quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

V Prêmio Escambau de Microcontos (Resultados I)

Elias Alves da Silva

Nos últimos metros da maratona, olhou para trás para conferir sua posição. Ninguém à vista. Faltava pouco. Era agora ou nunca – o sonho de uma vida. Ao cruzar a linha de chegada, os funcionários, que já retiravam os equipamentos do evento, assistiram ao seu momento de glória.

Laurel Cantuária

Achava que não sentiria mais nada. Porém, a nostalgia o abraçou quando a esposa lhe trouxe flores. Desejou estar vivo para recebê-las.

Zé Ronaldo

Ouviu o clique. Suou frio. Saci nunca poderia imaginar que membro fantasma pudesse acionar mina terrestre.

Francisco Petrônio

Adorava a casa dos tios: guerras de travesseiros, implicâncias mútuas. Bastou a primeira espinha, uns finos pelos no sovaco e as primeiras alterações na voz do primo para ser proibida de “ir para dormir”. Defrontava-se com a realidade de que sua liberdade termina quando começa a puberdade do outro.

Erinilton Gomes Soares

A prancha de surfe na parede. Recordação do tempo em que a filha era dele e não do mar.

Victor Tsuneichi Chida

A flauta empoeirada no canto da sala era um lembrete constante dos sonhos da juventude. Em seus ouvidos hoje, somente o apito marcando o início de mais um turno.

Thyago Costa

Essa foi a votação mais acirrada que já vi. Os a favor tinham total certeza que era o certo a se fazer, os contrários gritavam com raiva ao discordar. No fim o primeiro grupo venceu e eu já estava fora do meu corpo quando as máquinas que ainda faziam meu coração bater foram desligadas.

Thadeu Melo

Ariel, diante da tela, congela. “Não tenho certeza”, pensa. Recorda de sua vida. Que nunca ficou doente; Da sua aptidão nata para as exatas; De sua paixão pelo sci-fi. É a primeira vez que baixa nesse servidor e não sabe como proceder diante da frase no pop-up que pede seu clique: “Não sou um robô”.

Claudia Jeveaux Fim

Aquele café que a esposa serviu, lembrou sua infância.  A nostalgia disfarçou o sabor amargo do veneno.

Cristiane Dias

Respirou fundo e relaxou assim que a maratona acabou. Só de olhar aqueles atletas correndo já estava ficando sem ar.

Mariana Carolo

O amor é milagroso, ela disse. Tocando flauta, ele não a escutou. Sorrindo, ela entendeu que a supernova que criaram começava a se apagar. Nem os milagres são eternos. Ao final daquele ano, restou a escuridão do espaço e um silêncio que soprava ao longe.

Romeu Martins

“O surfe está nas minhas veias!”
“Percebi”, respondeu Drácula cuspindo parafina e fiapos de prancha.

Luiz Antonio Caldas Filho

Na noite boêmia, Lúcio encantava chorinhos em sua flauta transversal. No escuro do quarto, mais tarde, chorava baixinho a falta de Ester.

Emerson Conto

Terminada a votação, recebeu dos colegas de cela um olhar nulo. O código de honra havia sido quebrado e, para que a ordem fosse restabelecida, o eleito deveria morrer. No cárcere, o branco da paz se pintava com mais sangue.

Sá Tiro

Numa História alternativa, o soldado grego partiu de Maratona em corrida, para anunciar a vitória, mas enganou-se no caminho. Quando conseguiu chegar a Atenas, encontrou todas as mulheres e crianças degoladas. Era o combinado, para evitar a violação pelos Persas vencedores. Morreu de remorsos.

Isaac Morais

Com um corte resolveu o problema. Só assim para ter o poder de escolher não virar homem na puberdade.

Tatiana Alves

Achava que tudo na vida era passível de votação, com direito a recurso e a recontagem. Mas se meteu numa terra sem lei, pleito ou sufrágio. E nos olhos da amada vislumbrou abstenção.

Edweine Loureiro

Concluiu o percurso de quarenta e dois quilômetros em duas horas, dois minutos e cinquenta e oito segundos. Não bateu o recorde mundial da maratona, mas, pelo menos, deixara a polícia para trás.

Joaquim Carlos Trovador

Ela era uma costureira da alta sociedade. Ele era um famoso alfaiate. Ambos se amavam e se odiavam. Às vezes, por causa da rivalidade, perdiam a linha, mas entre uma alfinetada e outra eles se costuravam!

Mylena Oliveira

Vestiu seu vestido floral, arrumou o cabelo delicadamente, colocou os sonhos no bolso junto com seu RG onde ainda via escrito “Paulo Borges de Souza”. Foi trabalhar. Sua maior aventura era voltar viva pra casa.

Carolina Santos

Lutou incansavelmente por cada braça até receber do latifundiário os sete palmos que lhe eram de direito.

Edweine Loureiro

O casal vivia responsabilizando o Governo por todos os problemas que tinham. Até serem expulsos do Paraíso.

Mariana Carolo

A novidade brotando na barriga. Quanto mais cheia, mais vazia se sentia.

Aparecida Gianello

Teve um filho, escreveu um livro, plantou uma árvore. O filho cresceu, o livro não vendeu e a árvore agora era sua única esperança… Saiu pra comprar a corda.

Welington Moraes

O vaso quebrado. A cinta na mão. Um osso quebrado. Um olho vazado. O sangue no chão. Os anos de mocidade abreviados. A prisão. O choro. A mãe. O abandono. O caixão. O filho se vai. O pai fica. O resto é amargura e silêncio…

João Paulo Hergesel

A mãe vivia dizendo: “Bota, menino, uma cinta nessa calça! Coisa feia, a cueca aparecendo”.
Mas a mãe não entendia nada do que as meninas gostavam. Mãe nunca foi menina…

Laurel Cantuária

O espantalho comandava o governo. Afirmava proteger os milhos, mas vivia com os corvos sobre os ombros.

Carolina Santos

Um grupo de células se rebelaram contra o governo. Ao receber o resultado do exame descobriu em lágrimas que teria apenas alguns meses de vida.

Regina Ruth Rincon Caires

Com passos trôpegos, caminha pela areia. Fora levado a conhecer o mar. Novidade tardia. Fitando o horizonte, no encontro de céu e água, sente os olhos marejados. No peito, o mesmo encanto de quando conheceu um rio, lá atrás, na primeira pescaria com o pai.

Edweine Loureiro

Quando Yukiko mostrou pela primeira vez aquela cinta-liga vermelha sob o quimono, Hiro, seu namorado, não pôde conter-se: comprando logo, para ele, uma cinta do mesmo tipo.

Thadeu Melo

Cruza enfim a linha de chegada, vitorioso! Foi uma árdua maratona. O alívio vem ao subir o topo do pódio. Gozará agora de um longo repouso. Ouve-se um som de beep contínuo.
—Doutor, venha ver.
—Céus…
—Devo avisar os familiares?
—Não, não. Eu cuido disso. Apenas desligue os aparelhos.
—Sim, senhor.

Claudia Jeveaux Fim

Entrava em tubos, picos e até marolas…
A prancha de surfe na parede, o levava ao Secret Point, mesmo preso às máquinas.

Luiz Antonio Caldas Filho

— Alguém aqui sabe o que é puberdade?
— É quando o menino e a menina começam a ver aqueles videos?
— Qué isso, Pedrinho? Que vídeos?
— Do Bolsonaro, professora!

Clara Gianni

Urgente! Aos 27 anos, morre a famosa artista pop La… CLIQUE AQUI PARA MAIS INFORMAÇÕES

Cristian X Baek

Rita, trinta e um tombo. Em nove anos de coma viveu inesquecíveis cem vidas, de pó a pó. Desperta agora em eterno déjà-vu, presa e livre. Nostalgia instantânea, um presente com gosto de passado. Futuro não há. Sem medos ou anseios, pois hoje o tempo é não-linear. Nada como o mesmo dia após o outro.

Luiz Antonio Caldas Filho

Encontrara a solução para sua nostalgia. Uma forma de viajar 100 anos no passado. Para azar de todos, não era cientista; apenas presidente.

Laurel Cantuária

Entre um clique e outro, Suzanna fotografou o casamento do homem com quem viveria pelo resto da vida.

Iolandinha Pinheiro

Foram cinco cliques, um para cada membro da família, e em poucos segundos era o herdeiro universal.

Jefferson Lemos

Imediatamente sentiu falta de casa, e ali, sozinho, a nostalgia era sua única companhia. Quão triste era o último homem da terra, preso na lua, vendo seu planeta se dissolver numa bola de fogo colossal.
Não tinha muito o que fazer; chorou.

Carolina Santos

Meu nome? Staphanie Granada. O que eu faço? Ah, eu pratico surfe de trem. Medo? Não tenho medo não. É no “back-side” do metal que toda parada acontece, agora se tomar a “vaca”, aí mano, já era, vira comida de trilho.

Aldenor Pimentel

Enfadado de lugares-comuns, o poeta refugiou-se nas montanhas. Do topo, mergulhou no mar de palavras já ditas. Encharcado delas, caminhou até a praia e as deixou cair na areia. Com a ponta dos dedos, enterrou-as no chão e viu brotarem neologismos. Para ele, reinventar o antigo não era novidade.

Thadeu Melo

 Nosso herói parte em sua busca pelo totem perdido. Escala montanhas, navega em águas turvas, atravessa pântanos, desertos… devasta vilas e castelos…
— Achou o grampeador?
— Ah… sim, sim.
— Certo. Às 6 quero aquele relatório.
O herói segue em sua aventura rumo à morte do tédio no dia-a-dia…

Junior Alves

Sem conseguir furtar nada, ele saiu da casa aos trancos e barrancos, quebrando tudo que pôde.
– Seja homem e saia já dessa árvore! – Berrou o velho em seu encalço, bufando ao ver para onde ele se refugiara.
– Meu bem… – Uma senhora gritou da porta – Deixe esse esquilo em paz e volte para dentro!

Gina Eugênio Girão

“Por destino, uma Parca fiandeira – porém, corto, do vestido, a anágua”, declamou ela, costureira de si mesma, tecituras ao tempo da maturidade. E arrematou: “Necessário, também, bordar e pintar, tricotar, bricolar, rasgar e remendar!”

Natalia Vale

Linha a linha, ponto a ponto, nó a nó, a obra nasce. A costureira olha-a, embevecida, como se de um filho se tratasse. Mas, tristemente, perde-lhe o rasto. Resta-lhe a memória, que também se vai desvanecendo.
Letra a letra, o livro surgiu. Perdeu-se, igualmente, no tempo.

Denise Andressa Gonsalez Santos

Pimenta no copo, feijão na garrafa e chita na braça, assim eram vendidas as coisas no armazém do Seu Tião. O velho coronel media e precificava bicho, coisa e gente com a exatidão dos próprios critérios. O trinta e oito e alguns jagunços garantiam isso.

Regina Ruth Rincon Caires

Como podia, um homem tão miúdo, ser respeitado por dizer: “óia” a cinta?! E era… Como era! Nunca desferiu uma lambada. O corretivo ficava na competência da mãe. Nas mãos dela, o couro comia…

Rita Zuim Lavoyer

Romântico, Enzo sonhou uma liberdade utópica. Fugiu para a natureza. Com ela identificou-se. Fixou-se ali. Fez parte dela. Viu-se árvore. Debaixo dela fez o balanço da sua existência. Regresso, concluiu: há sonhos possíveis. Agora, lança sementes. Quer ser árvore e sombra para quem dele precisar.

Nilo Paraná

Procurou pelos confins do universo, mas foi no seu planeta natal que ele encontrou a árvore da vida. Quase seca, morrendo, assim como seu desértico mundo. Cada folha que caia era mais uma galáxia destruída. O fim dos tempos chegara. Abriu sua cova e deitou-se. A última folha veio cobri-lo.

Tatiana Alves

Manter o governo daquela embarcação era quase impossível. A prudência já o abandonara havia muito tempo. A obsessão por aquela baleia controlava seu coração e, desde então, seus atos adernavam tanto quanto o navio em dia de tempestade.

Carolina Santos

 A aventura era diária. Às cinco da manhã equilibrava a criança no ônibus cheio, escalava a escada para limpar vidros de elite, abdominais que lustravam o chão, percorria trilhas de desgostos sorrindo. À noite, em sonho, subia a mais alta montanha e respirava liberdade.

Junior Alves

 Já destemido ele nasceu. Um só frio na barriga, jamais sofreu. Segunda enfrentava dragões, terça demônios exorcizava, quarta estudava os males e quinta os experimentava. Sexta matava inimigos, sábado os carregava e domingo, as moças ele cortejava. E só quando morreu, o que era aventura ele entendeu.

João Paulo Hergesel

Maria segurava o envelope com a novidade em uma das mãos; com a outra, alisava a barriga. Quando o marido chegou, abraçaram-se e derramaram algumas lágrimas. Depois de nove meses, o câncer intestinal a levou.

Romeu Martins

— Que estresse este trabalho sobre sistemas de medidas!
— Por que, amor?
— Olha essa tal de braça, usada no campo: “comprimento de dois braços abertos, como num abraço”. Seria como usar a duração de um beijo pra medir o tempo! Que tipo de mundo usa abraços e beijos como padrão?
— Um mundo melhor?

Regina Ruth Rincon Caires

 Audacioso?! Não, isso Nicanor nunca foi. Mas, quando descansou os olhos naquele rosto aformoseado pelo véu preto, na missa de domingo, perdeu o juízo. Estonteado, jogou-se na aventura. Não sabia que era a mulher do açougueiro. Hoje, Nicanor figura na estatística dos desaparecidos.

Claudio Antonio Mendes

Quando alguém pediu para a costureira uma mortalha, ela não imaginava que seria para si mesma. Alguns babados do passado ficaram sem arremates.

Thadeu Melo

Enquanto isso, na vila:
– Braça! Você não sabe o que é braça? — pergunta Seu Barriga.
— É a mulher do braço? — responde Chaves.
(Ah não, Thadeu! É esse o microconto? Tu fazes melhor que isso!)
Exausto e cego pelo nevoeiro, desistiu e afogou-se à distância de uma braça da baía.
(Agora sim!)

Emerson Conto

A mãe fingia não entender como Danilo, educado para ser um bom cristão, tornara-se um assassino. Já o rapaz atribuía seu comportamento justamente à criação que tivera:
- A cinta do pai foi minha igreja - balbuciou diante do homem enforcado pela moral de couro que lhe sustentava as calças.

Fonte:

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Domingos Freire Cardoso (Depois do Circo já ter ido embora)


João do Rio (Os tatuadores)

- Quer marcar?

Era um petiz de doze anos talvez. A roupa em frangalhos, os pés nus, as mãos pouco limpas e um certo ar de dignidade na pergunta. O interlocutor, um rapazola louro, com uma dourada carne de adolescente, sentado a uma porta, indagou:

- Por quanto?

- É conforme, continuou o petiz. É inicial ou coroa?

- É um coração!

- Com nome dentro?

O rapaz hesitou. Depois:

- Sim, com nome: Maria Josefina.

- Fica tudo por uns seis mil réis.

Houve um momento em que se discutiu o preço, e o petiz estava inflexível, quando vindo do quiosque da esquina um outro se acercou.

- Ó moço, faço eu; não escute embromações!

- Pagará o que quiser, moço.

O rapazola sorria. Afinal resignou-se, arregaçou a manga da camisa de meia, pondo em relevo a musculatura do braço. O petiz tirou do bolso três agulhas amarradas, um pé de cálix com fuligem e começou o trabalho. Era na Rua Clapp, perto do cais, no século XX... A tatuagem! Será então verdade a frase de Gautier: “o mais bruto homem sente que o ornamento traça uma linha indelével de separação entre ele e o animal, e quando não pode enfeitar as próprias roupas recama a pele”?

A palavra tatuagem é relativamente recente. Toda a gente sabe que foi o navegador Loocks que a introduziu no ocidente, e esse escrevia tattou, termo da Polinésia de tatou ou de tahou, desenho. Muitos dizem mesmo que a palavra surgiu no ruído perceptível da agulha da pele: tac, tac. Mas como é ela antiga! O primeiro homem, decerto, ao perder o pelo, descobriu a tatuagem.

Desde os mais remotos tempos vê-mo-la a transformar-se: distintivo honorífico entre uns homens, ferrete de ignomínia entre outros, meio de assustar o adversário para os bretões, marca de uma classe para selvagens das ilhas Marquesas, vestimenta moralizadora para os íncolas da Oceania, sinal de amor, de desprezo, de ódio, bárbara tortura do Oriente, baixa usança do Ocidente. Na Nova Zelândia é um enfeite; a Inglaterra universaliza o adorno dos selvagens que colhem o phormium tenax para lhe aumentar a renda, e Eduardo com a âncora e o dragão no braço esquerdo é só por si um problema de psicologia e de atavismo.

Da tatuagem no Rio faz-se o mais variado estudo da crendice. Por ele se reconstrói a vida amorosa e social de toda a classe humilde, a classe dos ganhadores, dos viciados, das prostitutas de porta aberta, cuja alegria e cujas dores se desdobram no estreito espaço das alfurjas (ruelas) e das chombergas (casinhas). Suas tragédias de amor morrem nos cochicholos sem ar, numa praga que se faz de lágrimas. A tatuagem é a inviolabilidade do corpo e a história das paixões. Esses riscos nas peles dos homens e das mulheres dizem as suas aspirações, as suas horas de ócio e a fantasia da sua arte e a crença na eternidade dos sentimentos - são a exteriorização da alma de quem os traz.

Há três casos de tatuagem no Rio completamente diversos na sua significação moral: os negros, os turcos com o fundo religioso e o bando das meretrizes, dos rufiões e dos humildes, que se marcam por crime ou por ociosidade. Os negros guardam a forma fetiche; além dos golpes sarados com o pó preservativo do mau olhado, usam figuras complicadas. Alguns, como o Romão da Rua do Hospício, têm tatuagens feitas há cerca de vinte anos, que se conservam nítidas, apesar da sua cor - com que se confunde a tinta empregada.

Quase todos os negros têm um crucificado. O feiticeiro Ononenê, morador à Rua do Alcântara, tem do lado esquerdo do peito as armas de Xangô, e Felismina de Oxum a figura complicada da santa d’água doce.

Esses negros explicam ingenuamente a razão das tatuagens. Na coroa imperial hesitam, coçam a carapinha e murmuram, num arranco de toda a raça, num arranco mil vezes secular de servilismo inconsciente:

- Eh! Eh! Pedro II não era o dono?

E não se fotografam com um pavor surdo, como se fosse crime usar essas marcas simbólicas.

Os turcos são muçulmanos, maronitas, cismáticos, judeus, e nestas religiões diversas não há gente mais cheia de abusões, de receios, de medos. Nas casas da Rua da Alfândega, Núncio e Senhor dos Passos, existem, sob o soalho, feitiçarias estranhas, e a tatuagem forra a pele dos homens como amuletos. Os maronitas pintam iniciais, corações; os cismáticos têm verdadeiros “eikones” primitivos nos peitos e nos braços; os outros trazem para o corpo pedaços de paramentos sagrados. É por exemplo muito comum turco com as mãos franjadas de azul, cinco franjas nas costas da mão, correspondendo aos cinco dedos. Essas cinco franjas são a simbolização das franjas da taleth (manto), vestimenta dos Khasan, nas quais está entrançado a fio de ouro o grande nome de Jeová.

A outra camada é a mais numerosa, é toda a classe baixa do Rio - os vendedores ambulantes, os operários, os soldados, os criminosos, os rufiões, as meretrizes. Para marcar tanta gente a tatuagem tornou-se uma indústria com chefes, subchefes e praticantes.

Quase sempre as primeiras lições vieram das horas de inatividade na cadeia, na penitenciária e nos quartéis; mas eu contei só na Rua Barão de S. Félix, perto do Arsenal de Marinha, e nas ruelas da Saúde, cerca de trinta marcadores. Há pequenos de dez, doze anos, que saem de manhã para o trabalho, encontram os carregadores, os doceiros sentados nos portais.

- Quer marcar? - perguntam; e tiram logo do bolso um vidro de tinta e três agulhas.

Muitos portugueses, cujos braços musculosos guardam coroas da sua terra e o seu nome por extenso, deixaram-se marcar porque não tinham que fazer.

- Que quer V.S.? - O pequeno estava a arreliar. - Marca, moço, marca! – E tanto pediu que pôs pra aí os risquinhos.

Os pequenos, os outros marcadores ambulantes, têm um chefe, o Madruga, que só no mês de abril deste ano fez trezentas e dezenove marcações.

Madruga é o exemplo da versatilidade e da significação inumerável da tatuagem. Tem estado na cadeia várias vezes por questões e barulhos, vive nas Ruas da Conceição e S. Jorge, tem amantes, compõe modinhas satíricas e é poeta. É dele este primor, que julga verso:

- Venha quanto antes d. Elisa / Enquanto o Chico Passos não atiça / Fogo na cidade...

Homem tão interessante guarda no corpo a síntese dos emblemas das marcações - um Cristo no peito, uma cobra na perna, o signo de Salomão, as cinco chagas, a sereia, e no braço esquerdo o campo das próprias conquistas. Esse braço é o prolongamento ideográfico do seu monte de Vênus onde a quiromancia vê as batalhas do amor. Quando a mulher lhe desagrada e acaba com a chelpa, Madruga emprega leite de mulher e sal de azedas, fura de novo a pele, fica com o braço inchado, mas arranca de lá a cor do nome.

Enquanto andou a fornecer-me o seu profundo saber, Madruga teve três dessas senhoras - a Jandira, a Josefa e a Maria. A primeira a figurar debaixo de um coração foi a Jandira. Um belo dia a Jandira desaparecia, dando lugar à Josefa, que triunfava em cima, entre as chamas. Um mês depois a letra J sumira-se e um M dominava no meio do coração.

Os marcadores têm uma tabela especial, o preço fixo do trabalho. As cinco chagas custam 1$000, uma rosa 2$000, o signo de Salomão,o mais comum e o menos compreendido porque nem um só dos que interroguei o soube explicar, 3$000, as armas da Monarquia e da República 6$ a 8$, e há Cristos para todos os preços.

Os tatuadores têm várias maneiras de tatuar: por picadas, incisão, por queimadura subepidérmica. As conhecidas entre nós são incisivas nos negros que trouxeram a tradição da África e, principalmente, as por picadas que se fazem com três agulhas amarradas e embebidas em graxa, tinta, anil ou fuligem, pólvora, acompanhando o desenho prévio. O marcador trabalha como as senhoras bordam.

Lombroso diz que a religião, a imitação, o ócio, a vontade, o espírito de corpo ou de seita, as paixões nobres, as paixões eróticas e o atavismo são as causas mantenedoras dessa usança. Há uma outra - a sugestão do ambiente. Hoje toda a classe baixa da cidade é tatuada - tatuam-se marinheiros, e em alguns corpos há o romance imageográfico de inversões dramáticas; tatuam-se soldados, vagabundos, criminosos, barregãs, mas também portugueses chegados da aldeia com a pele sem mancha, que a influência do meio obriga a incrustar no braço coroas do seu país.

Andei com o Madruga três longos meses pelos meios mais primitivos, entre os atrasados morais, e nesses atrasados a camada que trabalha braçalmente, os carroceiros, os carregadores, os filhos dos carroceiros deixaram-se tatuar porque era bonito, e são no fundo incapazes de ir parar na cadeia por qualquer crime. A outra, a perdida, a maior, o oceano da malandragem e da prostituição é que me proporcionou o ensejo de estudar ao ar livre o que se pode estudar na abafada atmosfera das prisões. A tatuagem tem nesse meio a significação do amor, do desprezo, do amuleto, da posse, do preservativo, das ideias patrióticas do indivíduo, da sua qualidade primordial.

Quase todos os rufiões e os rufistas do Rio têm na mão direita entre o polegar e o indicador cinco sinais que significam as chagas. Não há nenhum que não acredite derrubar o adversário dando-lhe uma bofetada com a mão assim marcada.

O marinheiro Joaquim tem um Senhor crucificado no peito e uma cruz negra nas costas. Mandou fazer esse símbolo por esperteza: quando sofre castigos os guardiões sentem-se apavorados e sem coragem de sová-lo.

- Parece que estão dando em Jesus!

A sereia dá lábia, a cobra atração, o peixe significa ligeireza na água, a âncora e a estrela, o homem do mar, as armas da República ou da Monarquia a sua compreensão política. Pelo número de coroas da Monarquia que eu vi, quase todo esse pessoal é monarquista.

Os lugares preferidos são as costas, as pernas, as coxas, os braços, as mãos. Nos braços estão em geral os nomes das amantes, frases inteiras, como por exemplo esta frase de um soldado de um regimento de cavalaria: “viva o marechal de ferro!...”, desenhos sensuais, corações. O tronco é guardado para as coisas importantes, de saudade, de luxúria ou de religião.

Hei de lembrar sempre o Madruga tatuando um funileiro, desejoso de lhe deixar uma estrela no peito.

- No peito não! - cuspiu o mulato - no peito eu quero Nossa Senhora!

A sociedade, obedecendo à corrente das modernas ideias criminalistas, olha com desconfiança a tatuagem. O curioso é que - e esses estranhos problemas de psicologia talvez não sejam nunca explicados – o curioso é que os que se deixam tatuar por não terem mais que fazer, em geral o elemento puro das aldeias portuguesas, o único quase incontaminável da baixa classe do Rio, mostram sem o menor receio os braços, enquanto os criminosos, os assassinos, os que já deixaram a ficha no gabinete de antropometria, fazem o possível para ocultá-los e escondem os desenhos do corpo como um crime.

Por quê? Receio de que sejam sinais por onde se faça o seu reconhecimento? Isso com os da polícia talvez.

Mas mesmo com pessoas, cujos intentos conhecem, o receio persiste, porque decerto eles consideram aquilo a marca de fogo da sociedade, de cuja tentação foram incapazes de fugir, levados pela inexorável fatalidade.

Há tatuagens religiosas, de amor, de nomes, de vingança, de desprezo, de profissão, de beleza, de raça, e tatuagens obscenas.

A vida no seu feroz egoísmo é o que mais nitidamente ideografa a tatuagem.

As meretrizes e os criminosos nesse meio de becos e de facadas têm indeléveis ideias de perversidade e de amor. Um corpo desses, nu, é um estudo social. As mulheres mandam marcar corações com o nome dos amantes, brigam, desmancham a tatuagem pelo processo do Madruga, e marcam o mesmo nome no pé, no calcanhar.

– Olha, não venhas com presepadas, meu macacuano. Tenho-te aqui, desgraça! E mostram ao malandro, batendo com o chinelo, o seu nome odiado.

É a maior das ofensas: nome no calcanhar, roçando a poeira, amassado por todo o peso da mulher...

Há ainda a vaidade imitativa. As barregãs das vielas baratas têm sempre um sinalzinho azul na face. É a pacholice, o “grain de beauté”, a gracinha, principalmente para as mulatas e as negras fulas que o consideram o seu maior atrativo. Quando envelhecem, as pobres mulheres mandam apagar os sinais – porque querem ir limpas para o outro mundo, e a Florinda, há pouco falecida, que rolara quarenta anos nos bordéis de S. Jorge e da Conceição, dizia-me antes de morrer:

– Ai, meu senhor, isto é para os homens! Quando se fica velho arranca-se, porque a terra não vê e Deus não perdoa.

Grande parte desses homens e dessas mulheres tem o delírio mais sensual, fazem os nomes queridos em partes melindrosas, marcam os membros delicados com punhais, lâmpadas e outros símbolos. Neste caso eu tenho o Antônio Doceiro, um lindo rapazito que foi bombeiro depois de ter rolado pelo mundo, e a Anita Pau. Ambos têm desenhos curiosos por todo o corpo, e a pobre Anita mostra no calcanhar por extenso o nome do pai seus filhos e traz em cada seio a inicial dos dois pequenos como numa oferenda – a sua única oferenda de mãe aos desgraçados perdidos...

Num meio de tão fraca ilusão, onde as miçangas substituem os “pendentifs d’arte” e a vida ruge entre o desejo e o crime, depois de muito os pobres entes marcados como uma cavalhada – a cavalhada da luxúria e do assassínio, – começa a gente a sentir uma concentrada emoção. E a imaginar com inveja o prazer humano, o prazer carnal, que eles terão ao sentir um nome e uma figura debaixo da pele, inalteráveis e para todo o sempre.

Aquele pequeno impressionou-me de novo na sua profissão estranha. Indaguei:

– Quanto fizeste hoje?

– Hoje fiz doze mil réis.

E eu compreendi que afinal tatuador deve ser uma profissão muito mais interessante que a de amanuense de secretaria...

 Fonte:
RIO, João do. A Alma Encantada das Ruas.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Hegel Pontes (Duas Chamas)


Monteiro Lobato (Búgio moqueado)

— Uno!

Ugarte...

— Dos!

Adriano...

— Cinco...

Vilabona...

— ...

Má colocação! Minha pule é a 32 e já de saída o azar me põe na frente Ugarte... Ugarte é furão. Na quiniela anterior foi quem me estragou o jogo. Querem ver que também me estraga nesta?

— Mucho, Adriano!

Qual Adriano, qual nada! Não escorou o saque, e lá está Ugarte com um ponto já feito.

Entra Genúa agora? Ah, é outro ponto seguro para Ugarte. Mas quem sabe se com uma torcida...

— Mucho, Genúa!

- Raio de azar! — Genúa “malou” no saque. Entra agora Melchior... Este Melchior às vezes faz o diabo. Bravos! Está aguentando... Isso, rijo! Uma cortadinha agora! Buena! Buena! Outra agora... Oh!... Deu na lata! Incrível...

Se o leitor desconhece o jogo da pelota em cancha pública — Frontão da Boa-Vista, por exemplo, nada pescará desta gíria, que é na qual se entendem todos os aficionados que jogam em pules ou “torcem”.

Eu jogava, e, portanto, falava e pensava assim. Mas como vi meu jogo perdido, desinteressei-me do que se passava na cancha e pus-me a ouvir a conversa de dois sujeitos velhuscos, sentados à minha esquerda.

“... coisa que você nem acredita, dizia um deles. Mas é verdade pura. Fui testemunha, vi! Vi a mártir, branca que nem morta, diante do horrendo prato...”

“Horrendo prato?” Aproximei-me dos velhos um pouco mais e pus-me de ouvidos, alerta.

— “Era longe a tal fazenda”, continuou o homem. “Mas lá em Mato-Grosso tudo é longe. Cinco léguas é “ali”, com a ponta do dedo. Este troco miúdo de quilômetros, que vocês usam por cá, em Mato-Grosso não tem curso. E cada estirão!... “Mas fui ver o gado. Queria arredondar uma ponta para vender em Barretos, e quem me tinha os novilhos nas condições requeridas, de idade e preço, era esse Coronel Teotônio, do Tremedal.

Encontrei-o na mangueira, assistindo à domação dum potro — zaino, ainda me lembro... E, palavra d’honra! não me recordo de ter esbarrado nunca tipo mais impressionante. Barbudo, olhinhos de cobra muito duros e vivos, testa entintada de rugas, ar de carrasco... Pensei comigo: Dez mortes no mínimo. Porque lá é assim. Não há soldados rasos. Todo mundo traz galões... e aquele, ou muito me enganava ou tinha divisas de general.

Lembrou-me logo o célebre Panfilo do Aio Verde, um de “doze galões”, que “resistiu” ao tenente Galinha e, graças a esse benemérito “escumador de sertões”, purga a esta hora no tacho de Pedro Botelho os crimes cometidos.

Mas, importava-me lá a fera! — eu queria gado, pertencesse a Belzebu ou a São Gabriel. Expus-lhe o negócio e partimos para o que ele chamava a invernada de fora.

Lá escolhi o lote que me convinha. Apartamo-lo e ficou tudo assentado.

De volta do rodeio caía a tarde e eu, almoçado às oito da manhã e sem café de permeio até aquel’hora, chiava numa das boas fomes da minha vida. Assim foi que, apesar da repulsão inspirada pelo urutu humano, não lhe rejeitei o jantar oferecido.

Era um casarão sombrio, a casa da fazenda. De poucas janelas, mal iluminado, mal arejado, desagradável de aspectos e por isso mesmo toante na perfeição com a cara e os modos do proprietário. Traste que se não parece com o dono é roubado, diz muito bem o povo. A sala de jantar semelhava uma alcova. Além de escura e abafada, rescendia a um cheiro esquisito, nauseante, que nunca mais me saiu do nariz — cheiro assim de carne mofada...

Sentamo-nos à mesa, eu e ele, sem que viva alma surgisse para fazer companhia. E como de dentro não viesse nenhum rumor, conclui que o urutu morava sozinho — solteiro ou viúvo. Interpelá-lo? Nem por sombras. A secura e a má cara do facínora não davam azo à mínima expansão de familiaridade; e, ou fosse real ou efeito do ambiente, pareceu-me ele inda mais torvo em casa do que fora em pleno sol.

Havia na mesa feijão, arroz e lombo, além dum misterioso prato coberto em que não se buliu. Mas a fome é boa cozinheira. Apesar de engulhado pelo bafio a mofo, pus de lado o nariz, achei tudo bom e entrei a comer por dois.

Correram assim os minutos. Em dado momento o urutu, tomando a faca, bateu no prato três pancadas misteriosas. Chama a cozinheira, calculei eu. Esperou um bocado e, como não aparecesse ninguém, repetiu o apelo com certo frenesi. Atenderam-no desta vez. Abriu-se devagarinho uma porta e enquadrou-se nela um vulto branco de mulher.

- Sonâmbula?

— Tive essa impressão. Sem pingo de sangue no rosto, sem fulgor nos olhos vidrados, cadavérica, dir-se-ia vinda do túmulo naquele momento. Aproximou-se, lenta, com passos de autômato, e sentou-se de cabeça baixa.

Confesso que esfriei. A escuridão da alcova, o ar diabólico do urutu, aquela morta-viva morre-morrendo, a meu lado, tudo se conjugava para arrepiar-me as carnes num calafrio de pavor. Em campo aberto não sou medroso — ao sol, em luta franca, onde vale a faca ou o 32. Mas escureceu? Entrou em cena o mistério? Ah! — bambeio de pernas e tremo que nem geleia! Foi assim naquele dia...

Mal se sentou a morta-viva, o marido, sorrindo, empurrou para o lado dela o prato misterioso e destampou-o amavelmente. Dentro havia um petisco preto, que não pude identificar. Ao vê-lo a mulher estremeceu, como horrorizada.

— “Sirva-se!” disse o marido.

Não sei por que, mas aquele convite revelava uma tal crueza que me cortou o coração como navalha de gelo. Pressenti um horror de tragédia, dessas horrorosas tragédias familiares, vividas dentro de quatro paredes, sem que de fora ninguém nunca as suspeite. Desd’aí nunca ponho os olhos em certos casarões sombrios sem que os imagine povoados de dramas horrendos. Falam-me de hienas. Conheço uma: o homem...

Como a morta-viva permanecesse imóvel, o urutu repetiu o convite em voz baixa, num tom cortante de ferocidade glacial.

— “Sirva-se, faça o favor!” E fisgando ele mesmo a nojenta coisa, colocou-a gentilmente no prato da mulher.

Novas tremuras agitaram a mártir. Seu rosto macilento contorceu-se em esgares e repuxos nervosos, como se o tocasse a corrente elétrica. Ergueu a cabeça, dilatou para mim as pupilas vítreas e ficou assim uns instantes, como à espera dum milagre impossível. E naqueles olhos de desvario li o mais pungente grito de socorro que jamais a aflição humana calou...

O milagre não veio — infame que fui! — e aquele lampejo de esperança, o derradeiro talvez que lhe brilhou nos olhos, apagou-se num lancinante cerrar de pálpebras. Os tiques nervosos diminuíram de frequência, cessaram. A cabeça descaiu-lhe de novo para o seio; e a morta-viva, revivida um momento, reentrou na morte lenta do seu marasmo sonambúlico.

Enquanto isso, o urutu espiava-nos de esguelha, e ria-se por dentro venenosamente...

Que jantar! Verdadeira cerimônia fúnebre transcorrida num escuro cárcere da Inquisição. Nem sei como digeri aqueles feijões!

A sala tinha três portas, uma abrindo para a cozinha, outra para a sala de espera, a terceira para a despensa. Com os olhos já afeitos à escuridão, eu divisava melhor as coisas; enquanto aguardávamos o café, corri-os pelas paredes e pelos móveis, distraidamente. Depois, como a porta da despensa estivesse entreaberta, enfiei-os por ela a dentro. Vi lá umas brancuras pelo chão sacos de mantimento — e, pendurada a um gancho, uma coisa preta que me intrigou. Manta de carne seca? Roupa velha? Estava eu de rugas na testa a decifrar a charada, quando o urutu, percebendo-o, silvou em tom cortante:

— É curioso? O inferno está cheio de curiosos, moço...

Vexadíssimo, mas sempre em guarda, achei de bom conselho engolir o insulto e calar-me. Calei-me. Apesar disso o homem, depois duma pausa, continuou, entre manso e irônico:

— Coisas da vida, moço. Aqui a patroa pela-se por um naco de bugio moqueado, e ali dentro há um para abastecer este pratinho... Já comeu bugio moqueado, moço?

— Nunca! Seria o mesmo que comer gente...

— Pois não sabe o que perde!... filosofou ele, como um diabo, a piscar os olhinhos de cobra.

Neste ponto o jogo interrompeu-me a estória. Melchior estava colocado e Gaspar, com três pontos, sacava para Ugarte. Houve luta; mas um “camarote” infeliz de Gaspar deu o ponto a Ugarte. “Pintou” a pule 13, que eu não tinha. Jogo vai, jogo vem, “despintou” a 13 e deu a 23. Pela terceira vez Ugarte estragava-me o jogo. Quis insistir, mas não pude. A estória estava no apogeu e antes “perder de ganhar” a próxima quiniela do que perder um capitulo da tragédia. Fiquei no lugar, muito atento, a ouvir o velhote.

Quando me vi na estrada, longe daquele antro, criei alma nova. Fiz cruz na porteira.

Aqui nunca mais! Credo!” e abri de galopada pela noite adentro. Passaram-se anos. “Um dia, em Três Corações, tomei a serviço um preto de nome Zé Esteves. Traquejado da vida e sério, meses depois virava Esteves a minha mão direita. Para um rodeio, para curar uma bicheira, para uma comissão de confiança, não havia outro. Negro quando acerta de ser bom vale por dois brancos. Esteves valia por quatro.

Mas não me bastava. O movimento crescia e ele sozinho não dava conta. Empenhado em descobrir um novo auxiliar que o valesse, perguntei-lhe uma vez:

— Não teria você, por acaso, algum irmão de sua força?

— Tive, respondeu o preto, tive o Leandro, mas o coitado não existe mais...

— De que morreu?

— De morte matada. Foi morto a rabo de tatu... e comido.

— Comido? repeti com assombro.

— É verdade. Comido por uma mulher.

A estória complicava-se e eu, aparvalhado, esperei a decifração.

— Leandro, continuou ele, era um rapaz bem apessoado e bom para todo serviço. Trabalhava no Tremedal, numa fazenda em...

— ... em Mato-Grosso? Do Coronel Teotônio?

— Isso! Como sabe? Ah, esteve lá! Pois dê graças de estar vivo; que entrar na casa do carrasco era fácil, mas sair? Deus me perdoe, mas aquilo foi a maior peste que o raio do diabo do barzabu do canhoto botou no mundo!...

— O urutu, murmurei, recordando-me. Isso mesmo...

— Pois o Leandro — não sei que intrigante malvado inventou que ele... que ele, perdão da palavra, andava com a patroa, uma senhora muito alva, que parecia uma santa. O que houve, se houve alguma coisa, Deus sabe. Para mim, tudo foi feitiçaria da Luduina, aquela mulata amiga do coronel. Mas, inocente ou não, foi que o pobre do Leandro acabou no tronco, lanhado a chicote. Uma novena de martírio — lepte! lepte! E pimenta em cima... Morreu. E depois que morreu foi moqueado.

— “???”

— Pois então! Moqueado, sim, como um bugio. E comido, dizem. Penduraram aquela carne na despensa e todos os dias vinha à mesa um pedacinho para a patroa comer...

Mudei-me de lugar. Fui assistir ao fim da quiniela a cinquenta metros de distância. Mas não pude acompanhar o jogo. Por mais que arregalasse os olhos, por mais que olhasse para a cancha, não via coisa nenhuma, e até hoje não sei se deu ou não a pule 13...

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Negrinha. 

domingo, 3 de dezembro de 2017

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Estribilho)


Raul Pompéia (Dois viajantes)

A peça principal da casa de Eustáquio era uma sala, de boas dimensões, entre paredes de imaculada alvura, que era clareada por três janelas de caixilhos brancos.

Uma tarde, achando-se o subdelegado ausente por exigências do seu cargo, estavam Branca e Rosalina assentadas junto de uma dessas janelas, entretidas na leitura de um livro, iluminado pelo brando clarão roxeado que algumas vezes tinge as paisagens, ao crepúsculo, quando ouviram duas leves pancadas na porta.

- Eustáquio! - exclamou a jovem filha de Manaus regozijando-se com a chegada do esposo.

Deixando cair o livro sobre uma pequena mesa, correu à porta. Quando, porém, começava a suspender uma tranca de ferro que a reforçava, recuou e disse vivamente, em voz baixa:

- Não, é impossível, não é ele, pois que quando partiu assegurou-me que só amanhã estaria de volta.

Rosalina olhou Branca e viu-a tornar-se lívida e tremer levemente.

- Tem medo, mamãe? - perguntou ela concedendo à esposa de Eustáquio esse doce epíteto.

- Na verdade, Rosalina, sinto-me, não sei por que, atemorizada... aqueles acontecimentos... a ausência de meu marido... tenho apreensões horríveis...

Nesta ocasião, apresentou-se Silvano em uma das portas interiores, que dava entrada para um corredor, algum tanto enfumaçado pelos vapores da cozinha que ficava na sua extremidade.

Branca acenou-lhe para que fosse saber quem batera. O preto abriu mui cautelosamente a porta, depois de alguns instantes fechou-a e, rindo-se da sua extrema prudência, anunciou dois viajantes.

A senhora, tranquilizada, disse:

- Convide-os a entrar.

Abriu-se de novo a porta, e dois indivíduos se mostraram sobre a soleira. Um deles era um homem alto, cheio de corpo, de porte sereno mas intrépido, cuja boca desaparecia, encoberta por dois bigodes louros que formavam a base de respeitável nariz, verdadeira pirâmide do Egito. Trajava de viajante trazendo a tiracolo uma espingarda.

O outro era um rapazinho de dez ou doze anos. Tinha o rosto, de beleza pouco vulgar aos do seu sexo, aureolado de cabelos de ouro, tendo seus olhos um tom de atrevimento superior a sua idade.

Estava vestido como o companheiro, possuindo como ele uma boa espingarda.

Os recém-chegados e a dona da casa trocaram os cumprimentos. Em seguida Branca dirigindo-se ao mais velho deles perguntou:

- Em que poderei ser-lhe útil, meu senhor?

- Já vos direi, minha cara senhora - começou o viajante que pela entonação da voz parecia francês, - porém depois que souberdes quem sou. Chamo-me Henrique Dugarbon, minha pátria é a França. Por amor de aventuras estou no Brasil, e há já dois anos que eu o percorro em todos os sentidos. Este menino é meu filho Otávio, que me tem seguido por toda a parte. Os perigos das minhas viagens têm crescido desde que sai de Manaus. Três semanas já se passaram, depois que deixei as margens do Rio Negro, durante elas andei errando pelas florestas, rompendo os matagais e transpondo, com dificuldade e perigo, os largos pântanos e as regiões dominadas pelos selvagens. Vindo suspender a minha jornada diante das águas do Iapurá, que banha os alicerces de S. João do Príncipe, onde há de ficar esta criança.

Os motivos que me forçam a isso são as provações que, bem o sei, me esperam nas excursões que tenciono fazer através da imensa porção do Brasil que está ao norte do Amazonas e a elas não quero sujeitar uma natureza débil como a de Otávio...

Neste ponto o menino quis falar, mas, vendo o pai continuar, conteve-se, deixando rolar uma lágrima pela face rosada... O que espero da vossa bondade, devo agora dizer-vos, é unicamente o favor de indicar-me o caminho a tomar para a povoação.

- Sr. Dugarbon, muito mais tenho feito por outros peregrinos; o que o senhor me pede não é um favor, pois que tenho obrigação de o fazer. Eu mesma levá-lo-ei, depois que houver ceado, até a embocadura do caminho, que poucos passos separam daqui.

A graciosa Branca falava com a naturalidade franca de uma provinciana brasileira.

- Minha excelente senhora, no meu coração agradecido se perpetuará a lembrança do acolhimento que me dais.

- Ora, não lhe admire isto, senhor, o que faço qualquer outro o faria, venha portanto provar, como o seu Otávio, do que para vós mandei preparar.

Enquanto Branca, a orfãzinha e os dois franceses tomavam assento em volta da mesa de jantar, coberta com uma toalha de linho e alumiada por um lampião de querosene, pois já era noite, cujo abajur fazia cair a claridade sobre um assado de carneiro.

Silvano, contente, celebrava a recepção de quatro camaradas, companheiros de viagem do francês.

Todos eles deviam se ir munir do necessário em S. João do Príncipe, para continuar a jornada.

Correu a refeição perfeitamente, versando a conversação sobre as maravilhas vistas pelos viajantes. Otávio e Rosalina tinham travado inocente amizade e, sem que o pai visse, aquele presenteara a esta com um pedacinho de ouro grosseiro, recebendo da menina uma mãozinha de coral que ela costumava trazer ao pescoço.

Já se erguiam da mesa, quando um assobio demorado e forte feriu os ouvidos de todos.

Fez-se absoluto silêncio e cada um se interrogava mudamente.

Branca estava grandemente assustada e o francês aproximou-se, cheio de calma, da janela. A noite era escura, mas a luz das constelações bastou-lhe para perceber três ou quatro vultos que se chegavam para o cercado.

- Há novidade por aqui - disse, - mas nada têm que temer.

- Camaradas! - gritou com voz máscula mas serena, - fogo naquela direção!

Quatro balas partiram, porém nada lhes respondeu.

Fechou-se a janela.

- Minha senhora, disse gravemente Dugarbon, ainda não tive a indiscrição de perguntar-vos se tendes pai ou marido que more convosco, mas este incidente me obriga a fazê-lo. Correis perigo, esta gente não me parece bem intencionada.

- Aqueles homens que lobriguei são sem dúvida - continuou o francês - bandidos que vos espreitam.

- A mim não, interrompeu a esposa do subdelegado, mas o meu marido.

- Assim pois, sois casada, não?

- Sim senhor, com Eustáquio, subdelegado desta freguesia.

- Podeis dizer-me onde se acha ele, agora?

- Acha-se fora ocupado em investigações sobre um roubo de pouca valia, deve voltar amanhã, se o permitir o céu.

- Tenho, assim, minha senhora, o prazer de comunicar-vos que, antes da chegada do Sr. subdelegado, não deixarei esta casa, para vossa segurança.

Branca, que não encarava sem terror a ideia de uma agressão, aceitou contente.

- Obrigada - disse, - do seu caráter não esperava outra cousa, todavia creio que a minha segurança não exige que não repousem o senhor e o seu filho das suas fadigas. Aquela alcova é dos viajantes e, portanto, do senhor.

Falando assim apontava para uma porta de vidraças, cobertas com pequenas cortinas de cassa, que, meio-aberta, deixava entrever duas camas, comodamente paramentadas.

O oferecimento foi bem recebido e, desejando a Branca e Rosalina boa noite, os dois peregrinos entraram para o aposento indicado.

Silvano e os camaradas assentaram-se perto da entrada e aí adormeceram. Com Rosalina recolheu-se a mulher de Eustáquio, não antes de amortecer a chama do lampião, que começou a espalhar pela sala essa luz escura que tanto agrada a Morfeu...

Fonte:
POMPÉIA, Raul. Uma Tragédia no Amazonas.