terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Olivaldo Júnior (Mais 3 Minicontos de Amor)

O MESMO ÔNIBUS

Maria pegava sempre o mesmo ônibus para a escola. Moça, encantara-se pelo motorista da linha. Ele, José, seu criado, mal sabia da existência dela. Era 'o' profissional.

O caso é que, para chamar a atenção do rapaz, Maria passou a se vestir de modo extravagante, só para ver se José reparava nela. Nada, ele era sério demais para encará-la.

Centenas de looks depois (e uma grana gasta em shopping), Maria, sem remédio, ficou de cama uma semana e, ao sarar, de volta à cena, deixou de tomar enfim o mesmo ônibus...

SE ENAMORA

Homem feito, ainda adorava aquele hit da Turma do Balão Mágico, não sei se você conhece, o Se enamora. Não podia ouvir os acordes iniciais da canção, que se emocionava.

Lembrava dos recreios em sua escola, quando comia a merenda e saía correndo para o pega-pega com os amigos da escola. Não pensava em namorar, nem nada. Gostava da vida.

Hoje, do alto de seus mais de trinta anos, olha para trás e quase não vê mais o rosto alegre do menino de outrora. Se enamora ainda é uma utopia. E o balão, não é mais mágico.

UMA ESTRELA NO SUCO


O jovem não sabia que o amor é um céu de chuva que se reveste de sol, só para enganar os mais 'afoitos'. Duas e quinze da tarde, e chovia muito. No shopping, se abrigou.

Já que estava ali, pediu um suco. Quem lhe veio trazer o néctar dos deuses foi justamente sua ex-namorada. Surpresa! Como estava mais bela!... Serviu-lhe o suco e saiu.

Quem disse que o suco lhe descia goela abaixo? Na garganta, o 'Eu ainda te amo' não deixava o suco descer. Quando o tomou, uma estrela pontiaguda desceu junto. Doeu muito.

Fonte: O Autor

Fernando Pessoa (Quadras ao Gosto Popular) II


Teu xale de seda escura
É posto de tal feição
Que alegre se dependura
Dentro do meu coração.

O manjerico comprado
Não é melhor que o que dão.
Põe o manjerico ao lado
E dá-me o teu coração.

Rosa verde, rosa verde,...
Rosa verde é coisa que há?
É uma coisa que se perde
Quando a gente não está lá.

A rosa que se não colhe
Nem por isso tem mais vida.
Ninguém há que te não olhe
Que te não queira colhida.

Andorinha que passaste,
Quem é que te esperaria?
Só quem te visse passar
E esperasse no outro dia.

Nuvem do céu, que pareces
Tudo quanto a gente quer,
Se tu, ao menos, me desses
O que se não pode ter!

Vai alta a nuvem que passa.
Vai alto o meu pensamento
Que é escravo da tua graça
Como a nuvem o é do vento.

Ambos à beira do poço
Achamos que é muito fundo.
Deita-se a pedra, e o que eu ouço
É teu olhar, que é meu mundo.

Aquela senhora velha
Que fala com tão bom modo
Parece ser uma abelha
Que nos diz: «Não incomodo.»

Dás nós na linha que cose
Para que pare no fim.
Por muito que eu pense e ouse,
Nunca dás nó para mim.

Boca com olhos por cima
Ambos a estar a sorrir...
Já sei onde está a rima
Do que não ouso pedir.

Tinhas um pente espanhol
No cabelo português,
Mas quando te olhava o sol,
Eras só quem Deus te fez.

Boca de riso escarlate
E de sorriso de rir...
Meu coração bate, bate,
Bate de te ver e ouvir.

Acendeste uma candeia
Com esse ar que Deus te deu.
Já não é noite na aldeia
E, se calhar, nem no céu.

As gaivotas, tantas, tantas,
Voam no rio pró mar...
Também sem querer encantas,
Nem é preciso voar.

As ondas que a maré conta
Ninguém as pode contar.
Se, ao passar, ninguém te aponta,
Aponta-te com o olhar.

Todos os dias que passam
Sem passares por aqui
São dias que me desgraçam
Por me privarem de ti.

Não sei que grande tristeza
Me fez só gostar de ti
Quando já tinha a certeza
De te amar porque te vi.

A mantilha de espanhola
Que trazias por trazer
Não te dava um ar de tola
Porque o não podias ter.

O moinho de café
Mói grãos e faz deles pó.
O pó que a minh'alma é
Moeu quem me deixa só.

Boca de riso escarlate
Com dentes brancos no meio,
Meu coração bate, bate,
Mas bate por ter receio.

Se há uma nuvem que passa
Passa uma sombra também.
Ninguém diz que é desgraça
Não ter o que se não tem.

Tu, ao canto da janela,
Sorrias a alguém da rua.
Porquê ao canto, se aquela
Posição não é a tua?

Há grandes sombras na horta
Quando a amiga lá vai ter...
Ser feliz é o que importa,
Não importa como o ser!

Tenho um livrinho onde escrevo
Quando me esqueço de ti.
É um livro de capa negra
Onde inda nada escrevi.

Meu coração a bater
Parece estar-me a lembrar
Que, se um dia te esquecer,
Será por ele parar.

Trazes o vestido novo
Como quem sabe o que faz.
Como és bonita entre o povo,
Mesmo ficando para trás!

A tua boca de riso
Parece olhar para a gente
Com um olhar que é preciso
Para saber que se sente.

Tome lá, minha menina,
O ramalhete que fiz.
Cada flor é pequenina,
Mas tudo junto é feliz.

O avental, que à gaveta
Foste buscar, não terá
Algibeira em que me meta
Para estar contigo já?

PESSOA, Fernando, Quadras ao gosto popular, Lisboa, Ática, 1994.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

João Batista Xavier Oliveira (Trovas Collection) III

Fonte: O Trovador

Olivaldo Júnior (Um passarinho só)


Era uma vez um passarinho. Ou seria um poeta? Bem, era uma vez um passarinho. Um passarinho só. Pássaro que, por um breve momento de sua vida, pensou ter achado os seus para estar entre eles com toda a liberdade. Ledo engano!... Assim como disse a poeta Orides Fontela num de seus versos, "muito além é o país do acolhimento". Ora, ora, ele que não esperaria para ver o trem da vida aparecer no tal país, porque não apareceria mesmo.

Sozinho outra vez, passou a voar na Internet, onde não se voa, mas se navega. Transgressor sem dar na vista, ele voava, deixando rastros, migalhas na tela, para, caso quisesse, um dia poder fazer o caminho de volta, indo direto para casa. Mas onde ficava mesmo sua casa? Onde era seu ninho? Não se lembrava mais, ou, melhor ainda, lembrava-se, mas não era mais possível voltar. Era só e, sozinho mesmo, continuaria. E era tão difícil!

Dia após dia, o mesmo aparente pássaro de sempre voava e voava em busca de.. O que é que ele procurava mesmo? Ah! Muitas vezes lhe fugia a ideia daquilo que estava mesmo buscando, à procura, ou querendo, então, nessas horas, cantava, deixando seu canto ir no ar e no mar de intenções da Internet, a fim de, quem sabe, achar outro náufrago que o escutasse e quisesse trocar umas letras com ele. Muitos, embora o ouvissem, não ligavam.

Cansado, com o peso de suas asas de palavras sobre as costas, sentia a lágrima prender-lhe o canto, e não queria mais saber de nada. O céu azul se escurecia, e a negra noite à luz da alma se instalava, sem perdão. Perdão, onde andará seu caro amigo, que gostava de Baden Powell e outros mais, e sumira no ar como fumaça? Não sabia. Estava só. Cansado de canto, de estrelas trazidas à boca e devolvidas à página, onde brilhavam, sozinhas, por ele.

Fonte:  O Autor

Érico Veríssimo (As Aventuras de Tibicuera) Capítulos 21 a 24

21 — UMA AVENTURA VERTIGINOSA
 
O sol brilhava forte e eu já estava cansado da minha posição. Resolvi sair do esconderijo. Preguei sem querer um grande susto no primeiro marinheiro que me apareceu pela frente.

— Cruzes! — gritou ele, levando a mão à espada.

Fiz um gesto de paz e disse:

— Amigo!

Levaram-me à presença do capitão. Disse-lhe meu nome. Falei em Anchieta e no desejo que eu tinha de combater os franceses. Afirmei-lhe que era valente e hábil na guerra. Quiseram experimentar-me.

— Vamos ver se és ágil e forte. Sobe até o topo daquele mastro. Não hesitei. De um salto agarrei-me à primeira corda que vi. Subi por ele até a primeira verga. Depois abracei o mastro grande e, em poucos minutos, estava no cesto da gávea, pregando outro susto no vigia, que quase me jogou para baixo, julgando ver em mim um fantasma de pele bronzeada.

— Muito bem! — disse o capitão quando pisei de novo as tábuas do convés.

Deram-me pequenos serviços a fazer. Passaram-se alguns dias. A expedição parou em diversos portos para receber reforços. Dois meses depois de nossa saída da Bahia avistamos o inimigo. À tarde começamos o ataque. Nem posso descrever o que foi aquele combate. Só me lembro é de que o vermelhão do crepúsculo se confundia com o vermelhão dos fortes franceses incendiados, com o fulgor das explosões e com o relampejar dos canhões e arcabuzes. No princípio julguei que íamos ser vencidos. Mas depois sentimos o inimigo enfraquecer. Só ficou um forte a resistir, duro, vomitando fogo contra nós.

No meio do barulho infernal da luta, berrei ao ouvido do comandante o meu plano. Ele o achou maluco mas me ordenou a pô-lo em prática. Fiz descerem ao mar um bote pequeno. Joguei para dentro dele duas barricas de pólvora. Comecei a remar com fúria rumo da fortificação que ainda resistia. Por cima de minha cabeça zumbiam projéteis. As pobres estrelas da noitinha estavam sem brilho, como num desmaio. A água do mar dava a impressão de chumbo derretido. E eu remava, remava... O suor escorria pelo meu corpo. Consegui aproximar-me do forte sem ser visto. A proa do meu barco tocou a paliçada. Lá dentro ardia uma fogueira. Calculei a posição dela e arremessei uma barrica. Um estrondo. Joguei a segunda. Nova explosão. Os inimigos gritavam e corriam. Era o pânico. Era a derrota.

Só sei que horas depois, com o corpo todo chamuscado, esfolado e dolorido, eu estava deitado na praia.

22 — ESTRELAS E DIAMANTES
Não voltei mais para bordo. O tempo curou minhas feridas, apagou meu cansaço. O mar me deu alimento. Os rios, água fresca e boa. Andei à toa. Atravessei os matos sem medo dos espíritos maus, porque agora eu era cristão e a cruz de Anchieta ia comigo.

Cheguei ao porto de Santos. Contava-se que Mem de Sá mandara Brás Cubas com um grupo de homens explorar o sertão em busca de ouro e pedras preciosas. Eu achei aquilo muito engraçado. De que valia o ouro? De que
valiam as pedras preciosas? O que havia de gostoso era a aventura. Consegui um lugar na expedição. Achamos ouro. Descobrimos belas pedras. E uma noite, quando o acampamento dormia, olhei para o céu e disse para mim mesmo: Não há pedras mais bonitas que as estrelas com que Deus enfeita as suas noites. Essas, Brás Cubas não pega.

23 — TORNO A ENCONTRAR ANCHIETA
Uma das maiores alegrias que senti depois que deixei o bando de Brás Cubas foi no meu segundo encontro com Anchieta. A coisa se passou assim. Os índios tamoios estavam, como eu já disse, reunidos numa confederação muito forte que atacou a Vila de São Paulo, onde se achavam os jesuítas e alguns índios fiéis comandados por Tibiriçá. O primeiro ataque foi repelido. Os tamoios se retiraram a fim de juntar mais gente para uma segunda investida. São Paulo não poderia resistir ao segundo golpe. Então os Padres Anchieta e Nóbrega foram corajosamente procurar o Cacique Coaquira, chefe tamoio, no aldeamento de Iperoig. Ora, eu sempre me julgara corajoso porque enfrentara inimigos armados de tacape, arco e frecha. Mas passei a me considerar miserável quando vi (sim, porque eu vi) aqueles dois homens irem sorrindo e de mãos vazias ao encontro dos ferozes tamoios. Acompanhei-os até Iperoig, segui-os de longe como um cachorrinho que não está certo da aprovação do dono.

Graças a Anchieta e a Nóbrega negociou-se a paz. Nunca mais esqueci aquele dia em Iperoig. Anchieta estava à beira do mar, escrevendo na areia branca um poema à Virgem. Fiquei parado, olhando. O vulto negro do padre se recortava contra o céu sem nuvens. O mar gemia. As ondas vinham lamber os pés do apóstolo. E com a ponta duma vara ele riscava as palavras do poema...

Foi então que Anchieta me explicou o que era poesia, o que vinha a ser uma sextilha, um soneto. Tive desejos ferozes de ser poeta. E nos dias que se seguiram andei riscando na areia coisas absurdas, poemas sem sentido em que o Tupi se misturava com o Português.

Depois da paz de Iperoig tomei parte num grande combate. Os franceses se haviam estabelecido de novo na baía do Rio de Janeiro. (É curioso. A atração dos estrangeiros pela Baía da Guanabara continua forte até hoje. Felizmente eles nos chegam na qualidade de turistas e não de piratas...) O Governador Mem de Sá veio em pessoa combater os invasores. Foi uma batalha muito linda. Imaginem vocês as águas desta baía coalhadas de igaras! E uma chuva de flechas escurecendo o ar. E os gritos. O fogo dos arcabuzes e dos canhões. Para mim aquilo tudo teve o gosto de uma festa. Recebi um ferimento no ombro. Mas continuei a lutar.

Os franceses foram expulsos pela segunda vez. Estácio de Sá, irmão do governador, tinha fundado em 1565, junto ao Pão de Açúcar, uma cidade a que deu o nome de São Sebastião do Rio de Janeiro, em honra a seu patrono, El Rei de Portugal. (Vocês, que têm o hábito de simplificar tudo, lhe chamam hoje apenas Rio.) Pobre Estácio de Sá! Recebeu em combate uma flechada no rosto.

Foi bem triste sua morte. Eu me lembro... O dia estava claro. Fiquei comovido. Não sei bem por que, pois mal conhecia o homem.

Neste instante de 1942 em que escrevo estas palavras, não resisto à tentação de ir à janela de meu apartamento para olhar o mar. À sombra de grandes guarda-sóis de gomos coloridos vejo banhistas deitados na areia da praia.

Poucos deles se lembrarão agora de que devem a sua magnífica cidade a Estácio de Sá. A vida é assim mesmo.

Depois, nem todos podem ter a minha memória...

24 — NÉVOA, CORSÁRIOS E GOVERNADORES
Agora vem um período meio nevoento de minha vida. Não me lembro do que fiz, do que pensei, do que senti. A História me conta que após a expulsão dos franceses o governo de Lisboa resolveu dividir o Brasil em dois governos, — o do Norte e o do Sul. Na política europeia, sempre perigosa e agitada, desde aqueles remotos tempos, aconteceram coisas muito importantes. D. Sebastião, rei de Portugal, morreu misteriosamente em 1578 na Batalha de Alcácer-Quebir. (No entanto dizem que até hoje existem velhas damas em Portugal que alimentam a esperança de verem de volta à pátria o galante soberano.) O reino passou a ser governado pelo Cardeal D. Henrique, um cidadão de idade avançada.

D. Filipe II, rei de Espanha, sem a menor cerimônia anexou Portugal à sua Coroa. E como o Brasil pertencesse a Portugal, passou em consequência a ser domínio espanhol.

Ora, a Espanha tinha inimigos. Entre estes se achava a Inglaterra. Os ingleses sempre foram temíveis no mar. Os seus corsários eram famosos. Um certo Edwards Fenton em 1583 atacou Santos. Ia já cantar vitória quando apareceu uma esquadra composta de navios portugueses e espanhóis. Os ingleses “abriram o pano” — expressão que na gíria significa fugir e que bem se ajusta à ocasião, pois se tratava de navios a vela. Mas a moda pegou. Vieram outros corsários ingleses. Robert Withrington, que atacou a Bahia, aprisionando os navios que se encontravam no porto. Depois: Thomas Cavendish, seguido, com o intervalo de poucos anos, de James Lancaster. Saquearam eles São Vicente, Santos e Recife; levaram muita coisa, de sorte que, no fim de contas, puderam dizer que tinham feito “a good business” — um bom negócio.

Eu nem conto a vocês o nome dos governadores do Brasil naqueles anos entre 1591 e 1613. Foram tantos e fizeram tão pouco.. . Fizeram pouco — devo esclarecer — porque estavam cercados de perigos, sujeitos aos ataques dos índios e dos piratas estrangeiros. Faltavam-lhes vias de comunicação. O território era grande demais. O diabo quisesse governar o Brasil!

Em 1612 os franceses desembarcaram no Maranhão, fundando a povoação de São Luís. Não sei como eu me achava por essa época entre os homens de Jerônimo Albuquerque, que estava encarregado de expulsar os invasores. Já então eu falava corretamente o português, tendo também outra ideia do mundo e da vida. Sabia manejar um arcabuz e disparar um canhão.

Habituara-me por completo ao uso de roupas europeias E aos poucos esquecia os meus costumes indígenas.

Em 1615, depois de tremendos combates, conseguimos expulsar os invasores.
 
Fonte:
Érico Veríssimo. As aventuras de Tibicuera, que são também do Brasil. (Texto revisto conforme Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor em 2009). Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1937.

domingo, 18 de fevereiro de 2018

João Batista Xavier Oliveira (Trovas Collection) II

Fonte: O Trovador

Olivaldo Júnior (3 Minicontos de amor)

O LANTERNINHA

Desde menino era vidrado nas lâmpadas. "Aluado!...", diziam as más línguas da pequena cidade de Lua Nova. Nova mesmo era a capacidade do lanterninha João Braz.

Não se casara, e lá se iam quarenta anos de uma triste existência! A vida era a ausência entre uma e outra sessão de cinema em que era o responsável pela... "censura".

Lanterna em punho, noite a noite, voltava a pé para casa sonhando com sua musa, uma estrela qualquer de um filme a mais que exibiam. Um dia, não voltou. Aluou-se de vez.

A LOUCA APAIXONADA

A louca apaixonada era uma moça que vivia assombrando os homens da cidade em que eu morava quando guri. Ninguém sabia seu nome, só sabiam que tinha ficado viúva.
 
Muito linda, vivia de esmolas pelas ruas da cidade, mas não precisava de nada. Era rica. A família, por não querer interná-la em hospício, vivia assistindo a inúmeras fugas.

Foi que, um dia, passou um anjo por ela e, num passe de mágica, deu-lhe um par de asas que lhe couberam como uma luva. E, como a Ismália de Guimaraens, desceu ao mar.

A LUA QUE EU COMPREI

Quebrei meu porquinho de outrora e, com o dinheiro presente, comprei-me uma lua, a mais linda que havia! Não, não lhe digo quem me vendeu, mas é fácil de achá-lo, ele é o...

Bem, a lua que eu comprei era à pilha, portanto, não era todo dia que eu a ligava, não. Pilhas custam caro, economizo. E tem a questão ecológica, o descarte correto, você sabe.

Uso essa lua só em certos dias, quando, por exemplo, quero escrever um poema. Assim, a qualquer lua da folhinha, fico todo amoroso, ligo a lua que eu comprei e pronto.

Fonte: O Autor

Fernando Pessoa (Quadras ao Gosto Popular) I


Cantigas de portugueses
São como barcos no mar -
Vão de uma alma para a outra
Com riscos de naufragar.

Eu tenho um colar de pérolas
Enfiado para te dar:
As per'las são os meus beijos,
O fio é o meu penar.

Se ontem à tua porta
Mais triste o vento passou -
Olha: levava um suspiro...
Bem sabes quem to mandou...

Entreguei-te o coração,
E que tratos tu lhe deste!
É talvez por 'star estragado
Que ainda não mo devolveste…

A caixa que não tem tampa
Fica sempre destapada.
Dá-me um sorriso dos teus
Porque não quero mais nada.

Tens o leque desdobrado
Sem que estejas a abanar.
Amor que pensa e que pensa
Começa ou vai acabar.

Duas horas te esperei
Dois anos te esperaria.
Dize: devo esperar mais?
Ou não vens porque inda é dia?

Toda a noite ouvi no tanque
A pouca água a pingar.
Toda a noite ouvi na alma
Que não me podes amar.

Dias são dias, e noites
São noites e não dormi...
Os dias a não te ver
As noites pensando em ti.

Trazes a rosa na mão
E colheste-a distraída...
E que é do meu coração
Que colheste mais sabida?

Depois do dia vem noite,
Depois da noite vem dia
E depois de ter saudades
Vêm as saudades que havia.

No baile em que dançam todos
Alguém fica sem dançar.
Melhor é não ir ao baile
Do que estar lá sem lá estar.

Rosmaninho que me deram,
Rosmaninho que darei,
Todo o mal que me fizeram
Será o bem que eu farei.

Tenho um relógio parado
Por onde sempre me guio.
O relógio é emprestado
E tem as horas a fio.

Quando é o tempo do trigo
É o tempo de trigar,
A verdade é um postigo
A que ninguém vem falar.

Levas chinelas que batem
No chão com o calcanhar.
Antes quero que me matem
Que ouvir esse som parar.

Em vez da saia de chita
Tens uma saia melhor.
De qualquer modo és bonita,
E o bonita é o pior.

Teus brincos dançam se voltas
A cabeça a perguntar.
São como andorinhas soltas
Que inda não sabem voar.

Tens uma rosa na mão.
Não sei se é para me dar.
As rosas que tens na cara,
Essas sabes tu guardar.

Tens um livro que não lês,
Tens uma flor que desfolhas;
Tens um coração aos pés
E para ele não olhas.

Fomos passear na quinta,
Fomos à quinta em passeio.
Não há nada que eu não sinta
Que me não faça um enleio.

Ó minha menina loura,
Ó minha loura menina,
Dize a quem te vê agora
Que já foste pequenina...

Levas uma rosa ao peito
E tens um andar que é teu...
Antes tivesses o jeito
De amar alguém, que sou eu.

O vaso que dei àquela
Que não sabe quem lho deu
Há de ser posto à janela
Sem ninguém saber que é meu.

Todos os dias eu penso
Naquele gesto engraçado
Com que pegaste no lenço
Que estava esquecido ao lado.

Tens uma salva de prata
Onde pões os alfinetes...
Mas não tem salva nem prata
Aquilo que tu prometes.

Por um púcaro de barro
Bebe-se a água mais fria.
Quem tem tristezas não dorme,
Vela para ter alegria.

O malmequer que arrancaste
Deu-te nada no seu fim,
Mas o amor que me arrancaste,
Se deu nada, foi a mim.

Tenho vontade de ver-te
Mas não sei como acertar.
Passeias onde não ando,
Andas sem eu te encontrar.

Fonte:
PESSOA, Fernando, Quadras ao gosto popular, Lisboa, Ática, 1994.

sábado, 17 de fevereiro de 2018

João Batista Xavier Oliveira (Trovas Collection) I

Fonte: O Trovador

Olivaldo Júnior (3 Minicontos do Carnaval)

Ô, ABRE ALAS!

O coração daquele jovem nunca tinha batucado. Batia, desde sempre, no ritmo insone de manter viva a vida que Deus lhe dera, mas batuque mesmo não, nunca tinha batucado.

Foi que, no Carnaval daquele ano, sairia no carro abre-alas do Desfile Municipal, e, para isso, se preparara com afinco. Foram meses frequentando a quadra da Escola e tudo.

Na passagem da segunda para a Terça-feira de Carnaval, vestindo azul, chapéu de abas curtas branco na fronte, sentia seu peito batucar, no abre-alas da Avenida e de outro "eu"!

'MIL' CONFETES

O salão do clube de campo daquela pequena cidade interiorana não parecia mais um mero salão de clube de campo do interior, mas o interior de um bolo de festa de criança.

No chão, confetes mil se avolumavam, e por ele passavam senhoras e senhores que, ao pisarem lá, se transformavam e sentiam vir à tona a criança entorpecida de tempos idos.

Assim, ao som de "Máscara Negra" e de tantas outras lindas canções carnavalescas, deram-se as mãos e, numa imensa dança circular, giraram sobre o chão de 'mil' confetes...

UM PIERRÔ

Vestiu-se feito um Pierrô para a folia. Sabia que em algum ponto da Alegria haveria de encontrar a Colombina. O Arlequim, página virada para ela, seria só mais um amor e só.

Porém, no decorrer da alegoria, viu seu sonho virar cinzas e, no caos da manhã raiada, raiou sem ela na avenida. Bêbado de amor sem nexo, vagou, vadio, pelas vielas a chorar.

Não sabe como o Carnaval acabou. Chorou até seu rosto se mostrar. Não foi dessa vez! Acordou nos braços do amigo, um Arlequim sem Colombina que o fizera despertar.

Fonte: O Autor