sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte VI

Gabriela (Juliana Paes) e
Nacib (Humberto Martins)
A perspectiva estético-ideológica adotada e o seu compromisso seriam, recorrentemente, tematizados por Jorge Amado, em seus escritos. Essa insistente tematização se efetivaria das mais variadas formas discursivas. Seja através de entrevistas, seja como elemento de seu próprio discurso romanesco, como se observa em São Jorge dos Ilhéus (1940), ou como elementos paratextuais, como se verifica em Cacau:

Joaquim trata Sérgio com mostras de grande respeito, dá importância ao que o poeta faz e durante muito tempo negou-se a opinar sobre os seus poemas. Porém, certa vez, muito instado pelo poeta, perguntou-lhe por que ele escrevia poesia revolucionária numa forma que nenhum operário poderia ler. Sérgio levara semanas preocupado com o problema e foi devido a essa observação que mudara seus ritmos e procurava, agora, numa busca por vezes frutífera, os ritmos populares. (AMADO, 1981 2, p. 140 – grifos nossos)

Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário? (AMADO, 1980, p. 8)

Se, no fragmento de São Jorge dos Ilhéus, é o narrador amadiano quem expressa, através do personagem Joaquim, seu projeto escritural, estruturado em dois eixos solidários, o militante e o popular; na epígrafe de Cacau, seria o próprio Jorge Amado quem, revestido do poder autoral, revelaria a sua perspectiva estético-ideológica.

Tornada num leitmotiv crítico de realce da “pouca literatura” amadiana, a epígrafe de Cacau revela, antes de tudo, uma faceta do Modernismo brasileiro que, em suas várias vertentes complementares, busca novas formas de expressão, de redefinição do papel da literatura e do escritor, de reinterpretação da cultura e do homem brasileiro, numa continuidade que se processa via desvio, via descontínuo, ou pelo endosso das velhas soluções propostas, como observa Wilma Mendonça (2002, p. 20). Na realidade, “o mínimo de literatura” e o “máximo de honestidade” amadianos indiciam a busca literária do escritor nordestino em resolver a contradição que caracteriza nossa cultura, como afirma Antonio Cândido, como também o seu engajamento ao contexto escritural e social de sua época, como se apreende das palavras de Luiz Lafetá, em seu estudo sobre o projeto estético e ideológico do Modernismo e da análise de Eduardo Assis Duarte sobre a narrativa Cacau:

Talvez se possa dizer que os romancistas da geração de Trinta, de certo modo, inauguraram o romance brasileiro, porque tentaram resolver a grande contradição que caracteriza a nossa cultura, a saber, a oposição entre as estruturas civilizadas do litoral e as camadas humanas que povoam o interior [...] a massa começou a ser tomada como fator de arte, os escritores procurando opor à literatura e à mentalidade litorâneas a verdade [...] No trabalho de revelação do povo como criador, que assinalei atrás, nenhum escritor se apresenta de maneira mais característica do que o Sr. Jorge Amado. (CÂNDIDO, 1992, p. 45-49 – grifos do autor)

Decorre daí que qualquer nova proposição estética deverá ser encarada em suas duas faces (complementares e, aliás, intimamente conjugadas; não obstante às vezes relacionadas em forte tensão): enquanto projeto estético, diretamente ligada às modificações operadas na linguagem, e enquanto projeto ideológico, diretamente atada ao pensamento (visão de mundo) de sua época. [...] na verdade o projeto estético, que é a crítica da velha linguagem pela confrontação com uma nova linguagem, já contém o seu projeto ideológico. O ataque às maneiras de dizer se identifica ao ataque às maneiras de ver (ser, conhecer) de uma época; se é na (e pela) linguagem que os homens externam sua visão-de-mundo (justificando, desvelando, simbolizando ou encobrindo suas relações reais com a natureza e a sociedade) investir contra o falar de um tempo será investir contra o ser desse tempo [...] Tal coincidência entre o estético e o ideológico se deve em parte à própria natureza da poética modernista. (LAFETÁ, 1974, p. 11-13 – grifos do autor)

O “mínimo de literatura” expressa, antes de tudo, oposição à retórica da pompa e circunstância, ao “falar difícil das classes dominantes e da tradição bacharelesca herdada do Império. Acoplado ao “máximo de honestidade”, soa como declaração de guerra à tradição ficcional idealizadora da vida no campo e porta-voz da ideologia do latifúndio. Uma literatura que propagava as imagens do bom senhor e do escravo contente, vivendo num ”paraíso” de fartura e inocência, livre de sofrimentos, longe das contradições. (DUARTE, 1995, p. 58 – grifos do autor)

Na verdade, em sua proposição modernista, Jorge Amado assenhora-se das linguagens populares da Bahia através das quais organiza a sua visão de mundo, em face dos problemas sociais do cenário nordestino. Nessa conjunção, se tornaria num dos escritores de maior repercussão popular entre nós, na mesma medida em que sofre restrições da crítica acadêmica.

Reconhecidamente um dos autores brasileiros mais conhecidos e festejados no Brasil e no exterior, Jorge Amado tinha ciência de que, não obstante o inegável sucesso editorial de sua obra, esta se movia com dificuldades entre os teóricos da literatura no Brasil, como revela em O sumiço da Santa: uma história de feitiçaria: romance baiano, publicada em 1988: 

Inegável audácia de um Autor, velho de idade e de batalhas perdidas, que ainda não conseguiu levar a crítica literária a gozar com a leitura de seus tapácios, de linguagem escassa, vazios de idéias, populacheiros. Quem não estiver de acordo com a inovação não é obrigado a ler. (AMADO, 1992, p. 409-410)

Levando em consideração o projeto literário de Jorge Amado, e as soluções estéticas por ele utilizadas para concretização de seu intento, nos voltaremos, através de um recorte étnico-identitário, à maneira, embora noutra direção, de Lúcia Lippi de Oliveira, para a leitura da narrativa amadiana, Gabriela cravo e canela: crônica de uma cidade do interior, na qual se verifica, através do intercurso amoroso entre o árabe Nacib Saad e a sertaneja mestiça do Nordeste, Gabriela, a representação do imigrante árabe no interior da Bahia.

2.2 NACIB SAAD: UM BRASILEIRO DAS ARÁBIAS

Era comum tratarem-no de árabe, e mesmo de turco, fazendo-se assim necessário de logo deixar completamente livre de qualquer dúvida a condição de brasileiro, nato e não naturalizado, de Nacib. Nascera na Síria, desembarcara em Ilhéus.

Publicada em 1958, dois anos após o afastamento de Jorge Amado do Partido Comunista do Brasil – PCB, a narrativa Gabriela, cravo e canela: crônica de uma cidade do interior é apreciada por Alfredo Bosi, juntamente com Dona Flor e seus dois maridos (1966), como “crônica amaneirada de costumes provincianos”, destituída, segundo esse crítico, dos esquemas ideológicos que caracterizaram a primeira fase da literatura amadiana, como se lê em sua História concisa da literatura brasileira:

Mais recentemente, crônicas amaneiradas de costumes provincianos (Gabriela, Cravo e Canela, Dona Flor e Seus Dois Maridos). Nessa linha, formam uma obra à parte, menos pelo espírito que pela inflexão acadêmica do estilo, as novelas reunidas em Os Velhos Marinheiros. Na última fase abandonam-se os esquemas de literatura ideológica que nortearam os romances de 30 e 40; e tudo se dissolve no pitoresco, no “saboroso”, no “gorduroso”, no apimentado do regional. (BOSI, 1980, p. 457)

Em visão assemelhada a Bosi, Tânia Pellegrini apreciaria a narrativa de Jorge Amado. Ao tratar do Sumiço da Santa, uma das últimas narrativas de Jorge Amado, Pellegrini qualificaria essa narrativa como um exemplar bem construído do que se denomina, atualmente, de literatura de mercado. Nessa avaliação, construída a partir de uma perspectiva mercadológica da obra amadiana, Pellegrini assinalaria que os recursos, largamente utilizados por Jorge Amado, não apenas já se encontravam em Gabriela, cravo e canela, como também se apresentavam, nessa narrativa, de forma mais relevada:

O Sumiço da Santa (Amado, 1988), de que nos ocuparemos, apresenta-se como um exemplo bem construído do que hoje se pode chamar de ‘literatura comercial’. Um dos últimos livros do escritor revela-se como um conglomerado de recursos já bastante usados em outros romances seus, com mais ênfase a partir de Gabriela, cravo e canela, considerado um ponto de ruptura no interior do conjunto de sua obra. (PELLEGRINI, 1999, p. 124)

Nessa compreensão, Tânia Pellegrini, como a maioria de nossos críticos, consideraria a narrativa do amor entre Nacib e Gabriela como marco de ruptura, de finalização do projeto ideológico amadiano e, ao mesmo tempo, como ponto de partida de sua trajetória literário-comercial. Assim, vê, no formidável êxito editorial, na contundente recepção popular à Gabriela, cravo e canela, apenas a celebração da nova inclinação de cunho mercadológico, de Jorge Amado:

Só para citar alguns exemplos, Gabriela, cravo e canela, publicada em 1958, vendeu imediatamente duzentos mil exemplares e, em edições sucessivas, atingiu a casa do milhão em 1990 [...] Como se vê, esses números ofuscam – desde a época em que uma indústria editorial brasileira de peso era apenas um quase-projeto – as tímidas tiragens de dois ou três mil exemplares que ainda hoje caracterizam a publicação da grande maioria das narrativas nacionais. (PELLEGRINI, 1999, p. 123)

Ao se voltar para a discussão sobre a relação da literatura/mercado e mídia, Tânia Pellegrini veria, na produção e na recepção literária contemporânea, as determinações mercadológicas e midiáticas, como elementos estruturadores desses escritos. Ao atribuir esses traços à maioria dos escritores jovens, que internalizaram as perspectivas da chamada pós-modernidade, Pellegrini ressaltaria que alguns antigos também se renderam a essas determinações, ilustrando como exemplo lapidar o caso de Jorge Amado:

Dentre estes últimos, o caso de Jorge Amado é lapidar. Tendo iniciado sua carreira literária como autor reconhecidamente engajado, que usava sua ficção como instrumento de luta política, alimentado por todo o contexto político-social das décadas de 1930 e 1940, aos poucos derivou para uma literatura descompromissada, leve crônica de costumes, exótico cartão postal da Bahia [...] O que nos interessa em particular na obra de Jorge Amado é de que maneira ela – um dos baluartes do regionalismo engajado – também acabou incorporando sensivelmente as mudanças nos modos de percepção gerados pelas transformações nos modos de produção da cultura (sobretudo a máquina da indústria cultural, no sentido adorniano do termo). (PELLEGRINI, 1999, 122-124)

Na perspectiva de que a obra mais recente de Jorge Amado se constitui como objeto da indústria cultural, Pellegrini iria, noutra passagem de seu texto, responsabilizar o gosto, ou a falta de gosto, do leitor amadiano, pelo sucesso editorial/comercial do escritor grapiúna, acentuando, antropofagamente, que Jorge Amado é consumido, com grande sucesso por todos os paladares ao redor do mundo (PELLEGRINI, 1999, p.122). Dessa forma, estende aos leitores de Jorge Amado, concebidos como abstratos, médios e poderosos, a desqualificação que procede ao próprio autor, numa passagem em que, contraditoriamente, registra o enorme êxito escritural de Amado, bem antes de Gabriela, cravo e canela.

Jorge Amado é, reconhecidamente, um dos primeiros autores que aqui se podem considerar de ‘profissionais’, ou seja, aquele autor que consegue viver dos lucros auferidos pela venda de seus livros [...] capaz de mobilizar a máquina editorial e as glórias acadêmicas, além de seduzir o mercado estrangeiro e conquistar o abstrato e poderoso ‘leitor médio brasileiro’. (PELLEGRINI, 1999, p. 122-123)

Autodefinindo-se, com simplicidade, como apenas um baiano romântico e sensual (apud BOSI, 1980, p. 455), Jorge Amado inundaria suas narrativas com a temática do amor e da sensualidade, como bem observa Antonio Cândido, em seu texto, “Poesia, documento e história”, como se verifica abaixo:

O amor carrega de uma surda tensão as páginas dos seus romances, avultando por cima do rumor das outras paixões. Na nossa literatura moderna, o sr. Jorge Amado é o maior romancista do amor, da força da carne e de sangue que arrasta os seus personagens para um extraordinário clima lírico. Amor dos ricos e dos pobres; amor dos pretos, amor dos operários, que antes não tinha estado de literatura senão edulcorado pelo bucolismo ou bestializado pelos naturalistas. (CÂNDIDO, 1992, p. 52)

Contemplando, com a temática do amor e da sensualidade, todos os estratos sociais presentes em sua obra, como já observara Antonio Cândido, Jorge Amado transformaria Gabriela, cravo e canela numa verdadeira polifonia amorosa. Há o amor trágico e adúltero de dona Sinhazinha Guedes Mendonça, esposa do coronel Jesuíno, e o dentista Osmundo Pimentel, símbolo desconstrutor do velho código da família patriarcal, cujos assassinatos assinalam, cronologicamente, o início do amor entre Nacib e Gabriela:

Essa história de amor – por curiosa coincidência, como diria dona Arminda – começou no mesmo dia claro, de sol primaveril, em que o fazendeiro Jesuíno Mendonça matou, a tiros de revólver, dona Sinhazinha Guedes Mendonça, sua esposa, expoente da sociedade local, morena mais para gorda, muito dada às festas de Igreja, e o dr. Osmundo Pimentel, cirurgião–dentista chegado a Ilhéus há poucos meses, moço elegante, tirado a poeta. (AMADO, 1979 1, p. 9)

Há o idílio, delicadamente insinuado entre o dr. Mundinho Falcão, exportador de cacau e símbolo da nova ordem econômica, e Jerusa, neta do coronel Ramiro Bastos, representante do poder da velha ordem econômica, cuja perspectiva de um desfecho feliz funciona como solução conciliatória, preservadora da posição, do prestígio e das vantagens das antigas e poderosas famílias dos senhores do cacau, como indicia, continuadamente a narrativa:

Houve ainda duas sensações no baile. Uma foi quando Mundinho Falcão [...] reparou na moça loira de pele de fina madrepérola, de olhos cor do azul celeste: – Quem é? – perguntara. – A neta do coronel Ramiro, Jerusa, filha do dr. Alfredo. Sorriu Mundinho, parecia-lhe divertida ideia [...] O aniversário do coronel Ramiro [...] Mundinho Falcão não fora à missa nem lhe levara pessoalmente o seu abraço. Mandara, porém, um grande ramalhete de flores para Jerusa, com um cartão onde escrevera: “Peço-lhe, minha jovem amiga, transmitir a seu digno avô meus votos de felicidade. Em campo oposto ao dele, sou, no entanto seu admirador”. Foi um sucesso [...] O próprio coronel Ramiro Bastos, ao ler o cartão e olhar as flores, comentou: É sabido esse senhor Mundinho! Se me manda o abraço por minha neta, não posso deixar de receber... Por um curto espaço de tempo chegou-se a pensar num acordo [...] Esse Mundinho, podre de rico, rapaz elegante do Rio, combatia num combate mortal a família dos Bastos. Uma luta com jornais queimados, homens surrados, atentados de morte. Fazia frente ao velho Ramiro, disputava-lhe os cargos, levava-o a ataques de coração. E, ao mesmo tempo, dava um conto de réis, duas reluzentes notas de quinhentos, por meia dúzia de xícaras de louça barata, prenda da neta de seu inimigo [...] Tonico Bastos espiava a conversa. Não entendia esse tipo. Sonhava ainda com um acordo de última hora, a salvar o prestígio dos Bastos. (AMADO, 1979 1, p. 192; 229; 299 – grifos nossos)

Se o amor entre Mundinho e Gerusa não se realiza no tecido narrativo, Jorge Amado, à maneira de Gregório de Matos, é extremamente discreto quando se volta para as relações sensuais do feminino patriarcal, isto é, das mulheres brancas e de posse, o acordo sonhado e esperado por Tonico Bastos se concretizaria plenamente, como demonstra a passagem na qual Mundinho, vencedor, revela o desejo de não prejudicar a família dos Bastos, principalmente o pai de Jerusa: Não penso em perseguir ninguém. Não sou disso. Ao contrário, o que desejo é discutir com o senhor a maneira de não prejudicar o Dr. Alfredo (AMADO, 1979 1, p. 335)

Há o amor romântico, tísico e infeliz, de Ofenísia pelo Imperador. O amor adúltero de Glória, amásia do coronel Coriolano e Josué, professor, metido a poeta, como anota o narrador. Os amores dos pobres, das prostitutas, dos retirantes. Entrelaçadas, em meio ao cenário da transformação econômico-política de Ilhéus, essas múltiplas narrações amorosas, tecidas pela simpatia e cumplicidade do narrador, não ofuscam e nem comprometem a primazia do amor entre Nacib e Gabriela, caracterizada como doida paixão, como o ponto de irradiação de toda a vida ilheense, como o qualifica o narrador, nas páginas iniciais de Gabriela, cravo e canela:

Naquele ano de 1925, quando floresceu o idílio da mulata Gabriela e do árabe Nacib, a estação das chuvas tanto se prolongara além do normal e necessário que os fazendeiros, como um bando assustado, cruzavam-se nas ruas [...] Ninguém, no entanto, fala desse ano, da safra de 1925 à de 1926, como o ano do amor de Nacib e Gabriela e, mesmo quando se referem às peripécias do romance, não se dão conta de como, mais que qualquer outro acontecimento, foi a história dessa doida paixão o centro de toda a vida da cidade naquele tempo, quando o impetuoso progresso e as novidades da civilização transformavam a fisionomia de Ilhéus. (AMADO, 1979 1, p. 19)

Estruturado por essa temática, o romance narra, em meio ao contexto do apogeu do cacau no sul da Bahia e das grandes transformações econômicas que caracterizam o Nordeste cacaueiro, a relação amorosa entre o imigrante árabe, Nacib Saad, e a imigrante sertaneja, cujo sobrenome, ou epíteto, nos remete aos cheiros do mundo do Oriente: Gabriela, cravo e canela.

Oriunda da cultura popular, mais propriamente do cancioneiro baiano, universo do qual Jorge Amado se alimenta e estrutura o seu projeto estético, Gabriela é personagem de  versos anônimos, das modinhas cantadas pelos trabalhadores da zona cacaueira, transposta para a cultura letrada, como ressalta, em epígrafe, o próprio escritor:

‘O cheiro de cravo,
A cor de canela,
Eu vim de longe
Vim ver Gabriela’.
(Moda da zona de cacau, apud AMADO, 1979 1, p. 8)

Nessa transposição e transfiguração do popular, Jorge Amado elaboraria a sua primeira 
narrativa em que o imigrante árabe é elevado à condição de protagonista, como explicita o narrador amadiano, ao anunciar o assunto de sua narração romanesca, como se lê, nas páginas iniciais de Gabriela, cravo e canela:

Aventuras e desventuras de um bom brasileiro (nascido na Síria) na cidade de Ilhéus, em 1925, quando florescia o cacau e imperava o progresso – com amores, assassinatos, banquetes, presépios, histórias variadas para todos os gostos, um remoto passado glorioso de nobres soberbos e salafrários, um recente passado de fazendeiros ricos e afamados jagunços, com solidão e suspiros, desejos, vingança, ódio, com chuvas e sol e com luar, leis inflexíveis, manobras políticas, o apaixonante caso da barra, com prestidigitador, dançarina, milagre e outras mágicas ou um brasileiro das arábias. (AMADO, 1979 1, p. 11)
______________________
continua…

Fonte:
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Folclore de Campos dos Goytacazes (Ururau, da Lapa)

Entende-se por FOLCLORE o conjunto de crenças, lendas, festas, trava-línguas, parlendas, advinhas, superstições, artes e costumes de um povo. Muitos nascem da pura imaginação das pessoas, principalmente dos moradores das regiões do interior do Brasil. Tal conjunto, normalmente é passado de geração a geração, por meio dos ensinamentos e da participação real dos festejos e dos costumes. De origem inglesa, o folclore é uma palavra originada pela junção das palavras folk, que significa povo; e lore, que significa sabedoria popular. Formou-se então a palavra folclore que quer dizer sabedoria do povo. 

A cidade de Campos dos Goytacazes tem um total de mais de 150 bairros. A LAPA é um bairro da cidade, de origem operária, formada em torno de uma fábrica de tecidos que existia, na cidade. Neste bairro, em uma curva do rio Paraíba do Sul, existe a Igreja da Lapa, onde havia um orfanato, que foi mantido por uma ordem religiosa, cujas irmãs de caridade cuidavam de meninas órfãs, algumas abandonadas à porta da Igreja, outras colocadas na Roda dos Enjeitados, existente no antigo prédio da Santa Casa de Misericórdia de Campos (no centro da cidade), instituição que essas freiras ajudavam a administrar. Esse prédio, patrimônio histórico de Campos, foi demolido, seu espaço serviu como um estacionamento, durante muitos anos e hoje é um shopping.

Em Campos destacam-se algumas manifestações folclóricas, tais como: Jongo,Cavalhada, Mana-Chica, danças típicas, Folia de Reis, Boi Pintadinho, que a cultura transformou em Boi-de-Samba, além da lenda do URURAU DA LAPA, que passaremos a narrá-la a seguir.

Essa lenda campista possui várias versões diferenciadas. Uma dessas versões conta que aconteceu, por volta de 1700, uma história de amor proibido entre um rapaz pobre e uma moça rica. O rapaz passou a ser perseguido pela ira do Coronel, pai da moça, protagonista desse amor proibido.

Combinados de fugir no dia da festa de São Salvador, padroeiro da cidade, foram surpreendidos pelos capangas do coronel que matam o rapaz e o jogam no Rio Paraíba do Sul. O deus das águas, vendo a maldade do coronel, eternizou a vida do rapaz e o encantou, transformando-o em um Ururau. Ururau é um enorme jacaré, de papo amarelo, que vive nas proximidades da curva da Lapa, assombrando as pessoas.  De vez em quando, quando é noite de Lua cheia, o Ururau  vem à superfície do rio, para matar a saudade de sua amada. Não a encontrando, pega algumas meninas (geralmente desse orfanato) para levá-las com ele. 

O coronel, arrependido, por medo de receber o castigo divino, como penitência desse seu pecado, mandou vir um sino de ouro de Portugal, para a Igreja da Lapa. Mas o Ururau, sem querer deixar que o coronel se penitenciasse pelo seu pecado, atacou e virou o navio que trazia o sino, que naufragou. O sino foi parar no fundo do rio Paraíba do Sul. Este sino de ouro está lá, no fundo deste rio, na curva da Lapa, até hoje. E o Ururau é o seu guardião.

Fontes:
Talita Batista – Seção da U.B.T. de Campos dos Goytacazes.
Imagem: https://www.behance.net/gallery/A-Lenda-do-URURAU-da-LAPA

Cidade de Campos dos Goytacazes/RJ (alguns aspectos)


Campos dos Goytacazes é um município do interior do Estado do Rio de Janeiro, no Brasil. De acordo como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, possui uma população de 487 186 habitantes. É a mais populosa cidade do interior do Estado. Este é o município de maior extensão territorial do Estado do Rio de Janeiro, ocupando uma área de 4 826,696 quilômetros quadrados. 

Localizam-se no município, importantes universidades públicas. Segundo o IBGE, Campos dos Goytacazes teve, em 2013, o sétimo maior PIB do Brasil, sendo a cidade brasileira, que não é capital, com o maior PIB nacional, naquele ano.

Originalmente foi habitada pelos índios da tribo Goitacá, que se caracterizavam por ter um porte atlético, serem exímios nadadores e muito hábeis na arte de lidar com cavalos. Guerreiros, defendiam o seu chão do domínio estrangeiro, com muita garra, chegando a ter fama de antropófagos. 

Com a chegada dos padres jesuítas e beneditinos, na região e da pacificação junto aos índios é que as terras passaram a ser conhecidas pelos colonizadores e senhores de engenhos. A colonização de origem portuguesa porém, só se iniciou a partir de 1627, quando o governador Martim Correia de Sá, em reconhecimento ao heroísmo nas lutas contra os índios, doou algumas porções de terra da capitania aos SETE CAPITÃES, que, em 1633, construíram currais para o gado, próximos da Lagoa Feia e da ponta de São Tomé.

A partir de então, começou a verdadeira ocupação de origem portuguesa na cidade de Campos. Os capitães moravam em seus engenhos, no Rio de Janeiro e Cabo Frio, arrendando quinhões de suas sesmarias, contribuindo, assim, para o crescimento da população. A criação do gado, neste período, se multiplicou de forma assombrosa, assim como a diversificação de atividades.

Os canaviais começaram a aparecer nas regiões mais elevadas da planície. A política, até então estável, foi quebrada com a chegada de latifundiários poderosos, entre eles Salvador Corrêa de Sá e Benevides, que abusou do poder e da posição (pois era o governador da capitania na época), estabeleceu parcerias com os religiosos, que se beneficiavam na partilha da planície. Começaram, então, as lutas pelas terras. 

De um lado, herdeiros dos SETE CAPITÃES, pioneiros, colonos, campeiros e vaquejadores; de outro, os ASSECAS, herdeiros de Salvador de Sá. Durante aproximadamente 100 anos, a capitania viveu em conflitos pela posse das terras. A Coroa chegou a retomar a terra várias vezes, mas, devido às crises vividas pela mesma, voltou para as mãos dos Assecas. Somente em 1752, com a compra da capitania e a contribuição pecuniária da própria população, é que a região foi finalmente pacificada.

No decorrer do domínio dos Assecas, predominava a pequena propriedade, mas também condicionada pelo meio natural, devido à inexistência de áreas contínuas de grande extensão, já que havia inúmeras lagoas. Campos possui um importante bacia hidrográfica, formada pela Lagoa de Cima, Lagoa do Vigário, Lagoa Limpa, Lagoa do Sapo, Rio Paraíba do Sul e Lagoa Feia.

A partir do domínio da CANA-DE-AÇÚCAR, a região passou por um período de recuperação, mas continuava isolada da capital do Estado do Rio de Janeiro. No início dos anos 1800, toda a planície encontrava-se ocupada e partilhada, mas ainda restavam quatro latifúndios: Colégio dos Jesuítas e São Bento (correspondentes à cidade de Campos e seu entorno), Quiçamã, além da fazenda dos Assecas, onde surgiu o povoado da Barra Seca (atual município de São Francisco de Itabapoana).

No ano de 1833, foi criada a Comarca de Campos e, em 28 de março de 1835, a Vila de São Salvador é elevada à categoria de cidade, com o nome de CAMPOS DOS GOYTACAZES. A pecuária e o cultivo da cana-de-açúcar se estenderam pela planície entre o Rio Paraíba do Sul e a Lagoa Feia. Em 1875, a cidade tinha 245 engenhos de açúcar, com 3 610 fazendeiros estabelecidos na região. 

A primeira USINA foi construída em 1879, com o nome de Usina Central do Limão, pertencente ao doutor João José Nunes de Carvalho. Devido à sua importância, a cidade de Campos recebeu a visita de D. Pedro II quatro vezes. Na primeira, em 1883, o imperador inaugurou a luz elétrica na cidade, passando assim a ser a primeira cidade da América do Sul a ter luz elétrica.

Ao final dos anos 1980, os municípios de Campos, Macaé e Conceição de Macabu, tinham uma agroindústria açucareira expressiva. A ascensão de São Paulo como maior produtor nacional, seus altos níveis de produtividade, além da expansão da área cultivada pela cana-de-açúcar no Nordeste do país, aliados à falta de modernização do complexo campista, fizeram com que a região passasse a ser coadjuvante no contexto nacional. 

O endividamento de algumas usinas obrigou muitas delas a se fecharem, atingido, consequentemente, a economia da região Norte Fluminense. A descoberta do PETRÓLEO na bacia de Campos, nos anos 1970, e a construção do Superporto do Açu têm contribuído para a recuperação da região, nos dias de hoje.

A história de Campos é rica em importantes acontecimentos políticos. Foi um dos primeiros do Brasil a embarcar voluntários para a guerra do Paraguai, em 28 de janeiro de 1865, pelo vapor Ceres.

Foi a primeira cidade da América Latina a ter energia elétrica, em 24 de julho de 1883. O movimento abolicionista também encontrou eco em Campos. A campanha abolicionista teve seu ponto alto em 17 de julho de 1881, com a fundação da Sociedade Campista Emancipadora, que propagava a luta pela emancipação dos negros, tendo, na pessoa do jornalista Luiz Carlos de Lacerda, o seu maior expoente. 

O grande vulto José Carlos do Patrocínio, o "tigre da abolição", foi também um dos principais nomes da luta pelo fim da escravidão, que mudaria os destinos políticos do Brasil imperial, preparando-o para a proclamação da República do Brasil.

Vários campistas governaram o Estado do Rio de Janeiro, como Nilo Peçanha, eleito pela primeira vez para o período de 1903 a 1906 e, pela segunda vez, de 1914 a 1917. Nilo Peçanha foi eleito vice-presidente do Brasil e assumiu o mandato, de 1909 a 1910, com a morte de Afonso Pena. Mais recentemente, o ex-prefeito de Campos, o radialista Anthony Garotinho foi eleito governador, em 1998. A sua esposa Rosinha Garotinho concorreu à sua sucessão e foi eleita em 2002. Esse mesmo grupo político permaneceu no poder até 2016, quando foi eleito o jovem vereador Rafael Diniz, por uma expressividade esmagadora de votos e passará a ser o novo prefeito da cidade a partir de 2017.

A cidade de Campos dos Goytacazes tem um total de mais de 150 bairros. A LAPA é um bairro da cidade, de origem operária, formada em torno de uma fábrica de tecidos que existia, na cidade. Neste bairro, em uma curva do rio Paraíba do Sul, existe a Igreja da Lapa, onde existia um orfanato, que foi mantido por uma ordem religiosa, cujas irmãs de caridade cuidavam de meninas órfãs, algumas abandonadas à porta da Igreja, outras colocadas na Roda dos Enjeitados, existente no antigo prédio da Santa Casa de Misericórdia de Campos (no centro da cidade), instituição que essas freiras ajudavam a administrar. Esse prédio foi demolido, junto com esse patrimônio histórico de Campos.

Campos tem muitas bordadeiras e artesãs. Existe uma feira municipal, cujas barracas são montadas no centro da cidade, com os mais variados trabalhos artísticos de bordados em ponto de cruz, tricô e crochê. Encontram-se lá também barracas de doces e salgados. 

Cidade do açúcar e do petróleo, Campos notabiliza-se, além da produção da cachaça. pela produção de muitos DOCES, como a GOIABADA e melado. Entre os doces típicos de Campos, destaca-se o CHUVISCO. Sabemos que as portuguesas são notáveis na habilidade de preparar doces, utilizando-se da gema e da clara de ovos. No Brasil, somente as campistas e as gaúchas de uma forma geral dominaram a arte de fabricar, além dos chuviscos a ambrosia e o papo de anjo. Além de docerias e fábricas, o doce é produzido de forma artesanal e caseiro por diversas cozinheiras, residentes em diversos pontos do município, que fabricam o doce por encomenda, para as festas de casamento, aniversário, batizado e jantares especiais. 

O doce chamado CHUVISCO já foi tema de teses e pesquisas em universidades campistas. Em 2011, foi tombado como patrimônio imaterial da cidade pelo Conselho de Preservação do Patrimônio Municipal (Coppam). O doce é parte da culinária portuguesa e chegou ao Rio com a vinda da Família Real, em 1808. Diz-se que os portugueses utilizavam claras de ovos para engomar as roupas e, para aproveitar as gemas, faziam o chuvisco. 

A receita foi parar em Campos e, mais de cem anos depois, pelas mãos de Nilze Teixeira de Vasconcellos, a Mulata Teixeira ficaram ainda mais famosos. Conta-se que os ex-presidentes Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek teriam saboreado a guloseima da Mulata Teixeira quando visitavam Campos. 

O chuvisco pode ser cristalizado (como é este da foto abaixo), caramelado, em calda, com nozes, passas ou chocolate. Ele é produzido, em larga escala, por fábricas do município e também de forma artesanal por pequenas docerias. As gemas são batidas pelo menos cem vezes até a massa engrossar. De colherinha em colherinha, o doce é frito na calda de açúcar, três vezes, passa-se o chuvisco no primeiro tacho para ressecar. No segundo, para incorporar o açúcar. E no terceiro, para ficar molhado, com uma calda mais fina. Existem clientes campistas que moram no exterior e encomendam esse doce. 

Fonte:
Talita Batista – Seção da UBT de Campos dos Goytacazes.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Domingos Freire Cardoso (Poemas Escolhidos)


A VIDA É UM FIO NEGRO D’ AMARGURAS

A vida é um fio negro de amarguras
Que usamos ao pescoço, como adorno
E tão difícil é dar-lhe um contorno
Que a dor que traz não cabe entre molduras.

Fio de que descendem as nervuras
Que os nervos nos esmagam, como um torno
E o mal que nos provocam, sem retorno
Despedaça os sentidos com fraturas.

Lenitivos são poucos e fugazes
E mostram-se impotentes e incapazes
De um alívio nos dar a tal sofrer.

Inocentes de culpas e algemados
À triste sina somos condenados
De nunca desistirmos de viver.

SÓ SÃO CAMINHOS OS CAMINHOS ABERTOS

Só são caminhos os caminhos abertos
Pela força invisível da Poesia
Varinha de condão da fantasia
Que os corações cativos faz libertos.

Atalhos retalhados descobertos
Pelos sons mais a sua ortografia
Que grava dos fonemas a harmonia
Que os sentidos nos trazem tão despertos.

Por nós fala a palavra que é escrita
Pela mão desse amor que em nós habita
Como a pedra se entrega a um cinzel.

Já morto fica vivo na palavra
Um homem quando a sua mente lavra
O chão fértil das folhas de papel.

DEPOIS DO CIRCO JÁ TER IDO EMBORA

Depois de o circo já ter ido embora
Quedou-se por aqui, abandonado
Um trágico palhaço desolado
Que a pintura esborrata quando chora.

Vivendo a praguejar a negra hora
Em que o emprego sujo o pôs de lado
Gasta os seus dias, porco e ensebado
À margem da cidade que o devora.

Crianças, risos, músicas e palmas
São visões do passado, mas sem almas
Fantasmas que no peito ele escondeu.

Acordo, estremunhado, já noite alta
Preso à dúvida atroz que então me assalta:
Saber se esse palhaço não sou eu…

NUNCA A AUSÊNCIA FOI TÃO VIVA E TÃO LEMBRADA

Nunca a ausência foi tão viva e tão lembrada
Como na hora em que a noite me envolvia
E entre os lençóis da cama eu não te via 
Leve e linda, despida e perfumada.

Não estava franzida a tua almofada
E o vulto do teu corpo não crescia
No leito onde o meu, só, permanecia
Abraçado a tudo que agora é nada.

Partiste, sem aviso e sem adeus
Dos meus olhos que tu fizeste ateus
Pois a fé que eu tinha tu a levaste.

Que voltes sem demora eu peço e rogo
Se o não fizeres penso que me afogo
Neste imenso vazio que deixaste.

MEU CANTO MAIS LAMENTO DO QUE ALERTA

Meu canto, mais lamento do que alerta
Morre ao sereno nesta noite fria
Que prolonga no tempo essa agonia
De não achar qualquer janela aberta.

Meu canto, menos prece e mais oferta
Andou de porta em porta em afonia
Sofrendo as agressões da invernia
Que castiga a minha alma descoberta.

Guardo as notas, a pauta, a melodia
Da trova, da canção ou elegia
Que ninguém se dispôs a escutar.

Se um dia alguém me perguntar por ela
Direi que era a luz de uma frágil vela
Que se apagou por não ter um altar.

PÓ DE ESTRELAS LANÇADO PELO CHÃO

Pó de estrelas lançado pelo chão
Havia nos caminhos onde errei
Sem respeitar as regras nem a lei
Carregando pecados sem perdão.

Sem uma companhia, nem de um cão
Corri montes e vales que eu nem sei
Levando o medo às sendas que trilhei
Pois me achavam com cara de ladrão.

De pouco vale o berço ou nascimento
Para ter honra, fama ou luzimento
A acrescer à fortuna já herdada.

Das estrelas o pó meu chão juncou
Mas sei que valho apenas o que eu sou
E tudo é muito pouco ou quase nada…

LÁ ONDE A LUZ DO ÚLTIMO LAMPIÃO

Lá onde a luz do último lampião
Se esmaga contra os vidros das janelas
Moram casas de portas amarelas
Sempre abertas ao pó da solidão.

Portas sem trinco em casas sem ter cão
Qualquer um pode entrar sem mais cautelas
Nas mucosas vazias dessas goelas
Onde as mágoas e dores servem de pão.

O fundo dessa rua é dos fantasmas
Vizinhos são os vícios e os miasmas
Que ali acham o fim do seu caminho.

A noite fica tão negra e deserta
Que até o lampião de chama incerta
Tem receio de ali viver sozinho.

NA RUA EM QUE O POEMA É ORAÇÃO

Na rua em que o poema é oração
As rimas ordenadas se repetem
Na cadência dos sons que nos remetem
Para o ritmo do próprio coração.

A luz morta de um velho lampião
Vela pelas estrofes que refletem
A alma das palavras que prometem
Um mundo de magia e de emoção.

O poema assim rezado ganha vida
Em cada ladainha repetida
Com devoção, calor, carinho e fé.

E o poeta que, inspirado, o escreveu
Um pedaço de si a todos deu
Pois nele é que se mostra tal qual é.

PEDI AO CORAÇÃO QUE SE CALASSE

Pedi ao coração que se calasse
E se tornasse um mestre da mudez
Que os olhos falam mais na limpidez
Do brilho com que veste a tua face.

Ficamos ambos quedos nesse impasse
De passos presos pela timidez
Mas o amor, na verdade da nudez
Fez-se eterno no tempo desse enlace.

Mas, feliz, ele não me obedeceu
E o claro dia não entardeceu
Suspenso do pulsar dos corações.

A luz nos ilumina, de mansinho
Para que não se perca no caminho
A alegria que ri sem ter razões.

Fonte: CARDOSO, Domingos Freire. Por entre poetas. Aveiro/Portugal: Edição do autor, 2016

Domingos Freire Cardoso (1946)

Domingos Freire Cardoso nasceu em Ílhavo, Portugal, no dia 20 de outubro de 1946. Cursou Engenharia na Faculdade de Coimbra, onde se licenciou em Física, disciplina que lecionou durante 30 anos. Poeta bastante premiado em Portugal e no Brasil. Tem um livro de poesia, "O terceiro vértice". Visita o Brasil com regularidade.
Domingos Freire Cardoso nasceu no em Chousa-Velha, em Ílhavo/Portugal, em 1946. Frequentou o Liceu Nacional de Aveiro e concluiu o curso de Engenharia Químico-Industrial no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, no ano de 1971. Iniciou carreira no Liceu Nacional de Leiria e mais tarde desenvolvendo parte de sua atividade profissional na cidade do Porto onde fixara residência.
         Em 1983 começou a participar em Jogos Florais e Concursos Literários, até os dias de hoje.
         Em 2003, para comemorar os vinte anos dessa atividade, reuniu em um livro alguns dos trabalhos premiados nesses concursos literários, surgindo assim a sua primeira publicação, intitulada “O Terceiro Vértice”.
         Representante, em Portugal, do Boletim Informativo da União Brasileira de Trovadores (U.B.T.), seção de S. Paulo, que lhe conferiu, em 1993, o prêmio “Vasques Filho” pelo “seu trabalho em favor da Trova e da U.B.T.”
         Em 2000 regressou à Chousa-Velha.
         Em 2012, lança “Pedras sem Tempo do Cemitério de Ílhavo", uma homenagem aos seus antepassados ali sepultados, e aos artistas que idealizaram as campas e jazigos e aos artífices que os trabalharam em pedra e em ferro.
         Em 2016 lançou o livro “Por entre poetas”, com 70 sonetos, comemorando seu 70o aniversário.

Olivaldo Junior (O Louco)

O rapaz, quando criança, era tido como superimaginativo. Vivia inventando histórias, um prodígio. "Isso ainda vai dar num escritor!", profetizava uma das tias. Tinha sido pedra, cavalo e navio. Não havia limites para tanto imaginar. 

Depois, quando crescido, deu de falar que era Jesus, Gandhi, Kennedy, Cabral e Maomé. Mas, como não era mais criança, foi levado ao médico, que lhe deu pílulas de realidade. Realidade? Sim, como dizia Clarice, seja lá o que isso seja. 

Porém, com o tempo, tais pílulas passaram a não surtir mais nenhum efeito em seu sistema, tão nervoso quanto o vento de agosto, e, em debandada, suas sinapses "deram pau", e já se achava capaz de voar, sagrou-se a sabiá, surtou. 

Hoje, preso numa clínica para doentes mentais, mentaliza que vai fugir quando lhe abrirem a gaiola (já assistiu ao filme Asas da Liberdade?), soltarem seus passos do quadrado pátio da velha casa de repouso, onde só pousa a (in)sanidade. 

Homem feito, da pedra que foi fizera um castelo, que guarda um cavalo, que puxa um navio, onde vão Jesus, Gandhi, Kennedy, Cabral, Maomé e, lá na proa, com seu chapéu de soldado, reluzente, superimaginativo, ao sol, o "menino".

Fonte:
O Autor

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte V

Turco Nacib (Armando Bógus) e
Gabriela (Sonia Braga) no filme
"Gabriela"
Nessa transfiguração do imigrante em tipo nacional, Jorge Amado consegue não apenas naturalizá-lo, mas inseri-lo em todas as esferas da vida brasileira, sejam elas públicas ou privadas. Nesse intento, desfilam pela obra de Jorge Amado o brasileiro-árabe mascate, o comerciante, seja proprietário de bares (como Nacib) seja proprietário de loja de calçados ou de outros tipos de comércio; o fazendeiro, o vagabundo, o contrabandista, o intelectual, o poeta, o alfaiate, a prostituta, a dançarina, o revolucionário, o estudante, o cirurgião-dentista, o advogado, o menor abandonado, o conquistador da terra baiana, em meio aos diversos tipos étnicos que formam o nosso mosaico cultural, como já percebera Jorge Medauar ao se voltar para a movimentação árabe no tecido romanesco de Jorge Amado:

Movimentando-se entre negros, crioulos, espanhóis ou portugueses criados para viverem o drama, a tragédia ou o amor que palpita nos romances desse autor que é o mais expressivo escritor da ‘nação grapiúna’ definida por Adonias Filho, outra não menos significativa expressão daquela ‘civilização’ tão particular. (MEDAUAR, 1993, não paginado)

Na realidade, ao privilegiar a presença árabe, em meio à sua construção identitária do sul da Bahia, Jorge Amado inauguraria um caminho estético, marcado pela ausência de estranhamento e por uma perspectiva de mão dupla, que ora realça o agudo sentimento árabe de pertencimento à nossa terra, com a correspondente e efusiva aprovação das personagens
brasileiras, o que só é possível graças ao apagamento das diferenças e ao realce das similaridades culturais entre nós e os árabes; ora o caminho em que, numa estratégia claramente mais complementar, tanto o árabe quanto o brasileiro reconstroem, solidariamente, o espaço nacional, como se verifica, hoje, em Milton Hatoum.

Nesse itinerário narrativo, Jorge Amado tematiza o abrasileiramento árabe no interior da Bahia, enquanto põe e repõe em circulação um assimilacionismo de correspondência, o mesmo do qual se nutririam Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, mais ambiguamente, e Milton Hatoum, no século atual.

Ignorada e ocultada, ainda hoje, pelas mais variadas perspectivas acadêmicas que, ao renegarem a perspectiva do Naturalismo adotada por Jorge Amado, e por outros importantes autores de nossa literatura, condenam a obra do autor baiano a uma quase esterilidade crítica, ou a uma leitura de depreciação, a significativa contribuição estética do escritor grapiúna é, geralmente, encoberta por essas interpretações que a rebaixam à categoria de expressão menor, como exemplifica as observações críticas de Alfredo Bosi:

Cronista de tensão mínima, [Jorge Amado] soube esboçar largos painéis coloridos e facilmente comunicáveis que lhe franqueariam um grande e nunca desmentido êxito junto ao público. Ao leitor curioso e glutão a sua obra tem dado de tudo um pouco; pieguice e volúpia em vez de paixão, estereótipos em vez de trato orgânico dos conflitos sociais, pitoresco em vez de captação estética do meio, tipos ‘folclóricos’ em vez de pessoas, descuido formal a pretexto de oralidade... [...] O populismo literário deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por certo o de passar por arte revolucionária. (BOSI, 1980, p. 456-457)

Considerando Jorge Amado como cronista de tensão mínima e a sua obra como uma mistura de equívocos, Alfredo Bosi procede a uma dura crítica às narrativas amadianas.

Assim, ressalta como caracteres dos romances amadianos o descuido formal, a orientação populista, a pieguice e a velha perspectiva pitoresca, comum às nossas primeiras elaborações identitárias. Nessa visão, procede a uma classificação, ou mais precisamente a uma desclassificação, das narrativas de Jorge Amado:

Na sua obra podem-se distinguir: a) um primeiro momento de águas-fortes da vida baiana, rural e citadina (Cacau, Suor) que lhe deram a fórmula do “romance proletário”; b) depoimentos líricos, isto é, sentimentais, espraiados em torno de rixas e amores marinheiros (Jubiabá, Mar Morto, Capitães da Areia); c) um grupo de escritos de pregação partidária (O Cavaleiro da Esperança, O Mundo da Paz); d) alguns grandes afrescos da região do cacau, certamente suas invenções mais felizes, que animam de tom épico as lutas entre coronéis e exportadores (Terras do Sem-Fim, São Jorge dos Ilhéus); e) mais recentemente, crônicas amaneiradas de costumes provincianos (Gabriela, Cravo e Canela, Dona Flor e Seus Dois Maridos) [...] Na última fase abandonam-se os esquemas de literatura ideológica que nortearam os romances de 30 e 40; e tudo se dissolve no pitoresco, no “saboroso”, no “gorduroso”, no apimentado do regional. (BOSI, 1980, p. 457)

Longe de se constituir como uma visão particular e isolada, a leitura de Alfredo Bosi é paradigmática da recepção acadêmica à obra de Jorge Amado, como demonstram as observações da ensaísta Walnice Nogueira Galvão e as de Tânia Pellegrini, professoras de Literatura de importantes centros acadêmicos. Nessas observações, abaixo descritas, essas duas intérpretes assinalam, à maneira de Bosi, a ausência do trabalho e do rigor formal na obra amadiana, enquanto apontam a perspectiva mercadológica como norteadora da produção do escritor baiano:

Quanto nós, entra ano sai ano, aguarda-nos mais um romance de Jorge Amado, reiterando seu amaneiramento, apenas aguçando seus instrumentos para pior. Os livros são cada vez mais volumosos, o que lhes aumenta o preço e a decorrente quantia para o autor sobre o total da venda. Há, cada vez mais, trechos obviamente repetidos; percebe-se que são três ou quatro versões de um mesmo episódio [...] Cada vez mais, há menor elaboração artística [...] A bandeira progressista de Jorge Amado é o populismo. (GALVÃO, 1976, p. 15-16)

Tomando o conjunto da obra de Jorge Amado, o que na verdade se percebe é uma acentuação gradativa daquilo que era apontado como fragilidade ou deslize, na mesma proporção em que se dilui seu traço de força maior, a saber, a fusão harmoniosa entre documento e poesia, espécie de chave de sua fórmula estética, nos primeiros romances. O que prevaleceu parece  ter sido o “mínimo de literatura” como compromisso estético, enquanto o “máximo de honestidade”, como compromisso ético, foi aos poucos adquirindo conotações mais ligadas à lógica da mercadoria. (PELLEGRINI, 1999, p. 128)

Leitor atento de Jorge Amado, Paulo Bezerra, estudioso e tradutor da literatura e da teoria russa entre nós, se contrapõe, com indignação, a essa corrente do pensamento crítico-acadêmico, reconhecendo-a como absurda, responsável por uma lacuna injustificável em nossas interpretações do acervo literário nacional, segundo denuncia em seu prefácio à obra de Eduardo Assis Duarte, Jorge Amado: romance em tempo de utopia, publicada em 1995:

Entre os absurdos que a universidade brasileira comete, há um que certamente chega ao paroxismo: a ausência de estudos sistemáticos e abrangentes sobre a obra de Jorge Amado, o nosso escritor mais lido dentro e fora do país. Essa lacuna, injustificável sob qualquer motivo, deve-se a vários fatores, um dos quais ligado ao falacioso argumento de que a obra do romancista baiano seria de baixa qualidade estética, o que a tornaria desmerecida de integrar o Olimpo das obras pesquisáveis. Daí a ausência ou o número ridiculamente irrisório de teses sobre Jorge Amado nas nossas universidades. (BEZERRA, 1995, não paginado)

Nesse entendimento. Paulo Bezerra afirma que essa posição teórico-acadêmica seria decorrente do preconceito estético, em face da convenção estética adotada por Amado, mascarador, por sua vez, do preconceito ideológico, que vitima, freqüentemente, a obra amadiana. Em sua interpretação da recepção crítica a Jorge Amado, acusaria também o despreparo teórico dessa postura crítica que a incapacitaria, segundo Bezerra, à compreensão das convenções que sedimentam o projeto amadiano:

Por sua vez, a crítica da obra amadiana tem-se caracterizado, com raras exceções, pela falta de abrangência e profundidade, por um preconceito estético que frequentemente mascara o preconceito ideológico e, principalmente, pelo despreparo teórico para compreender o real significado da obra, além do desconhecimento das matrizes populares que a alimentam. Em vista disso, mantém-se quase sempre alheia à natureza do projeto amadiano, passando à margem ou simplesmente ignorando as convenções de que o autor lançou mão para concretizá-lo. (BEZERRA, 1995, não paginado)

De forma similar, Eduardo de Assis Duarte se debruçaria sobre a questão da recepção crítica a Jorge Amado. Numa clara demonstração de confluência entre a sua perspectiva e a do prefaciador de sua obra, Assis Duarte acentuaria na “Apresentação” de sua obra o alheamento crítico em face da natureza do projeto amadiano e das convenções adotadas pelo autor baiano para concretizá-lo. Esse alheamento, somado a uma perspectiva critica que privilegia os parâmetros estéticos do modernismo, seria, segundo Assis Duarte e Paulo Bezerra, a razão da reserva crítico-acadêmica e da incompreensão do discurso romanesco de Jorge Amado:

A crítica brasileira, salvo raras exceções, poucas vezes dedicou-se a uma leitura do romance amadiano que levasse em conta a natureza de seu projeto ou as convenções adotadas para a sua concretização. Marcada pelas balizas estéticas do modernismo, dedicou-se em grande parte ora uma crítica dos defeitos, ora a uma crítica das belezas, para ficarmos com as expressões de Agripino Grieco. No primeiro caso, buscando ressaltar tão somente as fragilidades, no segundo, apenas os méritos e, em ambos, não conseguindo uma compreensão mais profunda e global desses escritos. (DUARTE, 1995, p. 37 – grifos do autor)

Nesse caminho interpretativo, Assis Duarte procederia a uma leitura dos textos críticos acerca de Amado, em especial dos ensaios de Álvaro Lins, depreciador da obra amadiana, e do texto de Roger Bastide que, levando em conta a convenção naturalista de Jorge Amado, acentua a inovadora contribuição efetuada pelo escritor nordestino, na transformação dessa herança estética entre nós. A partir dessa leitura de revisão, Eduardo Duarte se voltaria para o projeto amadiano e dos recursos utilizados para a sua concretização. Em sua apreciação do projeto amadiano, problematizaria, novamente, as pesquisas elaboradas acerca do conjunto da obra de Jorge Amado:

Tal projeto tem como premissa básica a ampliação do horizonte recepcional da obra. ‘Escrever para o povo’ constitui-se como meta primordial e ponto de partida para a adoção de uma linguagem marcada pela oralidade, com o uso do coloquial configurando-se grande traço distintivo da expressão amadiana. No plano do enredo, essa busca do popular leva à absorção dos esquemas de aventura e heroísmo amplamente disseminados, seja no cordel ou no romance de folhetim, seja no melodrama, na novela radiofônica ou no cinema popular da época. Ao lado disso, há um inconfundível acento emotivo, de origem melodramática, perpassando os enredos. Ao invés de pesquisar o porquê desses recursos, alguns críticos preferiram o caminho mais cômodo de apontar a ‘pieguice’ ou o ‘romantismo’ de determinadas soluções, pouco contribuindo para o entendimento da questão. (DUARTE, 1995, p. 39)

Mais recentemente, Lúcia Lippi Oliveira (2002), numa leitura orientada pelo recorte étnico-identitário, se aproximaria das perspectivas de Eduardo de Assis Duarte e de Paulo Bezerra. Ao se deter sobre Jorge Amado, especialmente sobre as suas representações das gentes baianas, reconhece a importância de Jorge Amado, tanto como romancista, quanto como intelectual. Observando a constituição do povo baiano, na qual se verifica a ostensiva presença de negros e mestiços, e os preconceitos que, historicamente, cercam essas populações, Lúcia Lippi veria a obra amadiana como signos literários responsáveis pela redefinição e pela reinterpretação dos traços culturais baianos, ao mesmo tempo em que assinala a ruptura amadiana com as idéias que alimentaram a escola Baiana de Medicina, especialmente com a visão de Nina Rodrigues:

Não por acaso é na Bahia, profundamente impregnada de preconceitos raciais, que se desenvolve a Escola Baiana de Medicina, com Nina Rodrigues à frente, absorvendo da Europa a ciência racialista que classifica os povos a partir de traços raciais! É também na Bahia, pela obra de Jorge Amado, que se reconstrói nova versão da mistura das três raças originais e se produz a imagem do paraíso racial. Os personagens de seus romances, na maioria figuras populares, mestiças, falam da alegria, da sensualidade, da sexualidade, do sincretismo religioso. Jorge Amado, entre outros, pode ser tomado como romancista, como intelectual, que produziu uma mudança de sinal interpretação dos traços da cultura baiana. (OLIVEIRA, 2002, p. 44)

Escritor engajado, atento às vicissitudes de seu tempo, Jorge Amado entranha, à sua tessitura narrativa, as suas perspectivas e anseios políticos. Nesse entranhamento, nos legaria um conjunto textual no qual se pode aferir, simultaneamente, as suas opções estéticas e as suas reivindicações políticas, num comportamento pouco raro entre os nossos literatos, como assinala Eduardo de Assis Duarte ao se voltar para o contexto escritural brasileiro, dos fins do século dezenove e inícios do século vinte:

No Brasil, em cuja história a literatura e a política andaram quase sempre de mãos dadas, este é o momento em que muitos escritores começaram a querer dar as mãos aos operários. A onda de agitações e greves do período 1917-1920, encabeçada pelos anarquistas e anarco-sindicalistas, funciona como reflexo, embora longínquo, dos acontecimentos russos, e dá oportunidades a intervenções como as de Lima Barreto [...] Avançando um pouco o retrospecto histórico, pode-se notar que o ano de 1922 enseja três acontecimentos de importância decisiva na carreira de Jorge Amado: a Semana de Arte Moderna, o levante do Forte de Copacabana e a fundação do PCB [...] No caso específico de Jorge Amado, modernismo, tenentismo e comunismo funcionarão como referenciais muito precisos numa trajetória em que política e literatura vão caminhar lado a lado. (DUARTE, 1995, p. 22-23)

Na verdade, não obstante as diversidades, de objetivos e de organização textual, verificadas entre o discurso literário e o discurso científico da sociedade, essas modalidades discursivas apresentam um contínuo diálogo que acirra o debate sobre o contraponto entre o discurso artístico e o discurso sociológico, principalmente quando a temática trabalhada, a exemplo da de Jorge Amado, diz respeito às questões nacionais, como ressaltam o filósofo Octávio Ianni, ao discorrer sobre as afinidades entre a literatura e a sociologia e o crítico Antonio Candido, ao ressaltar o caráter empenhado de nossa literatura:

É mais do que evidente que a sociologia e a literatura nascem e desenvolvem-se desafiadas, influenciadas ou fascinadas pela questão nacional. Colaboram decisivamente na elaboração do mapa da nação, ajudando a estabelecer o território e a fronteira, a história e a tradição, a língua e os dialetos, a religião e as seitas, os símbolos e as façanhas, os santos e os heróis, os monumentos e as ruínas. (IANNI, 1999, p. 14)

Tanto no caso da literatura messiânica e idealista dos românticos, quanto no caso da literatura realista, na qual a crítica assume o cunho de verdadeira investigação orientada da sociedade estamos em face de exemplos de literatura empenhada numa tarefa ligada aos direitos humanos. No Brasil isto foi claro nalguns momentos do Naturalismo, mas ganhou força real sobretudo no decênio de 1930, quando o homem do povo com todos os seus problemas passou a primeiro plano e os escritores deram grande intensidade ao tratamento literário do pobre. Isso foi devido sobretudo ao fato do romance de tonalidade social ter passado da denúncia retórica, ou da mera descrição, a uma espécie de crítica corrosiva, que podia ser explícita, como em Jorge Amado, ou implícita, como em Graciliano Ramos [...] mas que contribuíram para formar o batalhão de escritores empenhados em expor e denunciar a miséria, a exploração econômica, a marginalização, o que os torna [...] figurantes de uma luta virtual pelos direitos humanos. (CANDIDO, 1995, p. 255-256)

Voltado para as questões identitárias no Brasil, em cujas representações deixa as marcas de sua trajetória literária e política em nossa vida contemporânea, no Brasil e no exterior, Jorge Amado vai impregnar a sua obra de um realismo manifesto, que o filiará ao naturalismo francês, em especial ao de Émile Zola, autor de sua admiração e de sua predileção sentimental, segundo afirma, em 1992, em entrevista à Folha de São Paulo:

Divido os escritores franceses entre os que amo e admiro e aqueles a quem simplesmente admiro. Flaubert não é do meu amor. Mesmo Balzac, um imenso escritor, não é dos meus preferidos. Entre os franceses, o que me diz mais mesmo é Zola. (AMADO, 9.8.1992)

As escolhas ou preferências de Jorge Amado, no que diz respeito à perspectiva literária do Naturalismo e a Zola, longe de serem gratuitas se adéquam ao seu projeto e aos seus intentos literários, como se apreende da leitura de suas obras e da observação das linhas norteadoras da vertente naturalista. Para essa compreensão, concorre a obra de Flora Süssekind, Tal Brasil, qual romance?: uma ideologia estética e sua história: o naturalismo, publicada em 1984.

Longe de ver a gratuidade e/ou o mero prestígio das idéias européias como elementos motivadores da calorosa e duradoura recepção ao Naturalismo entre nós, Flora Süssekind procede a um verdadeiro inventário crítico acerca do Naturalismo, utilizando-se das mais variadas fontes críticas. Em sua leitura, ressalta a filiação de Jorge Amado a essa tradição estética, aproximando-a a Aluísio Azevedo, a José Lins do Rego e a Zola:

Em O Cortiço, romance exemplar da virada do século, usa Aluísio Azevedo como uma de suas epígrafes um dos mais conhecidos enunciados do Direito Criminal: ‘La vérité, toute la vérité, rien que la vérité’. Na nota introdutória de 1933 a Cacau, avisa, por sua vez, Jorge Amado: ‘Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia’ [...] Diante da ênfase nos ciclos se poderia perguntar [...] Por que Cacau se desdobra em Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus? Por que Menino de Engenho continua em Doidinho, Bangüê, Moleque Ricardo e Usina? Por que um ‘ciclo’ do cacau e um ‘ciclo’ da cana-de-açúcar? A idéia do ciclo não chega a ser exclusiva dos anos Trinta. Basta lembrar o ciclo dos Rougon-Macquart de Zola. Ou o esboço de um ciclo romanesco que Aluísio Azevedo apresentara num artigo de 1885, publicado em A Semana. (SÜSSEKIND, 1984, p. 36; 162-163)

Apoiada em Adonias Filho, Antonio Candido, José Guilherme Merquior, Nelson Werneck Sodré, Otto Maria Carpeaux, entre outros, Flora Süssekind reconhece os vínculos de afinidades entre o discurso literário brasileiro, recorrente na incessante busca de nossas identidades, e as linhas norteadoras da estética naturalista, em especial as da busca da referencialidade, do documental, apropriadas às construções de nacionalidade, como se lê em seu discurso abaixo, no qual insere a leitura de Adonias Filho:

Normalmente, procura-se uma literatura que, ao documentar o país, pareça acreditar na existência de uma identidade nacional. Uma literatura que, não se indagando como linguagem, funcione no sentido de exterminar quaisquer dúvidas, digam elas respeito à ficção ou ao país. O que corrobora algumas observações de Adonias Filho a respeito da vinculação do romance brasileiro ao documentário: “O país nele pode encontrar a sua identidade. E pode encontrá-la sobretudo porque, em estado de testemunho, guardando as imagens como em um espelho, não anula em sua fixação as percepções dos romancistas”. A estética naturalista funciona, portanto, no sentido de representar uma identidade para o país, de apagar, via ficção, as divisões e dúvidas [...] É em sentido literalmente oposto a essa fragmentação que se constroem os textos pautados numa estética naturalista. (SÜSSEKIND, 1984, p. 43-44 – grifos da autora)

Em relação à preferência brasileira por Émile Zola, como a manifesta explicitamente Jorge Amado, Flora Süssekind, utilizando-se das ponderações de Merquior, ressalta o caráter pragmático da acolhida dos nossos escritores à estética de Zola, descartando, mais uma vez, o simples prestígio das idéias européias como fator determinante das escolhas brasileiras:

Não se procura observar por que justamente o naturalismo entrou em moda e que vínculos orgânicos mantinha com o sistema intelectual brasileiro para que adquirisse tão grande repercussão. Não é qualquer “idéia estrangeira” que recebe acolhida tão boa. Em meio às diversas sementes intelectuais lançadas à terra nem sempre tudo “dá”. Em meio a Flaubert e Zola, escolheu-se o último. Coisa de que o próprio Merquior se dá conta na sua Breve História da Literatura Brasileira: “Foi o romance naturalista à Zola, que trocou a objetividade esteticista de Flaubert pela análise de pretensões científicas, que constituiu, entre nós, a primeira manifestação de peso de um estilo pós-romântico”. Prefere-se Zola a Flaubert, como entre Marx, Comte e Spencer, escolhem-se os dois últimos. Não é muito difícil perceber o que se repete nas escolhas. Não se trata de “plágio” ou de “imitação” indiscriminados. A preferência é sempre por qualquer pensamento que ajude a estabelecer um conjunto de identidades, leis e semelhanças. (SÜSSEKIND, 1984, p. 53)

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continua…

Fonte:
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Contos do Oriente (Até a metade do céu)

Quando o rei de Wei decidiu construir uma torre que iria chegar até a metade do céu, ele deu uma ordem:

- Quem tentar me dissuadir, será condenado à morte.

Xu Wan, um ministro de Wei, procurou-o com um cesto nas costas e uma lança na mão.

- Senhor, ouvi que está querendo construir uma torre que vai chegar até a metade do céu - disse Xu,- e seu humilde servo veio lhe oferecer ajuda.

- O que de forte tem para me oferecer?- quis saber o rei.

- Eu não sou forte - respondeu Xu- mas eu posso trabalhar no projeto da construção.

- Sim - disse o rei.

- Senhor, ouvi dizer que a distância entre o céu e a terra é de 15 mil li. Como quer construir uma torre que chega até a metade da distância entre a terra e o céu, a torre deve ter 7.500 li de altura. Para aguentar essa estrutura, os alicerces devem ter a circunferência de oito mil li. Toda a suas terras juntas, senhor, não são suficientes para os alicerces. Há muito tempo atrás, os reis Yao e Shun estabeleceram ducados com a circunferência de cinco mil li. Se estiver determinado a construir essa torre, deve primeiro atacar os duques e pegar todas as terras deles. Mas ainda não vai ser o bastante. Deve também expulsar várias tribos que vivem em longínquas regiões ao norte, ao sul, a leste e a oeste. Quando conseguir uma áreas com limites de oito mil li, aí, sim, será o suficiente para os alicerces. Quanto a questão do material de construção, trabalhadores e depósitos de comida, tudo isso deve ser calculado em algumas centenas de milhões. For a da área cercada de 8 mil li, uma grande extensão de campos deve ser escolhida para a produção de comida para os trabalhadores se alimentarem enquanto estiverem construindo a torre. Quando todas essas condições para a construção das torres forem preenchidas, o trabalho pode começar.

O rei ficou calado, sem encontrar uma resposta. Ele abandonou a ideia da construção da torre.

Fonte: