dos meninos
o sorriso de Jesus!
Colbert Rangel Coelho
-
Creio, pensando em Jesus
e em São Francisco também,
que existe um arco de luz
ligando Assis a Belém!
David de Araújo
-
Bendita a mãe que gerou
e traz seu tesouro ao seio.
– Mais sublime a que aceitou
ser mãe do tesouro alheio!
Iraci do Nascimento e Silva
-
Se te trato com rudeza,
com acrimônia, azedume,
é que Deus te deu beleza
e depois me deu ciúme!
João Felício dos Santos
-
Dirceu, no fim da existência,
no exílio pensa e tem dó:
– Que valeu a Inconfidência,
se Marília ficou só?...
José C. de Lery Guimarães
-
Bondade!... Bem pouca gente
quer imitar as raízes,
que lutam, secretamente,
fazendo as rosas felizes!
Luiz Otávio
-
Não tenho calma!... Não posso
esquecer tão de repente
o grande amor que foi nosso
e hoje em dia é meu somente...
Nydia Iaggi Martins
-
Passou... bonita de fato!
E o mar, ao vê-la tão bela,
sentiu não ser um regato
para correr atrás dela...
Orlando Brito

-
Fugindo pela janela,
o “dom juan” quis “dar no pé”.
– Um fantasma!, gritou ela.
E o marido: – Agora é!
Angélica Villela Santos
-
Foi fofoqueira a danada,
até que enfim se curou...
– Agora é muda, coitada,
a língua dela gastou!...
Clenir Neves Ribeiro – RJ
-
Foi um Tarzan bem dotado
e, hoje, velho, causa dó:
vive na rede deitado
e já nem usa o cipó!
Edmar Japiassú Maia – RJ
-
O terapeuta sugere:
– “Apimente” a relação!
Mas a mulher interfere:
– “Tô” fora!... Pimenta, não!
Lucília Decarli – PR
-
Quando, dengosa, tu piscas
os teus olhinhos assim,
não precisas de outras iscas,
esse anzol cuida de mim...
Nélio Bessant – SP
-
Vermelho igual ao tomate,
meu coração é um bife:
quanto mais alguém lhe bate,
mais amolece o patife.
Orlando Woczikosky – PR
-
Mostra o sábio o que destaca
do burro a paca, e sussurra:
– é que o burro sempre empaca,
e a paca jamais emburra...
Osvaldo Reis – PR
-
Com a bagunça rolando,
sem ter mais o que falar,
chilique, de vez em quando,
bota tudo no lugar!
Selma Patti Spinelli – SP
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 -
Benditas sejam as vidas
que, alegres, serenas, santas,
vivem a vida envolvidas
em levar vida a outras tantas!
A. A. de Assis – PR
-
Saudade volta, gritando,
quando tu, amor, te vais;
saudade fica morando,
e não se vai nunca mais.
Adélia Woellner – PR
-
Teu lascivo corpo é a pista
onde eu ganho, com ardor,
o prêmio de recordista
na maratona do amor!
Aílto Rodrigues – RJ
-
Eu vou plantar um jardim,
mas não em lugar qualquer;
vou plantar dentro de mim
e atrair minha mulher.
Amilton Monteiro – SP
-
Fez-se em verso o meu amor
e virou trova o meu verso,
que tem muito mais sabor
se em sua doçura é imerso.
André Ricardo Rogério – PR
-
Vejo uma luz lá no céu,
por certo é teu paraíso!...
– Minha vida foi-se ao léu,
foi-se também sorriso.
Ari Santos de Campos – SC
-
Ela é esplêndido presente,
eu já estou no fim do prazo...
Mas que bom quando o nascente
faz bilu-bilu no ocaso!...
Arnaldo Ari – RJ
-
Transformando em agasalho,
a ternura que te invade,
sou quase nada e não valho
do teu terço nem  metade.
Benedita Azevedo – RJ
-
Quando a saudade me embala,
o teu nome a repetir,
o silêncio tanto fala,
que não me deixa dormir!
Carolina Ramos – SP
-
Ter sempre a palavra certa
e a mão em paz estender;
ter a mente sempre aberta:
isso se chama viver!
Conceição Assis – MG
-
Frondosa árvore, bendita,
que antepassados plantaram.
Árvore alegre, bonita,
de ti saudades ficaram!
Cônego Benedito Telles – PR
-
Era un niño silencioso...
Con la mirada me amaba,
y con un beso amoroso
¡sin tocarme me besaba!
Cristina O. Chávez – USA
-
Passa o dia, morre a tarde
nos braços da solidão...
Finda o sonho sem alarde
nas cordas do violão!
Dáguima Verônica – MG
-
Olhei a foto atrevida
de uma cena de nós dois:
Era o retrato da vida,
tão diferente depois!
Delcy Canalles – RS
-
Não sou ave, nem sou peixe,
nunca aprendi a nadar,
mas peço a Deus que me deixe
um dia desses voar!
Diamantino Ferreira – RJ
-
Agora, que tu partiste,
sinto a força da verdade
do grito de dor que existe
no silêncio da saudade.
Domitilla Borges Beltrame – SP.
-
Sou livre, sem restrição,
mas, afinal, para quê?
Mil vezes a escravidão...
mas juntinho de você.
Dorothy Jansson Moretti – SP
-
Presença no firmamento
em noite clara, estrelada:
– É o amor de Deus que, atento,
nos guarda na madrugada.
Eliana Jimenez – SC
-
É no conflito da briga
que notamos como agem:
os falsos, com fel e intriga;
os bons, com brio e coragem.
Eliana Palma – PR
-
A bela flor de papel
que tu me deste outro dia
foi tão perfeita e fiel
que o cheiro dela... eu sentia!
Eva Yanni Garcia – RN
-
Deus, garimpeiro maior,
vai, no seu mister profundo,
salvando o bom e o melhor
que há nos garimpos do mundo.
Flávio Stefani
-
Revendo entulhos e tacos,
na tapera dos meus sonhos,
chorei por ver tantos cacos
dos meus dias mais risonhos!
Francisco Garcia – RN
-
Lágrimas, gotas perfeitas,
De orvalho por sobre a flor,
São saudades liquefeitas
Nos versos do trovador!
Francisco Pessoa – CE
-
Mesmo que a tantos iluda
com diversas abordagens,
história de amor não muda,
mudam só os personagens.
Gilvan Carneiro da Silva – RJ
-
Um mundo melhor... queria,
para deixar aos meus netos,
onde imperasse a alegria
numa transfusão de afetos!
Gislaine Canales – SC
-
Andei buscando a poesia
por este mundo sem fim,
sem saber que essa vadia
morava dentro de mim.
Humberto Del Maestro – ES
-
Acredito na vitória
de quem somente o bem faz.
O mal nunca leva à glória
e sempre destrói a paz.
Jaqueline Machado – RS
-
Quem sabe muito concebe
que o saber é uma armadilha
que seduz quem não percebe
que dele a vaidade é filha.
J. B. Xavier – SP
-

Feliz de quem vida afora
deixa marcas de bondade.
– O bem que se planta agora
dá frutos na eternidade!
Jorge Fregadolli – PR
-
Vou expor verdade franca,
peça a Deus para entendê-la:
quem da terra a flor arranca
no céu, ofende uma estrela.
Josafá Sobreira – RJ
-
Tanta gente em si perdida,
entre sombras se escondendo.
Cada dia é outra vida
que em disfarces vai morrendo...
José Feldman – PR
-
O mal que você me faz,
quando me torna infeliz,
sempre à lembrança me traz
algum bem que já lhe fiz.
José Fabiano – MG
-
Decerto não terás provas
de amor mais puro e maior:
o meu caderno de trovas
sabe teu nome de cor.
José Lira – PE
-
A saudade é passarinho
que voa pela amplidão,
mas só sabe fazer ninho
na concha do coração.
José Lucas de Barros – RN
-
No aeroporto, o adeus, o abraço... 
e no olhar... rastros de dor!
– Lá se foi, rasgando o espaço,
uma promessa de amor!...
José Messias Braz – MG
-
Naquela roda-gigante
fingi medo e te abracei.
O parque ficou distante,
mas o abraço eu conservei...
José Ouverney – SP
-
Discórdias, sonhos frustrados,
e as mágoas não resolvidas
são os nós não desatados
das cordas das nossas vidas...
José Valdez – SP
-
O perdão que concedemos
a cada irmão ofensor,
é treva que revertemos
em luz... em paz... em amor!
Luiz Antonio Cardoso – SP
-
Não foi perto, nem distante:
o nosso amor, ideal,
nasceu da luz de um instante
e se tornou imortal!
Luiz Carlos Abritta – MG
-
Os peixes vão se tornando
artefatos de ficção,
uns até se transformando
em bichos de estimação.
Luiz Damo – RS
-
Quisera que o mundo visse
meu ar de felicidade
assim que você me disse:
“Namoro” – e não: “Amizade”.
Luiz Hélio Friedrich – PR
-
A cada passo imprudente,
mais um desejo se solta;
a estrada diz: - segue em frente;
o coração pede: - volta!
Luiz Poeta – RJ
-
A vida se poetiza
e ganha realce e brilho
cada vez que se eterniza
no nascimento de um filho.
Luzia Brisolla Fuim – SP
-
A Virgem Mãe embalou
o Jesus de Nazaré,
que à dor, na cruz, se entregou,
vestindo o mundo de fé!
Mª da Conceição Fagundes – PR
-
Os teus olhos me conduzem
a uma alegria sem fim,
e neste mundo traduzem
o amor que trazes a mim!
Mª Luiza Walendowsky – SC
-
Quem não faz, risco não corre.
Erro... engano... quem não falha?
Só pode errar quem socorre,
age, executa, trabalha!
Mª Thereza Cavalheiro – SP
-
Ressequidas e revoltas,
rolando sem direção,
lembranças são folhas soltas
no outono do coração.
Marina Valente – SP
-
Na imensidão do meu sonho,
canto, rio, sou feliz...
E estes versos que componho
são o que minha alma diz.
Maurício Friedrich – PR
-
Para viver sigo rastro
dos que acreditam e entendem
que a honestidade é o lastro
dos homens que não se vendem...
Messias da Rocha – MG
-
Xeroquei a sua imagem
e guardei na minha mente;
sempre na minha abordagem
é você que está presente.
Neiva Fernandes – RJ
-
Renúncia maior não há
que a da mãe que empunha a enxada,
e o que pode... aos filhos dá:
seus sonhos, seu chão, seu nada!
Olga Agulhon – PR
-
Prefiro ficar no sonho
a embarcar na realidade;
lá, meu mundo é mais risonho,
mais seguro e sem maldade!
Renato Alves – RJ
-
Este amor que é só miragem
dos desertos da ilusão,
é um aceno da paisagem,
do oásis que busco em vão.
Rita Mourão – SP
-
O vento, por peraltice,
leva folhas peço espaço.
Que bom se um dia o sentisse
levando as preces que faço!
Ruth Farah – RJ
-
Neste Natal, Deus-menino,
te peço com devoção:
acalma o meu desatino
e alegra o meu coração!
Talita Batista – RJ
-
Numa pétala orvalhada,
uma gota luminosa
é um beijo que a madrugada
deixou na face da rosa.
Thalma Tavares – SP
-
O homem devasta o que resta,
em sua ambição suicida,
e ao destruir a floresta
mata o que resta da vida.
Therezinha Brisolla – SP
-
O nosso amor em tormenta
nos pede tempo a pensar...
Mas nem mesmo em marcha lenta
ele consegue engrenar.
Vanda Alves – PR
-
Revezam-se em nossas rotas
sombra e luz, contras e prós,
e as vitórias e derrotas
começam dentro de nós...
Vanda Fagundes Queiroz – PR
-
No perfume da verbena
do entendimento e da paz,
o mundo se miscigena –
é um mundo-irmão que se faz.
Wagner Marques Lopes – MG
-
Sou navegante do rio
que tem por fonte a paixão
e deságua, sem desvio,
na foz do teu coração!
Wanda Mourthé – MG

Isabel Furini



Isabel Furini, de nacionalidade argentina, radicada em Curitiba/PR, educadora e escritora, escreve poemas desde criança, já foi premiada em alguns concursos. 
Orienta oficinas literárias desde 1999, dessas oficinas surgiram vários livros, o mais recente é "Escrevendo crônicas - Dicas e Truques", da Editora Instituto Memória. No livro foram inseridos textos de alguns alunos, além de crônicas de profissionais da área jornalística. 
Publicou vários livros, entre eles a Coleção "A Corujinha e os Filósofos" da Editora Bolsa Nacional do Livro; Quero ser escritor – Livro 1: Crônicas; Os Corvos de Van Gogh (poemas); Passageiros do espelho (contos de diversos autores), organizadora.  Em 2007 redigiu a obra SENAC PARANÁ, 60 ANOS.

sábado, 28 de novembro de 2015

Contos Populares do Tibete (A Criação)

No princípio era a Vacuidade¹, um imenso vazio sem causa e sem fim. Deste grande vazio, levantaram-se suaves redemoinhos de ar, que, depois de incontáveis eons, tornaram-se mais densos e pesados, e formaram o poderoso cetro duplo do raio — o Dorje Gyatram².

O Dorje Gyatram criou as nuvens; estas, por sua vez, criaram a chuva. A chuva caiu durante muitos anos, até formar o oceano primogênio, o Gyatso.3 Depois, tudo ficou calmo, tranqüilo e silencioso, e o oceano ficou límpido como um espelho.

Pouco a pouco, os ventos voltaram a soprar, agitando suavemente as águas do oceano, batendo-as continuamente, até que uma leve espuma apareceu na sua superfície. Assim como se bate a nata para fazer manteiga do mesmo modo as águas do Gyatso foram batidas pelo movimento rítmico dos ventos para transformá-las em terra.

A terra emergiu como uma montanha, e ao redor de seus picos o vento sussurrava incansável, formando uma nuvem atrás da outra. Das nuvens caiu mais chuva, mas, desta vez, mais forte ainda e carregada de sal; daí se originaram os grandes oceanos do universo.

O centro do universo é o Rirap Lhunpo (Sumeru),4 a grande montanha de quatro caras, feita de pedras preciosas e cheia de coisas maravilhosas. Existe rios e arroios no Rirap Lhunpo, e muitas espécies de árvores, frutos e plantas, pois o Rirap Lhunpo é especial: é a morada dos deuses e dos semi-deuses.

Rodeando o Rirap Lhunpo, há um grande lago, e, em volta deste, um círculo de montanhas de ouro. Depois do círculo de montanhas de ouro, existe outro lago, também cercado de montanhas de ouro, e, assim, sucessivamente, até se completarem lagos e sete círculos de montanhas de ouro.5 E, mais além do último círculo de montanhas, está o lago Chi Cyatso.

No Chi Cyatso se encontram os quatro mundos, cada um deles semelhante a uma ilha, com sua forma particular e seus diferentes habitantes.

O mundo do Este é o Lu Phak, que tem a forma de meia-lua. As pessoas do Lu Phak vivem quinhentos anos e são pacíficas; não há contendas no Lu Phak. Seus habitantes têm corpos gigantescos e caras em forma de meia-lua. Entretanto, não são tão felizes como nós, pois não têm nenhuma religião para poder seguir.

O mundo do Oeste se chama Balang Cho e sua forma é a do sol. As pessoas do Balang Cho são, como as do Lu Phak, de grande estatura e vivem quinhentos anos. Suas caras têm também a forma do sol. Dedicam-se à criação de diversas espécies de gado.

A terra do Norte tem a forma quadrada e se chama Dra Mi Nyen. As pessoas de Dra Mi Nyen são de caras quadradas e vivem mil anos ou mais. Em Dra Mi Nyen, a comida e a riqueza são abundantes. Tudo o que um homem necessita nos seus mil anos de vida é obtido sem esforço ou padecimento. Vivem com luxo, sem precisar de nada. Mas, durante os sete últimos dias de sua vida, a dor e o tormento anímicos acometem os seres de Dra Mi Nyen; e é, então, que recebeu um sinal de que estão para morrer. Visita-os uma voz — uma voz terrível — que lhes sussurra como vão morrer e que monstruosos sofrimentos terão de suportar nos infernos, depois da morte. Em seus últimos sete dias de vida, todas as suas riquezas e posses diminuem, e eles experimentam um sofrimento maior do que o nosso numa vida inteira. Dra Mi Nyen é conhecida como a "Terra da Voz Pavorosa".

O nosso próprio mundo fica ao sul e se chama Dzambu Ling.6 No começo, ele foi habitado por deuses de Rirap Lhunpo. Não havia dor nem enfermidades, e os deuses nunca necessitavam de comida. Viviam a contento, passando seus dias em profunda meditação. Não havia necessidade de luz em Dzambu Ling, pois os deuses emitiam uma luz pura de seus próprios corpos.

Certo dia, porém, um dos deuses reparou que na superfície da terra havia uma substância cremosa; provando-a, sentiu que era deliciosa ao paladar; por isso, animou os outros deuses a que a experimentassem também. Todos os deuses gostaram tanto da substância cremosa, que não quiseram mais saber de comer outra coisa. Sucedeu, porém, que quanto mais comiam, mais se reduziam os seus poderes. E já não foram mais capazes de permanecer sentados em profunda meditação. A luz, que antes brotava resplandecente de seus corpos, começou, a pouco, a se extinguir, até que, por fim, desapareceu por completo. O mundo ficou submerso em trevas e os grandes deuses do Rirap Lhunpo se converteram em seres humanos.

Foi, então, que, na escuridão da noite, apareceu, no céu, o sol. E, quando o sol se apagava, a lua e as estrelas iluminavam o céu e davam luz ao mundo. O sol, a lua e as estrelas surgiram devido às boas ações passadas dos deuses, e são, para nós, a lembrança permanente de que o nosso mundo foi, um dia, um lugar lindo e tranqüilo, sem cobiças, sofrimentos e dor.

Quando o povo de Dzambu Ling esgotou a provisão da substância cremosa, começou a comer os frutos da planta nyugu. Cada um tinha a sua própria planta, que produzia um fruto semelhante ao das messes. E todo dia, quando o fruto já havia sido comido, aparecia outro — um por dia — e isto bastava para satisfazer a fome dos seres de Dzambu Ling.

Certa manhã, um homem despertou e descobriu que a sua planta, em vez de produzir um único fruto, havia dado dois. Tomado de avidez, o homem comeu os dois frutos. No dia seguinte, porém, a sua planta estava vazia. Necessitando satisfazer a fome, o homem roubou o fruto da planta de outro homem; e assim foram fazendo todos, pois um teve que roubar o outro para poder comer. Com o roubo, chegou a cobiça, e todos, temendo não ter o que comer, começaram a cultivar mais e mais plantas nyugu. Com isso, tiveram de trabalhar cada vez mais, a fim de se assegurarem de que haveria o suficiente para comer.

Coisas estranhas começaram a ocorrer em Dzambu Ling. O que antes havia sido uma tranqüila morada de deuses do Rirap Lhunpo, estava agora cheio de homens que conheciam o roubo e a cobiça. Um dia houve em que um homem começou a sentir certo mal-estar nos órgãos genitais e, por isso, os cortou: converteu-se, assim, numa mulher. Essa mulher manteve contato com homens e logo teve filhos, os quais, por sua vez tiveram mais filhos. Em pouco tempo, Dzambu se encheu de gente, e essa gente teve que se procurar comida e um lugar para viver.

Juntas, as pessoas de Dzambu Ling não conseguiam viver em paz. Havia brigas e roubos, e os homens do nosso mundo começaram e experimentar um sofrimento autêntico profundo, que nascia do estado de insatisfação em que se encontravam. O povo percebeu que, para sobreviver, tinha que se organizar. Todos se reuniram e decidiram eleger um chefe, a quem chamaram de Mang Kur — que significa "muita gente o tornou rei". Mang Kur ensinou o povo a viver numa relativa harmonia, com uma terra própria onde construir uma casa e cultivar alimentos.

E assim foi como o nosso mundo veio a existir: como, de deuses, nos convertemos em seres humanos, sujeitos à enfermidade, à velhice e à morte.7 Quando contemplamos o céu, de noite, ou recebemos o cálido brilho do sol, deveríamos recordar que, se não fossem as boas ações dos deuses da preciosa montanha de Rirap Lhunpo, viveríamos numa total escuridão; e, se não fosse a cobiça de uma pessoa, nosso mundo não conheceria o sofrimento que hoje experimenta.
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Notas

1. Sünyatâ, em sânscrito, e stong-pa-nyd, em tibetano. Noção capita! da doutrina budista, que concebe o Princípio supremo, a Realidade última, não de modo objetivo, a partir de seus reflexos na manifestação (porque estes reflexos incluem também, embora por desvio, o nosso pensamento e o nosso ego, que são precisamente os escolhos a serem transpostos); mas, de modo subjetivo, a partir da experiência dessa Realidade no interior de nós mesmos. Assim, a Realidade última se identifica com esse mistério de infinitude que se descobre no íntimo das coisas, com esse mar de bem-aventurança onde a sede (trhnâ) de existir se aplaca definitivamente; e que, ao permitir a saída da falsa plenitude da existência, se mostra como um "vazio" (sânya). Partindo do ensinamento inicial da não-permanência das coisas, e de sua ausência de realidade própria (anâtman; páli, anattâ), chegou-se, na metafísica do Mahâyâna, a este postulado essencial da "Vacuidade", como fundamento de tudo o que existe, postulado que constitui um dos dois pólos desta forma de budismo, sendo o outro o da compaixão (karunâ) do bodhisattva em relação a todos os seres.
Esta doutrina foi formalizada por Nâgârjuna, no século II, e constitui o sistema chamado "Do caminho médio" (Mâdhyamika), ou, também, Sünyavâda, em virtude do seu princípio básico.

2. O vajra duplo (visva-vajra, também chamado karma-vajra) é, como a svastika, um símbolo da ação do Princípio com respeito ao mundo manifesto. Está formado pela união de dois vajra-s dispostos em cruz.

No budismo mahâyâna, que, de acordo com a sua perspectiva, "inverte", poderíamos dizer, a orientação, o vajra duplo é o emblema do Dhyâni Buddha Amoghasiddhi; este expressa a plenitude e a realização completa do caminho do bodhisativa, e é, igualmente, o Senhor do elemento "ar" ou "vento" (vâyu), o qual não é senão o "spiritus" que "adejava sobre a superfície das águas" no Gênesis.

3. Poderíamos assinalar, a título de informação, que esta palavra tibetana Gyatso (rGya-mtsho), que significa grande oceano, serve de apelativo para o que, no Ocidente, é conhecido como Dalai Lama, pois "Dalai" não é senão uma forma inglesada do mongol "tale", que significa a mesma coisa. Assim, pois, o nome do atual Dalai Lama é, em tibetano, Tenzin Gyatso (Bstan-dzin-rgymtsho).

4. É o monte Mêru da tradição hindu, a montanha "polar", o eixo do mundo, o ponto fixo ao redor do qual se efetua a rotação do mundo. Como centro do mundo, corresponde ao Paraíso terrestre do atual ciclo da humanidade (Manyantara).

Identifica-se com o monte Kailas (Kailâsa), em tibetano Gang Tisé, situado no Tibete ocidental e centro de peregrinações, tanto para os hindus como para os budistas.

5. São igualmente os sete dyípas da tradição hindu, que emergem sucessivamente no transcurso de determinados períodos cíclicos, tendo todos por centro o monte Mêru.

6. O Jambu dyípa da tradição hindu. Identificado popularmente com a índia, por estar esta, geograficamente, justo ao sul do monte Kailas, corresponde, na verdade, ao nosso mundo terreno, em seu conjunto e em seu estado atual.

7. É praticamente a mesma explicação das origens do homem e da sua queda que oferece um texto budista páli — o Agganna-Sutta —, cuja síntese, de Frithjof Schuon (lmages de VEsprit, Paris, 1982, pp. 102-103. n. 48), consideramos interessante citar: "A materializaçao progressiva do homem e do seu contorno se deve ao fato de que os homens primordiais e "pré-materiais" — que brilhavam como astros com luz própria, moviam-se nos ares e alimentavam-se de Beatitude — se puseram a comer a terra, quando a superfície terrestre emergiu das águas. Esta terra primordial era colorida, perfumada e doce, mas os homens, alimentando-se dela, perderam sua irradiação; foi, então, que apareceram o sol e a lua, o dia e a noite... Mais tarde, a terra deixou de ser comestível e se limitou apenas a produzir plantas comestíveis. E, mais tarde ainda, somente se pôde comer um número reduzido de vegetais. Daí ter tido o homem de se alimentar a preço de duras fadigas. As paixões e os vícios, e, com eles, as adversidades, haviam entrado, progressivamente, no mundo".

E o mesmo autor menciona, em outro lugar (Tour d'horizon d'anthropologie intégrale, "Connaissance des Religions", vol. l/n." 4, Mars 1.986, p. 159): "O homem original não foi um ser simiesco, quase incapaz de falar e de se manter em pé. Foi um ser quase imaterial, encerrado numa aura ainda celeste, mas colocada na terra, e que se parecia à 'carroça de fogo' de Elias e à nuvem que envolveu a Cristo em sua ascensão."

Enquanto respire um único ser vivo,
onde quer que ele esteja,
aí, compadecido,
o Buda aparecerá,
encarnado.


Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).