terça-feira, 29 de março de 2016

Aprygio Nogueira (Belo Horizonte/MG)


Abre , meu bem, a janela,
 me esquenta que a neve cai..."
 Quem abriu foi a mãe dela,
 quem me esquentou foi o pai!
-
A ilusão, grande cilada,
não passa, no conteúdo,
de uma árvore de nada
carregadinha de tudo.
-
A mulher é um livro lindo
mas de estranha redação,
que o homem folheia rindo,
sem saber a tradução…
-
Apago as luzes... No entanto,
nem cochilo - que tristeza -
pois em meu quarto, num canto,
existe uma ausência acesa...
-
As rugas, de vez em quando,
são as ruas pelas quais
os filhos vão caminhando
na própria alma dos pais!
-
A vida é pobre de abraços
mas nem os próprios ateus
conseguem fugir dos laços
do imenso abraço de Deus!
-

Cabra guloso e nefando
foi o cabra Zé Ramiro
que faleceu mastigando
o seu último suspiro!
-
Com salário tão velhaco
não posso - o pobre assegura -
construir o meu barraco 
nem na “ rua da amargura”.
-
Devolvo a carta, querida,
sem lê-la... Já li, no cais,
no "até breve" da partida,
as letras do "nunca mais"!
-
Diz-me o céu, ao fim da estrada
que percorremos na vida,
que a morte é a grande chegada
disfarçada de partida…
-
Dos teus passos, feiticeira,
pela rua da partida,
nasceu a estranha poeira
que escurece minha vida.
-
Embora invertendo o nome
do que lhe dás por almoço,
teu cão não ilude a fome,
pois osso invertido é... osso!
-

Em  minha definição,
 a dúvida é algo assim:
-  um sim com jeito de não
e um não com jeito  de sim.
-
És a maior das mulheres,
quando a renúncia, querida,
te faz dizer que não queres
o que mais queres na vida!
-
Já não tenho mocidade,
mas vou chutando, a meu jeito,
a bolinha da saudade
numa rua do meu peito.
-
Jantamos juntos e a mesa
de nossa velha mobília
sente o sabor de ser presa
pelo abraço da família!
-
Minha sogra bateu asa
quando, com muita cautela,
pus um retrato, lá em casa,
da finada sogra dela…
-
Nascer não basta - persista
seguindo o Divino Plano,
que nos garante a conquista
do "status" de Ser Humano.
-

Nosso lar, neste momento,
é como esquina florida
no sublime cruzamento
das ruas da nossa vida.
-
O amor é um sol diferente
cuja luz nos faz achar
o pedacinho da gente
que nasce em outro lugar.
-
O céu é longe, porém,
uma coisa descobri:
– pelo caminho do Bem,
esse longe é logo ali.
-
O Doutor, com voz avara,  
vendo o pobre, diz ao cura:          
- Seu Cura, confesse  o cara,
que esse cara não tem cura.
-
O meu abraço, meninas,
tem a força de um tesouro,
pois sou de Minas - e em Minas
o amor é banhado a ouro!
-
Os peões desse rodeio   
chegaram com tanto embalo, 
que cinco mocinhas - creio -
já “caíram do cavalo”...
-

Preso ao galho, aquele dia,
Seu Juca só deu trabalho, 
pois queria e não queria
que a gente “quebrasse o galho”.
-
Quando eu morrer, solidão,
quero chuva no jardim,
para sentir a ilusão
de alguém chorando por mim!
-
Receio que o meu amor
não dê  resposta... Receio.
Mas, na dúvida, vou pôr
a esperança no correio.
-
Saudade parece praga,
parece mato insistente:
– mato que nasce da vaga
da flor que morreu na gente.
-
Se a seca nos traz  a mágoa,
seca total não existe:
- sempre cai um pingo d`água
dos olhos de um povo triste.
-
Se moras no céu, querida,
tão longe dos olhos meus,
é a primeira vez na vida
que sinto inveja de Deus…
-

Solitário e sem abrigo,
encontro ainda socorro
no amor que fala comigo
pela voz do meu cachorro.
-
Só posso medir, morena,  
meu amor, quando te fito,
se Deus me der uma trena
de se medir o infinito.      
-
Sou pobre. Mas rezo, à mesa 
e  noto que o meu “virado”
perde o gosto da pobreza
quando Deus é convidado.
-
Sou tão feliz, minha gente,
que nem sei - feliz assim -
se o sol provém do Nascente
ou nasce dentro de mim!
-
Tal vaidade, mãe querida,
você tem, ao se compor,
que sempre a vejo, na vida,
vestindo raios de amor!
-
Tanto ao Mandu me associo
por termos rotas vizinhas,
que a epopéia desse rio
tem muitas estrofes minhas.
-


Tanto em teu rastro, querida,
meu coração se perdeu,
que quando cais, pela vida,
quem se machuca sou eu
-
Todo rio nos cativa,
mas o Mandu, sem cessar,
consegue ser a mais viva
continuação do meu lar.
-
Tudo é "trem", no meu Estado,
e é por isso que a patroa,
por me ver aposentado,
me chama de "trem à-toa"!
-
Tudo no mundo é mesquinho
mas teu abraço é um escudo
que tem fibras de carinho
e me separa de tudo!
-
Uma criança que chora
pela rua, sem um lar,
parece uma linda aurora
que não consegue raiar.
-
Um filho da vã paixão,
do mal do amor, condenado,
é a única redenção
que vem do próprio pecado!
-
Vai devagar pela Rua
dos Prazeres, mocidade,
que o seu final se situa
lá na Praça da Saudade…
-
Zé Correio é calmo, pois,
na subida ou na descida,
costuma atrelar os bois
do carro ao carro da vida.

segunda-feira, 28 de março de 2016

Hana Haruko (Gaveta de Haicais)

A chuva pingando
Devassa o botão da flor
De / flora antes da hora…
-
Alertam a todos
e cantam até morrer,
cigarras no tronco…
-
Armadilha bela:
Luz atraindo mariposa
– Destinação cruel
-
asas a dançar
sobre a neve branca e leve,
anjos transparentes…
-
Beija flor perplexo
sem encontrar umidade
nem no bebedouro…
-
Bichano pequeno
um móbile de lã-pluma
com garras afiadas …
Do ovo da manhã
rompe a casca a ave amarela
que se chama sol…
-
Excesso de chuvas
a desequilibrar a árvore
raízes se afogam.
-
Força dos opostos
Espirais de eternidade
Yin e yang: você e eu
-
Formas animadas
lutam boxe de carinhos:
pequenos gatinhos…
-
Fruto esturricado,
não pode ficar no galho
romã na calçada…
-
Gato aquece sonhos
perto do fogão de lenha
– um verão no inverno...
Gato preto em neve
faz-me salivar lembranças:
ameixa em manjar…
-
Gestação do arco-íris
Leveza atestando o efêmero
— Bolha de sabão.
-
Idosos são belos
ricas sedas amassadas
não perdem a luz.
-
Leve borboleta
Vitória sobre a crisálida:
Pétalas aladas…
-
Mini-borboletas
Orquídeas papilonáceas
– Só não podem voar
-
Ontem,todas águas
encharcaram terras,ossos,
-pela manhã,o sol…
-
Órgãos musicais
De sonata progressiva:
Cigarra insistente
-
Os risos das crianças:
No cristal, bolas de gude
— luzes trepidantes ­
Passarada ao sol
pela estiagem, dançam , cantam
e procuram grãos…
-
Pássaros canoros
Energia em expansão
Almas projetadas…
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Pássaros nos fios
Como notas musicais:
Celestiais canções…
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Pele contra pele
Proximidade de cheiros:
Mistura de humores
-
Pescoços de cisne
Transformam em corações
O espaço vazio…
-
Reflexo de prata:
Luar despeja-se no mar
— Espelho do céu
-
roupas no varal
bailam loucas com o vento
resolvem fugir…
-
saboreio o sol
desvisto meus agasalhos
luz cobre a alma e a pele…
-
Sons de flauta doce:
Murmúrios edulcorantes
– Vento no bambual…
-
Vento a derrubar
-bem antes da tempestade
cigarras avisam…
Verão com sol de ouro
– dourado mas inclemente
desidrata folhas.
-
Violinista freme
Libélula com o arco
Vibrações no espaço…

Contos Populares Portugueses (S. Pedro e a Ferradura)

Quando Jesus Cristo e mais S. Pedro andavam pelo mundo, toparam num caminho uma ferradura velha. Disse o Senhor:

-Pedro, apanha essa ferradura, que pode ter alguma serventia.

- Senhor, não apanho! Está velha e ferrugenta, não pode servir para nada.

O Senhor deixou ir Pedro adiante, abaixou-se e apanhou a ferradura.

Chegaram às portas de uma cidade. O Senhor deixou outra vez Pedro ir adiante e, sem ele dar por isso, vendeu-a a um ferrador por dez réis. Passou por um sítio onde se vendia fruta e comprou-os de cerejas.

Passaram depois a cidade e meteram por outra estrada. Estava muito calor e disse S. Pedro:

- Ah, se eu tivesse com que refrescar a boca!

O Senhor ia então adiante e deixou cair uma cereja na estrada. Pedro ia a passar e viu a cereja, abaixou-se para a apanhar e meteu-a na boca, depois de a limpar do pó.

O Senhor foi deixando cair, aqui e ali, uma cereja, e Pedro sempre pronto para as apanhar, sem ver que era o Senhor que as deitava. Quando já não havia mais cerejas, disse o Senhor:

- Que trabalho tiveste em apanhar as cerejas! Se tivesses apanhado a ferradura, tê-las-ias mais frescas!

- Como é isso, Senhor?

O Senhor contou-lhe tudo e ele arrependeu-se.

Fonte:
Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.