quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

L. P. Baçan (A História do Velho e da Corça)

   
       Esta corça que você vê comigo é minha esposa. Nós não tínhamos nenhum filho nosso, então adotei o filho de meu escravo favorito e determinei fazê-lo meu herdeiro. Minha esposa, porém, sentia uma grande antipatia pela mãe e pela criança, fato que me escondeu até que fosse tarde demais. Quando meu filho adotivo tinha aproximadamente dez anos, fui obrigado a sair em viagem. Antes de ir, confiei a minha esposa a criança e a mão dela, implorando que cuidasse delas durante minha ausência, que durou um ano inteiro. Durante este tempo, ela se dedicou ao estudo das artes mágicas para levar a cabo seus planos maléficos. Quando adquiriu conhecimento e poderes suficientes, levou meu filho e a mãe para um lugar distante, transformando-os num bezerro e numa vaca. Depois pediu a meu mordomo que cuidasse dos dois como se fossem animais que ela havia comprado. Por fim, tratou de dar fim no meu escravo.

          Quando voltei, perguntei por meu escravo e pela criança.

          — Seu escravo está morto — disse ela. — Quando ao seu filho, eu não o vejo há dois meses e não sei onde ele está.

          Eu lamentei ao ouvir falar do morte de meu escravo, mas como meu filho havia apenas desaparecido, eu pensei que logo haveria de encontrá-lo. Porém, oito meses se passaram, sem nenhuma novidades dele. Então chegou a época das festas de Bairam.

          Para celebrar isso, ordenei que meu mordomo trouxesse uma vaca gorda para sacrificar. Ele assim fez. A vaca que ele trouxe era minha escrava, a mãe de meu filho. Quando eu estava a ponto de mata-la, ela começou a mugir baixinho, como se suplicasse por sua vida. Eu vi, então, que os olhos dela estavam cheios de lágrimas. Tomado de piedade, ordenei o mordomo para levá-la e trazer um outro. Minha esposa, que estava presente, ridicularizou a minha compaixão, dizendo maliciosamente:

          — O que está fazendo você? Mate esta vaca. É a melhor que nós temos para sacrificar.

          Tentei agradá-la, mas novamente o animal mugiu e suas lágrimas me desarmaram.

          — Leve-a embora! — ordenei ao mordomo. — Mate-a você, eu não posso fazer isso.

          O mordomo, cumprindo minhas ordens, a matou. Ao esfolada, porém, descobriu que ela não tinha nada além de ossos, embora aparentasse ter muita gordura. Fiquei consternado.

          — Fique com ela! — disse ao mordomo. — E se tiver um bezerro gordo, traga-o no lugar dela!

          Em pouco tempo ele trouxe um bezerro gordo que, embora eu não o reconhecesse, era meu filho. Tentou arduamente partir sua corda e vir até mim. Lançou-se a meus pés, com sua cabeça no solo, como se desejasse despertar minha piedade, implorando-me para não lhe tirar a vida.

          Eu fiquei ainda mais surpreso com essa ação do que fiquei com as lágrimas da vaca.

          — Vá — ordenei ao mordomo. — Leve de volta este bezerro, com bastante cuidado, e traga imediatamente outro em seu lugar.

          Assim que minha esposa me ouviu falar isso, indagou:

          — O que está fazendo você, marido? Não sacrifique nenhum outro bezerro senão este!

          — Esposa! — eu respondi. — Não sacrificarei este bezerro!

          Rebati todos os argumentos dela e permaneci firme. Matei um outro bezerro e libertei o primeiro. No dia seguinte, o mordomo me procurou e pediu para falar em particular.

          — Eu vim lhe contar uma notícia que eu o penso que irá gostar de ouvir. Eu tenho uma filha que conhece magia. Ontem, quando libertei o bezerro que você recusou sacrificar, eu contei a ela e ela sorriu. Imediatamente depois começou a chorar. Eu lhe perguntei por que ela estava fazendo aquilo.

          — Pai! — ela respondeu. — Este bezerro é o filho de mestre. Eu sorri de alegria ao vê-lo ainda vivo, mas lamentei ao lembrar que a mãe dele foi sacrificada. Essas transformações foram forjadas pela esposa de nosso mestre, que odiava o filho adotado.

          Ao ouvir essas palavras do mordomo, mal podem imaginar a minha surpresa. Pedi ao mordomo que trouxesse a filha dele e fui para o estábulo ver meu filho, que respondeu a seu modo a todo o meu carinho. Quando a filha do mordomo apareceu, eu lhe perguntei se ela poderia fazer meu filho voltar a sua forma natural.

          — Sim, eu posso — ela respondeu, — sob duas condições. A primeira é que ele me seja dado como marido. A segunda, é que o mestre me deixe castigar a mulher que o transformou em bezerro.

          — Com a primeira condição — respondi, — eu concordo de todo meu coração e ainda lhes darei um generoso dote. Quanto à segunda condição, também concordo, mas eu só lhe imploro que poupe a vida dela.

          — Assim será! — disse ela. — Será tratada como tratou o filho.

          Então ela apanhou uma vasilha de água e pronunciou sobre ela algumas palavras incompreensíveis. Depois, lançou essa água sobre o bezerro, que tomou imediatamente a forma de um homem jovem e belo.

          — Meu filho, meu querido filho! — exclamei, — beijando-o cheio de alegria. Esta linda jovem o salvou do terrível encanto terrível. Estou certo que, não apenas por gratidão, mas também por amor, você concorda em se casar com ela.

          Ele consentiu cheio de alegria, mas antes que eles estivessem casados, a jovem transformou minha esposa em uma corça, e é ela quem vê você aqui, ao meu lado. Eu desejei que ela tivesse esta forma, ao invés de a de um animal mais estranho, de forma que ninguém a olhasse com repugnância. Deixei meu filho cuidando de meus negócios e vivo viajando. Como não queria confiar minha esposa aos cuidados de ninguém, eu a levo comigo aonde for.

          E então, o que achou de minha história?

          — Realmente, é uma história maravilhosa e surpreendente — afirmou o gênio. — Por causa disso, eu concedo a você um terço do castigo desse comerciante.

          Quando o primeiro velho terminou de agradecer, o segundo, que estava conduzindo os dois cachorros pretos, disse ao gênio:

          — Eu gostaria de lhe contar o que aconteceu a mim e estou certo que achará minha história até mesmo mais surpreendente que a que acabou de ouvir. Mas quando eu terminar, também vai me garantir a terceira parte do castigo do comerciante.

          — Sim — respondeu o gênio. — Contanto que sua história seja mais surpreendente que a história da corça.

          Com este acordo feito, o segundo velho começou a narrar sua história.

continua...

Fontes:
BAÇAN, L. P. Lendas árabes. Pérola/PR: Ed. do Autor, 2007.
Imagem: http://um-livro-de-coisas.blogspot.com

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Silmar Bohrer (Lampejos Semanais) VIII


L. P. Baçan (O Comerciante e o Gênio)

       
   Havia um comerciante que possuiu grande riqueza, tanto em terras, mercadorias como também em dinheiro. Ele era obrigado, de tempos em tempos, a viajar para cuidar de seus negócios. Numa dessas vezes, ele montou seu cavalo, levando com ele uma sacola pequena na qual ele tinha posto alguns biscoitos e tâmaras, porque teria que atravessar o deserto, onde nenhuma comida poderia ser encontrada. Ele chegou ao seu destino sem qualquer infortúnio e, tendo terminado seus negócios, partiu em retorno. No quarto dia da jornada, o calor do sol era muito grande e ele decidiu descansar debaixo de algumas árvores. Ele achou, ao pé de uma enorme nogueira, uma fonte de água clara e corrente. Ele desmontou, amarrou seu cavalo a um galho da árvore e se sentou junto à fonte, depois de ter tirado da sacola algumas tâmaras e alguns biscoitos. Quando ele terminou de comer, lavou a face e as mãos na fonte.

          De repente, ele viu um gênio enorme, pálido de fúria, vindo para ele, com uma cimitarra nas mãos.

          — Levante-se! — ordenou o gênio, com uma voz terrível. — Deixe-me mata-lo como você matou meu filho!

          Ao dizer estas palavras, ele deu um grito horroroso. O comerciante, totalmente petrificado diante da face horrorosa do monstro e com as palavras contra ele, respondeu tremulamente:

          — Ai, meu bom senhor bom, o que posso eu ter feito a você para merecer esta morte horrorosa?

          — Eu o matarei! — repetiu o gênio. — Da mesma forma como você matou meu filho.

          — Mas — disse o comerciante, — como possa eu ter matado seu filho se não o conheço e nunca o vi até agora?

          — Quando você chegou aqui, você não se sentou no solo? — perguntou o gênio. — E você não apanhou algumas tâmaras de sua sacola e, ao come-las, não lançou os caroços fora?

          — Sim, eu certamente fiz isso — confirmou o comerciante.

          — Então, eu lhe falo você matou meu filho. Enquanto atirava os caroços fora, meu filho passou a sua frente e um deles o acertou no olho, matando-o. Assim, eu também matarei você.

          — Ah, senhor, me perdoa! — implorou o comerciante.

          — Não terei clemência com você — respondeu o gênio.

          — Mas eu matei seu filho sem querer, assim eu imploro que me poupe a vida.

          — Não! Eu o matarei como matou meu filho!

          Dizendo isso, ele amarrou os braços do comerciante, lançando-o ao solo. Ergueu a cimitarra para lhe a cabeça. O comerciante protestou mais uma vez sua inocência e lamentou as crianças de sua esposa, tentando evitar seu trágico destino. O gênio, com a cimitarra erguida acima de sua cabeça, esperou até que ele tivesse terminado, nem um pouco sensibilizado com as súplicas do outro.

          Quando o mercador percebeu que o gênio estava determinado a lhe cortar a cabeça, ele disse:

          — Só mais um pedido, eu peço. Conceda-me um adiamento, apenas um pouco de tempo para eu ir para casa dizer adeus a minha esposa e filhos e fazer meu testamento. Quando eu fizer isto, eu voltarei aqui e você me matará.

          — Se eu lhe conceder o adiamento que me pede, temo que você não volte mais aqui.

          — Eu lhe dou minha palavra de honra — respondeu o comerciante. — Eu voltarei sem falta.

          — Quanto tempo você quer? — perguntou o gênio.

          — Eu lhe peço a graça de um ano — respondeu o comerciante. — Eu lhe prometo que, daqui a doze meses, eu o estarei esperando debaixo desta árvore para lhe entregar a minha vida.

          Nisso o gênio o deixou perto da fonte e desapareceu. O comerciante, tendo se recuperado do susto, montou seu cavalo e retomou seu caminho. Quando chegou em casa, a esposa e as crianças o receberam com a maior das alegrias. Mas em vez de abraçá-los, ele começou a se lamentar amargamente. Eles adivinharam logo que algo terrível havia acontecido.

          — Fale, conte-nos o que aconteceu! — pediu a esposa dele.

          — Ai! — respondeu-lhe. — Eu só tenho um ano para viver.

          Então ele lhes contou o que tinha acontecido entre ele e o gênio, e como ele tinha dado sua palavra de voltar ao término de um ano para ser morto. Quando eles ouviram esta notícia terrível, entraram em desespero e lamentaram muito. No dia seguinte, ao retomar seus negócios, a primeira coisa que o comerciante começou a fazer foi pagar suas dívidas. Deu presentes para os amigos e grandes esmolas para os pobres. Ele determinou a liberdade de seus escravos e cuidou para nada faltasse à esposa e aos filhos.

          O ano passou logo, obrigando-o a partir. Quando ele tentou dizer adeus, quase foi vencido pelo sofrimento e, com dificuldade, tomou a direção de seu destino final. Quando lá chegou, ele desmontou e se sentou junto à fonte, onde ele esperou a chegada do gênio terrível. Estava ali, esperando, quando um homem velho que conduzia uma corça veio até ele. Saudaram-se e então o velho indagou:

          — Deixe-me perguntar, irmão, o que o trouxe a este lugar do deserto, onde há tantos gênios maus? Vendo estas belas árvores, qualquer um imagina que o local é habitado, mas, na verdade, é um lugar perigoso para se parar por muito tempo.

          O comerciante falou para o velho por que era obrigado a estar ali. O outro o ouviu com surpresa.

          — Mas esse é um acontecimento maravilhoso! Eu gostaria de ser testemunha de seu encontro com o gênio — falou o velho, sentando-se ao lado do comerciante.

          Enquanto eles conversavam, um outro velho chegou, seguido por dois cachorros negros. Ele os saudou e perguntou o que eles estavam fazendo naquele lugar. O velho que estava conduzindo a corça lhe contou a aventura do comerciante com o gênio. O segundo velho, que jamais ouvira uma história semelhante, também decidiu ficar para ver o que iria acontecer. Sentou-se junto aos outros e estavam conversando, quando um terceiro velho chegou, trazendo em seus braços um pote amarelo. Ele perguntou por que o comerciante que estava com eles parecia tão triste. Eles lhe contaram a história e ele também decidiu ficar para ver o que aconteceria entre o gênio e o comerciante.

          Estavam esperando, quando viram uma fumaça espessa, como uma nuvem de poeira. Aquilo foi se aproximando cada vez mais e então tudo desapareceu repentinamente. Eles viram o gênio que, sem falar com eles, se aproximou do comerciante, com espada na mão. Segurando-o pelo braço, disse:

          — Levante-se e me deixe matá-lo como você matou meu filho.

          O comerciante e os três velhos começaram a lamentar e gemer. Então o velho que conduzia a corça se lançou aos pés do monstro e suplicou:

          — Príncipe dos Gênios, eu imploro que detenha sua fúria e me escute. Eu vou lhe contar minha história e a da corça que tenho comigo. Se você achá-la maravilhosa, eu peço que anule um terço do castigo do comerciante que está a ponto de matar!

          O gênio considerou algum tempo, e então disse:

          — Muito bem, eu concordo com isso.

          — Eu vou começar minha história agora — disse o velho. — Por favor, ouça-me com atenção! — pediu ele e iniciou sua história.

continua...

Fontes:
BAÇAN, L. P. Lendas árabes. Pérola/PR: Ed. do Autor, 2007.
Imagem: http://um-livro-de-coisas.blogspot.com

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Silmar Bohrer (Lampejos Semanais) VII


Fiodor Dostoiévski (O Duplo)

O Duplo é um romance do escritor russo Fiódor Dostoiévski, escrito um ano após o seu livro de estreia, Pobre Gente.

O Duplo narra as aventuras do conselheiro titular Goliadkin e das suas terríveis inquietações em torno de um colega que lhe usurpa a identidade enquanto seu homônimo.

Concebida ainda numa prematura fase do autor russo, O Duplo é ao mesmo tempo «uma história verídica» sobre as crispações - e alienações - de um homem que se vê privado de seus direitos enquanto pessoa particular numa sociedade intrusa e ávida de usurpação, e de uma história documentada sobre a existência do indivíduo em torno de fatores que o levam à insanidade mental e à ruptura da sociedade, mercê de uma vida em que o terror supera o amor em sua plena renovação - fatores esses que desencadearam décadas de superstição e preconceito numa Rússia agitada pelos ventos avassaladores de que o realismo soube tirar proveito.

O mais inquietante neste romance de contornos realistas é a completa desconfiança do senhor Goliadkin – desconfiança essa partilhada ao longo da narrativa pelo leitor – perante as causas que disparam a sua condição. O senhor Goliadkin é antes de qualquer suspeita um homem aparentemente normal, não fosse a sua incessante agitação em redor dos seus inimigos, numa sociedade onde se fomenta a intriga na primeira pessoa. É neste contexto que nos é apresentado o senhor Goliadkin.

Porém, a existência deste homem, aparentemente anônimo e oculto da sociedade de que faz parte, é repentinamente abalada com a aparição de um senhor Goliadkin «completamente igual a si próprio», como se este fosse prova viva da sua pavorosa ocupação.

Após haver dado guarida ao senhor «completamente igual a si» - um indivíduo bastante infeliz e miserável, que passara por várias provações na vida -, o senhor Goliadkin ver-se-á numa situação deveras delicada quando o mesmo a quem dera «do seu pão» se haver convertido em seu inimigo.

A situação em casa do senhor Goliadkin seria para o senhor Goliadkin uma forma muito frutuosa de se passar despercebido na sociedade que frequentava; compreendera mesmo a causa que o deixaria incólume. Porém, o seu homônimo acabaria por se deixar passar por ele mesmo, ora granjeando o carinho dos chefes do departamento, ora fazendo-se convidado no reduto dos seus mais diretos inimigos.

Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Duplo_(romance)

sábado, 16 de dezembro de 2017

Silmar Bohrer (Lampejos Semanais) IV


Monteiro Lobato (A Chave do Tamanho) VIII - A travessia das salas

Para chegar à varanda tinham de subir o último degrau da escada. Por onde? Pelo único caminho existente, o pau da vassoura. Como? Muito bem. Juquinha a ergueria nos ombros e a poria lá. Depois, lá de cima, ela ajudaria Juquinha a subir, dando-lhe a mão. 

"Não! Isso não serve. Posso escorregar e cair. O melhor é eu ir sozinha engatinhando pelo pau até a varanda, e ver se lá existe alguma corda. Se houver corda, Juquinha subirá por ela — e em seguida a Candoca. Está certo."Depois de bem planejada a subida, explicou tudo ao menino e deram começo à realização da ideia. Juquinha, menino forte, ergueu-a facilmente ao ombro e empurrou-a para cima do cabo da vassoura.

— Muito bem — disse Emília lá do alto. — Agora eu subo até a varanda em procura de corda, e você me espera aí com a Candoca — e pôs-se a engatinhar pelo cabo da vassoura acima. Chegando ao nível da varanda, pulou. Encontrou lá um montinho de lixo da manhã.

Emília compreendeu que a criada estava no meio da variação quando ficou reduzida — e a vassoura escorregou pela escada. Nesses ciscos de casa de família, "corda" é coisa que não falta nunca. Emília encontrou vários pedaços de fios de linha, bons para o fim desejado. Arrastou um deles até à quina do degrau e gritou para o menino lá em baixo:

— Achei uma corda ótima. Vou jogar a ponta. Faça uma laçada e passe-a pela cintura da Candoca. Depois suba pela corda acima como os marinheiros sobem pelo cordame dos navios. Mas antes de jogar a corda tenho de amarrar a outra ponta em alguma coisa aqui. Espere.

Emília olhou em torno. Onde amarrar a ponta da "corda"? O chão da varanda era de ladrilhos, sem felpa nenhuma ou prego. Emília foi examinar a soleira da porta, que era de madeira. Descobriu uma excelente lasquinha, ajeitadíssima para o caso, mas inútil, porque ficava a três centímetros de altura. Inútil? Com um pau ela poderia enfiar lá uma laçada feita na ponta da "corda". Só restava achar o pau.

Emília voltou para o montinho de cisco. Que riqueza de materiais! Havia tudo ali. "Cordinhas", paus, pedras, fiapos de pano e rolos de "penugem de cisco".

O pau encontrado foi uma palhinha da vassoura. Emília enfiou a laçada num gancho da palhinha e ergueu-a até à lasca.

— Ótimo! A laçada cerrou e não escapa.

Depois jogou a ponta da "corda" pelo degrau abaixo.

— Pronto, Juquinha. Deixe a Candoca amarrada e suba. Aqui de cima nós dois suspenderemos essa manhosa.

E assim foi feito. O menino subiu com a maior facilidade, porque era mestre em trepar em árvores. Em seguida os dois juntos suspenderam a Candoca. Aí é que ela chorou de verdade, aos berros, como se fosse o fim do mundo. "É natural", pensou Emília fazendo a conta. "Este degrau tem 15 vezes a alturinha dela; corresponde, pois, a uma altura de 27 metros para o Coronel Teodorico. Até ele, um homenzarrão, era capaz de chorar se alguém o suspendesse 27 metros na ponta de uma corda."

Muito bem. Lá estavam os três na varanda, Tinham agora de entrar na casa, o que foi fácil, porque a soleira da porta era apenas de 5 centímetros de altura e havia aquele precioso cisco para ajudá-los. Emília e o menino tomaram duas palhinhas de vassoura de igual comprimento, quebraram outra mais fina em pedaços iguais e amarraram esses pedaços nas duas palhinhas — e lá subiram pela escada feita. A Candoca resistiu. Não queria subir. Estava com medo e a chorar que nem um bezerro. O remédio foi repetirem a operação anterior. Passaram-lhe a corda sob os braços e suspenderam-na à força.

Lá dentro da casa Emília admirou a imensidão de tudo. No assoalho viu um tapete verde-cana com ramagens cor-de-rosa. Tinha meio centímetro de espessura — metade da altura dela! 

— Este tapete está me parecendo um pasto de capim-catingueiro florescido que os bois ainda não amassaram.

Como fosse impossível atravessar a sala por cima do tapete, tiveram de dar volta junto ao rodapé. Em certo ponto viram um enorme balde vermelho: o dedal de celuloide da Zulmira, caído por ali.

— Ótimo! — exclamou Emília. — Vamos deixar a Candoca guardadinha neste "balde", enquanto procuramos o algodão. Esta manhosa só serve para nos atrapalhar.

A Candoca foi sentada à força dentro do dedal e lá ficou chorando, enquanto Emília e Juquinha continuavam a viagem pela beira do rodapé. Em certo ponto encontraram uma pulga dormindo. Que tamanho! Era como um leitão para um homem comum. Juquinha pregou-lhe um pontapé. A pulga arregalou os olhos, assustada, e deu um pulo gigantesco. Logo adiante viram uma traça, dessas que parecem semente de abóbora e caminham com a cabecinha de fora, arrastando a "casa". Pararam para ver bem.

— Estes bichinhos aprenderam o sistema, com os caramujos — disse Emília. — Com eles não há isso de "ir para casa" porque a casa anda com eles.

Notou que a casa da traça era feita de pedacinhos de lã, cortados do tapete e ligados entre si dum modo especial. Emília quis fazer uma experiência.

— Será que se eu trepar em cima ela continua andando? — e trepou.

A traça, porém, encolheu a cabeça, como faz a tartaruga, e ficou imóvel. Emília desceu.

— Não presta. Isto não dá cavalo.

E contou ao Juquinha as suas proezas com o mede-palmo, com o caramujo, com o besouro de pintas amarelas e a mutua. O menino ficou radiante à ideia de montar num besouro.

— Muito melhor que os cavalos — disse ele — porque os besouros voam.

— Antigamente os cavalos também voavam, disse Emília.

— Quando? Nunca ouvi falar nisso.

— Na Grécia houve um tal Pégaso que voava maravilhosamente. O Walt Disney pintou o retrato dele, da Pégasa e dos Pegasosinhos, naquela fita a Fantasia. Não viu?

— Eu bem quis ver, mas papai não deixou. Disse que era muito caro.

— "Pão duro!" Por isso mesmo está "empapado".

— Quê?

— Está dormindo na Papolândia — atrapalhou Emília. — Mas depois da Grécia os cavalos perderam as asas, como as içás quando enjoam de voar e descem. Já agora podemos ter quantos Pégasos quisermos. Podemos montar em besouros, em borboletas, e até em libelinhas. Imaginem que gosto, voarmos montados na velocidade incrível das libelinhas!

E assim, na prosa, chegaram ao quarto de Dona Nonoca. Lá estava a estante dos remédios, imensa, com caixas de pílulas e vidros. Também lá estava o pacote azul do algodão com um chumaço aparecendo. Mas muito alto — na segunda prateleira.

— O algodão está encimíssimo — observou Emília. — Está como papagaio de papel enganchado no fio telefônico. Como derrubar aquilo? O jeito era esse: derrubar. Pacotes de algodão pesam pouco. Se conseguissem alcançá-lo com uma vara... Mas que é da vara?

Emília espiou entre a estante e a parede.

— Achei! Achei! Há aqui um vão escuro, cheio de velhas teias de aranha pelas quais podemos subir.

— E a aranha? — perguntou o menino.

— Não vejo nenhuma. É teia velha, e estes fios aguentam perfeitamente o meu peso — disse Emília experimentando. — Não há como não ter peso nem tamanho. Tudo vira fácil — e foi subindo.

Juquinha de nariz para o ar, acompanhava a manobra.

— A estante tem forro — disse ele. — Quero ver como a senhora passa.

— O forro é de pinho — respondeu Emília. — As tábuas de pinho às vezes têm nós que caem e deixam um buraco. Estou rezando para que este forro seja de tábua de pinho com buraco de nó. Se não houver passagem, paciência. Descerei e procurarei outro meio.

continua…

Fonte:
Monteiro Lobato. A Chave do Tamanho.