quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Luís Murat (Poemas Escolhidos)

PENAS PERDIDAS

Perguntas por que meus versos
Choram, em vez de sorrir...
É que eles são universos
Que estão quase a se extinguir.

Tristes deles, minha filha,
Tristes deles, minha irmã,
Raro é aquele que brilha,
Quando desponta a manhã.

São pequeninos fragmentos,
Pedaços da minha cruz,
Errando ao sabor dos ventos,
Como planetas sem luz.

As lágrimas que vieram
Umedecer este chão,
Num coração estiveram
Que já foi meu coração.

Pobre estrela desgarrada
Foi essa estrela de amor,
Hoje de todo apagada
No seu fumeiro de dor.

Irrompa, embora, no Oriente,
Qualquer aurora, qualquer,
Quem tem o Ocaso, somente,
Não vê a aurora nascer.

Houve uma dama formosa
Que meu coração colheu,
Como se colhe uma rosa
Mal o dia amanheceu.

Que quadra feliz foi essa!
Que meninice ideal!
O sonho que assim começa,
Quase sempre acaba mal!...

Um dia, a dama querida
Para outro país partiu...
Não cicatriza a ferida
Que uma ingratidão abriu.

Ela sumiu-se entre os astros,
Sem que a pudesse alcançar...
Quem é que, andando de rastros,
Pode um pássaro apanhar?
...................................................

O que hoje faço, portanto,
É fazer o que não fiz:
Enxugar, a furto, o pranto,
E fingir que sou feliz.

EM MEIO DO CAMINHO

Quando à varanda de ouro e nácar da poesia
Chega o fantasma negro e triste de meu verso,
Que nos olhos, outrora, a dúvida trazia,
Como as ruínas de ignoto e lúgubre universo,
Paira, branca, no azul, a sua imagem fria.

Minha estrofe soluça, a lágrima murmura,
Timidamente ao meu ouvido um ai queixoso,
Deixando atrás de si aberta a sepultura,
Onde - coveiro mau - vou enterrar o gozo
Da primeira saudade e da última ventura.

A demência, enroscada aos meus cabelos, ruge,
Desatrelando os seus mastins e as suas fúrias.
Arreminado o vento, entre os parcéis estruge:
E eu venço a preamar de todas as injúrias,
Apesar de seu lodo e da sua babuje.

Porão escuro e vil, de mortos carregado,
Vai minh’alma sulcando oceano fora. Rudo,
Rebenta o temporal às nuvens agarrado.
Debalde ao mar o horror dos meus nervos sacudo,
Debalde ao céu num ai subo aterrorizado!

Onde estais, onde estais, quimeras fugitivas?
Onde estais, onde estais, fugitivos amores?
Vejo-vos, sem clamor, nas sombras redivivas
Que vêm em procissão regar as minhas dores
- Desbotadas cecéns, pálidas sempre-vivas!

A antífona queixosa onde até hoje mora,
Como em cárcere de ouro, um astro prisioneiro,
Minha pobre e infeliz alma de poeta, agora,
Ao ouvir da saudade o verso derradeiro,
Com o verso delira e com o verso chora.

Olgas e torrentões trajaram-se de luto;
Secou-se o rio, a voz das árvores calou-se.
Um rumor tumular erriça o monte abrupto...
E o fruto, a sazonar no coração, mais doce
Que o mel, por que ficou tão amargo esse fruto?...

O que se vê na terra, e se entrevê no espaço
É uma projeção do que se passa n’alma.
Ah! tivesse-a ao meu seio, ah! tivesse-a ao meu braço,
Que voltaria a luz resplandecente e calma
À estrofe, onde ainda escuto o ruído de seu passo.

Seu nome tem a cor de um céu triste e remoto:
Tem nas letras azuis um arco-íris aberto;
Quando o ouço pronunciar, em cada letra noto
Um rio que parece entrar por um deserto,
Buscando a esfera ideal de algum país ignoto.

Seu nome, sua voz, tudo me encanta o ouvido,
E, em ídolos, consagra a ânsia desse transporte,
A luz dessa visão, o eco desse gemido...
E quando julgo entrar os penetrais da morte.
Eis-me à roda fatal, de novo, restituído!

E a isso chamam viver! Que suprema ironia!
Dorme a estrela no céu, como qualquer carcaça
No fundo de uma vala ou de uma galeria
De mortos, onde o mocho um epitáfio traça,
Quando num crânio pousa ou sobre um sonho pia!...

A luz de que nos serve? O sol que nos aquece,
De que nos serve o sol, se andamos solitários.
Sem teu bordão, ó fé, sem teu Calvário, ó prece?
A religião da infância, o incenso dos santuários,
Bem depressa se esvai, bem depressa se esquece!...

IRONIA DO CORAÇÃO

Como estavas formosa entre o mar e a minh’alma!
Ias partir... no céu vinha rompendo a aurora.
Eu te pedia - luz, tu me pedias - calma;
Eu te dizia: - “Crê”; tu me dizias: - “Chora!”

Beijei-te as mãos, beijei-te os pequeninos pés,
Como os lábios de um padre um assoalho sagrado.
Longe, ouvia-se ainda, entre os caramanchéis,
A melodiosa voz do luar apaixonado.

“É a voz do nosso amor, nos esponsais das flores.
Não chores mais, acalma a tua ansiedade.
Assim, como hei de eu dar trégua às minhas dores,
E recalcar no peito esta amarga saudade?”

Partiste... Sobre mim cerrou-se a escuridão.
E eu não ouso subir aos meus sonhos agora,
Porque, irônico e mau, me grita o coração,
Quando não creio: “crê!”, quando não choro: “chora!”

Fonte:
MURAT, Luís. Poesias escolhidas. Rio de Janeiro/RJ: J. Ribeiro dos Santos, 1917.

Luís Murat (1861 – 1929)

Luís Murat, (Luís Morton Barreto Murat), jornalista, poeta, filósofo e político, nasceu em Itaguaí, RJ, em 4 de maio de 1861, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 3 de julho de 1929.
Era filho do Dr. Tomás Norton Murat. Após concluir os estudos básicos no Imperial Colégio de Pedro II, segue para São Paulo e matricula-se no Curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade de Direito, bacharelando-se em 17 de março de 1886. Sua estreia literária deu-se em São Paulo, em 1879, no Ensaio Literário, órgão do clube literário Curso Anexo, redigido por ele e outros colegas. Mudando-se para o Rio de Janeiro, abraçou o jornalismo, e seus artigos captavam as atenções gerais. Publicou seu primeiro livro de poesias, Quatro poemas, em 1885. Fundou o jornal Vida Moderna (10 julho de 1886 a 25 junho de 1887) com Artur Azevedo, no qual colaboravam Araripe Júnior, Xisto Bahia, Coelho Neto, Alcindo Guanabara, Guimarães Passos, Raul Pompeia e outros. Depois colaborou na Cidade do Rio, de José do Patrocínio, em A Rua, com Olavo Bilac e Raul Pompéia, e em outros jornais cariocas. Escrevia também sob o pseudônimo Franklin. Jornalista combativo, empenhou-se a fundo nas campanhas da Abolição e pelo advento da República.
Em janeiro de 1890, publicou o poema dramático A última noite de Tiradentes, em folhetim, na Gazeta de Notícias. Nesse ano, foi eleito deputado pelo Estado do Rio e atravessou várias legislaturas. Foi secretário geral do governo fluminense e escrivão vitalício da provedoria da então Capital Federal. Insurgiu-se contra Floriano Peixoto, recebendo ordem de prisão, mas as imunidades parlamentares o salvaram. Foi, então, para o jornal O Combate e atacou violentamente o presidente.
Na Revolta da Armada, em setembro de 1893, redigia o jornal que publicou o manifesto do Almirante Custódio José de Melo. Esteve com os revoltosos na esquadra, mas deixou-se prender quando sentiu desvirtuado o intuito da revolução. Foi julgado e absolvido por unanimidade no Paraná. Seu artigo “Um louco no cemitério”, atacando frontalmente Raul Pompeia, por seu discurso no enterro de Floriano, foi a causa imediata do suicídio do autor de O Ateneu, no dia de Natal de 1895.
Autor de poesia romântica, liga-se acidentalmente à geração parnasiana, permanecendo meio difuso e pouco claro em suas manifestações como poeta. Sofreu influências dos românticos Victor Hugo e Théophile Gautier, que se evidenciam na tendência para as imagens fulgurantes e para a exaltação verbal, e dos poetas nórdicos, ao expressar certas notas profundas, obscuridades e uma atmosfera de espiritualismo. Era um poeta culto e investigador, e fez a poesia sem parecer preocupado em filiar-se a uma escola.

Bibliografia

Quatro poemas, 1885; A última noite de Tiradentes, 1890; Ondas, 1ª. Série, 1890; Poesias, 1892; Ondas, 2ª. Série, 1895; Sara, 1902; Ondas, 3ª. Série, 1910; Poesias escolhidas, 1917; Ritmos e ideias, 1920.

Fonte:

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Poetas Africanos III

Fotos dos poetas deste número
Não foi encontrada foto de Orlando Mendes

AGOSTINHO NETO
Angola

  Com os olhos secos

Com os olhos secos
- estrelas de brilho inevitável
através do corpo através do espírito
sobre os corpos inanimados dos mortos
sobre a solidão das vontades inertes
nós voltamos

Nós estamos regressando África
e todo o mundo estará presente
no super-batuque festivo
sob as sombras do Maiombe
no carnaval grandioso
pelo Bailundo pela Lunda

Com os olhos secos
contra este medo da nossa África
que herdamos dos massacres e mentiras

Nós voltamos África
estrelas de brilho irresistível
com a palavra escrita nos olhos secos
- LIBERDADE.
____________________

ARMANDO ARTUR
Moçambique

    Pelo dever

    de resistir e caminhar
    pelos destroços da nossa utopia,
    eis-nos aqui de novo, acocorados,
    aqui onde o tempo para
    e as coisas mudam.

    E para que o nosso sonho renasça

    com a levitação do vento e do grão,
    eis-nos aqui de novo,
    passivos como os espelhos,
    no tear da nossa existência.

    Este sempre será

    O nosso amanhecer.
    E a nossa perseverança
    é como a da erva daninha
    que lentamente desponta na pedra nua."
____________________

DAVID MESTRE
Angola
  
Espera

 Existo acento de palavra, carapinha
 recordação áspera de monandengue,
 mapa de conversas na visitação da lua,
 grávida luena sentada no verso da fome.

 aqui esqueço África, permaneço
 rente ao tiroteio dialeto das mulheres
 negras, pasmadas na superfície do medo
 que bate oblíquo no quimbo quebrado.

 num gabinete da Europa, dois geógrafos
 vão assinalar a estranha posição
 dum poeta cruzado na esperança morosa
 das palavras africanas aguardarem acento.
____________________

TOMAZ VIEIRA DA CRUZ
Angola

Fruta

Quitanda de fruta verde,
dá-me um gomo de laranja
para matar a sede.

Ou, então, será melhor
dar-me um veneno qualquer
porque eu ando perturbado
e o meu sonho anda queimado
por uns olhos de mulher!

- Minha senhora, laranja,
limão, fresquinho, caju,
ananás ou abacate!...

E a quintandeira passou,
saudável, viva, graciosa,
com uma flor desfolhada
no seu sorriso escarlate.

E no ar um som de musica ficou
e um perfume de fruta
que não matou minha sede

Ó agridoce quitanda
da fruta verde!...
____________________

ORLANDO MENDES 
Moçambique

História
        
Diz a História que descendo
De celtas, mouros e visigodos.
Descendo e deles herdei todos
Os caracteres fundamentais
E talvez herdasse alguns mais
    Da mestiçagem de outras raças
    Que fizeram guerras, combatendo
    Conquistaram e perderam praças.
    Diz a História e não tenho
    Do contrario uma prova séria
    Em testamento que a revele.
    E admito pois que o tamanho,
    O rosto, o sangue, a cor da pele,
    A fria razão e o instinto,
    Adquiri em séculos de Ibéria
    Para ser o que penso e sinto
    O que mostro e o que oculto,
    Excitável carne e uma voz
    Memória de um país adulto
    Que se não cala por não trair-me
    No idioma de meus avós,
    Para ser a mão direita firme
    Que enche de palavras o papel,
    Perpétuo aprendiz que sou eu
    De velho ofício sem licença.
    Admito. E as datas festejo
    E retomo lutas que não venço
    E amo nas horas do desejo
    Com o mesmo requinte que deu
    Origem de mim à Criação
    E bebo o vinho e como o pão
    Da minha sede e da minha fome.
    Admito. E por isso, deponho.
    Contudo, nada herdei que dome
    A grandeza nova que transmito,
    Não apenas sede, fome e sonho
    De vinho, de pão ou de infinito,
    Desejo, posse e fecundidade
    Coragem forjada no segredo
    Medo que se chore ou se brade
    Guerra de amigo ou de inimigo,
    Não propriamente o enredo
    Mas esta seiva elementar
    De África nos versos que digo
    E os homens a saibam cantar.
____________________

NELSON SAUTE 
Moçambique

    A ignorância do poeta

    O poeta contempla o mar
    no agoniado tédio da tarde.
    Caminha ao som de seus passos
    ombros recurvos mãos nos bolsos
    perseguindo a sua sombra.
    O cão que lhe roça a solidão
    não tolhe o verso escrito da memória.
    Os namorados não o fitam.
    De esguelha admira a inocência
    dos gestos amorosos.
    À sombra de jacarandás
    percorre o trajeto
    sobre as folhas silenciadas.

    O poeta ignora, mas a direção
    leva-o ao coração dos homens.

Théophile Gautiér (A Cafeteira)


Vi sob sombrios véus
Onze estrelas nos céus,
A lua, o sol também,
Me reverenciando,
E silenciando,
No meu sono e além.
A visão de José

I
Ano passado. Fui convidado, junto com dois amigos de ateliê. Arrigo Cohic e Pedrino Borgnioli, para passar alguns dias numa fazenda no interior da Normandia.

O tempo, que, na nossa partida, prometia ser maravilhoso, resolveu mudar de repente, e caiu tanta chuva que os caminhos esburacados por onde andávamos eram como o leito de uma torrente.

Afundávamos na lama até os joelhos, uma camada espessa de terra gorda se grudara nas solas de nossas botas, e seu peso retardava tanto nossos passos, que só chegamos no nosso destino uma hora depois do pôr-do-sol. Estávamos exaustos; por isso, nosso anfitrião, vendo o esforço que fazíamos para reprimir os bocejos e manter os olhos abertos, tão logo acabamos de cear, nos mandou levar cada um a seu quarto. O meu era grande; senti, ao entrar, uma espécie de calafrio, pois me parecia ter entrado em um mundo novo.

De fato, tinha-se a impressão de estar na época da Regência, diante da bandeira da porta de Boucher representando as quatro estações, os móveis sobrecarregados de ornamentos rococó de muito mau gosto, e os tremós dos espelhos pesadamente esculpidos. Nada estava fora do lugar. A penteadeira, coberta de caixas de pentes, de almofadas de pó-de-arroz, parecia ter sido usada na véspera. Dois ou três vestidos furta-cor, um leque pontilhado de lantejoulas em prata cobriam o assoalho bem encerado, e, para meu grande espanto, uma tabaqueira de esmalte aberta sobre a lareira estava cheia de fumo ainda fresco.

Só notei essas coisas depois que o empregado, colocando o castiçal na mesa-de-cabeceira, me desejou um bom sono e, confesso, comecei a tremer como uma folha. Despi-me prontamente, deitei-me, e, para acabar com tais temores bobos, logo fechei os olhos, virando-me para o lado da parede.

Mas foi impossível ficar nessa posição: a cama se agitava sob meu corpo como uma onda, minhas pálpebras se retraíam violentamente. Fui obrigado a me virar e ver. O fogo que ardia lançava reflexos avermelhados no aposento, de maneira que se podia distinguir sem esforço os personagens da tapeçaria e os rostos dos retratos enfumaçados pendurados na parede. Eram os antepassados do nosso anfitrião, cavaleiros em armaduras de ferro, conselheiros de peruca e belas senhoras de rosto pintado e cabelos empoados de branco, segurando uma rosa na mão.

De repente, o fogo adquiriu um estranho grau de atividade, um clarão esbranquiçado iluminou o quarto, e vi claramente que o que eu tomara por vãs pinturas era a realidade; pois as pupilas desses seres emoldurados se moviam, cintilavam de forma singular; seus lábios se abriam e se fechavam como lábios de pessoas que falam, mas eu nada ouvia além do tique-taque do relógio e do assobio de vento de outono. Um terror incontrolável se apoderou de mim, meus cabelos se arrepiaram na testa, meus dentes se entrechocaram a ponto de quase quebrar, um suor frio inundou todo o meu corpo. O relógio bateu onze horas. A vibração da última badalada retiniu longamente, e quando cessou por completo...

Ah! não, não ouso dizer o que aconteceu, ninguém acreditaria em mim e me tomariam por louco. As velas se acenderam sozinhas; o fole, sem que nenhum ser visível lhe imprimisse movimento, pôs-se a soprar o fogo, chiando como um velho asmático, enquanto as pinças remexiam os tições e a pá revolvia as cinzas. Depois, uma cafeteira atirou-se da mesa sobre a qual estava colocada e dirigiu-se, mancando, para o fogo, onde se meteu entre os tições. Em alguns instantes, as poltronas começaram a se mover, e, agitando seus pés retorcidos de maneira surpreendente, vieram se acomodar em volta da lareira.

II

Não sabia o que pensar do que via; mas o que estava por ver era ainda mais extraordinário. Um dos retratos, o mais antigo de todos, de um gordo bochechudo de barba grisalha, parecido, a ponto de ser confundido, com a imagem que eu tinha do velho Sir John Falstaff, tirou, com uma careta, a cabeça de seu quadro, e, depois de muito esforço, tendo passado os ombros e a barriga rotunda por entre as estreitas hastes da moldura, pulou pesadamente no chão. Nem bem tomou fôlego e tirou do bolso de seu gibão uma chave de uma pequenez impressionante, soprou sobre ela, para se assegurar de que a cavidade estaria bem limpa, e a utilizou em todos os quadros, um após outro. E todas as molduras se alargaram de modo a deixar passar facilmente as figuras que continham.

Padrecos janotas; senhoras idosas, secas e amarelas; magistrados com aspecto grave, envoltos em grandes togas negras; jovens fidalgos de meias de seda, calções de lã preta, com a ponta da espada erguida; todos esses personagens apresentavam um espetáculo tão bizarro que, apesar do meu pavor, não pude deixar de rir. Esses dignos personagens se sentaram; a cafeteira pulou agilmente para a mesa. Tomaram o café em xícaras japonesas de porcelana azul e branca, que acorreram espontaneamente de cima de uma escrivaninha, cada uma delas munida de um torrão de açúcar e uma colherinha de prata. Depois de tomado o café, xícaras, cafeteira e colheres desapareceram ao mesmo tempo e começou a conversa, certamente a mais curiosa que jamais ouvi, pois nenhum desses estranhos interlocutores olhava para o outro ao falar: todos tinham os olhos fixos no relógio.

Eu mesmo não conseguia desviar o olhar do relógio e me impedir de seguir o ponteiro, que caminhava para a meia-noite a passos imperceptíveis. Enfim, soou meia-noite; uma voz cujo timbre era exatamente o do pêndulo, fez-se ouvir e disse:

— Está na hora, é preciso dançar.

Toda a assembleia levantou-se. As poltronas recuaram por si mesmas; então, cada cavalheiro tomou a mão de uma dama, e a mesma voz disse:

— Vamos, senhores da orquestra, comecem!

Esqueci de dizer que o tema da tapeçaria era um concerto italiano de um lado, e do outro uma caça ao cervo na qual vários pajens tocavam trompa. Os picadores e os músicos, que até ali não haviam feito qualquer gesto, inclinaram a cabeça em sinal de assentimento. O maestro levantou a batuta, e uma harmonia viva e dançante ergueu-se dos dois lados da sala. Dançaram primeiro o minueto. Mas as notas rápidas da partitura executada pelos músicos não combinavam com aquelas reverências graves; por isso, cada casal de dançarinos, após alguns minutos, pôs-se a fazer piruetas como um pião alemão. Os vestidos de seda das mulheres, amassados nesse turbilhão dançante, emitiam sons de natureza peculiar; dir-se-ia o barulho de asas de um voo de pombos. O vento que se engolfava por baixo os inchava prodigiosamente, de modo que pareciam sinos dobrando.

O arco dos virtuoses passava tão rápido sobre as cordas, que jorravam centelhas elétricas. Os dedos dos flautistas se erguiam e baixavam como se fossem azougues; as bochechas dos picadores estavam infladas como balões, e tudo isso formava um dilúvio de notas e trinados tão apressados e de gamas ascendentes e descendentes tão intrincadas, tão inconcebíveis, que nem os próprios demônios seriam capazes de seguir tal compasso por dois minutos. Portanto, dava dó ver todos os esforços daqueles dançarinos para acompanhar a cadência. Eles pulavam, davam cabriolas, faziam semicírculos com as pernas, realizavam jetés battus e entrechats de três pés de altura, a tal ponto que o suor, caindo-lhes da testa sobre os olhos, lhes tirava as pintas e a maquiagem. Mas seu esforço era inútil, a orquestra estava sempre três ou quatro notas a sua frente.

O relógio bateu uma hora; eles pararam. Vi algo que me escapara: uma mulher que não dançava. Estava sentada numa bergère no canto da lareira e não parecia de modo algum tomar parte no que se passava ao seu redor. Nunca, nem em sonho, algo tão perfeito se apresentara aos meus olhos; uma pele de uma brancura deslumbrante, cabelos de um louro-acinzentado, longos cílios e pupilas azuis, tão claras e tão transparentes que através delas eu via sua alma, tão distintamente quanto uma pedra no fundo de um riacho. E senti que, se algum dia me acontecesse amar alguém, seria ela. 

Precipitei-me para fora da cama, de onde até então não conseguira me mover, e me dirigi para ela, guiado por alguma coisa que agia em mim sem que eu pudesse me dar conta; e me vi junto a seus joelhos, uma das suas mãos nas minhas, conversando com ela como se a conhecesse há vinte anos. Mas, por um prodígio bem estranho, enquanto eu lhe falava, ia marcando com uma oscilação de cabeça a música que não havia cessado de tocar; e mesmo estando no cúmulo da felicidade por conversar com uma pessoa tão linda, meus pés ardiam de vontade de dançar com ela. No entanto, não ousava convidá-la. Parece que ela compreendeu o que eu queria, pois, levantando para o mostrador do relógio a mão que eu não estava segurando, disse:

— Quando o ponteiro chegar ali, veremos, meu caro Théodore.

Não sei como ocorreu, não fiquei em absoluto surpreso ao ouvir ser assim chamado pelo meu nome, e continuamos a conversar. Enfim, a hora indicada soou, a voz com timbre de prata vibrou outra vez no quarto e disse:

— Ângela, você pode dançar com o cavalheiro, se lhe der prazer, mas sabe no que isso vai resultar.

— Pouco importa — respondeu Ângela, amuada.

E passou o braço de marfim em volta do meu pescoço.

— Prestíssimo! — gritou a voz. E começamos a valsar. O seio da jovem tocava o meu peito, sua face aveludada roçava a minha e seu hálito suave flutuava diante de minha boca. Nunca na vida sentira tamanha emoção; meus nervos estremeciam como molas de aço, meu sangue corria nas artérias como torrentes de lava e ouvia meu coração bater como um relógio preso as minhas orelhas. Entretanto, esse estado não tinha nada de penoso. Eu estava inundado de uma alegria inefável e gostaria de permanecer sempre assim, e, coisa admirável, ainda que a orquestra tivesse triplicado a velocidade, não precisávamos fazer esforço algum para segui-la.

Os espectadores, maravilhados com a nossa agilidade, gritavam bravo e com toda a força batiam palmas, que não emitiam som algum. Ângela, que até então valsara com energia e precisão surpreendentes, pareceu cansar-se de repente; pesava sobre meus ombros como se as pernas lhe tivessem faltado; seus pezinhos que, um minuto antes, roçavam o chão, só lentamente dele se desprendiam, como se estivessem carregados com um peso de chumbo.

— Ângela, você está cansada — disse-lhe eu. — Vamos descansar.

— Bem que eu gostaria — respondeu ela, enxugando a testa com o lenço.

— Mas, enquanto valsávamos, todos se sentaram; só resta uma poltrona e nós somos dois.

— Que importância tem isso, meu anjo lindo? Vou colocá-la no colo.

III

Sem fazer a menor objeção, Ângela sentou-se, envolvendo-me com os braços como se fossem uma echarpe branca, escondendo a cabeça no meu peito para se aquecer um pouco, pois se tornara fria como mármore.

Não sei por quanto tempo ficamos nessa posição, pois todos os meus sentidos estavam absorvidos na contemplação dessa misteriosa e fantástica criatura. Não fazia mais qualquer ideia da hora nem do lugar; o mundo real não existia mais para mim e todos os laços que me unem a ele tinham se rompido; minha alma, liberta de sua prisão de lama, nadava no vago e no infinito; eu compreendia o que nenhum homem pode compreender, os pensamentos de Ângela se revelando a mim sem que ela precisasse falar, pois sua alma brilhava em seu corpo como uma lâmpada de alabastro e os raios que saíam de seu peito traspassavam o meu de lado a lado.

A cotovia cantou, uma claridade pálida cintilou nas cortinas. Assim que Ângela a percebeu, levantou-se precipitadamente, deu-me adeus com um gesto e, após alguns passos, soltou um grito e caiu no chão. Tomado de assombro, acorri para levantá-la... Meu sangue congela só de pensar: tudo o que encontrei foi a cafeteira quebrada em mil pedaços. Diante dessa visão, persuadido de que tinha sido o joguete de alguma ilusão diabólica, apoderou-se de mim tal pavor que desmaiei.

Quando voltei a mim, estava em minha cama, com Arrigo Cohic e Pedrino Borgnioli de pé a minha cabeceira. Assim que abri os olhos. Arrigo exclamou:

— Ah! Ainda bem! Há quase uma hora estou esfregando suas têmporas
com água de colônia. Que diabo você fez essa noite? Hoje de manhã, vendo que você não descia, entrei no seu quarto e o encontrei estirado no chão, vestido à francesa, apertando nos braços um pedaço de porcelana quebrada como se fosse uma moça bonita.

— Por Deus! É a roupa de casamento de meu avô! — disse o outro, levantando uma das abas de seda de fundo rosa com ramagens verdes. — Vejam os botões de strass e filigrana dos quais ele tanto se vangloriava. Théodore deve tê-lo achado em algum canto e o vestiu para se divertir. Mas por que você se sentiu mal? — acrescentou Borgnioli. — Isso é coisa para uma amantezinha de ombros brancos; nós a pomos para descansar, tiramos seus colares, sua echarpe, e ela tem uma bela oportunidade para se fazer de dengosa.

— Foi apenas um desfalecimento que tive; sou sujeito a isso — respondi secamente. Levantei-me, despojei-me de minha ridícula vestimenta. E depois, fomos almoçar.

Meus três amigos comeram muito e beberam mais ainda; não comi quase nada, a lembrança do que se tinha passado me causava estranhas distrações. Terminado o almoço, como chovia a cântaros, não tivemos condição de sair e cada um se ocupou como pôde. Borgnioli tamborilou marchas guerreiras nas vidraças; Arrigo e o anfitrião jogaram uma partida de damas; eu puxei do meu álbum um pedaço de pergaminho e me pus a desenhar. Os esboços quase imperceptíveis traçados por meu lápis, sem que eu sequer percebesse o que fazia, acabaram por representar com maravilhosa exatidão a cafeteira que desempenhara um papel tão importante nas cenas da noite.

— É impressionante como esse rosto se parece com a minha irmã Ângela — disse o anfitrião que, terminada a partida, me observava trabalhar por cima do meu ombro.

De fato, o que ainda há pouco me parecera uma cafeteira era com toda a certeza o perfil doce e melancólico de Ângela.

— Por todos os santos do paraíso! Ela está morta ou viva? — exclamei num tom de voz trêmulo, como se a minha vida dependesse de sua resposta.

— Ela morreu há dois anos, de pneumonia, depois de um baile.

— Que pena! — respondi dolorosamente. E, contendo uma lágrima que estava prestes a cair, recoloquei o papel no álbum. Acabava de compreender que não mais haveria para mim felicidade sobre a terra!

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Adelino Fontoura (Poemas Escolhidos)


BORGHI MAMO

Ao doce timbre harmonioso e brando
Da tua voz, ó alma enamorada,
Sinto minha alma em sonhos embalada
E como que eu também fico sonhando!

Como agitava o vento, perpassando,
A harpa eólia no salgueiro alada,
Tal me agita essa voz apaixonada
Quando, ó ave de amor, surges cantando.

Ouvir-te é como ver nascer a aurora:
Tudo inunda de luz, tudo ilumina
A tua voz angélica e sonora.

Solta, pois, a volata peregrina!
Ama, geme, soluça, canta e chora,
Celeste Aída, Malibran divina!

ATRAÇÃO E REPULSÃO

Eu nada mais sonhava nem queria
Que de ti não viesse, ou não falasse;
E como a ti te amei, que alguém te amasse,
Coisa incrível até me parecia.

Uma estrela mais lúcida eu não via
Que nesta vida os passos me guiasse,
E tinha fé, cuidando que encontrasse,
Após tanta amargura, uma alegria.

Mas tão cedo extinguiste este risonho,
Este encantado e deleitoso engano,
Que o bem que achar supus, já não suponho.

Vejo, enfim, que és um peito desumano;
Se fui ter junto a ti de sonho em sonho,
Voltei de desengano em desengano

ANTES DE PARTIR

Venho ensopar de lágrimas o lenço
No tristíssimo adeus de despedida;
Em breve a Pátria vou deixar perdida
Além - na curva do horizonte imenso!

Em breve sobre o mar profundo e extenso
Adejará minh’alma dolorida,
Como a gaivota errante, foragida,
Sem ter um ninho onde pousar, suspenso!

Então, senhora, hei de pensar, tristonho,
Revendo a vossa angélica bondade,
Neste ninho de amor calmo e risonho;

E triste, sobre a triste imensidade,
Como quem despertou de um ledo sonho,
Hei de chorar o pranto da saudade.

VÁCUO

Não sei se pode haver padecimento
Mais profundo, mais íntimo e que tanto
Nos ponha na alma a dor que gera o pranto,
Do que um longo e tristonho isolamento.

Não ter um bem sequer no pensamento,
Nem o calor de um lar, nem o encanto
De um amor de mulher suave e santo,
É viver sem nenhum contentamento.

Bem sei que é bom sofrer, e me parece
Que esta vida sem dor nada seria,
E que é por isso até que se padece.

Mas esta solidão contínua e fria
Chega a ser tão cruel, que a não merece
Um coração que a dor mereceria.

SÚPLICA

Por mais que aspire ou queira, anele ou tente
Esquecer-me de ti - jamais me esqueço,
Ó bem amado ser por quem padeço,
Por quem tanto soluço inutilmente!

Bem que eu te peça, foges de repente,
E só me fica a dor que te não peço;
E eis tudo, ó céus! eis tudo o que eu mereço,
Em paga deste amor tão puro e crente.

Se te não move, pois, um desafeto
E se te apraz ao menos consolar
A desventura amarga deste afeto,

Ilumina com teu divino olhar
Esta alma que os teus pés, anjo dileto,
Vem, banhada de lágrimas, beijar.

GAZETINHA
 (No dia do seu primeiro aniversário)

Eu não venho trazer a voss’excelência
Um fantástico mimo high-lifeano;
Possuo um coração meridiano,
Mas não vivo nas pompas da Regência.

Porém, se eu fosse um príncipe indiano,
De sangue azul e antiga descendência,
Possuindo a Golconda, essa opulência,
E os tesouros do Índico Oceano,

Nessas pequenas mãos, tímido e mudo,
Minha senhora, eu deporia tudo...
Como os brilhantes de um colar, dispersos!

Mas... se sou pobre, o que tão mal me fica,
Consinta que, sem luvas de pelica,
Venha depor-lhe aos pés estes meus versos.

DESPEDIDA

Pois que é chegada finalmente a hora
Do triste afastamento e da provança,
Venho dizer-te adeus, gentil criança,
Venho dizer-te adeus, pois vou-me embora.

Morreu em mim a última esperança,
Bem como um sonho bom que se evapora;
Não sei que dor maior que resta agora
Sofrer, nem que maior desesperança.

Não sei, ó sorte mísera e nefasta,
Que assim me arrancas do seu lar querido,
Que assim me roubas sua imagem casta.

Bem vês que eu tenho o coração partido,
E teu peito, inda assim, não desengasta
Um soluço, uma lágrima, um gemido.

OHS! E AIS!

Essa mulher que tantos ohs! provoca,
Essa mulher que tantos ais! arranca,
Essa mulher quem é? Por que abre a boca
O Silvestre quando a vê? - É branca?

É morena? É francesa? É carioca?
As belezas helênicas desbanca?
O seu olhar os cérebros desloca?
O seu sorriso as lágrimas estanca?

Vamos, Raimundo, tu que viste há dias
A mágica visão, o ser terrestre,
Por quem já deste uns ais! e uns ohs! eu sinto,

Tira as garras da dúvida ao Matias,
Faze valsar o Lins, rir o Silvestre
E reler os Subsídios o Filinto.