domingo, 26 de novembro de 2017

Guilherme de Almeida (Canção do expedicionário)


Você sabe de onde eu venho?
Venho do morro, do engenho,
Das selvas, dos cafezais,
Da boa terra do coco,
Da choupana onde um é pouco,
Dois é bom, três é demais,
Venho das praias sedosas,
Das montanhas alterosas,
Dos pampas, do seringal,
Das margens crespas dos rios,
Dos verdes mares bravios
Da minha terra natal.

Por mais terras que eu percorra,
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;
Sem que leve por divisa
Esse "V" que simboliza
A vitória que virá:
Nossa vitória final,
Que é a mira do meu fuzil,
A ração do meu bornal,
A água do meu cantil,
As asas do meu ideal,
A glória do meu Brasil.

Eu venho da minha terra,
Da casa branca da serra
E do luar do meu sertão;
Venho da minha Maria
Cujo nome principia
Na palma da minha mão,
Braços mornos de Moema,
Lábios de mel de Iracema
Estendidos para mim.
Ó minha terra querida
Da Senhora Aparecida
E do Senhor do Bonfim!

Por mais terras que eu percorra,
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;
Sem que leve por divisa
Esse "V" que simboliza
A vitória que virá:
Nossa vitória final,
Que é a mira do meu fuzil,
A ração do meu bornal,
A água do meu cantil,
As asas do meu ideal,
A glória do meu Brasil.

Você sabe de onde eu venho?
É de uma Pátria que eu tenho
No bojo do meu violão;
Que de viver em meu peito
Foi até tomando jeito
De um enorme coração.
Deixei lá atrás meu terreiro,
Meu limão, meu limoeiro,
Meu pé de jacarandá,
Minha casa pequenina
Lá no alto da colina,
Onde canta o sabiá.

Por mais terras que eu percorra,
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;
Sem que leve por divisa
Esse "V" que simboliza
A vitória que virá:
Nossa vitória final,
Que é a mira do meu fuzil,
A ração do meu bornal,
A água do meu cantil,
As asas do meu ideal,
A glória do meu Brasil.

Venho do além desse monte
Que ainda azula o horizonte,
Onde o nosso amor nasceu;
Do rancho que tinha ao lado
Um coqueiro que, coitado,
De saudade já morreu.
Venho do verde mais belo,
Do mais dourado amarelo,
Do azul mais cheio de luz,
Cheio de estrelas prateadas
Que se ajoelham deslumbradas,
Fazendo o sinal da cruz!

Por mais terras que eu percorra,
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;
Sem que leve por divisa
Esse "V" que simboliza
A vitória que virá:
Nossa vitória final,
Que é a mira do meu fuzil,
A ração do meu bornal,
A água do meu cantil,
As asas do meu ideal,
A glória do meu Brasil.

Monteiro Lobato (A colcha de retalhos)

- Upa! Cavalgo e parto.

Por estes dias de março a natureza acorda tarde. Passa as manhãs embrulhada num roupão de neblina e é com espreguiçamentos de mulher vadia que despe os véus da cerração para o banho de sol.

A névoa esmaia o relevo da paisagem, desbota-lhe as cores. Tudo parece coado através dum cristal despolido.

Vejo a orla de capim tufada como debrum pelo fio dos barrancos; vejo o roxo-terra da estrada esmaecer logo adiante; e nada mais vejo senão, a espaços, o vulto gotejante dalguns angiqueiros marginais.

Agora, uma porteira.

Ali, a encruzilhada do Labrego.

Tomo à destra, em direitura ao sítio do José Alvorada.

Este barba-rala mora-me a jeito de empreitar um roçado no capoeirão do Bilu, nata da terra que pelas bocas do caeté legítimo, da unha-de-vaca e da caquera está a pedir foice e covas de milho.

Não é difícil a puxada: com cinquenta braças de carreador boto a roça no caminho.

Três alqueires, só no bom. Talvez quatro. A noventa por um - nove vezes quatro trinta e seis; trezentos e sessenta alqueires de oito mãos. Descontadas as bandeiras que o porco estraga e o que comem a paca e o rato...

Será a filha do Alvorada?

- Bom dia, menina! - O pai está em casa?

É a filha única. Pelo jeito não vai além de quatorze anos.

Que frescura! Lembra os pés d'avenca viçados nas grotas noruegas. Mas arredia e até como a fruta do gravatá. Olhem como se acanhou! D'olhos baixos, finge arrumar a rodilha. Veio pegar água a este córrego e é milagre não se haver esgueirado por detrás daquela moita de taquaris, ao ver-me.

- O pai está lá? - insisti.

Respondeu um "está" enleado, sem erguer os olhos da rodilha.

Como a vida no mato asselvaja estas veadinhas! Note-se que os Alvoradas não são caipiras. Quando comprou a situação dos Periquitos, o velho vinha da cidade; lembro-me até que entrava em sua casa um jornal.

Mas a vida lhes correu áspera na luta contra as terras ensapezadas e secas, que encurtam a renda por mais que dê de si o homem. Foram rareando as idas à cidade e ao cabo de todo se suprimiram. Depois que lhes nasceu a menina, rebento floral em anos outoniços, e que a geada queimou o café novo - uma tamina, três mil pés - o velho, amuado, nunca mais espichou o nariz fora do sítio.

Se o marido deu assim em urumbeva (pessoa crédula, fácil de ser enganada), a mulher, essa enraizou de peão para o resto da vida. Costumava dizer: mulher na roça vai à vila três vezes - uma a batizar, outra a casar, terceira a enterrar.

Com tais casmurrices na cabeça dos velhos, era natural que a pobrezinha da Pingo d'Água (tinha esse apelido a Maria das Dores) se tolhesse na desenvoltura ao extremo de ganhar medo às gentes. Fora uma vez à vila com vinte dias, a batizar. E já lá ia nos quatorze anos sem nunca mais ter-se arredado dali.

Ler? Escrever? Patacoadas, falta de serviço, dizia a mãe.

Que lhe valeu a ela ler e escrever que nem uma professora, se depois que casou nunca mais teve jeito de abrir um livro? Na roça, como na roça.

Deixei a menina às voltas com a rodilha e embrenhei-me por um atalho conducente à morada.

Que descalabro!... Da casa velha aluíra uma ala, e o restante, além da cumeeira selada, tinha o oitão fora do prumo.

O velho pomar, roído de formiga, morrera de inanição; na ânsia de sobreviver, três ou quatro laranjeiras macilentas, furadas de broca e sopesando o polvo retrançado da erva-de-passarinho, ainda abrolhavam rebentos cheios de compridos acúleos. Fora disso, mamoeiros, a silvestre goiaba e araçás, promiscuamente com o mato invasor que só respeitava o terreirinho batido, fronteiro à casa. Tapera quase e, enluradas nela, o que é mais triste, almas humanas em tapera.

Bati palmas.

- Ó de casa! Apareceu a mulher.

- Está seu Zé? - Inda agorinha saiu, mas não demora. Foi queimar um mel na massaranduba do pasto. Apeie e entre.

Amarrei o cavalo a um moirão de cerca e entrei.

Acabadinha, a Sinh'Ana. Toda rugas na cara - e uma cor... Estranhei-lhe aquilo.

- Doença! - gemeu. - Estou no fim. Estômago, fígado, uma dor aqui no peito que responde na cacunda. Casa velha, é o que é.

- Metade é cisma - disse-lhe para consolo.

- Eu é que sei! - retrucou-me suspirando.

Entrementes, surgiu da cozinha uma velhota bem-apessoada, no cerne, rija e tesa, que saudou e:

- Está espantado do jeito de Nhana? Esta gente de agora não presta para nada. Olhe, eu com setenta no lombo não me troco por ela. Criei minha neta e inda lavo, cozinho e coso. Admira-se? Coso, sim!...

- Mecê é gabola porque nunca padeceu doença - nem dor de dente! Mas eu? Pobre de mim! Só admiro ainda estar fora da cova... Aí vem o Zé.

Chegava o Alvorada. Ao ver-me, abriu a cara.

- Ora viva quem se lembra dos pobres! Não pego na sua mão porque estou assim... É só melado. Bonito, hein? Estava difícil, num oco muito alto e sem jeito. Mas sempre tirei. Não é jiti, não! É mel-de-pau.

Depôs num mocho a cuia dos favos e se foi à janela, lavar as mãos à caneca d'água que a mulher despejava. Pôs os olhos no meu cavalo.

- Hoje veio no picaço... Bom bicho! Eu sempre digo: animais aqui no redor, só este picaço e a ruana do Izé de Lima. O mais é eguada de moenda.

Neste momento entrou a menina de pote à cabeça. Ao vê-la, o pai apontou para a cuia de mel.

- Está aí, filha, o doce da aposta. Perdi, paguei. Que aposta? Ah! ah! Brincadeira. A gente cá na roça, quando não tem serviço com qualquer coisa se diverte. Vinha passando um bando de maritacas. Eu disse à loa: "São mais de dez!" Pingo negou: "Não chega lá!" Apostamos. Eram nove. Ela ganhou o doce. Doce da roça mel é. Esta songuinha só vendo; não é o que parece, não...

A loquacidade daquele homem não desmedrara com o atraso da vida. Em se lhe dando corda, ressurgia nele o tagarela da cidade.

Expus-lhe o negócio. Alvorada enrugou a testa; refletiu um bocado, de queixo preso. Depois:

- Eu hoje, franqueza, não valho mais nada. Des'que caí daquela amaldiçoada ponte do Labrego, fiquei assim como quebrado por dentro. Não escoro serviço, e para lidar com camaradas no eito não basta ter boca. Sem puxar a enxada de par com eles, a coisa não vai, não! Lembra-se da empreitada do ano retrasado? Pois saí perdendo. O tranca do João Mina me quebrou um machado e furtou uma foice. Com esses prejuízos, não livrei o jornal. Desde então fiz cruz em serviço alheio. Se ainda teimo neste sapezal amaldiçoado é por via da menina; senão, largava tudo e ia viver no mato, como bicho. É Pingo que inda me dá um pouco de coragem - concluiu com ternura.

A velhinha sentara-se à luz da janela e, abrindo uma caixeta, pusera-se a coser, de óculos na ponta do nariz.

Aproximei-me, admirativo.

- Sim, senhora! Com setenta anos!

Sorriu, lisonjeada.

- É para ver. E isto aqui tem coisa. É uma colcha de retalhos que venho fazendo há quatorze anos, des'que Pingo nasceu. Dos vestidinhos dela vou guardando cada retalho que sobeja e um dia os coso. Veja que galantaria de serviço...

Estendeu-me ante os olhos um pano variegado, de quadrinhos maiores e menores, todos de chita, cada qual de um padrão.

- Esta colcha é o meu presente de noivado. O último retalho há de ser do vestido de casamento, não é, Pingo?

Pingo d'Água não respondeu. Metida na cozinha, percebi que nos espiava por uma fresta.

Mais dois dedos de prosa com Alvorada, um cafezinho ralo - escolha com rapadura - e:

- Está bem - rematei, levantando-me do mocho de três pernas. - Como não pode ser, paciência. Apesar disso acho que deve pensar um bocado. Olhe que este ano se estão pagando os roçados a oitenta mil réis o alqueire. Dá para ganhar, não?

- Que dá, sei que dá - mas também sei para quem dá. Um perrengue como eu não pensa mais nisso, não. Quando era gente, muitos peguei a sessenta e não me arrependi. Mas hoje...

- Nesse caso...

Transcorreram dois anos sem que eu tornasse aos Periquitos. Nesse intervalo Sinh'Ana faleceu. Era fatal a dor que respondia na cacunda. E não mais me aflorava à memória a imagem daqueles humildes urupês, quando me chegou aos ouvidos o zunzum corrente no bairro, uma coisa apenas crível: o filho de um sitiante vizinho, rapaz de todo pancada, furtara Pingo d'Água aos Periquitos.

- "Como isso? Uma menina tão acanhada!..."

- "É para ver! Desconfiem das sonsas... Fugiu, e lá rodou com ele para a cidade - não para casar, nem para enterrar. Foi ser 'moça', a pombinha..."

O incidente ficou a azoinar-me o bestunto. À noite perdi o sono, revivendo cenas da minha última visita ao sítio, e nasceu-me a ideia de lá tornar. Para? Confesso: mera curiosidade, para ouvir os comentários da triste velhinha. Que golpe! Desta feita ia-se-lhe a rijeza de cerne.

Fui.

Setembro entumecia gomos em cada arbusto. Nenhuma neblina. A paisagem desenhava-se nítida até aos cabeços dos morros distantes.

Por amor à simetria, montava eu o mesmo picaço. Transpus a mesma porteira. Atalhei pelo mesmo trilho.

No córrego vi, com os olhos da imaginação, o vulto da menina envergonhada com o pote em repouso na laje e toda às voltas com a rodilha. Mais uns passos e a tapera antolhou-se-me, deserta. As três árvores do pomar extinto eram já galhaça resseca e poenta. Só os mamoeiros subsistiam, mais crescidos, sempre apinhados de frutos. O resto piorara, descambando para o lúgubre. Ruíra o oitão e o terreirinho pintalgara-se de moitas de guanxuma, cordão-de-frade e juás.

- Ó de casa! - gritei.

Silêncio. Três vezes repeti o apelo. Por fim surgiu dos fundos uma sombra acurvada e trêmula.

- Bom dia, nhá Joaquina. Está seu Zé?

Não me reconheceu a velhinha. Zé fora à vila, vender a sitioca para mudar de terra.

Fez-me entrar, logo que me dei a conhecer, pedindo escusas da má vista.

- Tem coragem de estar aqui sozinha?

- Eu? Sozinha estou em toda parte. Morreu-me tudo, a filha, a neta... Sente-se - murmurou apontando para o mocho de dois anos atrás.

Sentei-me, com um nó na garganta. Não sabia o que dizer. Por fim:

- O que é a vida, nhá Joaquina! Parece que foi ontem que estive aqui. Apesar das doenças, iam vivendo felizes. Hoje...

A velha limpou no canhão da manga uma lágrima.

- Viver setenta e dois anos para acabar assim... Felizmente a morte não tarda. Já a sinto cá dentro.

Confrangia-me o coração aquele ermo onde tudo era passado - a terra, as laranjeiras, a casa, as vidas, salvo trêmulo espectro sobrevivente como a alma da tapera - a triste velhinha encanecida, cujos olhos poucas lágrimas estilavam, tantas chorara.

- Que mais agora? - murmurou pausadamente em voz de quem já não é deste mundo. - Até à "desgraça", eu não queria morrer. Velha e inútil, inda gostava do mundo. Morreu-me a filha, mas restava a neta - que era duas vezes filha e o meu consolo. Desencaminharam a pobrezinha... Agora, que mais? Só peço a Deus que me retire, logo e logo.

Relanceei um olhar pela sala vazia. A caixeta de costura inda estava sobre a arca no lugar de sempre. Meus olhos pousaram ali, marasmados.

A velha adivinhou-me o pensamento e, levantando-se, tomou-a nas mãos mal firmes. Abriu-a. Tirou de dentro a colcha inacabada, contemplou-a longamente. Depois, com tremuras na voz:

- Dezesseis anos - e não pude acabar a colcha... Ninguém imagina o que é para mim esta prenda. Cada retalho tem sua história e me lembra um vestidinho de Pingo d'Água. Aqui leio a vidinha dela des'que nasceu. Este, olhe, foi da primeira camiseta que vestiu... Tão galantinha! Estou a vê-la no meu braço, tentando pegar os óculos com a mãozinha gorda... Este azul, de listras, lembra um vestido que a madrinha lhe deu aos três anos. Ela já andava pela casa inteira armando reinações, perseguindo o Romão - que um dia, por sinal, lhe meteu as unhas no rostinho. Chamava-me "ÓÓ aquina”. Este vermelho de rosinhas foi quando completou os cinco anos. Estava com ele por ocasião do tombo na pedra do córrego, donde lhe veio aquela marquinha no queixo, não reparou? Este cá, de xadrezinho, foi pelos sete anos, e eu mesma o fiz, e o fiz de saia comprida e paletó de quartinho. Ficou tão engraçada, feita uma mulherzinha! Pingo d'Agua ja sabia temperar um virado, quando usou este aqui, de argolinhas roxas em fundo branco. Digo isto porque foi com ele que entornou uma panela e queimou as mãos. Este cor de batata foi quando tinha dez anos e caiu com sarampo, muito malzinha. Os dias e as noites que passei ao pé dela, a contar histórias! Como gostava da Gata Borralheira!...

A velha enxugou na colcha uma lágrima perdida e calou-se.

- E este? - perguntei para avivá-la, apontando um retalho amarelo.

Pausou um bocado a triste avó, em contemplação. Depois:

- Este é novo. Já tinha feito quinze anos quando o vestiu pela primeira vez num mutirão do Labrego. Não gosto dele. Parece que a desgraça começa aqui. Ficou um vestido muito assentadinho no corpo, e galante, mas pelas minhas contas foi o culpado do Labreguinho engraçar-se da coitada. Hoje sei disso. Naquele tempo de nada suspeitava.

- Este - disse-lhe eu, fingindo recordar-me - é o que ela vestia quando cá estive.

- Engano seu. Era, quer ver qual? Era este de pintas vermelhas, repare bem.

- É verdade, é verdade! - menti. Agora me lembro, isso mesmo. E este último?

Após uma pausa dorida, a pobre criatura oscilou a cabeça e balbuciou:

- Este é o da desgraça. Foi o derradeiro que fiz. Com ele fugiu... e me matou.

Calou-se, a lacrimejar, trêmula.

Calei-me também, opresso dum infinito apertão d'alma.

Que quadro imensamente triste, aquele fim de vida machucado pela mocidade louca!...

E ficamos ambos assim, imóveis, de olhos presos à colcha.

Ela por fim quebrou o silêncio.

- Ia ser o meu presente de noivado. Deus não quis. Será agora a minha mortalha. Já pedi que me enterrassem com ela.

E guardou-a dobradinha na caixa, envolta num suspiro arrancado ao imo do coração.

Um mês depois morria. Vim a saber que lhe não cumpriram a última vontade.

Que importa ao mundo a vontade última duma pobre velhinha da roça? Pieguices...

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Urupês. 

sábado, 25 de novembro de 2017

João Batista Xavier Oliveira (Trovas de quem entende de Trovas) III


A goteira enciumada
feriu a rosa em botão
porque à chuva misturada
nunca chamou atenção.

A janela da poesia
aberta às rimas do amor
deixa passar, noite e dia,
toda a ternura da flor.

Ao som da noite uniforme
comigo a tristeza dança;
enquanto a esperança dorme
a saudade não descansa.

A terra liberta cios
e os braços do homem aceita
quando a chuva, por seus fios,
tece o manto da colheita.

Eu me preocupo em colher
bons frutos da educação,
para evitar encolher
o pomar do meu irmão.

Junto à árvore da trova
conheci minha poesia,
pois quem do seu fruto prova
faz do verso moradia.

Meu barco à deriva assume
ao abraço do arrebol
na fuga do teu ciúme
que fingiu ser meu farol!

Não faça do amigo a ponte
para o sucesso alcançar;
muitas o horizonte
é onde começa o mar.

Não queiras me envenenar;
minha dor está dormente;
ternuras no teu olhar
são dois ninhos de serpente.

Na rotina cansativa
o vai-e-vem, burburinho,
escondem a paz que ativa
novo brilho do caminho.

Nas teclas do meu piano
a emoção rompe barreiras
ao teu sentimento insano
mesmo que as pazes não queiras.

No alvor do seu uniforme
mais parece anjo da terra
velando a dor que não dorme
em tempo de paz... de guerra!

O chilrear matutino
numa cadência sem fim
é o legado do menino
cantando dentro de mim.

O tempo ensina a chorar
represando a quem não chora
um sentimento de amar
a paz que jamais aflora.

Pergunto ao tempo até quando
a falsa paixão se esconde
e ele passando... passando...
simplesmente já responde.

Quando a dor fica teimosa
e a esperança nem murmura,
o espinho a zombar da rosa
exala a sua amargura.

Quando se enxerga o inimigo,
o embate é menos atroz,
pois ele é maior perigo
estando dentro de nós

Que valor tem conquistar
poder e glória sem fim...
se no aconchego do lar
solidão ganha de mim?

Quisera, nos meus delírios,
que alcançam versos celestes,
a liberdade dos lírios
nos vastos vergéis agrestes.

São nos pequenos sinais
que a natureza diz tudo;
a indiferença jamais
ameniza o conteúdo.

Tens apenas um defeito:
ferir-me na insensatez;
e eu apenas o direito
de morrer uma só vez.

Teu retrato em preto e branco
a colorir a saudade
pereniza o riso franco
no tom que não tem idade.

Tijolos, bola de meia,
nosso futebol de rua.
Essa paisagem clareia
doce infância de alma nua.

Fonte:
Trovas enviadas pelo autor

28ª Edição do Concurso de Contos Paulo Leminski (Vencedores)

A comissão avaliadora da 28ª edição do concurso de Contos Paulo Leminski divulgou nesta segunda-feira (20) os resultados dos textos classificados em 1º, 2º e 3º lugares, além do melhor conto toledano e menções honrosas. Os três primeiros lugares receberão a premiação em dinheiro divididos em R$ 2.500, 00 para o primeiro colocado, R$ 1.800,00 ao segundo R$ 1.500,00, para o terceiro e o melhor conto toledano com uma quantia de R$ 1.000,00. A entrega da premiação deve acontecer no próximo dia 08 de dezembro, às 16h na Biblioteca Pública Municipal - Centro Cultural "Oscar Silva". O concurso é realizado em parceria com a Unioeste/campus Toledo e Prefeitura de Toledo através da Biblioteca Pública.

Neste ano o número de inscrições foram 691 textos, destes 203 de São Paulo, 115 do Rio de Janeiro, 97 do Paraná, 69 do Rio Grande do Sul e 58 Minas Gerais. Além de participantes dos países Itália, Japão, Portugal e Suíça. Os trabalhos foram lidos por uma comissão formada por mestres e doutores da Unioeste e de outras instituições de ensino, da área de literatura e língua portuguesa. 

Um detalhe importante é que os contos premiados e os que recebem menção honrosa são reunidos em uma coletânea pública a cada cinco anos. Assim, a 6ª edição do livro será lançada em 2019 em que constam os contos premiados da 25ª a 29ª edição do concurso.

De acordo com o professor mestre Dari José Klein os contos são separados por núcleos. “A nossa comissão avaliadora é formada por sete professores, em que cada grupo de três pessoas lê os contos e realiza a seleção. Por isso, no dia de hoje nos reunimos para reler e decidir quem são os premiados”.

Dari comenta que o concurso que começou em Toledo, com a ideia de proporcionar uma oportunidade para quem escreve ter o seu trabalho divulgado. “A gente escolhe os premiados, faz uma ata, assina e só a partir desse momento e que vamos verificar quem são as pessoas, se é homem, mulher, jovem, adulto, de que lugar que é, se é escritor ou não e assim por diante”.  

A professora Maria Beatriz Zanchet salienta que é normal haver textos bons, médios ou fracos. “A cada ano que passa percebemos que a concorrência aumenta, pela forma narrativa da construção dos textos, a qualidade narrativa e isso demostra que o concurso está adquirindo espaço”.

Rita das Graças Felix Fortes que também é professora doutora salienta que as variantes linguísticas são bem presentes nos textos. “Pela linguagem identificamos textos de várias regiões do Brasil, embora a gente não saiba a identidade nem a origem dos autores, conseguimos observar, por exemplo, contos do nordeste, de minas, do sul. Isso mostra a amplitude dos textos no contexto nacional e adquirindo espaço também no contexto internacional”, finaliza.

RESULTADOS:

1° Lugar: 
Briga de galo. 
DANILO BRANDÃO DE LIMA 
Campinas/SP

2° Lugar: 
Pudim de Laranja. 
PAULA GIANNINI 
Itanhaém/SP

3° Lugar: 
Pedro Rodela. 
LAÉRCIO NORA BACELAR 
Belo Horizonte/MG

Conto Toledano: 
Entre o Minotauro e o Lobo. 
VALDINEI JOSÉ ARBOLEYA

Menções Honrosas (por ordem alfabética de autoria)

Tortura do método.
ALEX XAVIER 
São Paulo/SP

A Cidadezinha.
CÉSAR BUENO FRANCO 
Campo Mourão/PR

Os habitantes da lua.
CHRIS RITCHIE 
São Paulo/SP

Maxwell Silver.
HÉLIO CARLOS BRAUNER 
Porto Alegre/RS

McLanche Feliz.
MANUELA DEL LAMA TITOTO 
Ribeirão Preto/SP

Um Sorriso.
MOISÉS LAERT PINTO TERCEIRO 
Uberaba/MG

Olhos azuis.
NEYD MARIA MAKIOLKA MONTINGELLI 
Curitiba/PR

Jardim.
OTÁVIO BILEVIC 
Toledo/PR

Fonte:

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Elisabete Aguiar (Poemas sem fronteiras)


CÂNTICO AO SOL

Eu cantarei o sol eternamente,
sereno servidor universal!
Discreto, disponível, diligente,
com seu sorriso terno e paciente,
sobre todos irradia por igual.

Ensina-me, ó sol bendito,
com teu brilho e calor,
a acalentar o aflito
no manto do meu amor!

OS MEUS VERSOS

Os versos que inventei para Te cantar
são meninos perdidos em deserto;
caminham vacilantes, passo incerto,
na ânsia, só, de oásis vislumbrar.

Neles vesti minha alma de luar
e lírios de emoção ao peito aperto...
Teci palavras de Luz...Eis-me desperto
para no raiar da aurora Te encontrar.

Versos vertidos no oiro da ternura,
no molde da saudade e da lonjura,
meninos frágeis, asas de cristal…

Voltejando nos braços da Esperança,
cantam Teu Amor, Tua Bonança,
em harpejos de Graça musical.

VISÃO

Vi-te, no cais de embarque, quando ia
Tomar a nau desta navegação.
Seria sonho meu ou utopia?
Sei que, sem saber, guardei essa visão.

Singrou a nau por ventos e marés,
Contra vagas de espanto e de ansiedade.
E a areia rude que roeu meus pés
Era a filha fiel da tempestade.

Mas sempre, no meu peito escondida,
Como pérola em ostra resguardada,
A saudade da visão desconhecida,
Palpitante, secreta e magoada…

E, foi assim, que sem saber chegaste,
Porque o Deus da doçura me escutava…
Quando no Eterno Cais tu embarcaste
Era já a minha voz que te chamava.

ORIGEM

Fui vela, fui barco e borboleta,
Fui asa, fui canto, fui perfume;
Fui a voz do eco tão distante
Que se evola nos ares e nos confunde.

Fui o vento norte nas ermidas
Açoitando álgidas pedras requebradas;
Fui a brisa carinhosa que afaga
Nas fontes, belas moiras encantadas.

Fui doçura de pranto, à noitinha,
Nos olhos da donzela apaixonada;
Fui riso, sinfonia e fui esperança,
Fui saudade de uma alma torturada.

Fui a essência das coisas por fazer,
Fui o impulso febril da Criação,
Fui auréola de santo, fui pureza,
Fui o som cósmico, fui leveza,
Fui o pulsar de Divino coração.

Elisabete Aguiar, in” Vago Horizonte”
____________________________________
Elisabete do Amaral Albuquerque Freire Aguiar nasceu em 1951, em Ribamondego, Concelho de Gouveia, Portugal. Em 69, ingressou na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra onde se licenciou em Filologia Românica. Desde então dedicou-se ao ensino, lecionando desde 1977 em Mangualde. Professora aposentada, de Literatura Portuguesa. Professora de Yoga desde 1987, lecionando Yoga na Universidade Sénior de Viseu (desde 2003), na Universidade Senior de Mangualde e nas instalações do INATEL de Viseu. Livros de poesia publicados e livro de traduções em conjunto com Fernando Augusto Teixeira Gonçalves.

Eça de Queirós (A Ladainha da Dor)

Ao Sr. A. A. Teixeira de Vasconcelos

O pintor Lyser voltou da Boêmia com a sua doidice elegíaca. Pedi-lhe o retrato de Paganini como tu querias, mas ele disse-me em segredo que fora o Diabo que lhe guiara a mão naqueles traços, e que ia conservar uma lembrança do Diabo, seu velho amigo. Tem esse cartão numa pasta entre um desenho do velho Cláudio Loreno e um retrato de Dante.

Ontem, ao cair da tarde, estávamos ambos sentados junto da janela. O ar entrava todo emaranhado nos cordões verdes das trepadeiras; nós estávamos calados e abandonados à doçura divina das coisas.

O pobre Lyser, com os seus grandes cabelos caídos, tomou o retrato de Paganini e desenhou em volta toda a sorte de entrelaçamentos de folhagens, de penumbras delicadas, de dissipações de nuvens: e entre aquelas eflorescências escreveu os nomes de Dante, de Hamlet, de Romeu e de Sancho Pança, dizendo com a sua voz dolente: – Paganini tinha alguma coisa de todos estes homens. - E derramou-se em palavras sobre o espírito do músico onde havia materialismos de rei bárbaro e doçuras de apóstolos.

Depois, no cimo do cartão, desenhou a figura de Ofélia levada pela corrente, e um morcego; com as asas dobradas, e olhando tristemente, de entre as canas debruçadas sobre o rio, o corpo branco sumir-se levado serenamente como no seu elemento, e os grandes cabelos louros emaranhados nos musgos da água: e por baixo escreveu: Duvida Ofélia do meu amor, da verdade luminosa das estrelas, dos coloridos das folhas, da luz branca e séria do sol. E depois, com a voz séria: - Paganini sobretudo era um morcego. 

É assim aquele pobre Lyser com a sua triste loucura. Sabes que lhe morreu a irmã? No dia do enterro, Lyser acompanhou o corpo com a sua rabeca debaixo do braço e fustigando com o arco as ervas molhadas. O dia estava nublado. - Minha pobre irmã – disse ele - que nem pode levar presa no seu lindo vestido uma réstia de sol. - Sabes a religião que Lyser tem pelo sol. Passa dias inteiros deitado entre as frescuras dos caminhos, sob a grande luz sonora do sol. Nessa noite em que a irmã foi enterrada, ele foi sentar-se junto da cova tocando as velhas árias de Lully, e de vez em quando compunha as dobras de um xale que tinha lançado sobre a sepultura. Assim esteve perdido numa saudade mais doce que a lua, e mais profunda que a noite. Como o céu estava nublado, ele dizia, de vez em quando à cova: - Não tenhas pena, cá fora nem estrelas há.

Foram-no buscar de madrugada, e ele vinha lento, dependurando-se do fato do coveiro como uma criança, para ouvir os uivos dos cães e o chiar dos carros. Dias depois voltou ao cemitério e o coveiro não o deixou entrar o pobre Lyser ficou junto das grades com os olhos cheios de lágrimas. - uma coisa de pressa que tenho a dizer a minha irmã - dizia ele com a voz passada de suplicações. O coveiro estava dentro falando com uma mulher de cabelos cor de vinho; e como a quisesse prender num abraço bárbaro e rijo, a rapariga, ao fugir-lhe, caiu sobre uma sepultura toda coberta de violetas; o coveiro ergueu-a, sacudiu-lhe a terra dos vestidos, e deu com o pé rude na terra da sepultura resmungando: - Malditos tropeços!

O músico Berlioz ao voltar das bandas moles da Itália e das ilhas da Grécia de lívidos escarpamentos sem serenidades idílicas e sem mirtos - recebeu nas ruínas das Sorveiras, junto de Nizza, onde trabalhava na sua sinfonia de "Harold" toda cheia de mar, esta carta vinda de França.

Por fim, veio abrir a grade enferrujado ao pobre Lyser e com uma grande voz: – Vá, que já não são horas de entrar sem licença. - Lyser sumiu-se entre os ciprestes, debruçou-se sobre a cova e escreveu na brancura da pedra: Luísa, se lá em cima encontrares a estrela Vésper, pergunta-lhe de que tintas se faz o cor-de-rosa da tarde e os reflexos de roxo-pálido; preciso sabê-lo: ontem dei o teu xale branco a uma pobre: dize-me se queres que te traga alguns dos teus vestidos: olha, se passares de noite por estas alamedas não te aproximes da casa do coveiro, vive lá uma má mulher. 

Dias depois chamou-me e disse-me - Sabe? começo a acreditar que minha irmã morreu. Por isso, peço-lhe uma coisa, que quando tiver alguma camélia não a esmague, talvez seja feita do seio, da pobre rapariga. - E afastou-se, arrastando os seus sapatos como se estivessem pesados de água: mas de repente voltando-se e com a voz cheia de suplicações: - Nem as violetas, talvez sejam feitas dos olhos dela. - Então tomou-me pela manga e levou-me para entre árvores onde havia o sol, o coro das colmeias, os cheiros de feno e os coloridos frescos dos frutos: ele ia com a face toda tomada pela cor quente e fecunda da vida: - Não sabe? - dizia-me o pobre Lyser com a sua voz lenta e doce como um escorrer de mel: - não sabe? Muita rapariga que dizia as cantigas das eiras e dançava debaixo dos plátanos morre nos frios de Fevereiro. Há-de ter visto, por esse tempo, os pobres namorados que andam chorando sobre ás covas com às cabelos caldos. Então aqueles corpos das raparigas desfazem-se. Alguém que sabe e que vê aproveita aquelas formas e aqueles coloridos; da pele do seio, fazem-se pétalas de camélia, dos olhos tristes fazem-se violetas, da cor dos lábios fazem-se Os rainúnculos, dos hálitos perdidos fazem-se os cheiros bons, e do olhar, da meiguice, do desejo delas faz-se a Primavera, o doce ar das madrugadas de Maio. De modo que de noite as flores que estão nos vasos na sombra das alcovas conversam das suas existências passadas; falam das danças ruidosas à guitarra; daquela manhã em que a ponta do seio veio espreitar pela abertura do vestido os olhos do namorado; daquela tarde em que a face se vestiu de cor-de-rosa para receber a visita de um bigode louro; daquela noite em que as pálpebras castas acudiram aos olhos, que estavam perdidos e quase a dizer sim; e se uma noite espreitar as flores que estão nos castos paraísos das alcovas, há-de vê-las sair dos vasos, entrelaçarem as formas e os coloridos e fazerem na sombra a vaga semelhança de um corpo feminino.

É assim o pintor Lyser. Fez-se noite naquela alma, e, por isso, ela tem todas as qualidades da noite, o sombrio, o vago, o negro, o azul, o lânguido, o estrelado. 

Agora deseja morrer e ser enterrado numa paisagem casta, assoalhada, murmurosa,. para se julgar protegido e coberto pela alma errante do seu amigo Gáudio Loreno.

Quando a luz do sol se retira, prende-se, como um manto de seda que se arrasta entre ervas secas e ramagens, ao dorso de uma onda, ao cimo ruidoso de uma árvore, à proa de uma barca de pesca; assim aquele espírito ao retirar-se daquele corpo se prende ainda a tudo o que na vida é superior, e elevado, e meigo, ao amor, à melancolia, à compaixão, à arte.

Quando cheguei do Báltico soube que Paganini se retirara de França: tive a respeito dele grandes conversações com o rabequista Sica, que pensa em fazer para o Verão unia peregrinação pela Síria.

Estávamos horas debaixo das tílias, falando do quimérico espírito de Paganini, até que as estrelas apareciam, contemplativas e augustas. Sica contou-me toda a legenda idílica e bárbara de Paganinh os seus amores em Verona, aquela cantora empoada, de mãos macias e sentimentos velados e grandes sedas, e aquele abade de fivelas luzentes, com quem ela ia debaixo dos veludos silenciosos, num entrelaçamento de braços, em doce e azulada viagem pelo país de Citera. Depois contou-me toda a sua trabalhosa odisseia das prisões e dos degredos: aquelas noites em que ele, poderoso e solitário, entrava na confidência dos negros soluços do mar: noites dolorosas das lágrimas, em que aquele trágico homem estava, enroscado nas palhas do seu cárcere, vendo ao longe o mar Mediterrâneo amolecido por aquela moleza que escorre dos astros, e da voluptuosidade da noite desconhecida e fecunda.

Dizia-me Sica que Paganini lhe contava, que sempre às horas escuras via as fivelas do abade luzirem na noite e dizia Paganini: - Às vezes o remorso é bondoso, encarna-se em coisas que têm uma vida, uma carnação, um sangue, uma moleza, que se podem abrandar, a quem se pode suplicar; mas aquelas fivelas metálicas, inertes, rígidas, eram um remorso frio, surdo, inflexível, faziam-me subir ao rosto o suor do antigo Josafá.

Dizia também Paganini, que uma das suas grandes torturas no cárcere fora assistir pela visão à decomposição fria do corpo da pobre cantora Marietta.

Ele via aquele corpo sem óleos, nem sacramentos, debaixo das terras limosas e das crescências túmidas de seiva, esverdear-se entre as ossadas.

Via de noite perto de si aquela terrível decomposição das carnes, aquelas brancuras inertes, aquelas moles curvas sugadas pela terra.. Via, aterrado, os cardos, as papoulas, as gramíneas, os ciprestes serenos comerem a sua bem-amada fria, muda, esverdeada e inchada!

Então ali tomou o ódio da Natureza: ele atravessava sempre as frescas fecundidades, as searas, todas as verdes formas da vida., os campos e as granjas, com um horror judaico e místico. Só perdoava ao mar: e às vezes, depois, na Dinamarca, ia para junto das águas do mar do Norte, tocar na rabeca as velhas cantigas escandinavas e as baladas rúnicas; e desejava muitas vezes que depois de morto o seu corpo pudesse nadar durante a Eternidade nos verdes embalos da água.

Foram terríveis todos aqueles anos de prisão.

O rabequista Sica contou-me depois todas as viagens de Paganini com os estudantes da nova Alemanha, indo pelos burgos, pelos povoados, pelas cabanas de lareiras sonolentas, cantando às estrelas e dizendo, na sua rabeca, sob a lucidez do céu do Norte, as velhas baladas da Turíngia.

Contou-me o amor da duquesa de Weimar por Paganini; e como uma noite de concerto em duas cordas da rabeca ele disse o diálogo misterioso de duas vozes que se falavam debaixo do arvoredo, depois entre as sedas de cortinas ao fresco ar de um balcão, e depois ainda na terra debaixo das raízes dos ciprestes, e, por flui, indefinidas, ténues, luminosas, entre o encruzamento sagrado dos raios dos astros.

Era uma alusão desconhecida que encheu de lágrimas a duquesa de Weimar.

Aquele homem ultimamente tinha o peito cheio de mortos. Dele retirara-se o elemento humano; já não tinha a compaixão, o riso, o amor, a indignação, a paternidade, a emoção.

Lento, com os seus cabelos caídos, lívido, com as terríveis rugas da face semelhantes aos de uma rabeca, com as mãos transparentes, cheias de agilidade, e de deslocações com os seus grandes casacos escuros de pregas hieráticas, atravessava os povoados, os silêncios, as cenas resplandecentes, poderoso e solitário, procurando aos pés, sempre, uma cova onde não se esfolhassem árvores, onde não nascessem ervas, sem saber que na noite, na umidade, nas choças, nas pedreiras, nas estradas, nas costas, há uma raça que sofre, e que há beiços lívidos da fome, e que há febres silenciosas, e amores desertos, e suores de angústia, e apodrecimentos de honras, e uivos de almas aflitas, e lentos e frios esvaecimentos de pudores e de belezas.

Sica contou-me também o grande poder musical de Paganini e a sua atitude nos concertos cheia de abaixamentos e servilidades; e contou-me também, meu amigo, aquela noite gloriosa e flamejante em que se tocava a tua sinfonia de Romeu e Julieta, e cm que ele veio, entre os aplausos e as vozes de coroação, ajoelhar e beijar-te as mãos, dizendo com os olhos cheios de água - Tu serás Beethoven! 

Ultimamente, como sabes, tinha uma doença de garganta que o emudeceu; trazia então um livro branco em que escrevia o que pensava nas conversações da noite; aquela doença não o vergou mais; ele tinha já o silêncio estoicismo da alma, e refugiou-se na mudez estoicismo do corpo.

Passava então com o rabequista Sica horas inteiras tocando rabeca ou guitarra. Ultimamente preocupava-o muito o ter de deixar a sua rabeca só, depois de morrer; e escrevia no seu livro: Quando eu estiver para morrer pensar que a hei-de deixar aqui, entre estas mulheres de aço, estes jornalistas lívidos e os agiotas calvos, no meio desta multidão esfomeada de materialidades! que se há-de encher de pó a um canto, ela, cheia de alma e de legenda!

No entanto ele acreditava que no dia em que morresse a sua rabeca havia de estalar e os pedaços apodrecidos na terra ir-se-iam confundir com o corpo dele nos átomos das árvores, ou das estrelas, ou das águas; e escrevia então: Que felicidade poder ter a mesma folhagem, dar a mesma luz, lançar a mesma espuma.

Ultimamente, porém, olhava para a rabeca com um ar triste e descrente; às vezes tomava a guitarra e ia tocar nela para junto da rabeca, com um gesto de carícias brandas, com um lento correr de dedos como se estivesse vestindo as cordas com a harmonia viva que tirava da alma; ele queria pôr todos os seus interiores divinos naquele gemer de guitarra, para fazer morrer de ciúmes a sua velha rabeca abandonada.

Por esse tempo, um dia que ele estava com Sica, escreveu assim: Já me não fio na minha rabeca; acredito que ela não há-de lamentai a minha morte; não morre, não! Há-de dar-se ao primeiro que a tomar nos braços; há-de dar-se com sufocações lascivas, e dizer-lhe os mesmos segredos místicos, voluptuosos e iluminados que me dizia a mim: que importa à rabeca que o pobre músico apodreça debaixo da terra? Ele escrevia isto com os olhos molhados de água.

Ultimamente o músico Sica necessitou ir à costa normanda, porque tinha lá seu pai, velho marinheiro, morrendo junto das águas; e quando voltou coberto de lutos e soluços, disseram-lhe que Paganini tinha partido para o Sul e o sr. Georges Harrys todo corado de saúde para as bandas do Hanover. Adeus, não te demores em Nizza, acaba depressa a tua sinfonia do Harold e recomenda-me ao nosso velho amigo - o Mar.

Tempo depois o homem que tinha mandado esta carta recebeu outra de Berlioz.

Estou ainda todo frio das visões desta noite. Sabes que moro nas Sorveiras, que são umas ruínas junto do mar, pedras bem conhecidas por toda a populaça do ar: abrigam-se ali, como numa pousada, os viajantes sombrios da atmosfera, que são as chuvas esguedelhadas, os ventos uivadores, os granizos que escarnecem, as moles brumas e os nevoeiros. Em redor estão espalhados os casebres dos pescadores todos conchegados como as ovelhas quando anda temporal no monte; a costa é terrível e no entanto às vezes o mar tem serenidades só semelhantes ao calmo olhar de um idiota.

Este povo trigueiro de pescadores sai logo de madrugada para os embalos da água nas suas lanchas esguias, carunchosas, todas cheias de legenda e do cheiro das pescas: logo na alvorada se sente em baixo, junto da voz da maresia, aquelas cantigas fortes de deitar redes, robustas como calabres, e sãs como o sol. É uma bela vida! Durante o Verão, nas sestas silenciosas do mar todos andam na pesca, os velhos, as crianças rotas, resplandecentes e sujas, e as mães de forte seio essas belas mulheres da costa da Itália que eram tão desejadas pelos marinheiros gregos e fenícios, duros e. calvos, que tinham visto Mileto e Abido e Corinto.

Agora que o Outono começa, esta pobre gente deixa as redes rasgarem-se ao vento, e vai para o interior dos povoados juntar-se nos campos à pobre gente curvada que lavra e que semeia.

Ontem fui, numa barca de pescador, até ao ponto em que o Var deságua. Sabes que é neste tempo que as pombas emigram para o Sul; reúnem-se em bandos gemedores e vão por cima do Mediterrâneo fazendo nódoas brancas pelo ar azulado. Quando voltei, o Sol descia: o barco vinha levado de um modo silencioso e casto pelos serenos embalos ondulosos. o mar tinha uma serenidade olímpica.

Eu tinha-me abandonado às molezas da tarde, e todo estirado à popa via o céu cobrir-se de uma cor rosada, como de um rubor de castidade. As estrelas começavam a aparecer; donde vinham elas? E donde é que vem a noite de tão longe que vem suada de luz? Eu via-as tremer e pensava que elas deviam ter frio e medo, lá em cima, nas solidões, sem deuses. Àquelas horas também aparecem as ondinas na água; quem sabe se as estrelas são mulheres de um elemento desconhecido, que vêm de noite em sereias sagradas celebrando um rito elegíaco? Quem sabe se são árvores agitadas por um vento, que deixam cair estes negros frutos, a melancolia, o amor, a sensualidade?

Depois ri-me destas imaginações; mas no meio do Mediterrâneo, ao anoitecer, num barco de pesca, vendo ao longe as linhas moles da costa de Itália, e sobre os montes os fogos dos pastores, não podia ver as estrelas como nas verdades e nos positivismos modernos e esqueci Arago, Berthelot e o velho Laplace.

E depois pensava como desejava morrer, que era nos braços da bem-amada; sol da minha natureza, sem dores mordentes, sem febres silenciosas, e ir assim entre as fulgurações do desejo e os deslumbramentos da alma e os beijos vermelhos e transfiguradores e os entrelaçamentos divinos sob o seu olhar santo, ir num lento desmaio da carne para a frialdade da terra e ali sentir-me lentamente dissipar pelas umidades fecundas, pelas seivas brancas, pelas espumas das nascentes, pelas raízes das florescências!

Ora quando assim vínhamos, vi na linha escura e áspera da costa uma massa sonora de arvoredo e por entre a sombra uma luz elegíaca.

- Que luz é aquela, meu velho? - disse eu da popa.

O pescador suspendeu as rijas ondulações dos remos, que ficaram direitos, escorrendo, todos esverdeados dos musgos da água.

- Aquela luz, senhor, é da casa das Serenas; a estas horas está ali abandonado um pobre homem que morreu lá ontem. Tinha chegado aqui há pouco, e era mais amarelo que a cera. do altar; até na costa diziam os velhos que ele se vendera ao Diabo; Deus me perdoe por falar assim nisto, de noite, em cima das águas. Ah! senhor, diziam que tocava na sua rabeca maldita que nem o Céu... Chamavam-lhe Paganini.

E o pescador meteu os remos na água, cantando com um embalo da voz:

Altra volta gieri bele
Blanch'e rossa com'un fiore
Ma ora nó. Non san piu biele
Consumatc dal'amore.

E depois voltando-se e com a voz ensurdecida pelo clamor das marés:

– E os padres agora não lhe querem cantar as suas ladainhas e enterrá-lo em terra santa. Se fosse meu parente e tal sucedesse ia para o fundo do mar: debaixo da água anda muito corpo de patrões e pilotos: eles não morreram, não; andam ainda vivos; e quando um pobre homem que tem mulher e filhos deita as suas redes, em dia de vento, quando o peixe anda arredio, eles costumam afugentar a pescaria com ramos de coral para as bandas da rede!... - O pescador falava assim lentamente com a voz pesada da religião das legendas.

Eu levava os olhos rasos de água e pensava que nunca tinha ouvido tocar o triste Paganini: sempre que ele deu os seus concertos, não sei que frias necessidades me prendiam longe da França.

Entrei nas Sorveiras com o peito cheio de friezas e de mortalidades. Quis trabalhar mas sentia-me dissolvido na pesada materialidade das coisas. 

Tomaram-me uns moles cansaços e fiquei sem pensamento, sem desejos, inerte e silencioso como um pombal donde fugiram todas as pombas. Sentia apenas o miar dos gatos lascivos e os uivas dos cães que andam de noite na praia esfomeados. O mar estava pesado de gemidos sob a noite lenta e mística.

Ora quando assim estava ouvi distante, como vindo dos lugares hieráticos das nuvens e das vias-lácteas, o gemido de uma rabeca. - Quem é que, àquelas horas, numa costa áspera de ventos imensos, quando os pescadores dormem nas frialdades da cinza da lareira enrodilhados nos farrapos dos mantéus, tocava assim rabeca junto do mar?

Fui amedrontado ao meu antigo baldo gótico e olhei pelas transparências doentias da noite. Nada. As ondas choravam o seu choro místico e as estrelas estavam na sua imobilidade donde se exalam religiões. Cerrei as portadas e voltei com o peito sacudido por um soluço de medo para junto do braseiro: então ouvi de novo aquele som triste da rabeca estender-se lentamente pelo mar como uma névoa sonora. Fiquei todo tomado de tremores e de frios: e ouvi então distintamente com os ouvidos da carne a música de uma rabeca acompanhada surdamente pelo mar.

Ao princípio foi uma melodia de fresca serenata, que a água acompanhava com um marulho úmido e alegre: e ao mesmo tempo ao longe havia o gemer rítmico do vento.

Então durante uns momentos eu ouvi unia música estranha da rabeca, acompanhada pelo mar, onde havia gemidos, dilacerações. e vozes pesadas de lágrimas, e melodias trágicas com dores da Natureza, e sempre por entre os sons alegres e meigos uma tristeza surda e lenta corria como a água corre lodosa entre os juncos, os canaviais e as eflorescências.

Havia vozes de rabeca aflitas e bárbaras: e às vezes dois mugidos sinistros do mar pareciam presos por uma melodia da rabeca, delgada, ténue, clara, como um fio de som. Eu não te sei dizer o que era aquela música sobrenatural, elegíaca, selvagem, trágica, suave, e escarnecedora.

Por fim de repente toda aquela orquestra poderosa se calou, como um bando de abutres e aves de noite gritando aflitas, com trágicas palpitações de asas, que vêm pousar num silêncio, sobre um rochedo das águas. Então senti, de entre aquela amontoação apocalíptica de harmonias, desprender-se solitária a voz da rabeca, e vir de leve tocar junto do meu balcão com meiguice, com moleza, com dissipação de lágrimas - as variações do Carnaval de Veneza.

Ninguém me pode tirar do coração que foi a alma de Paganini que deixou o seu corpo na natureza solitária das Serenas, e veio dizer o adeus da música ao seu velho amigo.

Adeus, meu meigo artista: sofre e transfigura-te pela dor: eu aqui estou cheio de saudade da nossa doce França, junto das águas tristes do Mediterrâneo.

Creio que depois da noite de ontem, nunca mais terei o riso sonoro e são. Adeus: dei os teus recados ao Mar, que te manda como voz de saudação o terrível temporal que agora vai na costa.
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O homem a quem esta carta foi escrita era um meigo artista, um pintor como Lantara, e assim descuidado, vivendo na boemia errante das misérias, das jovialidades e das Primaveras: mas a alma não se maculou com os contatos do corpo: no meio daquelas loucuras esteve sempre como uma pomba adormecida. 

Aquele pobre rapaz vivia numa trapeira, onde trabalhava sem sol, naquelas alturas silenciosas e castas onde vivem e crescem as flores do bem: depois enlouqueceu e foi recolhido a um hospital: e ali era sagradamente velado por uma enfermeira doce, delicada e branca como uma Virgem de ouro fino de uru livro de legendas: o pintor, que, como o seu amigo Lyser, ainda depois de doido desenhava, pediu um dia à enfermeira a sua touca engomada e lisa, e com um lápis desenhou ali, como um agradecimento de alma, toda a sorte de delicadas imaginações - asas abertas, coroas de folhagens, atidas que vinham beijar um pé branco, coroações de caridades. Uma noite a enfermeira ouviu um gemido, e veio encontrar o pobre pintor com as mãos postas diante de um retábulo alumiado; a doce rapariga cuidou no seu coração que ele se encomendava à Virgem; escutou: o pobre rapaz doido estava rezando ao seu velho amigo Cláudio Loreno; quando sentiu a enfermeira, voltou-se, e disse-lhe quase a chorar: - Deixo o meu corpo aos rios, às árvores, às abelhas, aos montes, às searas, a toda a Mãe-Natureza. Depois curvou-se, beijou a orla do vestido da enfermeira e ficou-se enroscado no chão, nas últimas frialdades. A enfermeira pousou a luz do retábulo junto do corpo, tirou a toalha da Virgem e estendeu-a sobre a face pálida do triste, transfigurada nas últimas formosuras. Ao outro dia de madrugada, quatro homens que riam das farsas da taberna, e cantavam más cantigas, levaram aquele branco corpo à vala dos pobres.

Fonte:
Eça de Queirós. Prosas bárbaras.