terça-feira, 16 de abril de 2019

Mia Couto (A Chuva Pasmada) O Peixar do Tempo - A Lenda de Ntoweni

     
O PEIXAR DO TEMPO

      Sentado sobre a balaustrada da varanda eu abanava as pernas. Afugentava ócio e mosca. O avô me repreendeu, severo:

      - Pare de balançar as pernas!

      - Porquê?

      - Não sabe que é assim que se embala o filho do diabo?

      Estanquei as pernas, sacudi a cabeça. Tudo aquilo me surgia sem a devida realidade. O avô, por exemplo, segurava uma cana de pesca. O fio pequeno e o anzol ficavam suspensos a uns palmos do chão. Pescava no ar. Haveria, dizia ele, sempre um peixe que não saberia separar as águas. O avô, mais os seus ditos. Enquanto fingia pescar, os olhos fixavam um inexistente horizonte. Pensava no nascimento da bezerra?

      Recordei os tempos em que, todos os domingos, ele me levava à pesca. Sem conversa, nos quedávamos na margem enquanto olhávamos o rio e suas eternidades. Pescar é um modo de ser peixe nas águas do tempo.

      - Pescar é muito bom. E sabe porquê? Porque é uma atividade sem nenhuma ação. Está entender, meu neto?

      - Sim, avô.

      - Você também gosta desta pescaria, não é?

      Lá no alto, a águia pesqueira volteava. O avô dizia de um modo que soava assim:

      - Olha a água pesqueira!

      A água pesqueira, sim. Me aprazia pensar que era o rio, ele mesmo, quem pescava. O avô muito elogiava as sábias preguiças. Certa vez me tentou convencer de que o mundo andava tão ocupado em nada fazer que até o rio por vezes parava.

      - O rio parado? Mas, avô. isso é coisa que nunca ninguém viu.

      - Isso é porque o rio desata a mover-se assim que vê gente chegando.!

      Nesse jogo de enganos eu me embalava enquanto o mais-velho cantarolava como se espreguiçasse. E era sempre a mesma cantilena:

      O rio, sem cio, um fio. Macio, sem pio, um pavio.

      Eu aguardava um só instante: o de desanzolar o peixe, o escorregadio corpo do bicho prateando em minhas mãos.

      - Cuidado, não se pique!

      Meu avô era o único que me dedicava cuidados. Nem meu pai nem minha mãe nunca me tinham lustrado em mimos. Por isso, mais que a chuva, me doía agora aquele definhamento dele. Não é que, antes, ele não fosse já magro. Mas, agora, se extinguia a olhos vistos. Seu estado se precipitara desde que soube que o rio tinha secado. Nunca mais comeu, nunca mais bebeu. Aquela rejeição me causava estranheza. Afinal, o avô sempre dissera:

      - A velhice não é uma idade, é uma decisão.

      - Uma decisão?

      A velhice é uma desistência.

      Desistido, meu avô cedera ao tempo. E agora, uma vez mais, eu interrompia a sua imaginária pescaria para lhe levar um copo de água. Mas o avô recusou, sorrindo:

      - Não se aflija, eu bebo como os pássaros, debico nas gotas.

      Ajeitei a manta sobre as suas pernas que despontavam como galhos pontiagudos. Ele entendeu os meus cuidados e se explicou:

      - Já vi o rio minguar, tantas vezes. Mas secar assim tão completamente é coisa que nunca eu podia imaginar. Diga, meu neto: você sabe quem é esse rio?

      - Quem é o rio? - estranhei.

      - Vou-lhe contar uma história, meu filho.

      - Uma história com final feliz?

      Eu já sabia: a única história com final feliz é aquela que não tem fim. Era assim que ele dizia. Desta vez, porém, o tom era outro, nem eu lhe reconhecia o pigarrear grave.

      - Não é uma história. É um segredo que corre na família. Escute com atenção.

      - Eu escuto sempre com toda a atenção.

      - Não é isso. É que vai ouvir a minha voz, no princípio. Depois, já no fim, escutará apenas a voz da água, a palavra do rio.

      Enquanto o avô ia revelando a lenda, eu me embalava como se, de novo, me entretivesse em pescarias.

A LENDA DE NTOWENI

      No princípio, quando chegaram aqui os nossos primeiros, este lugar não tinha água. Nem lagos, nem rios, nem sequer charcos. Só no Reino dos Anyiimha é que, chovia, só lá é que adormeciam os grandes lagos de Chilua. Os primeiros habitantes do nosso lugar sofriam e morriam olhando as nuvens que passavam.

      Mandaram então Ntoweni, a avó de sua avó, para que fosse ao Reino dos Anyumba e trouxesse provisões de água para a aldeia. Ntoweni era como a neta: uma mulher de extraordinária beleza. Pois ela levou uma cabaça grande e prometeu que voltaria com ela cheia. Beijou os filhos, abraçou o marido e despediu-se de todos.

      Ntoweni chegou à cidade e, logo, o imperador soube da sua chegada. Mandou que ela comparecesse na sua residência. O grande senhor apaixonou-se pela beleza daquela mulher. e disse-lhe:

      - Só lhe darei água se nunca mais sair daqui. Hoje mesmo você vai ser minha esposa.

      Ntoweni pensou e decidiu fazer-se de conta. Entregou-se ao rei naquela noite, deixou que ele dela abusasse. Antes de adormecer, o monarca ainda ameaçou:

      - Se fugir eu lhe mandarei matar.

      Na manhã seguinte, Ntoweni escapou por entre a poeira dos caminhos. Assim que deu pela sua ausência, o rei mandou que a seguissem. Quando ela se aproximava de sua casa, uma azagaia cruzou o espaço e se afundou nas suas costas. A cabaça subiu, desamparada, pelo ar e a água se derramou, desperdiçada. Mas quando a vasilha se quebrou no chão. os céus todos estrondearam e um rasgão se abriu na terra.

      Das profundezas emergiu um rugido e uma imensa serpente azul se desenrolou dos restos da cabaça.

      Foi assim que nasceu o rio.

      Quando meu avô se calou eu deveria escutar a voz do rio. Mas nada soava. Apenas um silêncio nos magoava como uma ferida interior. Talvez fosse saudade da águia pescadora, saudade da água pesqueira. Sentiremos sempre a saudade como um mar em que, em outra vida, nos tenhamos banhado.

continua...

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Massilon Silva (Caderno de Trovas)


Acabei com meu dinheiro
porque gastei como louco.
- Enganas-te cavalheiro,
o teu dinheiro era pouco.

A distância pequenina
de minha casa pra sua,
o seu olhar ilumina
de um lado a outro da rua.

A ordem de expositores
não desmerece o produto,
pois a ordem dos tratores
não altera o viaduto.

Ao ver-me cambaleando
não me olhe de soslaio,
nem fique me criticando.
Se a Bolsa cai, eu não caio!

Beberam na mesma taça,
sentindo da mesma sede,
hoje um pra outro não passa
de um retrato na parede.

Com bastante animação
eu vejo São João chegar,
vou entornar um quentão
na  calçada do meu lar.

Concordar eu não concordo,
aceitar eu não aceito,
mas que importa se discordo
se se faz do mesmo jeito?

Correndo de seu marido
pulei dez cercas de vara,
me senti mais perseguido
que Ernesto Che Guevara.

De tanto haver retornado
aos braços dessa menina,
eu já estou conformado,
regressar é minha sina.

Discordo dessa parada,
a sogra não é serpente,
mas sua língua afiada
mata qualquer um da gente.

Em maio por várias vezes
clamo e chamo por seu nome
mas nos outros onze meses
se eu não lhe chamar, reclame.

Em noites de lua cheia
um lobisomem percorre
as ruas de minha aldeia,
se avista a gente, ele corre.

Enjoei deste lugar,
não fico mais nesta rua.
Vou construir nosso lar
na face oculta da lua.

Enquanto cresce a lambança
que nosso idílio morreu,
meu coração não se cansa
de correr atrás do seu.

Esse mau humor danado
está dando o que falar,
mas só será expurgado
se aquela ingrata voltar.

Eu bebi de sua mão
o vinho que me encantou,
mas depois comi do pão
que o diabo amassou.

Eu daqui me perguntando:
Mulher? É homem?  Não sei...
Só sei que vai desfilando
numa passeata gay.

Eu não tenho combustível
nem dinheiro pra comprar,
assim não vai ser possível
hoje à noite lhe encontrar.

Eu nem sei como é Dolores,
mas falam dela tão bem,
que até já lhe mandei flores
apaixonado também.

Examinando a quimera
do parentesco aparente,
descobri que a Primavera
é minha contraparente.

Hoje acordei bem cedinho,
discuti com o lençol,
abri da porta um tantinho,
colhi um raio de sol.

Invadiu meu coração,
sem nenhuma cerimônia;
fez uma devastação,
maior que da Amazônia.

Já estamos conversados,
não tem como nem porquê,
no dia dos namorados
o meu presente é você.

Já estou entregue às traças,
gagá e quase demente,
mas quando bebo cachaça
fico mais inteligente.

Maio,  Maria,  mulher,
mãe, matrona, matriarca,
musa, madame,  o que quer
que seja tem sua marca.

Mesmo de corpo alquebrado
ela vai e não reclama.
Alguém inspira cuidado,
é a voz do filho que chama.

Não choro tua partida,
nem pra ficares te peço,
pois sei que pra cada ida
haverá sempre um regresso.

Não pense que estou aflito
por não me chamar meu bem,
pois o amor mais bonito
é aquele que não se tem.

Não quero ser o seu dono
nem quero ser seu marido,
só quero perder o sono
nas barras do teu vestido.

Na tela do celular
eu escrevi nossa história,
o bicho achou de travar
e apagou da memória.

No mundo existe problema
até pra enterrar um morto,
porque se a cova é pequena,
o defunto fica torto.

Nosso amor resiste a vento,
a chuva e a trovoada.
Uma briga de momento
é sereno, é quase nada.

O mar da tranquilidade
hoje estava diferente.
Fui ver sua claridade,
a terra ficou na frente.

O nordeste está mudado,
São João não tem quadrilha,
tudo agora é concentrado
lá no planalto, em Brasília.

Por favor! Não vá embora!
Sorva o copo por inteiro.
Pra quem sai antes da hora
a festa acaba primeiro.

Porque deixei sem querer
nossas malas em Manágua,
não precisava fazer
tempestade em copo d'água.

Pra montar o Minotauro
e cavalgar livremente,
quero a Próxima Centauro,
não uma estrela cadente.

Procurei no céu a lua,
um eclipse a escondeu,
mas pra clarear a rua
basta-me um sorriso teu.

Quando esta chuva passar
e um pote de ouro vires,
não tens como se enganar,
é a base do arco-íris.

Quando o assunto é extenso
e dissertá-lo me estorva,
resumo aquilo que penso
ponho tudo numa trova.

Quando ouvir alguém batendo
na porta de sua vida,
venha abrir,  venha correndo,
sou eu voltando,  querida.

Querem mudar meu destino
ao dizer-me que não pode
num restaurante grã-fino
comer buchada de bode.

Quisera que a lua cheia
coubesse na minha mão
pra te ofertar, oh sereia,
junto com meu coração.

Se a tristeza que lhe invade
deixa seu peito infeliz,
quando estiver com saudade
leia os versos que lhe fiz.

Se decepção infame
lhe fez perder um amor,
seja forte, não reclame,
reclamar aumenta a dor.

Se eu chegar de madrugada,
a patroa desaprova.
Estando a porta travada
destravo a trava com trova.

Se eu não disser o que quero
nem você o que pretende,
fica nesse lero lero
e a gente nunca se entende.

Segredo é pra ser guardado
e é certeza que me cale,
quando estiver acordado.
Dormindo talvez eu fale.

Se os dias passam depressa
e todo tempo é agora,
ame muito, tenha pressa,
antes que o amor vá embora.

Só depois de ter achado
o que há muito foi perdido,
descobri que aquele achado
já não fazia sentido.

Sobre o mistério que ronda,
Da Vinci um dia escreveu
que o rosto é da Gioconda,
mas o sorriso é o teu.

Sua ausência me faz triste,
uma tristeza sem fim,
confesso que não existe
outro triste igual a mim.

Trovaram pra seus amores
toda a noite sem parar,
de manhã nasceram flores
na janela do solar.

Zé Sabino no passado
foi marinheiro de fama,
depois virou Deputado,
navegou num mar de lama.

Monteiro Lobato (O Casamento da Emília)


Durou uma semana o noivado de Emília. Todas as tardes, trazido à força por Pedrinho, aparecia o Marquês de Rabicó para visitar a noiva, e tinha de ficar meia hora na sala, contando casos e dizendo palavras de amor.

Mas apesar de noivo o Rabicó não perdia os seus instintos. Logo que entrava punha-se a farejar a sala, na sua eterna preocupação de descobrir o que comer. Além disso, não prestava a menor atenção à conversa. Não havia nascido para aquelas cerimônias.

Uma tarde, Pedrinho zangou-se e resolveu substituí-lo por um representante.

– Rabicó não vale a pena – disse ele aborrecido. – Não sabe brincar, não se comporta. O melhor é isto, querem ver? – e saiu.

Foi ao quintal e trouxe um vidro vazio de óleo de rícino que andava jogado por lá.

– Esta aqui. De agora em diante o noivo será representado por este vidro azul, e o tal Marquês de Rabicó vai passear – concluiu pregando um pontapé no noivo.

Rabicó raspou-se gemendo três coins , e desde esse dia, enquanto fossava a terra no pomar atrás da tal minhoca de anel na barriga, quem noivava por ele, de cartola na cabeça, era o senhor Vidro Azul.

Emília comportava-se muito bem embora de vez em quando viesse com impertinências.

– Eu já disse a Narizinho: caso, mas com uma condição.

– Eu sei qual é! – adivinhou o senhor Vidro Azul. – Não quer morar na casa do Marquês, com certeza porque não se dá bem com o futuro sogro, os Visconde de Sabugosa.

– Isso não! Até gosto muito do senhor Visconde. O que não quero é sair daqui. Estou muito acostumada.

– O senhor Vidro Azul coçou o gargalo.

– Sim, mas…

– Não tem mas, nem meio mas! Quem manda neste casamento sou eu. O Marquês fica por lá e eu fico por cá – declarou Emília, toda espevitadinha e de nariz torcido.

O representante do noivo suspirou.

– Que pena! O Senhor Marquês já mandou construir um castelo tão bonito, de ouro e marfim, com um grande lago na frente…

Emília deu uma risada.

– Eu conheço os lagos do Marquês! São como aquele célebre “lago azul” que certa vez prometeu à Libelinha lá do Reino das Abelhas.

O senhor Vidro Azul atrapalhou-se. Viu que

Emília não era nada tola e não se deixava enganar facilmente. Procurou remendar.

– Sim, um lago. Não digo um grande lago, mas um pequeno lago, um tanque…

– Uma lata d’água, diga logo! – completou Emília mordendo os beiços.

Narizinho interveio, repreensiva.

– Você está aqui para noivar, Emília, para dizer coisas bonitas e amáveis, e não para brigar com o representante do Marquês. Veja lá, hein?

E dirigindo ao representante:

– O Senhor Marquês não escreveu ainda uns versos para a sua amada noivinha?

– Escreveu, sim – respondeu o Vidro Azul, metendo a mão no gargalo e sacando um papelzinho. – Aqui estão eles.

E recitou:

Pirulito que bate bate,
Pirulito que já bateu,
Quem adora o Marquês é ela.
Quem adora Emília sou eu.

– Bravos! – exclamou Narizinho batendo palmas. – São lindos esses versos! O Marquês é um grande poeta!…

Emília, porém, torceu o nariz e até ficou meio danadinha.

– O verso está todo errado! Vou casar-me com Rabicó mas não “adoro” coisa nenhuma. Tinha graça eu “adorar” um leitão!

Narizinho bateu o pé e franziu a testa.

– Emília, tenha modos! Não é assim que se trata um poeta. Você vai ser marquesa, vai viver em salões e precisa saber fingir, ouviu?

Depois, voltando-se para o representante:

– Peço-lhe mil desculpas, senhor Vidro Azul! Emília tem a mania de ser franca. Nunca viveu em sociedade e ainda não sabe mentir. Não é aqui como o nosso Visconde de Sabugosa, que fala, fala e ninguém sabe nunca o que ele realmente esta pensando, não é verdade?

O Visconde fez um gesto que tanto podia ser sim como não.

Desse modo conversavam todas as noites, longo tempo, até que vinha o chá. Chá de mentira com torradas de mentira. Depois do chá, se despediam.

Passada uma semana, a menina queixou-se a Dona Benta:

– Este noivado esta me acabando com a vida, vovó. Todas as noites, tenho de fazer sala para os noivos. Como isto cansa!…

– Mas que é que está faltando para o casamento, menina?

– Os doces, vovó…

– Já sei. Já sei. Pois tome lá estes níqueis e mande vir os doces.

Como era justamente aquilo que Narizinho queria, lá se foi aos pinotes, com os níqueis cantando na mão.

Chegou afinal o grande dia e vieram os grandes doces: seis cocadas, seis pé-de-moleque e uma rapadura, doce mais que suficiente para uma festa em quase todos os convidados ia comer de mentira.

Pedrinho armou a mesa da festa debaixo de uma laranjeira do pomar e botou em redor todos os convivas.

Lá estavam Dona Benta, Tia Nastácia e vários conhecidos e parentes, todos representados por pedras, tijolos e pedaços de pau. O inspetor de quarteirão, um velho amigo de Dona Benta que às vezes aparecia pelo Sítio do Picapau Amarelo, era figurado por um toco de pau com uma dentadura de casca de laranja na boca.

Chegou a hora. Vieram vindo os noivos. Emília, de vestido branco e véu; Rabicó, de cartola e faixa de seda em torno do pescoço. Vinha muito sério, mas assim que se aproximou da mesa e sentiu o cheiro das cocadas, ficou de água na boca, assanhadíssimo. Não viu mais nada.

Logo depois veio o padre e casou-os. Narizinho abraçou Emília e chorou lágrima de verdade, dando-lhe muitos conselhos. Depois, como a boneca não tivesse dedos, enfiou-lhe no braço um anelzinho seu. Pedrinho fez o mesmo com o Marquês; enfiou-lhe no braço uma aliança de laranja, que Rabicó por duas vezes tentou comer.

Os outros animais do Sítio, as cabras, as galinhas e os porcos, também assistiram à festa, mas de longe. Olhavam, olhavam, sem compreenderem coisa nenhuma.

Terminada a festa. Narizinho disse:

– E agora, Pedrinho?

– Agora – respondeu ele – só falta a viagem de núpcias.

Mas a menina estava cansada e não concordou. Propôs outra coisa. Puseram-se a discutir e esqueceram de tomar conta da mesa de doces. Rabicó aproveitou a ocasião. Foi se chegando para perto das cocadas e de repente – nhoc! Deu um bote na mais bonita.

– Acuda os doces, Pedrinho! – berrou a menina.

Pedrinho virou-se e, vendo a feia ação do pirata, correu para cima dele, furioso. Agarrou o inspetor de quarteirão e arrumou uma valente inspetorada no lombo do porquinho…

– Cachorro! Ladrão! Marquês duma figa!…

Rabicó deu um berro espremido e disparou pelo campo, mas sem largar a cocada.

Como era de prever, não podia dar bom resultado aquele casamento. O gênios não se combinavam e, além disso, a boneca não podia consolar-se do logro que levara.

Narizinho ainda tentou convencê-la de que Rabicó era realmente príncipe e Pedrinho só dissera aquilo porque estava danado. Não houve meio. Quando Emília desconfiava, era toda a vida. E desse modo ficou casada com Rabicó, mas dele separada para sempre.

– Esta aí o que você fez! – costumava dizer em voz queixosa. – Casou-me com um príncipe de mentira e agora, esta aí, esta aí…

Narizinho dava-lhe esperanças.

– Tudo se arruma. Um dia, ele morre e eu caso você com o Visconde ou outro qualquer.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) V


CARTA INÚTIL

Tu não mereces o meu sofrimento
ele é grande demais para quem és,
nem devia afinal (triste momento),
- por fraqueza humilhar meu sentimento,
e ajoelhar-me adorando-te aos teus pés...

Passaste tão depressa!... Em minha vida
às vezes penso que nem foste minha!
Como a aragem soprando distraída
acendeste uma brasa adormecida
e deixaste-a queimar-se após, sozinha...

Minha angústia interior é aquela chama
vermelha, consumindo a brasa acesa...
A Vida é assim... bem sei... sofre quem ama,
e, covarde, é o mundo, o que reclama
contra um quinhão de dor e de tristeza!

Ainda guardo a silhueta de teu vulto
e o que ontem me dizias sei de cor,
- por tudo o que mentiste não te insulto,
fiz das lembranças que deixaste um culto
e a vida sem lembranças... ainda é pior...

Quase sempre é melhor o sofrimento
quando ele encerra uma lembrança boa,
que uma vida vazia, o isolamento,
- sem uma voz trazida pelo vento!
- sem um vulto passando na garoa!

Doloroso é voltarmos nosso rosto
e o passado fugir como um caminho
deserto, a essa hora roxa do sol posto,
- sem um riso, uma lágrima um desgosto
a saudade de um beijo ou de um carinho...

Quando o mal terminou, já está curado,
mesmo a sombra da dor ainda conforta...
- bem pior, é não ser ter nunca chorado,
vendo o mundo a passar sem ter passado
e a vida inteira inutilmente morta!

Confesso, sim... que não mereces tanto
não mereces um culto igual ao meu...
Tudo em ti foi tão falso... hoje, me espanto
ao ver que tantas vezes o teu pranto
numa ironia cruel me comoveu...

Mas, não toquemos nisso... Não se deve
falar de um mal que nos maltrata assim,
- nem sempre o que se pensa a gente escreve...
- que o esquecimento seja um véu de neve
descendo suave sobre o nosso fim...

Teu amor foi apenas uma nuance,
desmaio de um segundo nos meus braços,
- é inútil que ainda insista e ainda me canse
a procurar em vão nesse ex-romance
a falsa trajetória de teus passos...

Foste um lírico instante de beleza
a efêmera existência de uma flor!
Uma folha a rolar na correnteza,
um segundo de anseio e de incerteza,
- mentira ingênua que eu chamei de amor!

Gota d'água brilhante ainda em suspenso
num fio... quando o sol quente a encontrou,
- partida que não teve o adeus de um lenço,
história antiga que não tem mais senso,
livro que o vento sem querer fechou...

Foste isso: uma ilusão que a gente espera!
(E as ilusões são como as serpentinas
que nos fogem da mão...) Falsa e insincera
hoje me lembras uma fora de hera
no muro branco de passado em ruínas!

Que fizeste do mundo de alegrias
que presenteei ao teu destino vago?
Dei-te a mancheias tudo que querias,
- palavra de honra que não merecias,
o sádico prazer com que me embriago...

Não mereces a dor que punge e espinha
nem esta carta viva de emoções!
Às vezes penso que nem foste minha
e que a minha alma louca, anda sozinha
num delírio de sombra e de visões!

É sempre assim. A mão destrói o sonho!
Toquei-te... E eras de pano, tola e fútil,
- ainda bem que te foste!... Hoje, tristonho
reduzi - com estes versos que componho -
a nossa história numa carta inútil...

Nunca esta carta te será bem-vinda
hás de soltá-la indiferente aos pés...
Confesso, - quando a dor me fere ainda
que a Vida que sonhei e hoje está finda,
era grande demais... para quem és...

CARTAS

Vou correndo buscá-las - são tão leves!
mas trazem a minha alma um grande encanto,
- por que as cartas que escreves custam tanto?
- por que demora tanto o que me escreves?

Não deves torturar-me assim, não deves!
- Do teu silêncio muita vez me espanto...
Mando-te longas cartas - e entretanto
como tuas respostas são tão breves!...

Recebes cartas minhas todo dia,
e elas não dizem tudo o que eu queria
mas falam-te de amor... de coisas belas!

Tuas cartas... Mas dou-te o meu perdão,
- que me importa afinal ter razão,
se gosto tanto de esperar por elas!

CENA À HORA DO POENTE

Na sala, sobre o tapete macio e felpudo
de veludo
onde se desmanchou uma encarnada rosa,
ela, inquieta e nervosa,
vai, vem...
- há mais de um quarto de hora, sem ninguém ...

Há mais de um quarto de hora...

Pára. Vai à janela, alonga o olhar lá fora
pela rua silenciosa e vazia...
E vai morrendo o dia
e a tarde é langorosa,
pela rua vazia e silenciosa . . .

É tarde já... O céu que em cambiantes desmaia
atrás de algumas nuvens de cambraia
avermelhadas, no poente
acende a primeira estrela, de repente...
          
Ela passeia sabre o tapete felpudo  
e macio, de veludo,  
- ansiosa...
Para junto a uma jarra no canto da sala
e distraída, despetala  
e esmigalha entre os dedos uma rosa...

O relógio de parede, grande, indiferente,
continua marcando os segundos... No poente
a tarde se escondeu  
              
Ela vai à janela, - a noite já desceu  
azul-opala, formosa,
mas muito fria...
- e a rua continua silenciosa  
silenciosa e vazia

Ela aperta no seio as mãos alvas e finas
mãos que parecem feitas de neblinas...
Ouve bater no peito o coração
descompassadamente,
e inutilmente,
o quer conter com a mão...
- pelo ar, há o tique-taque, igual, indiferente,
do relógio de parede, que no silencio da sala
monologa e fala . . .

Um segundo... outro segundo...

Cada um contendo em si que eternidade! Um mundo
de estranha expectativa...
A sua ânsia é tão viva
que ela de novo para,
chega junto ao relógio e de bem perto o encara,
e o seu tormento é tanto
que o olhar turvo se embaça em prenúncio de pranto...

Suas mãos se entrelaçam, se apertam, nervosas,
e da jarra do canto
como que por encanto
algumas rosas
sem querer,
num lírico morrer,
despetalam-se juntas, silenciosas...

É então que na estranha penumbra da sala
há um silêncio maior: o relógio se cala!
- não se ouve o tique-taque indiferente no ar...

Lá fora a noite em sombras flutuantes se embuça...

Ela esconde entre as mãos o seu rosto... soluça
e começa a chorar...

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Mia Couto (A Chuva Pasmada) Uma Estranha de Unhas Rubras - Segredos, Silêncios


UMA ESTRANHA DE UNHAS RUBRAS

      Na manhã seguinte, despertei ao comando ríspido de minha mãe.

      Vista-se, rápido!

      No braço estendido exibia a roupa de cerimônia. Na outra mão, pingavam os meus únicos sapatos:

      - Calçar os dois, mãe?

      - Calce-se, completo.

      Até ali eu apenas podia calçar um sapato de cada vez. Assim, imparmente, poupava nos calçados. Por isso, naquele dia, eu até coxeei, desabituado que estava de marchar com dupla sola.

      Entramos na rua como se mergulhássemos num lago. A chuva mantinha-se suspensa, em arranjos de gotas verticais. Andar e nadar, nesse momento entendi, diferem só pelo lugar de duas letrinhas. Por causa dessas duas letrinhas chegamos à porta da fábrica todos encharcados. Minha mãe, no entanto, se prevenira. E do saco de mão saiu uma toalha com que nos secamos. Mandaram-nos sentar num banco das traseiras.

      Ficamos horas em silêncio, à espera que um chefe nos mandasse entrar. Lá veio um, da nossa raça. Era um homem forte, polido e maneiroso. Um casca fina. Falava um português com mais ondas que curvaturas. Enrolava os erres às cambalhotas com a língua. Não era um sotaque. Era um modo de mostrar que não falava português como nós. Sua atenção se afunilou em minha mãe, parecia um pelicano fixando o peixe. Aqueles olhos babões me davam aflição.

      - Venho por causa dos fumos - disse a mãe.

      O homem torceu o cigarro entre os dedos e derramou o tabaco desfeito sobre o cinzeiro.

      Depois, tossiu e falou como se engolisse cada uma das palavras:

      - Só o patrão grande pode falar sobre esses assuntos... Vou ver se ele lhe pode receber. Mas esse miúdo vai ter que sair.

      - Mãe, eu queria ficar consigo...

      - Pode ir, meu filho, não se preocupe. Pode ir. Mas cuide de não desperdiçar os sapatos.

      Os sapatos foram poupados, sim. Mas muita areia entrou-me para a alma nesses momentos de espera. Acabrunhava no banco do pátio quando vi pingarem vidrinhos sobre a areia. Sobressaltei-me: era a chuva que se resolvera a tombar? Mas, não. Eram berlindes. Um menino branco, à minha frente, atirava berlindes para o chão onde meus pés se afundavam. Entendi o convite, me ergui e apanhei as esferas de vidro uma por uma. Fiz uma cova, e outra e mais outra. Completas estavam as três covinhas.

      - Não quer jogar, menino?

      - Não posso.

      - Porquê?

      - O meu pai não deixa. Não me deixa brincar com.., com vocês.

      Eu já sabia. Só não disse a palavra: pretos. Nós éramos simplesmente “vocês”. Juntei os berlindes numa mão e entreguei-lhos.

      - Brinque o menino sozinho. Eu fico só assistir.

      - Não posso. A minha mãe não me deixa brincar no chão Essa terra de África dá doenças.

      Devolveu-me os berlindes. Assentei as mãos na areia e lancei-os à cova. Reparei como os olhos do branquito brilhavam. Me cheguei a ele e soprei em seu ouvido:

      - Ora, seu pai, sua mãe... eles estão aqui para ver?

      O miúdo apontou a fachada da fábrica. Pela janela, o seu pai espreitava, desconfiado. Por essa mesma janela me pareceu ver o vulto de minha mãe. Depois, a cortina se fechou.

      - Aproveite agora que ninguém nos vê!

      O menino ainda hesitou. Mas, depois, o seu joelho ganhou a terra e iniciamos um jogo. E logo o mundo se resumiu àquelas covinhas mais o bater do vidro contra o vidro.

      Não tardou, porém, que a sombra de minha mãe se projetasse no átrio. Olhei de encontro ao sol e o seu corpo surgia aumentado, capaz de converter o dia em noite. Mas era só a raiva que lhe conferia tais dimensões.

      - Já se pode descalçar', poupa os sapatinhos na volta...

      Passou uma mão a ajeitar o lenço, acertou a roda da saia na cintura e, autoritária, me arrastou pelo braço, como se apressasse um peso morto.

      - Diga-me, mãe, aquele senhor escutou as nossas razões?

      Ela nada respondeu. Apenas as suas unhas se espetaram na minha carne. Estranhei o afiado daquela dor. Uma mãe não tem unha. É só feita de doçura. Mas eis que a minha me arranhava, cinco fúrias se cravavam no meu braço. Reparei, ademais, que as ditas unhas estavam pintadas. Um vermelho triste, como um sangue já pisado.

      À entrada de casa, a mãe se agachou até se atamanhar comigo e, sacudindo-me pelo braço, sentenciou:

      - Nunca, mas nunca, fale disto a seu pai!

      Pendida sobre mim, voz contaminada, olhar incendiado: minha mãe se desusava. Uma estranha ocupava a sua alma. Uma estranha de unhas vermelhas.

SEGREDOS, SILÊNCIOS


      De noite, quando nos juntamos na sala, o avô voltou à carga:

      - EU vi!

      - Viu o quê, desta vez?

      - Pois eu vi o compadre Mauriciano subir de barco para apanhar fruta.

      Naquela espasmaceira, já não havia alma para riso. Suspiros se juntaram, incrédulos. Só eu, no imediato instante, olhei pela janela e vi barcos percorrendo os ares, ancorando nos ramos altos. A água deitando-se no céu: um azul vertendo em outro azul.

      Jantamos sob a nuvem do silêncio. Me custava engolir, a lembrança da visita à fábrica me ocupava o peito. Não era o segredo que pesava, mas o partilhá-lo com minha mãe. Segredo é coisa que os homens comungam apenas com outros homens. Para ser fiel à minha mãe eu estava traindo a minha masculina condição.

      De soslaio, olhei o corpo magro de nossa mãe. Ela estava tensa, parecia que se guardava para explodir. Meu pai espreitava a sua tensão como a impala olha a flecha no arco do caçador. Talvez por isso tenha tomado a dianteira:

      - E você, mulher, onde foi esta manhã, tão cedo?

      - Fui visitar minha comadre, lá no Tsilequene. Lá há mais chuvisco que aqui.

      - E, não cai em lugar nenhum.

      As mulheres se ergueram para levantar a mesa. Das mãos de minha mãe os pratos escorregaram e deflagraram em mil estilhaços. Ficamos nós, os homens, em resguardo, à espera do que se seguiria. Não tinha sido um simples quebrar da louça. Havia algo mais profundo que estilhaçava no nosso lar. Foi quando, mãos nas ancas, a mãe veio à sala pedir contas:

      - Isso, deixem amolecer esses vossos cus na porcaria das cadeiras...

      Um riscar de dedos fez acender a chama no isqueiro. Meu velho entretinha suas pequenas fúrias. De rompante, minha mãe avançou sobre o marido e lhe arrancou o isqueiro. Deu dois passos e lançou o objeto pela janela.

      - Estou farta!

      E saiu, batendo a porta. Ainda a vi adentrar-se na chuva até perder contorno. Nem passou um tempo, meu pai também se ergueu e se encaminhou para a porta. A tia barrou-lhe o caminho:

      - Onde vai, cunhado, vai ter com a minha irmã?

      - Vou procurar o isqueiro.

      - Mas você, cunhado, por que é que recusa falar com alguém lá da fábrica?

      - Eu sei com quem vou falar.

      - Com quem?

      - Com o rio. Vou falar é com o rio.

      Sem mais explicar, meu pai saiu. Furtivo como uma sombra, fui seguindo seus passos. Quantas vezes fizéramos aquele caminho, encosta abaixo? Desta vez, porém, era diferente. Meu pai, primeiro, rodopiou a esgravatar entre os capins. Procurava o isqueiro. Em vão. Depois, como nada encontrasse desceu a ladeira. Não parou nos lugares costumeiros. Antes cruzou as penedias, para além do bosque, onde era interdito as crianças sequer espreitarem. Era ali, na mata sagrada, que haviam sepultado os nossos antigos.

      Escondido entre os arbustos, vi como ele se ajoelhou junto à margem, mãos mergulhadas na argila enquanto invocava um rosário de palavras. Meu pai rezava?

      Acreditei que ele não me tinha visto. Enganei-me. Falou, asperamente, sem erguer a cabeça:

      - Você não pode estar aqui...

      - Eu já vou indo, senhor meu pai.

      - Não, espere. Venha aqui.

      - POSSO?

      - Se aproxime com os respeitos. Agora, ajoelhe comigo.

      Meus joelhos pareciam, de súbito, desapertados: tombaram na areia branca do leito. Já só restava um fio de água. Os bancos de areia se exibiam como costelas no corpo da terra. Ninguém diria como o rio já fora reboliço, rolando as ancas pelas margens.

      Meu pai me pediu devoção. Eu fechei os olhos, com demasiado medo para ter crença. Até que senti como que um pulsar debaixo de minhas pernas. Um coração batia por baixo do chão? Me assustei:

      - Que ruído é esse, meu pai?

      - É um pilão.

      - Um pilão por baixo da terra?

      - São os deuses. Eles estão descascando o tempo para nos servir...

      Estremeci, em arrepio. E se a terra desmoronasse, escavada como um oco no vazio? Se em vez da chuva, o que tombasse fossem as casas, a estrada, os bichos e as gentes? Eu já via mil mineiros, como meu pai, esburacando o planeta, criando descomunal vala comum para as criaturas de todos os continentes. Era esse, afinal, o pesadelo de criança que me fazia despertar e gritar por minha mãe: o desabar do mundo e meu pai preso nos subterrâneos.

      O reviver desse pesadelo me fez estremecer. Pela primeira vez, estendi o braço a meu velho, em pedido amparo. Ele demorou a dar-me a mão e, quando o fez, parecia estar segurando um peixe vivo. Foi um fugaz instante. Logo ele se corrigiu e fechou o gesto no corpo.

      - Sabe quem está enterrado aqui?

      - Não sei, pai.

      - São as Ntowenis.

      O caracol fez a casca e ficou tonto. E é por isso que nunca sai de casa. Também eu me sentei, incapaz de sair da interior neblina. Meu pai dissera “as Ntowenis”, no plural. Afinal, quantas havia?

      - A avó de sua avó também se chamava Ntoweni. As duas estão enterradas aqui. uma juntinho da outra.

      Dizem que elas, de noite, saem juntas. Sopram as cortinas, levantam as nossas pálpebras e nos insuflam os sonhos, É então que, por breves instantes, se vislumbram duas luas cruzando os céus.

continua...

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.

domingo, 14 de abril de 2019

Professor Garcia (Trovas que sonhei cantar) 1

Nota: 
Estas trovas do Professor Garcia estão sendo reeditadas em virtude de que algumas tiveram erros na digitação em alguns de seus versos. Os olhos cansados e teimosos já estão me traindo. 
Grato pela compreensão.
___________________________________________________________

A fé, que a beata carrega,
é tão repleta de luz...
Que crer, que em tudo que pega,
existe um sinal da Cruz!

À tarde, eu vejo chorando,
sozinha, à beira do cais...
Uma saudade acenando
aos que não voltam jamais.

Crê na força de teus braços;
que o destino, por vingança...
Põe atropelos nos passos
de quem não tem confiança!

Eu guardo como se fosse
um dos sentimentos meus...
O amargor de um beijo doce
que roubei dos lábios teus!

Eu sou menestrel das rimas,
dos versos, velho aprendiz...
E o som, dos bordões, das primas,
é que me faz ser feliz!

Foram-se as lindas auroras
da estação mais colorida!...
E, agora o outono das horas
martela as horas da vida!

Mastro erguido, vela a prumo,
dois sentimentos iguais:
Segue a jangada sem rumo
e eu, no rumo de outro cais!

No entardecer sempre existe,
aos sopros do sol se por...
Uma cor rubra mais triste,
na ausência de um grande amor!

O outono, sem dar sinais,
aos poucos, contando os passos...
Achando pouco os meus ais,
põe mais cravos nos meus braços!

O tempo, assim, como a gente,
chega, passa, vai embora.
Saudade, eterna vertente
da eterna dor de quem chora!

O velho abade, sem sono,
reza na antiga abadia
a eterna prece de outono,
no altar da melancolia!

Reparte filho, este pão,
que te dei desde criança!...
Quem planta o amor, colhe o grão
dos bons trigais da esperança!

Se a planta mesmo ferida,
sorrindo oferta uma flor...
Nas cinzas negras da vida,
que lindo exemplo de amor!

Se essa dor te desconsola,
e a mágoa, ainda te afeta;
perdoa!... Que a dor se evola
do coração do poeta!

Se esse andarilho, entre os sábios,
é o vento que te levou...
Foi quem roubou de teus lábios
o mel de quem te beijou!

Se há flores mais preciosas
entre os jardins dos rosais...
Não há disputa entre as rosas;
sentem-se todas iguais!

Se o suor justo é tão nobre
no rosto de quem trabalha...
Não troco o suor do pobre
pelos milhões de um canalha!

Se o tempo, ingrato, me afronta,
culpo a ingrata insensatez
do espelho, que mostra a conta
das rugas que o tempo fez!

Sozinho à beira da estrada,
um rancho de palha!... Um rancho!...
E uma saudade sentada
pendurada em cada gancho!

Velho tempo, ah! Quem me dera,
sentir de novo a virtude
dos sonhos da primavera
no verdor da juventude!

Fonte:
Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar vol.2. Caicó/RN: Edição do autor, 2018. 
[livro gentilmente enviado pelo autor]

Concurso de Trovas da UBT/Santos (Trovas Premiadas)

Nota:
Este concurso está sendo reeditado, pois na verdade ele não foi os Jogos Florais de Santos e sim Concursos de Trovas da UBT/Santos.

NACIONAL

Tema: Despedida

VENCEDORAS 
(Ordem de Classificação)
Não há outra tão sofrida,
Nem de final tão tristonho,
quanto aquela despedida
que leva consigo um sonho!
Sandro Pereira Rebel
Niterói/RJ

Toda de preto vestida
chora uma dor sem revolta;
como é triste a despedida
de quem se vai...e não volta.
Olympio da Cruz S. Coutinho
Belo Horizonte/MG


Silêncio! Não diga nada
Traduza o adeus em acenos.
A despedida calada
pode doer... mas dói menos.
José Henrique da Costa
Magé/RJ


Sua ausência consumada
Numa triste despedida,
Deixou-me um vazio,  um nada
E a minha vida sem vida.
Licínio Antônio de Andrade
Juiz de Fora/MG

No momento da partida,
Disse (Tchau!), com toda a calma!
E foi esta despedida
Que mais doeu na minha alma!!!...
Maria Madalena Ferreira
Magé/ RJ


Despeço-me da bebida...
E antes que eu me descontrole,
Ergo o brinde à despedida,
E sorvo o último gole!
Edmar Japiassu Maia
Nova Friburgo/RJ


Tu partes! A despedida
me entristece sem revolta,
pois, nas voltas desta vida,
eu vislumbro a tua volta.
Relva do Egypto R. Silveira
Belo Horizonte/MG


Pobre de quem na partida,
não tem claro aos olhos seus
se o aceno da despedida
é de até-logo ou de adeus!
Sérgio Fonseca
Mesquita/RJ


Sem alarde, na partida,
mostra o destino inclemente,
a despedida da vida
em cada sol no poente.
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
Juiz de Fora/MG


Qualquer adeus, nesta vida,
deixa  um sabor tão cruel...
que o gosto da despedida
amarga mais do que fel!!!    
Professor Garcia
Caicó/RN

MENÇÕES HONROSAS


A criança canta e sonha,
vive a infância, sem prever
que despedida tristonha
está no verbo “crescer”...
Vanda Fagundes Queiroz
Curitiba/PR

Ah! Se eu pudesse na vida
transformar numa virada,
o choro da despedida
num sorriso da chegada!
Clenir Neves Ribeiro
Nova Friburgo/RJ


Que bom completar avida
sem mágoas no coração,
deixando, na despedida,
em cada amigo, um irmão.
A. A. de Assis
Maringá/PR


Ao tomar lições da vida
eu aprendo sem tropeço,
que o papel da despedida
tem por fim um... recomeço!
Maria Helena Oliveira Costa
Ponta Grossa/PR


Disfarçando a despedida,
para senti-la mais leve,
não disse adeus na  partida,
balbuciei: - Até breve.
José Almir Loures
Astolfo Dutra/MG

Foi assim: ao despedir-me
da mulher que tanto amei,
fitei seus olhos e, firme,
disse adeus... mas não chorei!
Antônio Carlos Teixeira Pinto
Brasília/DF


Se a despedida maltrata,
que importa sempre lutar,
se a vida, ao sentir-se grata,
te ensina a recomeçar!...
Elias Pescador
São Paulo/SP


De tanto viver chorando
a dor de tantas partidas,
meu coração foi ficando
calejado em despedidas.
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora/MG


A despedida eu prorrogo...
Mas ela, os olhos nos meus,
murmura em breve “até logo”
maquiando o seu  adeus...
Gilvan Carneiro da Silva
São Gonçalo/RJ


Forte depois de um tropeço,
buscando o mar de outra vida,
escrevo um novo começo,
sempre a cada despedida.
Francisco Gabriel
Natal/RN

MENÇÕES ESPECIAIS


Até quem é forte chora,
e vê no instante um castigo,
se o grande amor vai-se embora...
ou se despede um amigo.
Roberto Resende Vilela
Pouso Alegre/MG

Na  hora da despedida,
da dor tornei-me refém:
- minha saudade doída
embarcou no mesmo trem!
Fernando Fernandes
Brasília/DF


Quanto afago, quantos tapas
já trocamos, eu e a Vida...
E vamos queimando etapas,
sem pensar em despedida!
José Ouverney
Pindamonhangaba/SP

A hora da despedida
começa na mocidade,
quando o relógio da vida
marca o tempo da saudade
Eduardo A. O. Toledo
Pouso Alegre/MG


Na hora da despedida,
eu não sei bem, na verdade,
se resta a dor da partida,
ou o início da saudade...
Hélio Costa
São Paulo/SP


A mais triste despedida
que teve a Mãe de Jesus,
foi vê-LO, já combalida,
morrer nos braços da cruz!
José Antônio de Freitas
Pitangui/MG


No instante da despedida,
não percebeste o perigo:
ao sair da minha vida,
a carregaste contigo...
Renata Paccola
São Paulo/SP


As lembranças calorosas,
fragmentos da nossa vida...
foram pétalas de rosas
deixadas  na despedida...
Célia Terezinha N. Vieira
Irati/PR


Foi na tua despedida
que perdi o meu caminho;
teu regresso à nossa vida
se tornou meu lar, meu ninho.
Paulo Roberto de O. Caruso
Niterói/RJ


Me pergunto se há vantagem
num beijo de despedida,
que adoça a minha viagem,
mas dificulta a partida.
José Arthur Basaglia
São Paulo/SP
 
MUNICIPAL (Santos)

Tema: Despedida


A dor que mais dói, na vida,
sem nada haver que a conforte,
é a dor de uma despedida,
que dói mais que a própria morte!
Carolina Ramos

Ante a hora da partida,
nossa tensão se agiganta
e a despedida é contida
na voz presa na garganta.
Cláudio de Cápua

Asa branca no céu voando
para o sertão de partida,
parece um lenço acenando
num adeus de despedida!!!
Maria Nelsi Sales Dias

Ante a lágrima caída,
que é do próprio sentimento...
O que pesa é a despedida,
pesando no pensamento.
Ana Maria Guerrize Gouveia

A pertinaz despedida
abafou a nossa voz,
cada lágrima caída
dizia tudo por nós!
Maria Aparecida Ferreira de Vasconcelos

Foi tão triste a despedida,
mas algum tempo depois,
vi que o fato, em nossa vida,
foi melhor para nós dois...
Antonio Colavite Filho

Ante a dor de uma partida
esta triste realidade,
porque toda despedida
deixa sempre uma saudade!
Edna Gallo

No instante da despedida
Eu procurei disfarçar,
Mas a lágrima sentida
veio em meu rosto rolar!...
Nair Lopes Rodrigues

Na morte, vivo pensando,
olhando de longe a vida,
assim vou me acostumando
com a hora da despedida.
Suely Ribella

É na dor da despedida,
que acendo a reflexão!
Tudo passa nesta vida
menos a recordação.
Íria Suelli Belchior

Fonte: Carolina Ramos

sábado, 13 de abril de 2019

Vinicius de Moraes (A mulher e a sombra)


Tentei, um dia, descrever o mistério da aurora marítima.

      Às cinco da manhã a angústia se veste de branco
      E fica como louca, sentada espiando o mar...

Eu a vira, essa aurora. Não havia cor nem som no mundo. Essa aurora, era a pura ausência. A ânsia de prendê-la, de compreendê-la, desde então me perseguiu. Era o que mais me faltava à Poesia:

      E um grande túmulo veio
      Se desvendando no mar...

Mas sempre em vão. Quem era ela de tão perfeita, de tão natural e de tão íntima que se me dava inteira e não me via; que me amava, ignorando-me a existência?

      És tu, aurora?
      Vejo-te nua
      Teus olhos cegos
      Se abrem, que frio!
      Brilham na treva
      Teus seios tímidos...

O desespero inútil das soluções... Nunca a verdade extrema da falta absoluta de tudo, daquele vácuo de Poesia:

      Desfazendo-se em lágrimas azuis
      Em mistério nascia a madrugada...

Lembrava uma mulher me olhando do fundo da treva:

      Alguém que me espia do fundo da noite
      Com olhos imóveis brilhando na noite
      Me quer.

E fora essa a única verdade conseguida. A aurora é uma mulher que surge da noite, de qualquer noite - essa treva que adormece os homens e os faz tristes. Só a sua claridade é amiga e reveladora. Ao poeta mais pobre não seria dado desvendá-la em sua humildade extrema. O poeta Carlos, maior, mais simples, a revelaria em sua pulcritude, a aurora que unifica a expressão dos seres, dá a tudo o mesmo silêncio e faz bela a miséria da vida:

      Aurora,
      entretanto eu te diviso, ainda tímida,
      inexperiente das luzes que vais acender
      e dos bens que repartirás com todos os homens.

      Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
      Adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna.
      O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
      teus dedos frios, que ainda não se modelaram
      mas que avançam na escuridão como um sinal verde e peremptório.
      Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
      minha carne estremece na certeza de tua vinda.
      O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
      os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
      uma inocência, um perdão simples e macio...
      Havemos de amanhecer. O mundo
      se tinge com as tintas da antemanhã
      e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
      para colorir tuas pálidas faces, aurora.

A aurora dos que sofrem, a única aurora. Aquela mesma que eu vira um dia, mas cujo segredo não soubera revelar. Uma mulher que surge da sombra...

Bem haja aquele que envolveu sua poesia da luz piedosa e tímida da aurora!

Fonte:
Vinícius de Moraes. Para uma menina com uma flor. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.

Mia Couto (A Chuva Pasmada) O Adiado Príncipe - Visões de Peixes Solares


O ADIADO PRÍNCIPE

      Eu já tinha amontoado suficientes pedrinhas aos pés do avô. Ele baixava-se e colocava, uma por uma, a pedra no elástico da fisga. De seguida, disparava o projétil de encontro aos céus. O que fazia? Abria buracos na paisagem, rasgava nesgas de céu naquela cortina de água.

      Me apetecia juntar-me a ele, eu mais a minha fisga. E juntos flecharmos os céus, fazendo pontaria para acertar no nada. Mas não podia. Tinham-me dado tarefas, e eu já içava um escadote sobre o ombro, quando o avô me fez parar:

      - Sua tia prefere os padres porque eles desculpam o crime dela.

      - Crime?

      - Nunca lhe disseram? Sua tia matou um homem!

      Pousei as escadas para melhor escutar. O velho não esperava por outra coisa: foi soltando as falas. Tinha sido num baile, um forasteiro tinha chegado ao nosso lugar e se decidira a pernoitar. Havia, nessa noite, festa no clube. A tia era mais jovem, mais fogosa, mas já sofria da doença de esperar homem. A enfermidade lhe deu coragem e, para espanto de todos, ela cruzou a multidão e convidou o moço para rodar. O forasteiro, primeiro, se envergonhou: já se vira mulher tomar as dianteiras? Na nossa aldeia, mulher que toma a iniciativa não o faz por coragem, mas por desespero. Ou pior, por razão de feitiço. Todavia, o fulano lá se ergueu e, meio contrafeito, foi rodopiando com ela pelo átrio. Então, sucedeu: o braço da tia foi cingindo o pobre desconhecido em aperto de jiboia esfaimada. O moço começou por ficar sem fôlego, depois foi perdendo as cores e, quando se deu conta, a nossa tia já lhe tinha perfurado as costelas. O estranho caiu fulminado, por cima do último suspiro.

      - Não é verdade, avô!

      - O que é que disseste?

      Não repeti. A fantasia do mais velho era sempre tal que ele mesmo de suas falas se estranhava. Desta vez, porém, havia uma convicção que me fazia duvidar.

      - Nada, avô. Não disse nada.

      Me afastei, fui mudar as palhas do teto. com a acumulação da água, o colmo começava a apodrecer. Empoleirado na escada, meus olhos lutavam para se manterem abertos. A voz da tia quase me fez cair do escadote. Lá estava ela, em baixo, com o seu sorriso que nunca desbotava.

      - Afinal, nem tudo é tragédia.

      - O que se passa, tia?

      - Hoje, de manhã cedo, vi um cavalheiro chegando.

      - E quem era?

      - Um desconhecido. Vinha pela estrada, todo vestido de preto. Foi essa chuva que o trouxe, abençoada chuva.

      Perscrutei o horizonte, mão em pala sobre a testa. Como podia ela ter visto um vulto, se tudo desfocava para além do nariz? Miragem teria sido. Ou talvez o chuvilho já tivesse aguado a sua cabeça.

      - Desça, sobrinho, que eu quero desafiá-lo para uma surpresa.

      - Surpresa?!

      A tia ligou o rádio, fazendo soar uma música roufenha, quase asmática.

      - Venha dançar-me. sobrinho!

      O mel na voz me fez arrepiar. As recentes revelações do avô ainda em mim ecoavam. À minha frente, não se desvanecia o dançarino estrafegado pelo sequioso abraço. Mas já os meus passos tonteavam, ao compasso do rádio de pilhas.

      - É verdade, tia, que houve um homem que morreu num baile?

      - Num baile?

      - Foi há muito tempo, tia.

      - Ah, tenho a vaga ideia, sim. Mas como é que sabe?

      - Foi o avô que me contou.

      - Se foi o avô, é porque é mentira.

      E ela me apertou mais. Senti o seu corpo se esmagar de encontro ao meu.

VISÕES DE PEIXES SOLARES

      O avô falou como sempre: aos gritos. A voz, rouca, inundou os cantos da casa:

      - Eu vi, eu vi

      Era o falar altissonante de quem não ouve e receia não ser escutado. Que tinha visto um peixe subindo nos céus, imitando o voo de um pássaro. Os da casa riram-se:

      o avô e seus delírios. Mas eu gostei de acreditar e, no meu pensamento, já cardumes atravessavam as nuvens, rebrilhando entre a sarapintada claridade. E cheguei mesmo a escutar o bater de barbatanas, o ar assobiando entre as coloridas escamas dos peixes.

      Mas o contentamento era de sol de pouca dura. Ou como dizia o avô: de boca dura. Breve, esmoreceu o sorriso. Havia uma tensão que crescia, uma invisível mão que sufocava o nosso lugar. Como a serpente que asfixiou o dançarino.

      De todos, era a mãe quem mais se agitava. E atingia o meu pai, improperiando-o como se nele estivesse a culpa. Minha tia procurava sossegar as ansiedades da irmã. Ela que deixasse o marido, não lhe cobrasse nada.

      - Você não desperdice o seu homem, mana. Há outras que nunca tiveram marido.

      Mas era inútil. Em minha mãe fermentava uma insistência como se, naquela cobrança, fizesse contas das arrelias de uma vida inteira.

      - E então, homem? Não vai falar? Não vai lá à fábrica?

      - Nem pensar.

      - E por que não quer ir?

      - Não é que eu não quero, não tenho é vontade.

      Meu velho se encostou bem arrumado no cadeirão a mostrar que falara tudo. Ele não desperdiçava palavra, nem esbanjava gesto. O que ele fez foi acender o isqueiro. Era o que fazia quando não sabia o que fazer. Há muito que não fumava, sobrara-lhe aquele gesto sem sentido. Minha mãe ainda insistiu, o queixo erguido sobre todos nós:

      - Ninguém vai?

      Silêncio. Minha mãe se retirou com passo decidido como se fosse passar um pano pelo céu.

continua...

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Luiz Poeta (Pios de Bemóis e Sustenidos)


Absorto nas notas que tentava desenhar na pauta, o esquálido maestro não percebeu a chegada do passarinho. 

Tratava-se de um modesto pardal suburbano, cujo discreto farfalhar de asas não atrapalharia a silenciosa confecção da harmonia, não fosse o mesmo pousar exatamente na tecla de um dó sustenido.

Ambos assustaram-se; o músico e a frágil criaturinha voadora. O pássaro, com o som do piano; o pianista, com o pio simultâneo do animalejo.

Os olhos do homem imediatamente dirigiram-se ao teclado, no exato instante em que outra nota se soltava; era mais um bemol; agora em si. Provavelmente esse indiscreto instrumentista eventual se interesse mais pelas teclas pretas - pensou. E elas eram - repetidas vezes - sutilmente comprimidas. A cada milimétrico salto, um novo som - sempre sustenido. E o animalzinho repetia, no mesmo tom, a nota executada. O pardal parecia fazer o contracanto de si mesmo, Era uma sequência melódica aparentemente aleatória que caminhava no ar e ecoava pela sala. Monossílabos sonoros duplicando-se em notas e pios similares... polifonizando-se metafisicamente.

O músico estava embevecido, enquanto o pardal, saltitante, alternava - agora - as teclas brancas e pretas, mesclando graves com agudos, parecendo divertir-se.

Frenético como ele, o musicista começou a escrever o que ouvia; nem teve tempo para armar a clave de sol: semi fusas, semibreves, mínimas, semínimas, colcheias, tudo se misturava num êxtase só. 

Ambos pareciam conhecer-se há muito tempo. Muitos pássaros haviam pousado na varanda, e alguns até adentraram à sombria sala onde as sinfonias preenchiam vazios não apenas geográficos, mas principalmente sentimentais. Certa vez, um beija-flor ficou levitando bailados diante de um arranjo de flores de plástico, porém foram apenas alguns segundos perfeitamente justificáveis, entretanto a nova cena era inusitada e sublimemente inexplicáveis, como não havia percebido aquele pardal? ...claro que não se tratava de um curió ou um canário belga... seria exigir muito de um bichinho sem casta que, a exemplo de alguns artistas, sobressaem por um talentoso autodidatismo, que nem sempre carece de arte final.

Mas a cena era real: havia um pardal tricotando sons nas teclas de um piano!

Que oportunidade!... era como se a ideia que não vinha cedesse lugar ao transcendental e mergulhasse aquele maestro e o passarinho num universo onde as estrelas fossem notas soltas sonorizando sensibilidades e iluminando os ermos de cada olhar de uma plateia embevecida.

Assim como veio, o animalzinho alçou voo, deixando como legado um último pio e o derradeiro som desenhado numa pauta manchada pela melhor das gotas de lágrima.

No dia seguinte, uma tênue brisa afagou cada uma das folhas do livro de música e as conduziu mansamente à janela entreaberta. Uma a uma, elas valsavam numa surreal coreografia de frente e verso, exibindo páginas em cujas trêmulas linhas as notas musicais bailarinavam surrealismos, parecendo sutis dançarinas sobre a leveza de um palco dourado pelas luzes do sol.

Então, elevaram-se com a mesma serenidade com que se soltaram, atingindo - placidamente - a amplitude azulada do céu.

Naquele mágico cômodo da casa. o inefável: numa ternura indizível e indelével, o rosto do lírico e esquálido maestro debruçara-se sobre o piano, enquanto os inertes dedos da sua mão direita pareciam posar para um flash imaginário, eternizando a formação de um derradeiro e único acorde cujo som voou...como um passarinho..
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(Conto agraciado com o 1. lugar no Concurso de Contos promovido peia União Brasileira de Escritores - RJ - 2013)

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. Ilhéus: Mondrongo, 2014. [livro gentilmente cedido pelo autor]

Mia Couto (A Chuva Pasmada) O Fluir do Rio Seco


O FLUIR DO RIO SECO

      Passaram-se mais dias. O rio emagrecera mais do que o avô, os terrenos encarquilharam, o milho amarelecia.

      Nessa noite, a lua estava cheia. No escuro, o luar se replicava nas mil gotinhas, acendendo um fantástico presépio. Nunca eu tinha assistido a tanta luz noturna, o estrelar do céu mesmo sobre o nosso tecto. Meu pai sorriu:

      - Já temos lua elétrica! E nos fez sorrir. Olhei o seu rosto cansado como se encontrasse nele razões da sua atitude, sempre ausente e preguiçosa. Ainda miúdo, meu pai tinha ido para as minas, lá no Johni. Saíra jovem, voltara envelhecido. Os que ficam órfãos veem os seus pais serem engolidos pelo chão. O fundo da terra roubara de mim o meu pai, sem o levar da vida. Em menino, eu acordava chorando no meio da noite. Minha mãe acudia, pronta:

      - Sonhou com ele, meu filho?

      Não. Nas minas do ouro meu velho descia tão fundo que os meus sonhos já não chegavam nem à sua lembrança. Meu sonho era outro, mais escuro. Anos depois, meu pai regressou mas permaneceu ausente, como se lhe faltasse algum inferno. E partiu de novo. E regressou. E voltou a partir.

      De cada vez que voltava, vinha mais e mais doente. Fumava para que o peito não estranhasse a falta de poeira. Quando, por fim, se estabeleceu, definitivo, entre nós, meu pai só tinha um fazer: dormir. De tanto enroscar na cama ele cheirava à palha do colchão.

      - Porquê tanta preguiça, marido?

      - Eu não durmo por preguiça. Eu durmo de tristeza.;

      Não era tristeza. Era um vazio. Os tristes têm um céu. Cinzento, mas céu. Os desesperados têm um deserto. Meu pai olhava para trás: era mais o esquecido que o vivido. O que não lembrava era porque se esquecera de viver? Ou tudo tinha ficado lá, na nina que desmoronou? Quando se cruzava comigo, de pijama, a meio do dia, meu pai se justificava:

      - Sua mãe quer que eu faça dessas coisas que criam alma na pessoa. Só que ela não entende: se eu estou vivo é porque não tenho alma nenhuma.

      E agora, olhando-o sob aquele estilhaçado luar, me pareceu que meu pai não era senão poeira entre poeiras de Lua. Sua alma ficara sepultada entre longínquos minérios.

      Com aparato, a mãe se levantou, interrompendo os meus devaneios. Ela pendurou uma pá no ombro e anunciou, ao passar a porta:

      - Se a água não vem à terra...

      Nós a vimos transitando da ideia ao gesto: atirava terra para o ar, semeando a chuva de areia. Meu pai acorreu à varanda, todo consumido:

      - Tenha vergonha, mulher! Não vê os vizinhos espreitando?

      Mas ela prosseguiu chuveirando terra pelos ares. E parecia resultar, os grãos se prendiam às gotas, a areia se suspendia na chuva. Minha mãe ainda brincou:

      - Viu, homem? Estou a semear granizo.

      E foi tanta a terra lançada à água que, em redor da casa, o céu escureceu. Parecia que a Lua se avariava nas mil lampadinhas onde se acendera. Restou um breu de confundir galos. A família deu por findo esse aterrar do ar. Já bastava uma estranheza.

      Na minha cabeça, o futuro se antecipava: não tardaria que, da terrinha suspensa, brotassem lateralmente umas verduras. Nasceriam enviesadas, crescendo de lado para o lado. Apanharíamos milho, mandioca e feijão como se fosse do ramo de árvore. As pessoas trabalhariam como pintores, pincelando uma tela feita de pingo de areia e do grão da chuva. Minha mãe seria a primeira a festejar:

      - Agora, até me canso menos. É que já não tinha costas para cavar no chão...

      Mas quem vivia, de verdade, uma nova alegria era a nossa tia. Sempre fora ela a ir ao poço buscar água. Agora, nem saía de casa. Janela aberta, ela fazia girar a lata, como se desse umas quantas braçadas. Varava o ar, em curvas cegas, e a lata logo ficava cheia. O rio era um poço escavado no céu. Um poço à sua privada disposição.

      - Deus trouxe o rio à nossa porta.

      Mas a tia cedo amargou a sua ilusão. Ela era a fervorosa senhora de cruz e rosário, sempre de reza na boca. Do inicial sentimento de que um milagre sucedera à porta da sua casa lhe foi despontando dúvida: o chuvilho seria, ao invés, um sinal da indisposição divina. Ou, ainda pior, o início do nosso último destino. Uma espécie, enfim, de dilúvio preguiçoso. A tia passou a clamar aos ventos:

      - Vocês não entendem? O que se está passar é uma inundação sem chão, um castigo de Deus!

      O chão encharcado de poeira, tudo tão sedento: aquilo era a moeda e sua outra face. Enchente e seca, escassez e excesso, tudo num mesmo regaço.

      - Vejam esse céu tão cheíssimo! É castigo de Deus.

      A tia fervia em histeria, braços flamejando. O avô não teve as meias medidas. E ali, em voz bem recortada, vociferou:

      O que essa mulher precisa é de um homem!

      Era filha dele mas isso não desvanecia o seu parecer. A tia amadurecera sem calor de homem, noivo, marido. Não se contemplam tais adiamentos, nestes nossos lugares. A mulher tem seus tempos, como um fruto. Por falta de cumprimento das estações, minha tia estava proibida de pilar e entrar na cozinha. Os alimentos não aceitam mãos de mulher nessa condição, aquecida por seus interiores martírios.

      Talvez fosse essa a razão que levava o avô a despejar o seu fel sobre a mais nova de suas filhas:

      - A chuva não cai sabe porquê? É para lhe mostrar o que É ficar solteira!

      A mãe tentou deitar água na zanga. Sem falar, ela levantou a mão e fez girar o dedo mostrando desaprovação. O avô fez que não viu e prosseguiu:

      - Quando a boca fica muito tempo sem beijar a saliva se transforma em veneno.

      A tia saiu chorando. Se abrigou no alpendre, rosto anichado entre as mãos. E ali estava eu, ansiando por a consolar, mas não sabendo que palavras escolher. Ofereci só isso: o estar ali, eu e meu silêncio. Ela considerou os meus favores, seus olhos vermelhos se espetaram em mim:

      - O avô tem razão!

      Ainda a tentei dissuadir. Mas ela reiterava suas semelhanças com o desastre da inderramável chuva. Seu rosto era sem beijo, esse chão era sem gota. E agora, o que lhe restava senão a janela da infinita espera? O cotovelo de certas mulheres foi feito para apoiar nos parapeitos. Agora que a rua se convertera num aquário, que homem mais lhe poderia chegar? Só se fosse um com barbatana e guelra. com a ponta da capulana a tia enxugou a lágrima, a meio caminho entre pestana e o queixo.

      - Venha, sobrinho, me acompanhe à igreja.

      - Mas estou totalmente descalço...

      - Fica na porta, à minha espera. Enquanto espera também vai rezando.

      Fomos. Braço dado, eu lhe sentia os tremores. A tia sempre temera a água, desde que, certa vez, quase se afogara no rio. Pois, agora, mal dados uns passos, ela deflagrou a sombrinha e a empunhou como uma espada, abrindo caminho entre as gotas. E logo nos molhamos por todos os lados.

      - É castigo, castigo de Deus! - a tia ladainhava, caminho afora.

      A água perdera peso por motivo de nossos pecados, insistia. Não havia outro motivo, fossem feitiços ou maldições. Somos culpados, nós pecadores. E já ia adiantando reza, pelo caminho: nós pecadores nos confessamos... Quando chegamos, ela apontou a cruz no telhado da igreja:

      - Escute bem, sobrinho. Só há um lugar de fazer milagres: é aqui!

      Eu que não emprestasse ouvido aos restantes, crédulos em espíritos e mezinhas. Que isso não era de civilizado. Sobretudo, eu não desse crédito ao avô, ele era o mais dado aos ancestrais.

      - A gente cimenta a casa, não pode mais ficar de alma ao relento, fazendo altar em ramos de árvore.

      A tia entrou. Fiquei esperando no átrio da igreja. Eu e uma cachorra vadia partilhávamos a solidão do lugar. Me demorei nos olhos do bicho, cheios de pedra preta, tão preta que era água. A cadela parecia absorta na contemplação da rua. Estranharia, também ela, a chuva pasmada?

      Entretanto, na pequenina igreja, ecoavam as rezas e eu escutava perfeitamente a voz da tia:

      - Pai nosso, cristais no Céu, santo e ficado seja o vosso nome.

      Depois, o tempo se entaramelou, viscoso. Seguiram-se cantos e rezas, rezas e cantos. Lembrei as palavras do avô: não são os cristãos que se fatigam, Deus é que não tem fôlego para tanta oração. A cadela vadia, na espera, se aproximou e sacudiu sobre mim a água que lhe pesava no dorso. Noutra ocasião, eu me teria zangado. Naquele momento, porém, até me soube bem aquele respingar de frescura. Matilhas de cães se saracoteassem e talvez o chão ficasse molhado, como se um outro modo de chover estivesse ocorrendo.

      Meu pensamento foi enxotado da cabeça como água em pelo de cachorro: minha tia batia os pés na calçada, despertando-me a mim, assustando a cadela.

      - Veja, sobrinho, o padre me deu este plástico.

      - Para se cobrir?

      - Não. É para embrulhar a Bíblia! Não se vá esborratar a palavra de Deus, cruz credo!

continua...

Fonte:
Mia Couto. A chuva pasmada. 2004.