terça-feira, 30 de abril de 2019

Angela Maria de Godoy Theodorovicz (Os quintais da minha vida)


No meu tempo de infância, na pequena cidade onde vivia, criança brincava no quintal. Lá todas as casas tinham quintais. Alguns eram separados por muros, que pulávamos com a maior facilidade; outros, por uma cerca com dois ou três fios de arames que de tanto espichá-los para passarmos sob ou sobre eles, acabavam indo para o chão. No meu tempo de infância era nos quintais que passávamos muitas horas do dia e também das noites quentes de verão, quando a lua era cheia e clareava nossos passos e brincadeiras.

Nos quintais brincávamos sem brinquedos. Era pega-pega, cabra-cega, esconde-esconde, amarelinha, passa-anel e tantas outras coisas que bastava ter um quintal e nada mais.

Nos quintais brincávamos de fazer brinquedos. Neles sempre havia sobras de construções, coisas quebradas e outros entulhos amontoados em algum canto. Bastava procurar, cortar, serrar, juntar uma coisa com outra para fazermos um carrinho, um trem, uma panela, uma bola...

Nos quintais havia árvores que subíamos em desafio para ver quem alcançava o galho mais alto ou chegava primeiro em um galho pré-determinado. Delas pendiam balanços feitos de cordas com assento de tábua ou pneu; nelas erguíamos casas, na maior parte das vezes contando com a ajuda de um irmão mais velho, e isso podia durar meses, para nosso deleite.

Nos quintais construíamos fazendas, delimitadas com palitos de sorvetes catados pelas ruas que cravávamos no chão a imitar cercas. Frutas, de diversos tamanhos e tipos, eram usadas para compor o corpo dos animais que, com palitos espetados e pedaços de rolha, ganhavam pernas, rabos, cabeças, e desse jeito nasciam bois, porcos, cavalos e outros bichos que a imaginação alcançava. As estradas eram construídas com areia peneirada, a imitar os cascalhos das estradas rurais. Abríamos pequenos sulcos no chão para fazer de conta que eram rios e sobre eles colocávamos pontes feitas com pedaços de galhos de árvores. Nas nossas fazendas também havia as plantações, feitas com ramos de plantas, de diversos tipos, enfiados pelo chão. Nas nossas fazendas havia tantas coisas mais que ficávamos dias, semanas, nessa brincadeira. E essa era a graça.

Nos quintais construíamos pocinho d’água cavando um buraco redondo no chão, profundo até onde nossos braços podiam alcançar. Uma lata de massa de tomate vazia virava o balde; um barbante, a corda; o sarilho era um galho bem roliço, apoiado em duas forquilhas de galho de goiabeira. Depois era só encher o buraco d’água e brincar de puxar água. Era tão divertido construir nossos poços como era divertido brincar com eles.

Nos quintais brincávamos de circo. Trapézio? Um galho de árvore mais resistente bastava. Malabarismo? Três limões ou laranjas atirados pelo ar, um de cada vez, num movimento continuo de pegar e lançar sem deixar cair no chão. Passávamos dias treinando, e esse era o divertimento, essa era a brincadeira.

Até para ler um gibi o quintal era escolhido. Sob uma árvore ou sobre ela. Sob a sombra de um muro, no canto da casa. Até para não fazer nada, quando não se tinha com quem brincar, era no quintal que a gente ficava pensando sei lá no quê.

Na minha época de criança quintal era o nosso mundo, o palco para nossas aventuras e realizações, fonte inesgotável para nossas fantasias. Para nós aqueles metros de terra tinham a dimensão do infinito.

Estou me lembrando disso tudo porque neste final de semana, na nossa casa de campo, tivemos a visita de um menino de oito anos acompanhado da avó. O garoto chegou exibindo um celular, presente que ganhou de Natal. Foi logo mostrando tudo sobre o aparelho e estava ansioso para fazer ligações. Como é difícil pegar sinal dentro de casa ele vasculhou minuciosamente todos os cantos da casa e ao menor sinal de que aquele aparelho iria funcionar o garoto soltava gritos estridentes, para não dizer histéricos.

O garoto não tinha outro assunto, não se interessava por outra coisa, tornou-se repetitivo e era enfadonho escutá-lo falar sobre as maravilhas daquela coisa. Tentei mudar aquela rotina, convidei-o para um passeio fora de casa onde havia muitas coisas a ver e a fazer. Ele não demonstrou nenhum interesse. Tentei explicar-lhe do que eu brincava quando tinha a sua idade e quanto do que eu falava poderia ser encontrado fora de casa. Ele ouviu um pouco, fez cara de pouco caso e continuou na sua interessantíssima aventura de encontrar dentro de casa um lugar onde o aparelho pudesse funcionar. Para ele o que eu dizia deve ter sido tão bizarro como me foi vê-lo dois dias enfurnado dentro de uma casa cercada de árvores e com um quintal imenso.

Ele foi embora como chegou. Com o celular na mão, exibindo-o como um troféu.

Fiquei com a impressão de que ele nem se deu conta de onde passou o final de semana. Não pude deixar de compará-lo a mim, quando tinha a sua idade. Foi então que me lembrei dos meus quintais. E tive pena do garoto.

Fonte:
Espaço Literário Sorocult

MIFORI (Poemas Avulsos)


A JORNALISTA   

  Trabalhando muito e de forma fenomenal,
Lutava com obstinação para conseguir,
Galgar os degraus do sucesso profissional,
Expondo matérias em revistas e em jornal!
 
Disputava sempre a mesma vaga com alguém!
Jamais imaginava disputá-la com este homem,
Que no passado, a feriu tirando-lhe a reportagem,
Deixando-a frustrada e perdidamente apaixonada!
 
Lembrava-se que ele era a mais pura tentação,
Que nela provocava sensação de nuvens flutuar,
Sem controle, numa doida e irresistível paixão!
O coração disparava com hormônios em ebulição!
 
A situação, agora, apresentava-se diferente,
Iriam juntos trabalhar num grande desafio!
Mas, desafio maior era  ao lado dele trabalhar,
Mostrando-se indiferente a quem queria amar!
 
Na hora marcada para se receber as orientações,
Sem perceber, seus olhos docemente se atraíram,
E como imã, selaram neste dia o amor que nasceu,
Naquela noite,  em que mau entendido aconteceu!

DIFÍCIL SAÍDA   

O término do trabalho a obrigava
Tomar sérias decisões assertivas.
A expressão no rosto dele brilhava,
De desejo e também de expectativas.

Subitamente ergueu-se e saiu caminhando.
À sua frente se abria um novo mundo.
Mas, a incerteza, seu amor foi minando.
Sentiu no coração, um vazio profundo.

Olhando pras estrelas, procurou
Livrar-se do turbilhão de emoções,
Encontrando beleza e harmonia.
 
A flor desabrochou, mas, não quebrou
Todas as dúvidas e indecisões...
Viver o amor, trabalho em sincronia.

FAZ-ME FALTA   

Faz-me falta a sua condescendência,
Alguém que ao meu lado permaneça,
Todos os dias, com a sua competência!
Venha, como o raio de Sol e me aqueça,
Com seus beijos carinhosamente,
Como este seu amor resplandecente!

Faz-me falta um amor verdadeiro,
Presente de corpo e de alma... Inteiro!
Que feliz queira comigo viver,
E ao meu lado, lute para vencer!
Ama-me nas noites enluaradas,
Sob o céu de estrelas iluminadas!

Faz-me falta a sua cumplicidade,
A luminosidade do seu amor.
Alguém que me ame com sinceridade,
Saiba fazer, querer, ousar dispor,
Do direito de amar e se respeitar,
Pra consolidar a felicidade!

PARQUE NACIONAL DE ITATIAIA   

Resistindo ao tempo valentemente
Mostrando imponentes as belas riquezas
Inunda de luz a alma da gente
Superam pressões, jorrando beleza.

São seres seguindo o ciclo natural
São plantas e rochas, flores e frutas
Para pesquisas do meio ambiental,
Degustação tão saudável de trutas.

Conservaremos saúde e o vigor
Ao respirar o ar puro do parque,
Caminhando com ânimo e leveza.

Bendigamos ao nosso Pai Criador,
Prosseguindo e vivendo com arte,
Preservando com amor a natureza.

Fonte:

Machado de Assis (Um sonho e outro sonho)


Crês em sonhos? Há pessoas que os aceitam como a palavra do destino e da verdade. Outras há que os desprezam. Uma terceira classe explica-os, atribuindo-os a causas naturais. Entre tantas opiniões, não quero saber da tua, leitora que me lês, principalmente se és viúva, porque a pessoa a quem aconteceu o que vou dizer era viúva, e o assunto pode interessar mais particularmente às que perderam os maridos. Não te peço opinião, mas atenção.

Genoveva, vinte e quatro anos, bonita e rica, tal era a minha viúva. Três anos de viuvez, um de véu longo, dois de simples vestidos pretos, chapéus pretos, e olhos pretos, que vinham do consórcio e do berço. A diferença é que agora olhavam para o chão, e, se olhavam para alguma coisa ou alguém, eram sempre tristes, como os que já não têm consolação na terra nem provavelmente no céu. Morava em uma casa escondida, para os lados do Engenho Velho*, com a mãe e os criados. Nenhum filho. Um que lhe devia nascer foi absorvido pelo nada: tinha cinco meses de gestação.

O retrato do marido, bacharel Marcondes, ou Nhonhô, pelo nome familiar, vivia no quarto dela, pendente da parede, moldura de ouro, coberta de crepe. Todas as noites, Genoveva, depois de rezar a Nossa Senhora, não se deitava sem lançar o último olhar ao retrato, que parecia olhar para ela. De manhã o primeiro olhar era para ele. Quando o tempo veio amortecendo o efeito da dor, esses gestos diminuíram naturalmente e acabaram; mas a imagem vivia no coração. As mostras externas não diminuíam a saudade.

Rica? Não, não era rica, mas tinha alguma coisa; tinha o bastante para viver com a mãe, à larga. Era, conseguintemente, um bom negócio para qualquer moço ativo, ainda que não tivesse nada de seu; melhor ainda para quem possuísse alguma coisa, porque as duas bolsas fariam uma grande bolsa, e a beleza da viúva seria a mais valiosa moeda do pecúlio. Não lhe faltavam pretendentes de toda a espécie, mas todos perdiam o tempo e o trabalho. Carlos, Roberto, Lucas, Casimiro e outros muitos nomes inscreviam-se no livro dos passageiros, e iam-se embora sem esperanças. Alguns nem levavam saudades. Muitos as levavam em grande cópia e das mais tristes. Genoveva não se deixou prender de ninguém.

Um daqueles candidatos, Lucas, pôde saber da mãe de Genoveva algumas circunstâncias da vida e da morte do finado genro. Lucas tinha ido pedir licença à boa senhora para solicitar a mão da filha. Não havia necessidade, pois que a viúva dispunha de si; mas a incerteza de ser aceito sugeriu-lhe esse alvitre, a fim de ver se ganhava a boa vontade e intercessão da mãe.

- Não lhe dou tal conselho - respondeu esta.

- De pedi-la em casamento?

- Sim; ela deu-lhe alguma esperança?

Lucas hesitou.

- Vejo que não lhe deu nenhuma.

- Devo ser verdadeiro. Esperanças, não tenho; não sei se D. Genoveva me perdoa, ao menos, a afeição que me inspirou.

- Pois não lhe peça nada.

- Parece-lhe que...

- Que perderá o tempo. Genoveva não casará nunca mais. Até hoje tem a imagem do marido diante de si, vive da lembrança dele, chora por ele, e nunca se unirá a outro.

- Amaram-se muito?

- Muito. Imagine uma união que apenas durou três anos. Nhonhô, quando morreu, quase que a levou consigo. Viveram como dous noivos; o casamento foi até romanesco. Tinham lido não sei que romance, e aconteceu que a mesma linha da mesma página os impressionou igualmente; ele soube disso lendo uma carta que ela escrevera a uma amiga. A amiga atestou a verdade, porque ouvira a confissão de Nhonhô, antes de lhe mostrar a carta. Não sei que palavras foram, nem que romance era. Nunca me dei a essas leituras. Mas naturalmente eram palavras ternas. Fosse o que fosse, apaixonaram-se um pelo outro, como raras vezes vi, e casaram-se para ser felizes por longos anos. Nhonhô morreu de uma febre perniciosa. Não pode imaginar como Genoveva sofreu. Quis ir com o cadáver, agarrou-se ao caixão, perdeu os sentidos, e esteve fora de si quase uma semana. O tempo e os meus cuidados, além do médico, é que puderam vencer a crise. Não chegou a ir à missa; mandamos dizer uma, três meses depois.

A mãe exagerava no ponto de dizer que foi a frase do romance que ligou a filha ao marido; eles tinham naturalmente inclinação. A frase não fez mais que falar por eles. Nem por isso tira o romanesco de Genoveva e do finado Marcondes, que fizera versos aos dezoito anos, e, aos vinte, um romance, A bela do sepulcro, cuja heroína era uma moça que, havendo perdido o esposo, ia passar os dias no cemitério, ao pé da sepultura dele. Um moço que ia passar as tardes no mesmo cemitério, ao pé da sepultura da noiva, viu-a e admirou aquela constância póstuma, tão irmã da sua; ela o viu também, e a identidade da situação os fez amados um do outro. A viúva, porém, quando ele a pediu em casamento, negou-se e morreu oito dias depois.

Genoveva tinha presente este romance do marido. Havia-o lido mais de vinte vezes, e nada achava tão patético nem mais natural. Mandou fazer uma edição especial, e distribuiu exemplares a todos os amigos e conhecidos da família. A piedade conjugal desculpava esse obséquio pesado, ainda que gratuito. A bela do sepulcro era ilegível. Mas não se conclua daí que o autor, como homem espirituoso, era inferior às saudades da viúva. Inteligente e culto, cometera aquele pecado literário, que, nem por ser grande, o teria levado ao purgatório.

Três anos depois de viúva, apareceu-lhe um pretendente. Era bacharel, como o marido, tinha trinta anos, e advogava com tanta felicidade e real talento que contava já um bom pecúlio. Chamava-se Oliveira. Um dia, a mãe de Genoveva foi demandada por um parente, que pretendia haver duas casas dela, por transações feitas com o marido. Querendo saber de um bom advogado, inculcaram-lhe Oliveira, que em pouco tempo venceu a demanda. Durante o correr desta, Oliveira foi duas vezes à casa de Genoveva, e só a viu da segunda; mas foi quanto bastou para achá-la interessantíssima, com os seus vestidos pretos, tez muito clara e olhos muito grandes. Vencida a demanda, a constituinte meteu-se em um carro e foi ao escritório de Oliveira, para duas cousas, agradecer-lhe e remunerá-lo.

- Duas pagas? - retorquiu ele rindo -. Eu só recebo uma: agradecimentos ou honorários. Já tenho os agradecimentos.

- Mas...

- Perdoe-me isto, mas a sua causa era tão simples, correu tão depressa, deu-me tão pouco trabalho, que seria injustiça pedir-lhe mais do que a sua estima. Dá-me a sua estima?

- Seguramente - respondeu ela.

Quis ainda falar, mas não achava palavras, e saiu convencida de que era chegado o reino de Deus. Entretanto, querendo fazer uma fineza ao generoso advogado, resolveu dar-lhe um jantar, para o qual convidou algumas famílias íntimas. Oliveira recebeu o convite com alacridade. Não gostava de perfumes nem adornos; mas nesse dia borrifou o lenço com Jockey Club* e pôs ao peito uma rosa amarela.

Genoveva recebeu o advogado como recebia outros homens; a diferença, porém, entre ele e os outros é que estes apresentavam logo no primeiro dia as credenciais, e Oliveira não pedia sequer audiência. Entrou como um estrangeiro de passagem, curioso, afável, interessante, tratando as coisas e pessoas como os passageiros em trânsito pelas cidades de escala. Genoveva teve excelente impressão do homem; a mãe estava encantadíssima.

"Enganei-me", pensou Genoveva, recolhendo-se ao quarto. "Cuidei que era outro pedinte, entretanto... Mas, por que motivo fez o que fez, e aceitou o jantar de mamãe?"

Chegou a suspeitar que a mãe e o advogado estavam de acordo, que ela não fizera mais que buscar ocasião de os apresentar um ao outro, e travar relações. A suspeita cresceu quando, dias depois, a mãe falou em visitar a mãe de Oliveira, com quem este vivia; mas a prontidão com que aceitou as suas razões de negativa tornou a moça perplexa. Genoveva examinou o caso e reconheceu que atribuía à mãe um papel menos próprio; varreu-se-lhe a suposição. Demais (e isto valia por muito), as maneiras do homem estavam em desacordo com quaisquer projetos.

Travadas as relações, bem depressa as duas famílias se visitaram, e a miúdo. Oliveira residia longe; mas achou casa perto e mudou-se. As duas mães achavam-se reciprocamente encantadoras, e tanto a de Genoveva gostava de Oliveira, como a de Oliveira gostava de Genoveva. Tudo isto vai parecendo simétrico; mas eu não tenho modo de contar diferentemente coisas que se passaram assim, ainda que reconheça a conveniência de as compor algo. Quando menos, falta-me tempo. A verdade é que as duas matronas se amavam e trabalhavam para fazer os filhos encontradiços.

Um, dois, três meses correram, sem que Oliveira revelasse a menor inclinação à viuvinha. Entretanto, as horas passadas com ele, em qualquer das casas, não podiam ser mais deleitosas. Ninguém sabia encher o tempo tão bem, falando a cada uma das pessoas a sua própria linguagem. Durante esse prazo teve Genoveva ainda um pretendente, que não recebeu melhor agasalho; parece até que tratou a este com uma sombra de despeito e irritação inexplicáveis, não só para ele, como para ela própria.

"Realmente, o pobre diabo não tem culpa que eu seja viúva", disse ela consigo.

"Que eu seja bonita" é o que ela devia dizer, e pode ser que tal ideia chegasse a bater as asas, para atravessar-lhe o cérebro; mas, há certa modéstia inconsciente, que faz evitar confissões, não digo presumidas, mas orgulhosas. Seja o que for, Genoveva chegou a ter pena do pretendente.

"Por que não se portou ele como o Oliveira, que me respeita?" continuou consigo.

Entrara o quarto mês das relações, e o respeito do advogado não diminuiu. Jantaram juntos algumas vezes, e chegaram a ir juntos ao teatro. Oliveira abriu até um capítulo de confidências com ela, não amorosas, é claro, mas de sensações, de impressões, de cogitações. Um dia, disse-lhe que, em pequeno, tivera desejo de ser frade; mas, levado ao teatro, e assistindo à comédia do Pena, O noviço*, o espetáculo do menino, vestido de frade, e correndo pela sala, a bradar: "eu quero ser frade! Eu quero ser frade!" fez-lhe perder todo o gosto da profissão.

- Achei que não podia vestir um hábito assim profanado.

- Profanado, como? O hábito não tinha culpa.

- Não tinha culpa, é verdade; mas eu era criança, não podia vencer essa impressão infantil. E parece que foi bom.

- Quer dizer que não seria bom frade?

- Podia ser que fosse sofrível; mas eu quisera sê-lo excelente.

- Quem sabe?

- Não; dei-me tão bem com a vida do foro, com esta chicana da advocacia, que não é provável tivesse a vocação contemplativa tão perfeita como quisera. Há só um caso em que eu acabaria num convento.

- Qual?

Oliveira hesitou um instante.

- Se enviuvasse - respondeu.

Genoveva, que sorria, aguardando a resposta, fez-se rapidamente séria, e não retorquiu. Oliveira não acrescentou nada, e a conversa naquele dia acabou menos expressiva que das outras vezes. Posto que tivesse o sono pronto, Genoveva não dormiu logo que se deitou; ao contrário, ouviu dar meia-noite, e esteve ainda muito tempo acordada.

Na manhã seguinte, a primeira coisa em que pensou foi justamente na conversação da véspera, isto é, naquela última palavra de Oliveira. Que havia nela? Aparentemente, pouco; e pode ser que, na realidade, ainda menos. Era um sentimento de homem que não admitia o mundo, depois de roto o consórcio; e iria refugiar-se na solidão e na religião. Confessemos que não basta para explicar a preocupação da nossa viúva. A viúva, entretanto, não viveu de outra coisa, durante esse dia, salvo o almoço e o jantar, que ainda assim foram quase silenciosos.

- Estou com dor de cabeça - respondeu à mãe, para explicar as suas poucas palavras.

- Toma aspirina.

- Não, isto passa.

E não passava. Se enviuvasse, ele iria meter-se em um convento, pensava Genoveva; logo, era uma censura a ela, por não ter feito o mesmo. Mas que razão havia para desejá-la recolhida a um mosteiro? Pergunta torta; parece que a pergunta direita seria outra: "Que razão haveria para não desejá-la recolhida a um mosteiro?" Mas se não era direita, era natural, e o natural é muitas vezes torto. Pode ser até que, bem exprimidas as primeiras palavras, deixem o sentido das segundas; mas eu não faço aqui psicologia, narro apenas.

Atrás daquele pensamento, veio outro mui diverso. Talvez que ele tivesse tido alguma paixão, tão forte, que, se casasse e enviuvasse... E por que não a teria ainda agora? Pode ser que amasse a alguém, que pretendesse casar, e que, se acaso perdesse a mulher amada, fugisse ao mundo para sempre. Confessara-lhe isto, como usava fazer a outros respeitos, como lhe confessava opiniões, que dizia não repetir a ninguém mais. Essa explicação, posto que natural, atordoou Genoveva ainda mais que a primeira.

- Afinal, que tenho eu com isto? Faz muito bem.

Passou mal a noite. No dia seguinte foi com a mãe fazer compras à rua do Ouvidor*, demorando-se muito, sem saber por quê, e olhando para todos os lados, sempre que saía de uma loja. Passando por um grupo estremeceu e olhou para as pessoas que falavam, mas não conheceu nenhuma. Tinha ouvido, entretanto, a voz de Oliveira. Há vozes parecidas com outras, que enganam muito, ainda quando a gente vai distraída. Há também ouvidos mal educados.

A declaração de Oliveira de que entraria para um convento, se chegasse a enviuvar, não saía da cabeça de Genoveva. Passaram-se alguns dias sem ver o advogado. Uma noite, depois de cuidar no caso, Genoveva olhou para o retrato do marido antes de deitar-se; repetiu a ação no dia seguinte, e o costume dos primeiros tempos da viuvez tornou a ser o de todas as noites. De uma vez, mal adormecera, teve um sonho extraordinário.

Apareceu-lhe o marido, vestido de preto, como se enterrara, e pôs-lhe a mão na cabeça. Estavam em um lugar que não era bem sala nem bem rua, uma coisa intermédia, vaga, sem contornos definidos. O principal do sonho era o finado, cara pálida, mãos pálidas, olhos vivos, é certo, mas de uma tristeza de morte.

- Genoveva! - disse-lhe ele.

- Nhonhô! - murmurou ela.

- Para que me perturbas a vida da morte, o sono da eternidade?

- Como assim?

- Genoveva, tu esqueceste-me.

- Eu?

- Tu amas a outro.

Genoveva negou com a mão.

- Nem ousas falar - observou o defunto.

- Não, não amo - acudiu ela.

Nhonhô afastou-se um pouco, olhou para a antiga esposa, abanou a cabeça incredulamente, e cruzou os braços. Genoveva não podia fitá-lo.

- Levanta os olhos, Genoveva.

Genoveva obedeceu.

- Ainda me amas?

- Oh! Ainda! - exclamou Genoveva.

- Apesar de morto, esquecido dos homens, hóspede dos vermes?

- Apesar de tudo!

- Bem, Genoveva; não te quero forçar a nada, mas se é verdade que ainda me amas, não conspurques o teu amor com as carícias de outro homem.

- Sim.

- Juras?

- Juro.

O finado estendeu-lhe as mãos, e pegou nas dela; depois, enlaçando-a pela cintura, começou uma valsa rápida e lúgubre, giro de loucos, em que Genoveva não podia fitar nada. O espaço já não era sala, nem rua, nem sequer praça; era um campo que se alargava a cada giro dos dois, por modo que, quando estes pararam, Genoveva achou-se em uma vasta planície, semelhante a um mar sem praias; circulou os olhos, a terra pegava com o céu por todos os lados. Quis gritar; mas sentiu na boca a mão fria do marido, que lhe dizia:

- Juras ainda?

- Juro - respondeu Genoveva.

Nhonhô tornou a pegar-lhe da cintura, a valsa recomeçou, com a mesma vertigem de giros, mas com o fenômeno contrário, em relação ao espaço. O horizonte estreitou-se a mais e mais, até que eles se acharam numa simples sala, com este apêndice: uma essa e um caixão aberto. O defunto parou, trepou ao caixão, meteu-se nele, e fechou-o; antes de fechado, Genoveva viu a mão do defunto, que lhe dizia adeus. Soltou um grito e acordou.

Parece que, antes do grito final, soltara outros de angústia, porque quando acordou, viu já ao pé da cama uma preta da casa.

- Que foi, Nanhã?

- Um pesadelo. Eu disse alguma coisa? Falei? Gritei?

- Nanhã gritou duas vezes, e agora outra vez.

- Mas foram palavras?

- Não, senhora; gritou só.

Genoveva não pôde dormir o resto da noite. Sobre a manhã chegou a conciliar o sono, mas este foi interrompido e curto.

Não referiu à mãe os pormenores do sonho; disse só que tivera um pesadelo. De si para si, aceitou aquela visão do marido e as suas palavras como determinativas do seu proceder. Ao demais, jurara, e este vínculo era indestrutível. Examinando a consciência, reconheceu que estava prestes a amar a Oliveira, e que a notícia desta afeição, ainda mal expressa, tinha chegado ao mundo onde vivia o marido. Ela cria em sonhos; tinha para si que eles eram avisos, consolações e castigos. Havia-os sem valor, sonhos de brincadeira; e ainda esses podiam ter alguma significação. Estava dito; acabaria com aquele princípio de qualquer coisa que Oliveira conseguira inspirar-lhe e tendia a crescer.

Na seguinte noite, Genoveva despediu-se do retrato do marido, rezou por ele, e meteu-se na cama com receio. Custou-lhe dormir, mas afinal o sono fechou-lhe os lindos olhos e a alma acordou sem ter sonhado nada, nem mal nem bem; acordou com a luz do sol que lhe entrava pelas portas das janelas.

Oliveira deixara de ir ali uma semana. Genoveva espantou-se da ausência; a mãe quis ir à casa dele saber se era alguma doença, mas a filha tirou-lhe a ideia da cabeça. No princípio da outra semana, apareceu ele com a mãe, tinha tido um resfriamento que o reteve na cama três dias.

- Eu não disse? - acudiu a mãe de Genoveva -. Eu disse que havia de ser negócio de doença, porque o doutor não deixa de vir tanto tempo...

- E a senhora não acreditou? - perguntou Oliveira à linda viúva

- Confesso que não.

- Pensa, como minha mãe, que sou invulnerável.

Sucederam-se as visitas entre as duas casas, mas nenhum incidente veio perturbar a resolução em que estava Genoveva de cortar inteiramente quaisquer esperanças que pudesse haver dado ao advogado. Oliveira era ainda o mesmo homem respeitoso. Passaram-se algumas semanas. Um dia, Genoveva ouviu dizer que Oliveira ia casar.

- Não é possível - disse ela à amiga que lhe deu a notícia.

- Não é possível, por quê? - acudiu a outra -. Vai casar com a filha de um comerciante inglês, um Stanley. Todos sabem disto.

- Enfim, como eu pouco saio...

Justifiquemos a viúva. Não lhe parecia possível, porque ele visitava-as com tal frequência, que não se podia crer em casamento tratado. Quando visitaria a noiva? Apesar da razão, Genoveva sentia que podia ser assim mesmo. Talvez o futuro sogro fosse algum esquisitão, que não admitisse a visita de todas as noites. Notou que, a par disto, Oliveira era desigual com ela; tinha dias e dias de indiferença, depois lá vinha um olhar, uma palavra, um dito, um aperto de mão... Os apertos de mão eram o sinal mais frequente: tanto que ela sentia alguma falta no dia em que ele era frouxo, e esperava o dia seguinte para ver se era mais forte. Lançava estas curiosidades à conta da vaidade. Vaidade de mulher bonita, dizia a si mesma.

Daquela vez, porém, esperou-o com certa ânsia, e fez-lhe bem o aperto de mão com que ele a saudou na sala. Arrependera-se de não ter contado à mãe a notícia do casamento, para que esta perguntasse ao advogado; e, não se podendo ter, falou ela mesma.

- Eu, minha senhora?

Genoveva continuou sorrindo.

- Sim, senhor.

- Há de ser outro Oliveira, também advogado, que está realmente para casar este mês. Eu não me casarei nunca.

Naquela noite, Genoveva, ao deitar-se, olhou ternamente para o retrato do finado marido, rezou-lhe dobrado, e tarde dormiu, com medo de outra valsa; mas acordou sem sonhos.

Que poderá haver entre uma viúva que promete ao finado esposo, em sonhos, não contrair segundas núpcias, e um advogado que declara, em conversação, que jamais se casará? Parece que nada ou muito; mas é que o leitor não sabe ainda que este Oliveira tem por plano não saltar o barranco sem que ela lhe estenda as duas mãos, posto que a adore, como dizem todos os enamorados. A última declaração teve por fim dar um grande golpe, por modo que a desafiasse a desmentir-se. E pareceu-lhe, ao sair, que algum efeito produzira, visto que a mão de Genoveva tremia um pouco, muito pouco, e que a ponta dos dedos... Não, aqui foi ilusão; os dedos dela não lhe fizeram nada.

Notem bem que eu não tenho culpa destas histórias enfadonhas de dedos e contradedos, e palavras sem sentido, outras meio inclinadas, outras claras, obscuras; menos ainda dos planos de um e das promessas de outro. Eu, se pudesse, logo no segundo dia tinha pegado em ambos, ligava-lhes as mãos, e dizia-lhes: casem-se. E passava a contar outras histórias menos monótonas. Mas as pessoas são estas; é preciso aceitá-las assim mesmo.

Passaram-se dias, uma, duas, três semanas, sem incidente maior. Oliveira parecia deixar a estratégia de Fábio Cunctator*. Um dia declarou francamente à viúva que a amava; era um sábado, em casa dela, antes de jantar, enquanto as duas mães os tinham deixado sós. Genoveva abria as folhas de um romance francês, que Oliveira lhe trouxera. Ele fitava pela centésima vez uma aquarela, pendurada no trecho de parede que ficava entre duas janelas. Bem ouvia a faca de marfim rasgando as folhas espessas do livro*, e o silêncio deixado pelas duas senhoras que tinham deixado a sala; mas não voltava a cabeça nem baixava os olhos. Baixou-os de repente, e voltou-os para a viúva. Ela sentia-os, e, para dizer alguma coisa:

- Sabe se é bonito o romance? - perguntou, parando de rasgar as folhas.

- Dizem-me que sim.

Oliveira foi sentar-se em um puf, que estava ao pé do sofá, e fitou as mãos de Genoveva, pousadas sobre o livro aberto, mas as mãos continuaram o seu ofício para escapar à admiração do homem, como, se cortando as folhas, fossem menos admiráveis que paradas. Alongou-se o silêncio, um silêncio constrangido - que Genoveva quisera romper, sem achar modo nem ocasião. Pela sua parte, Oliveira tinha ímpetos de lhe dizer subitamente o resto do que ela devia saber pelos últimos dias; mas não cedia aos ímpetos, e acabou trivialmente elogiando-lhe as mãos. Não valia a pena tanto trabalho para acabar assim. Ele, porém, vexado da situação, pôs toda a alma na boca e perguntou à viúva se desejava ser sua esposa.

Desta vez, as mãos pararam sem plano. Genoveva, confusa, pregou os olhos no livro, e o silêncio entre os dois fez-se mais longo e profundo. Oliveira olhava para ela; via-lhe as pálpebras caídas e a respiração curta. Que palavra estaria dentro dela? Hesitava pelo vexame de dizer que sim? Ou pelo aborrecimento de dizer que não? Oliveira tinha razões para crer na primeira hipótese. Os últimos dias foram de acordo tácito, de consentimento prévio. Entretanto, a palavra não saía; e a memória do sonho veio complicar a situação. Genoveva recordou-se da penosa e triste valsa, da promessa e do féretro, e empalideceu. Nisto foram interrompidos pelas duas senhoras, que voltaram à sala.

O jantar foi menos animado que de costume. De noite, vieram algumas pessoas, e a situação piorou. Separaram-se sem resposta. A manhã seguinte foi cheia de tédio para Genoveva, um tédio temperado com alegria que bem fazia adivinhar o estado da alma da moça. Oliveira não apareceu nesse dia; mas, veio no outro, à noite. A resposta que ela lhe deu não podia ser mais decisiva, ainda que trêmula e murmurada.

Há aqui um repertório de pequenas coisas infinitas, que não pode entrar em um simples conto nem ainda em longo romance; não teria graça escrito. Sabe-se o que sucede desde a aceitação de um noivo até o casamento. O que se não sabe, porém, é o que aconteceu com esta nossa amiga, dias antes de casar. É o que se vai ler para acabar.

Desde duas semanas antes da pergunta de Oliveira, a viúva deitava-se sem olhar para o retrato do finado marido. Logo depois da resposta, olhava-o algumas vezes, de soslaio, até que tornou ao anterior costume. Ora, uma noite, quatro dias antes de casar, como houvesse pensado no sonho da valsa e na promessa não cumprida, deitou-se com medo e só dormiu sobre a madrugada. Nada lhe sucedeu; mas, na segunda noite, teve um sonho extraordinário.

Não era a valsa do outro sonho, posto que, ao longe, na penumbra, via uns contornos cinzentos de vultos que andavam à roda. Viu, porém, o marido, a princípio severo, depois triste, perguntando-lhe como é que se esquecera da promessa. Genoveva não respondeu nada; tinha a boca tapada por um carrasco, que era não menos que Oliveira.

- Responde, Genoveva!

- Ah! Ah!

- Tu esqueceste tudo. Estás condenada ao inferno!

Uma língua de fogo lambeu a parte do céu que se conservava azul, porque todo o resto era um amontoado de nuvens carregadas de tempestade. Do meio delas saiu um vento furioso, que pegou da moça, do defunto marido e do noivo e os levou por uma estrada fora, estreita, lamacenta, cheia de cobras.

- O inferno! Sim! O inferno!

E o carrasco tapava-lhe a boca, e ela mal podia gemer uns gritos abafados.

- Ah! Ah!

Parou o vento, as cobras ergueram-se do chão e dispersaram-se no ar, entrando cada uma pelo céu dentro; algumas ficaram com a cauda de fora. Genoveva sentiu-se livre; desaparecera o carrasco, e o defunto esposo, de pé, pôs-lhe a mão na cabeça, e disse com voz profética:

- Morrerás se casares!

Desapareceu tudo; Genoveva acordou; era dia. Ergueu-se trêmula; o susto foi passando, e mais tarde, ao cuidar do caso, dizia consigo: "São sonhos". Casou e não morreu.
____________________________
Notas:

Engenho Velho - O bairro do Engenho Velho se localiza na zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. No século XVIII, os jesuítas eram donos de uma grande propriedade, onde fundaram a Fazenda do Engenho Novo, produtora de cana-de-açúcar. Com a expulsão dos jesuítas das colônias portuguesas, ordenada pelo marquês de Pombal (1759), as terras foram leiloadas e divididas em três partes: Engenho Velho, Engenho Novo e São Cristóvão. O Engenho Velho, cujo ponto central era a matriz de São Francisco Xavier, até hoje no mesmo local, deu origem ao atual bairro da Tijuca.

Jockey Club - era o nome de uma fragrância produzida pela perfumaria de Jean-Baptiste Rigaud, estabelecida em Paris em 1852.

O Noviço - Trata-se de uma comédia escrita por Martins Pena (1815-1848) em 1845. Foi apresentada pela primeira vez no Teatro de São Pedro, em agosto do mesmo ano e publicada em livro em 1853. Na peça, o vilão Ambrósio casa com Florência por interesse, e, por isso, tenta internar os dois filhos da esposa num convento, para poder ficar com toda a fortuna desta.

Rua do Ouvidor - A rua do Ouvidor, principal rua comercial do Rio de Janeiro no século XIX (e em boa parte do século XX), ia do mar ao largo de São Francisco. Hoje seu início está afastado do mar, devido a sucessivos aterros. Nela ficavam as lojas elegantes da época, como charutarias, sapatarias, joalherias, lojas de roupas etc., assim como a sede do Jornal do Commercio, da Gazeta de Notícias e de outros periódicos. Nela situava-se também a livraria Garnier, casa editora de grande parte da obra de Machado de Assis e ponto de encontro da intelectualidade nas últimas décadas do século XIX.

Fábio Cunctator - Quinto Fábio Máximo (275 a.C.- 203 a. C.) foi um político e militar romano, nomeado cônsul em cinco ocasiões. A sua alcunha, Cunctator, significa "o que adia" em latim, e faz referência às suas táticas utilizadas durante a Segunda Guerra Púnica para deter Aníbal.

Faca de marfim rasgando as folhas espessas do livro - Antigamente (até meados do século XX), os livros eram impressos em folhas, que eram dobradas ao meio, resultando cadernos com quatro páginas, que o primeiro leitor de uma obra precisava abrir (ou "rasgar"), com facas ou espátulas de marfim, prata ou outro material resistente, para poder ler o que estava impresso em cada página.

Fonte:
Machado de Assis. Obra completa. Outros Contos - Fase 10 (1893-1907).

segunda-feira, 29 de abril de 2019

Edy Soares (Jardim de Trovas)


Ah, mas que espirro maldito,
que me deixou avexado.
Além de forçar um grito,
ainda veio acompanhado!

A memória enfraquecida,
a fronte calva, a bengala,
mostra no ciclo da vida
o velho que o neto embala. 

A morte, visita chata,
desprezível,  deprimente
vem sorrateira,  arrebata,
levando a vida da gente.

A mulher, pura beleza...
foi feita a partir de um osso,
mas a sogra, com certeza...
da carne de algum pescoço.

Ao deparar com a cena
de uma boa escorregada,
confesso que tenho pena,
mas não seguro a risada.

A trapaça é artifício
do covarde sem pudor,
que sem nenhum sacrifício
quer se fazer vencedor.

Cabisbaixo pelos cantos
me pego pensando em ti.
Pai, o maior dos meus prantos,
é saber que te perdi.

Cada mulher preparando
em seu ventre uma criança,
é o mundo se renovando,
é Deus nos dando esperança.

Com o planeta por um fio,
tanta gente a desmatar.
Queira Deus que algum plantio,
seja feito no lugar.

Da semente, a nova planta;
 da planta, a semente e o pão.
Do pão, a vida que encanta,
 que planta e cultiva o chão.

Deixemos de lado o orgulho,
pois nobre é o dom do perdão;
rancor guardado é entulho,
que adoece o coração.

- Era profunda a raiz!
Disse o dentista ao cliente,
ao perceber que o nariz
saiu agarrado ao dente.

Esse meu corpo curvado,
feito quem reverencia,
já dá sinais de cansado
e agradece mais um dia!

Este amor que me oferece,
sinto – já não me convence.
Meu coração não merece,
pois a outro já pertence.

É uma agressão desumana,
uma falta de respeito...
Num país com tanta grana,
hospitais faltando leito.

Eu... você... as confidências...
Que pena que o tempo passa!
Hoje vivo de aparências
e a vida já não tem graça...

Há que se enxergar o amor
em cada olhar, cada canto.
E perceber que onde for,
todo olhar tem seu encanto.

Meu Noel é de dar dó...
Nesta crise, veio a pé,
sem renas e sem trenó...
E entalou na chaminé!

Necessita ser “curado”,
todo aquele que imagina,
que quando estiver errado,
compra o certo com propina.

Nunca vi trova sem rima,
macaco enjeitar banana;
nunca vi chover pra cima.
nem político sem grana.

O chato que mais me irrita
e que mais me funde a cuca...
é aquela pessoa aflita,
que enquanto fala, cutuca.

Os olhos as vezes falam
mais que palavras em vão;
silentes as bocas calam
enquanto amando se dão.

Por egoísmo e ganância
a Terra está dividida.
Tanto poder e arrogância,
ante a pobreza sofrida.

Por se valer da trapaça,
ás vezes quem trapaceia,
por mais esforço que faça,
se enreda na própria teia.

Qualquer tipo de trapaça,
será sempre repugnante.
Mesmo que vencedor, faça...
Não fará mais que um farsante!

Quando saio em devaneios,
navegando em pensamentos,
cruzo bravos mares cheios,
velejo em grandes tormentos.

Quer, ricos ou indigentes,
todos são filhos de Deus;
sejam mansos ou valentes,
sejam nobres ou plebeus.

Refletia a luz da lua,
o orvalho da noite fria;
sobre o menino de rua,
que na calçada dormia. 

Sem o amor do jardineiro,
o que seria da flor?...
Rosas não teriam cheiro,
jardins não teriam cor!...

Sempre achei que o céu é aqui,
à sombra dessa palmeira...
escutando o bem-te-vi,
no meu banco de madeira.

Se não posso  amar a Bela
ou tê-la aqui junto a mim,
ainda sim, sonho com ela
entre as flores, no jardim.

Sete vidas eu tivesse
ou talvez, setenta mil,
quantas vidas Deus me desse...
Que elas fossem no Brasil...

Supera tristeza e dor,
quem na vida por batalhas,
aprende ser vencedor,
sem contentar com migalhas.

Terra molhada no cio,
pronta, esperando a semente
das mãos que fazem plantio...
Tal qual amada nubente.

Trago essa grande saudade,
longe, no peito que dói,
por amor a essa cidade...
Por amar-te Niterói. 

- “Três dias de penitencia”,
pede o padre ao confessado.
- "Pode dobrar a exigência,
vou repetir o pecado!"

Velhas fotos no monóculo,
na gaveta de uma estante...
É como ver de binóculo,
um tempo já bem distante.

Vi sumir ao longe o trem.
Levou, chorando, Maria.
Na estação fiquei também
chorando porque a perdia.

Fonte:
Revista Florilégio de Trovas n. 30 - 29 de abril de 2019.

Arthur de Azevedo (As Paradas)


O Norberto, que a princípio aceitou com entusiasmo as paradas dos bondes de Botafogo, é hoje o maior inimigo delas. Querem saber por quê? Eu lhes conto:

O pobre rapaz encontrou uma noite, na Exposição, a mulher mais bela e mais fascinante que os seus olhos ainda viram, e essa mulher – oh, felicidade!… oh, ventura!… -, essa mulher sorriu-lhe meigamente e com um doce olhar convidou-o a acompanhá-la.

O Norberto não esperou repetição do convite: acompanhou-a.

Ela desceu a Avenida dos Pavilhões, encaminhou-se para o portão, e saiu como quem ia tomar o bonde; ele seguiu-a, mas estava tanto povo a sair, que a perdeu de vista.

Desesperado, correu para os bondes, que uns seis ou sete havia prontos a partir, e subiu a todos os estribos, procurando em vão com os olhos esbugalhados a formosa desconhecida.

– Provavelmente foi de carro, pensou o Norberto, que logo se pôs a caminho de casa.

Deitou-se mas não pôde conciliar o sono: a imagem daquela mulher não lhe saía da mente. Rompia a aurora quando conseguiu adormecer para sonhar com ela, e no dia seguinte não se passou um minuto sem que pensasse naquele feliz encontro.

Daí por diante foi um martírio. O desditoso namorado começou a emagrecer, muito admirado de que lhe causassem tais efeitos um simples olhar e um simples sorriso.

Passaram-se alguns dias e cada vez mais crescia aquele amor singular, quando uma tarde – oh, que ventura!… oh, que felicidade!… -, uma tarde passeando no Catete, o Norberto vê, num bonde das Laranjeiras, a dama da Exposição. Ela não o viu.

O pobre-diabo fez sinal ao condutor para parar, mas por fatalidade o poste da parada estava muito longe e o bonde não parou. E não haver ali à mão um tílburi, uma caleça, um automóvel!…

O Norberto deitou a correr atrás do bonde, mas só conseguiu esfalfar-se. Que pernas humanas haverá tão rápidas como a eletricidade?

Esse novo encontro acendeu mais viva chama no peito do Norberto, e não tiveram conta os passeios que ele deu do Largo do Machado às Águas Férreas, na esperança de ver a sua amada e falar-lhe.

Oito dias depois, o Norberto percorria de bonde, pela centésima vez, as Laranjeiras, quando, nas alturas do Instituto Pasteur, viu passar – oh, felicidade!… oh, ventura!… -, viu passar na rua a mulher que tanto o sobressaltava.

– Pare! pare!… gritou ele ao condutor.

– Aqui não posso; vamos ao poste de parada!

O Norberto quis descer, mas a rapidez com que o bonde rodava era tamanha, que não se atreveu.

Chegando ao poste de parada, ele atirou-se à rua, e deitou a correr para o lugar onde vira a mulher, mas, onde estava ela? Tinha desaparecido!.

Aí está por que o Norberto é hoje o maior inimigo das paradas.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

Vinicius de Morais (Caxambu Les Eaux)


Depois de uma temporada como a que tive no Zum-Zum, nada melhor que esta moleza, este vago tédio em que me encontro, específicos de uma estação de águas. Cheguei, além do mais, asilando uma gripe que se não é a "russa", anda por perto. Estou derreado. Servem-me as águas a domicílio, numa garrafa vestida de uma linda fantasia de palhinha, um negócio para o baile do Municipal: eu, astênico, vagotônico, no fundo feliz de me sentir de novo disponível. Cai-me bem, de quando em quando, uma doença. É, não só, de certo modo, um treino para a morte, como um grande pretexto para a meditação. O tempo, que se faz tão rápido nesta minha quadra da existência, como que se relaxa. Fica tudo mais sensível, mais acústico. Esse binômio "gripe e estação de águas" é muita felicidade junta. Sinto que me recuperarei de modo total, e com muita sabedoria.

E uma certa tristeza.
*

Tenho figos no quarto. Se acordo de madrugada e sinto fome, como um figo. Ou chupo, em solo mineiro, uvas paulistas, tal um herói de Kazantzakis. E antes de voltar à cama, e aos braços de mme. de Rênal, com quem na pele de Julien Sorel, traio a minha bem-amada, ainda respiro à janela o ar das Alterosas. Em que país, fosse mesmo escandinavo, poderia eu ver três senhorazinhas encantadas passarem pela rua, às duas da manhã, tremulando valsas em bandolins afinadíssimos? Em que ficção, fosse mesmo japonesa, poderia eu ler uma cena destas? Ó prosadores destas Minas que sois amigos meus: por que me ocultastes isto tanto tempo?

*
Hoje fui ao parque: melhor dizer Parque, assim com maiúscula. Passeei minha convalescença por entre outras senhorazinhas encantadas, mas desta vez encantadas de serem aquáticas, de estarem trafegando assim por entre a flora bem-comportada do jardim, parando para beber as águas e fazer uma fofoca rápida; senhorazinhas, algumas, ainda esperançosas, justiça lhes seja feita, a julgar pelas calças compridas que portam, mais justas que as da Mariazinha do Posto 5.

Bravo, senhoras minhas! Nada de entregar os pontos. Bebei na Fonte Duque de Saxe, lavai o rosto na da Beleza e os olhos com o colírio alcalino da Viotti. Em seguida, fazei massagens de duchas, e se necessário for, metei um Pitanguy. E em desespero de causa ide para o Jardim Botânico em dia de chegada de navio holandês. Há sempre um viúvo rico dos Países-Baixos correndo o mundo, disposto a negociar os dólares da própria solidão. Ora, o Jardim Botânico, para um flamengo, é atração turística obrigatória. Sentai-vos num banco com o vosso tricô e ao vê-lo que se aproxima, gordinho e rubicundo, pedi-lhe fogo. Se ele não fumar, isso já é assunto bastante para um passeio juntos. Não paga dez. À noite recebereis uma cesta de tulipas e um mês depois estareis em Amsterdã, dona de casa entre canais, tomando a vossa genebra bem gelada e nem lembrando mais deste país subletrado e subdesenvolvido. Eu tive uma prima idosa que casou assim: e ela era mais feia que a necessidade. Casou-se com um suíço. A linha é mais ou menos essa...

Ontem minha mulher foi assistir, no circo local, a uma pantomima sobre Caryl Chessmann, o famoso Bandido da Luz Vermelha, de Los Angeles, cuja execução na câmara de gás, há uns quatro anos, deixou o mundo em suspenso. Contou-me ela que, num determinado momento, a mulher do bandido vai visitá-lo na prisão e ao vê-lo pergunta-lhe, assim mesmo à gaúcha:

- Então, como vais?

Ao que Chessmann responde:

- Encarcerado, como vês...
*

Como existe esperança no mundo... Que beleza! É de ver o movimento que vai por estas fontes, mesmo agora, já um pouco fora de estação. Uma trançação constante, cada um com o seu copinho de plástico onde há escrito: "Lembrança de Caxambu." 

E as águas balsâmicas desengurgitam figados cirróticos, acordam vesículas preguiçosas, dissolvem litíases antigas. É a saúde! Uma esticada de mais dez anos, mais cinco, mais seis meses, mais um mês, mais 15 dias... - poxa! - mais uma semaninha só, tá?

A Velha da Prestação não tem outro jeito:

- Tá.
*

Mas ao vê-la sentada lá no alto do outeiro, com o maxilar apoiado nas falanges, numa atitude de Pensador de Rodin a gente sente que a Morte está chateada da vida. Assim não é vantagem, com essas águas... E ela fica, pensando que não há nada como se ter dinheiro.

O que ainda lhe vale é que para a paisanada local, pobre e mal nutrida, a carência de iodo nas águas da região é bócio certo. De qualquer modo, para ela não deixa de ser uma esperança...

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.

domingo, 28 de abril de 2019

Antonio Juraci Siqueira (Quando um burro fala...)


Senhoras e senhores,

Quero alertá-los, neste momento, que se de grão em grão a galinha enche o papo, não é menos verdade que macaco velho não mete mão em cumbuca e cobra que não anda não engole sapo. Afinal, está confirmado que a cavalo dado não se olha os dentes do mesmo modo que mais vale um pássaro na mão do que dois voando. Por conta disso pode-se afirmar que cão que ladra não morde e uma andorinha só não faz verão. Partindo desse pressuposto, matar a cobra e mostrar o pau é recurso utilizado até hoje por gregos e troianos. Sabendo que a maré não está pra peixe e que tem muita gente matando cachorro a grito e chamando urubu de meu louro, pode-se concluir que água mole em pedra dura tanto bate até que fura, pois como disse o sábio, se correr o bicho pega, se ficar, o bicho come. Mas é importante frisar que burro preso também pasta e pé de galinha não mata pinto sem esquecer, porém, que macaco que muito pula, quer chumbo.

Sei que nesse momento os senhores devem estar com a pulga atrás da orelha, pensando na morte da bezerra. Mas é bom lembra-los que pensando morreu um burro e por ser apressado o porco nasceu com o culhão pra trás. Mesmo sabendo que afirmações do tipo: quem não tem cão caça com gato e onde a vaca vai o boi vai atrás têm sido recebidas com reservas, ainda assim é possível matar dois coelhos com uma só cajadada. Mas é aí que a porca torce o rabo, pois em casa de ferreiro o espeto é de pau. Isso posto, permitam-me abrir um parêntesis para reafirmar este importante axioma: se um elefante incomoda muita gente, dois elefantes incomodam muito mais!

Certo de não estar atirando pérolas aos porcos, aproveito para adverti-los que quando a esmola é grande, o santo desconfia. E mesmo  sem querer bancar o amigo da onça, alongando-me demais, se faz necessário concluir este pronunciamento com clareza para não deixa-los mais perdidos que cego em tiroteio. E para não levarem gato por lebre, é bom abrirem os olhos pois siri que dorme, a onda leva. Eu sei que o peixe morre pela boca mas sei, também, que quando um burro fala, o outro murcha a orelha.

Como já está chegando a hora da onça beber água, cheguei à conclusão de que em boca fechada não entra mosca, por isso despeço-me na certeza de que os cães ladram e a caravana passa e quando o gato sai, os ratos fazem a festa.

E tenho dito!

Fonte:
http://blogdobotojuraci.com

Antonio Juraci Siqueira (Fábula em Versos)


Num grande tonel de vinho
um rato um dia caiu
e, por não saber nadar,
vinho à beça ele engoliu.
Gritou pedindo socorro:
– Me acudam senão eu morro!
De pronto um gato acudiu.

O ratinho ao ver o gato
falou: – Não posso escolher;
me tira logo daqui,
depois podes me comer.
Prefiro ser agarrado
por ti e ser devorado
do que afogado morrer.

O gato, mais que depressa
do vinho o rato tirou
e este, assim que pôs-se a salvo,
para o gato nem olhou
e sem dar touca ou bandeira,
deu uma incrível carreira
e dentro da toca entrou.

O gato gritou, possesso,
ao ver o rato correr:
– Eu só te salvei do vinho
depois de te ouvir fazer
uma proposta decente
que se salvo, calmamente
deixarias eu te comer.

Grita o rato do buraco
com a maior cara-de-pau:
– Eu só podia estar bêbado
pra fazer proposta tal.
E o gato, desconsolado,
por ser otário ao quadrado,
acabou se dando mal.

Que a história sirva de exemplo
a quem vive dando bola
à qualquer papo-furado,
pois, se é muito grande a esmola,
desconfie e ouça o que digo:
se a proposta é de inimigo,
aí mesmo é que não cola!

Fonte:
http://blogdobotojuraci.com

Camilo Castelo Branco (O Arrependimento)


Em tempos da minha mocidade costumava visitar a miúdo uma boa velha, minha vizinha, que me honrava com a sua estima e amizade. Humildemente confesso que não há sociedade mais deleitosa e agradável, do que a de uma mulher que soube envelhecer. A sua conversação instrutiva e divertida, é um inesgotável tesouro de lembranças, anedotas, observações chistosas e reflexões circunspectas, é finalmente uma revista do passado.

D. Mafalda, deixem-me assim chamar-lhe, juntava à amenidade da conversa, a do caráter, que era brando e indulgente.

Quando tinha ocasião de ir passar uma noite com ela, parecia-me que as horas voavam ligeiras e que corriam mais rápidas, do que quando as gastava a distribuir finezas e galanteios às mais formosas rainhas dos mais brilhantes salões. Era sempre com vivo pesar que a via apontar para o relógio, indicando-me que a hora de me retirar tinha chegado, e voltava a minha casa com o espírito mais rico, e o coração satisfeito e melhor.

A historia que vou contar-vos, minhas caras leitoras, foi-me dita por D. Mafalda num destes serões em que vos falei.

Era numa bela noite de Junho; fui encontra-la sentada na sua cadeira à Voltaire, tendo aos seus pés, deitado num coxim, o seu cãozinho querido; os olhos tinha-os semi-abertos, um sorriso nos lábios, e parecia respirar com prazer a aragem, que, embalsamada pelas flores do jardim, se coava pela janela meia aberta. Quando cheguei junto dela vinha indignado porque um dos meus parentes tinha sido vitima de um abuso de confiança; contei-lhe o sucedido, e no calor da narração não poupei ao culpado as maiores imprecações, nem deixei de lhe dizer que desejava fazer-lhe todo o mal possível.

— Devagar, meu querido amigo-me disse ela - não o julgava tão irascível, nem que tivesse tão pouca caridade para com o próximo. Sabe lá, se, com a vida, não tiraria ao culpado o mérito de para o futuro se poder reabilitar pelo arrependimento, e se o momento em que lhe infringisse o castigo não seria o destinado por Deus para esse arrependimento?

— Eis aí, minha cara vizinha, uma doutrina, permita-me a expressão, um pouco subversiva da ordem social.

— Deus me defenda — replicou-me — de querer que o culpado não seja castigado, e que a sociedade fique indefesa dos crimes que um seu membro praticou contra ela; quis dizer somente que devia deixar ás leis o cuidado de castigar o delinquente, e que o meu querido amigo, não devia, como indivíduo, fechar assim desapiedadamente o coração a todo o sentimento de comiseração por um desgraçado e infeliz, no coração do qual talvez ainda bruxuleei algum clarão de virtude, que uma ocasião favorável e propicia, que se apresente, ainda pode despertar, e fazer com que esse membro da sociedade, que julga inútil, se torne bom e aproveitável.

Como eu respondesse a isto, fazendo um destes movimentos de cabeça, que são um protesto mudo e respeitoso, ela acrescentou:

— Está com paciência para me aturar ouvindo uma historia, pois que ainda temos algumas horas?

Não recusei: uma historia era uma fortuna para combater a exaltação de espírito em que estava. D. Mafalda começou assim:

— Emílio da Cunha era o mais velho de três irmãos, dos quais, o mais novo, vivia há muitos anos no Rio de Janeiro, onde tinha alcançado fortuna. O segundo nunca deixou o Porto, sendo sempre infeliz nos seus cometimentos e especulações. Emílio da Cunha, à custa de muito trabalho e economias, pôde alcançar uma fortunazinha, que lhe permitia esperar com sossego, o momento de descansar da vida laboriosa em que tinha vivido. Uma quarta pessoa completava esta família, que era uma irmã, que tendo seguido o seu marido à Índia, para onde ele tinha sido despachado, e não vindo nenhum deles a figurar nesta minha historia, não lhos recordarei mais. Aconteceu que o irmão de Emílio da Cunha, que residia no Porto, por uma destas catástrofes que ocasionam os jogos de bolsa, faliu. Teve tal sentimento por este fato, que faleceu três dias depois, atacado de uma febre cerebral. A herança, que deixou, foram dividas e um filho. Emílio da Cunha, que tinha um coração bondoso, e um caráter pudoroso, para que a memória do seu irmão não ficasse desonrada, comprometeu-se a pagar as dividas e recolheu na sua casa o filho para lhe substituir o pai, que tinha perdido; procedimento louvável, e digno de se admirar, sabendo-se que ele tinha uma filha, para quem, passados quatro ou cinco anos tinha a procurar um casamento vantajoso.

Roberto, se chamava o sobrinho de Emílio da Cunha, tinha já 15 anos de idade, mas o pai, inteiramente entregue ás especulações, e aos cuidados, que elas trazem consigo, descuidou completamente a sua educação, por isso o seu retrato moral, nesta ocasião, nada tinha de vantajoso; o espirito tinha-o completamente inculto; as noções que possuía do justo e do injusto eram as mais errôneas e disparatadas; o respeito aos direitos d'outrem era para ele uma invenção estúpida dos homens, condenada pela natureza, e a verdadeira liberdade consistia em fazer o mal impunemente. Se algum bom instinto, ou algum vislumbre de virtude, existia no coração de Roberto, ainda estava em embrião, porque se não tinha demonstrado. Quantas e quantas vezes, em quanto que o pai, cego pelas especulações, concentrava todas as suas faculdades intelectuais na realização de um impossível, não deixou Roberto de ir ao colégio, fazendo o que em termo escolar, se chama gazear, e gastava as horas de estudo em andar a vagabundear pelos campos e praças. Dai proveio o tomar relações com meia dúzia de garotos, ou vadios, permita-me a frase, para quem nada era sagrado nem nas ações, nem nas palavras. Dai nasceu a falta de respeito pela propriedade alheia, roubando os pomares; e o endurecimento de coração, castigando barbaramente animais inofensivos.

Emílio da Cunha reconheceu logo os maus instintos de que o seu sobrinho era dotado, e a desmoralização, que já se tinha infiltrado no seu coração, mas concebeu a esperança do regenerar com desvelos, paciência, e sobre tudo bons exemplos. A sua filha, a que chamarei Valentina, de 14 anos de idade, contribuiu poderosamente para a realização deste seu empenho, tão justo e louvável. Era uma menina para quem a natureza tinha sido pródiga em encantos de rosto, de espírito e coração, a ponto de qualquer que a via a admirar, e de quem a ouvia ama-la imediatamente. Tinha uma tal influencia, ou magia sobre os que se acercavam dela, que aos bons tornava-os melhores, e aos maus fazia-lhe retirar envergonhados para o fundo do coração os maus instintos. Esta magia não teve menos poder sobre Roberto, do que sobre os outros, de sorte que a regeneração que ele sofreu, nos seus costumes e ações, foi tão sensível, que o bondoso Emílio da Cunha revia-se alegre e contente na sua obra, e congratulava-se dos resultados que tinha colhido.

Deu-se porém uma circunstância feliz, mas que ao mesmo tempo foi desgraçada, que deteve Roberto repentinamente na boa estrada em que se tinha embrenhado, e na qual parecia caminhar resolutamente. Por uma carta chegada num dos paquetes ingleses do Brasil, soube Emílio da Cunha, que o seu irmão mais novo tinha falecido, deixando-o, por ele ser o seu mais próximo parente, herdeiro de uma fortuna considerável.

Bens rústicos, e estabelecimentos industriais é no que consistia a fortuna, dos quais se poderia colher bons lucros, sendo bem geridos, conforme o tinha praticado o seu defunto proprietário; mas Emílio da Cunha, além de se não julgar com conhecimentos e forças para bem gerir a indústria com que o seu irmão tinha feito fortuna, não tinha desejo, nem queria expatriar-se. Foi até com  imensa repugnância que se resolveu a ir ao Brasil tomar posse e liquidar a herança; parecia que um secreto pressentimento o avisava do que tinha de acontecer, levando-o a considerar como uma desgraça esta viagem, a que os sagrados direitos da sua predileta filha Valentina, o obrigavam a empreender. Partiu finalmente, depois de ter tomado todas as precauções para a tranquilidade do seu espírito. Valentina entrou num dos colégios de educação mais acreditados do Porto, e Roberto ficou numa casa particular, onde lhe deviam prestar todos os cuidados, que exigiam a sua idade, pois que já então tinha 17 anos, e a sua completa ignorância, de que até uma criança de 8 anos poderia zombar.

Emílio da Cunha aportou a salvamento ás terras de Santa Cruz, e logo que saltou em terra, desenvolveu a maior atividade, e procurou por todos os meios possíveis abreviar rapidamente os seus negócios, mas infelizmente os resultados não correspondiam aos seus esforços e desejos, porque de todos os lados, e a todos os momentos estavam sempre a surgir empecilhos e embaraços não prevenidos nem esperados. Havia já um ano que Emílio da Cunha tinha chegado ao Brasil, e ainda os seus negócios não estavam mais adiantados, que no primeiro dia.

Cansado, desanimado e afetado de melancolia, ou spleen, como lhe chamaria um nosso fiel aliado britânico, mortificado por um desassossego de que não podia explicar a causa, deliberou entregar os seus negócios e a liquidação e arrecadação da herança a um procurador, e embarcar-se no primeiro paquete, que seguisse viagem para Portugal.

Que se tinha porém passado no Porto, durante este tempo? É o que lhe vou contar, meu vizinho, se ainda tiver paciência para me ouvir, me disse D. Mafalda, e o que vou fazer ás minhas leitoras, se elas quiserem ter a mesma paciência de me ler. Roberto, separado da sua prima, aborrecido e dominado pela preguiça, fugiu um belo dia da casa onde se achava hospedado, foi procurar, e infelizmente encontrou, os seus antigos companheiros da vadiagem, que tinham quase todos seguido a estrada do vicio e do crime. Arrastaram portanto consigo o desventurado Roberto para esse despenhadeiro, na baixa do qual se encontra a escoria da sociedade.

Roberto tinha por companheiros habituais homens criminosos, de cara sinistra, maneiras brutais, linguagem grosseira e vestidos esfarrapados, numa palavra mendigos, ou ladrões. Adotou-lhe portanto os costumes as maneiras e as máximas, e quem o visse emagrecido pela devassidão, com os vestidos em desalinho, os cabelos eriçados, tomá-lo-ia por um bandido de trinta anos, quando ele não tinha mais que dezenove incompletos. Valentina, pelo contrario, tinha crescido em corpo, beleza, espírito, talento e virtudes.

Conduzi-o do Porto ao Rio de Janeiro, e do Rio de Janeiro ao Porto, agora, querendo-me seguir, levá-lo-ei a Lisboa, onde se passa um pequeno episódio desta muito verídica historia. De bordo de um paquete inglês, chegado dos portos do Brasil, tinha desembarcado um passageiro, que se dirigiu a um hotel para descansar, e aí passar até ao dia seguinte, em que devia seguir viagem para o Porto, na mala-posta, a fim de se vir unir aos seus filhos, que estava ansioso por abraçar e apertar contra o coração. Julgo desnecessário o dizer-lhe, pois me parece já o adivinhou, que este viajante era Emílio da Cunha, que se considerava feliz por pisar o solo da sua pátria, que tanto amava, e onde estava tudo o que ele mais prezava neste mundo. Logo que no hotel lhe prepararam o quarto e tomou uma pequena refeição, deitou-se e adormeceu, embalado por sonhos felizes. No dia seguinte ainda o sol mal tinha despontado, já subia pela escada do hotel e entrava no corredor comum, sobre o qual deitavam uma dúzia de portas de quartos, um homem de má catadura.

Era um destes cavalheiros de indústria, a qual consiste em entrar, sob qualquer pretexto, de manhã cedo nos hotéis, e aproveitar-se do primeiro quarto que encontram aberto para empalmarem destramente um relógio, ou uma mala, se o acordar do hospede ou locatário do quarto, os não obriga a retirar-se de mãos vazias, desculpando-se de que se tinham enganado na porta.

No andar, vacilante, e como desconfiado, do cavalheiro de indústria se reconhecia facilmente, que era um noviço, que ia tentar os seus primeiros ensaios, ou que ia fazer a sua primeira escamoteação. Depois de ter estado por bastante tempo em luta com a sua consciência, e irresoluto se devia ou não penetrar no quarto de que a porta se achava meia cerrada, meteu primeiro a cabeça, depois uma perna, e por último todo o corpo; mas fazendo algum ruído com este último movimento, o hóspede, que estava deitado, acordou, e virando rapidamente a cabeça, Roberto, porque o cavalheiro de indústria era ele, encarou o seu tio Emílio da Cunha. Ficou estupefacto e como fulminado por um raio.

Nesse mesmo dia de tarde Emílio da Cunha tomou lugar no caminho de ferro até ao Carregado, e aí na mala posta até ao Porto, onde trinta e seis horas depois se achava nos braços da sua querida filha Valentina, que imediatamente tinha ido procurar ao colégio.

— Tu sabes já, já do colégio, minha filha lhe diz Emílio da Cunha - para retomares, e nunca mais deixares, o teu lugar ao meu lado.

— Que felicidade - exclamou Valentina toda alegre e folgazã - que vida sossegada e feliz não vamos passar todos três, não é assim meu querido pai, porque Roberto também vai para a nossa companhia?

— Roberto, morreu - respondeu Emílio da Cunha com rosto severo, e voz soturna. — Não quero que me fales mais nele, entendes Valentina?

Valentina admirada da resposta, ainda fez diversas perguntas ao seu pai, mas a todas elas não obteve outra resposta, senão a completa proibição de nunca mais lhe falar em Roberto.

Ainda porém não tinha Emílio da Cunha sofrido todas as provações, que Deus lhe destinara. Tinham decorrido seis meses desde que tinha chegado do Rio de Janeiro, quando recebeu a participação de que o procurador, que ficara encarregado da liquidação e arrecadação da herança, tinha cumprido a sua missão, mas que, depois de ter arrecadado a soma importante, que produzira a mesma herança, tinha desaparecido, sem que as pesquisas feitas para se descobrir o lugar do seu refugio, tivessem dado o desejado resultado.

Emílio da Cunha ficou completamente arruinado por este facto, porque, impaciente por satisfazer os credores do seu irmão, pai de Roberto, tinha vendido tudo o que possuía em Portugal. O golpe foi forte, mas ainda assim não o foi bastante para poder subjugar a coragem do bom e respeitável velho, mostrando-se Valentina nesta conjuntura, digna filha de um tal pai. Renunciando heroicamente ás comodidades da vida, em que até então tinham vivido, foram habitar, num bairro mais afastado da cidade, uma pequena casa, na qual sofreram privações diárias e penosas, tratando sempre de obter alguns recursos para a sua subsistência, mesmo em trabalhos mal retribuídos.

Valentina, que Deus tinha dotado de bom gosto, e bastante habilidade, começou a trabalhar para uma modista, a qual satisfeita com os seus primeiros trabalhos, lhos deu em seguida mais delicados e por isso melhor retribuídos, o que foi para eles uma grande felicidade, e que assim lhes proporcionou meios lícitos de pagarem regularmente o seu aluguel, e de já não recearem tanto nem o frio, nem a fome.

Valentina ia entregar a sua obra à modista, a qual satisfeita com ela lhe dava sempre mais, e muitas vezes mais do que a que ela podia fazer. A uma crise terrível tinha-se seguido uma abastança medíocre, que era por isso uma felicidade mais agradável e estimada.

Decorreram assim dois anos.

Um dia, em que Valentina estava só, lhe entregou o carteiro uma carta, e qual não foi a sua surpresa quando reconheceu a letra do seu primo. Roberto contava nesta carta tudo o que tinha passado, desde o momento em que o vimos no hotel em Lisboa preparando-se para escamotear o seu tio. Fulminado pela vista de Emílio da Cunha tinha recobrado os sentidos para na fuga se salvar ás imprecações de indignação do velho. Chegou ofegante ao Terreiro do Paço, onde se sentou, ou melhor se deixou cair num dos assentos de pedra, que ali se acham, e assim esteve por muito tempo, com a cabeça escondida entre as mãos, mergulhado em acerbas e cruéis reflexões.

Experimentou ou sentiu dentro em si uma completa revolução; o seu procedimento indigno e infame se lhe apresentou em toda a sua nudez e hediondes; teve horror de si mesmo e por um instante pensou em suicidar-se; mas com o arrependimento entraram-lhe no coração sentimentos mais generosos. Lembrou-se que, tendo doravante uma conduta honrosa e ilibada, ainda poderia chegar a fazer esquecer os seus erros passados, e reanimado por esta feliz lembrança, que o seu anjo bom lhe tinha sugerido, levantou-se resoluto a trabalhar para a sua reabilitação, e a não descansar sem a ter chegado a alcançar.

A ocasião favorável não se fez esperar muito, porque um capitão de um navio mercante, que estava aparelhando para a Califórnia, lhe concedeu passagem gratuita, mediante os seus serviços e o seu trabalho na viagem. Aportou Roberto à Califórnia e sorrindo-lhe a fortuna, em lugar de se embrenhar no jogo, arriscando assim as suas economias, fundou um estabelecimento, que ia prosperando, faltando unicamente para a sua felicidade se tornar completa, o obter o perdão do seu tio, e a esperança de poder tornar a ver sua prima, cuja imagem tinha constantemente na ideia, e o sustentava e animava nesta nova estrada de trabalho e ordem, de que não pensava mais em se desviar.

Eis aqui em resumo o que continha a carta que Roberto dirigiu a sua prima. Valentina muito comovida, mas gostosa e alegre por ter de dar tão grata noticia ao seu querido pai, esperava ansiosa a sua volta. Mal lhe deu tempo de sentar-se, ia logo a contar-lhe o sucedido, mas, Emílio da Cunha a deteve, apenas tinha pronunciado a primeira palavra. Valentina insistiu, mas o velho levantou-se com a maldição nos lábios; ela lançou-se-lhe de joelhos aos pés, chorou, suplicou, mas ele a tudo ficou impassível e inflexível.

Valentina consternada respondeu à carta do seu primo descrevendo-lhe o sucedido, e a inutilidade dos seus esforços; mas para o não desanimar prometia-lhe de os renovar, e que os repetiria até que chegasse a mover o seu pai à comiseração e piedade, de que não desesperava. A carta continha também a descrição de todos os sucessos, que se tinham dado desde que Roberto tinha desaparecido; a decadência de Emílio da Cunha, a pobreza em que tinham vivido em quanto que o seu trabalho mal retribuído lhe dava parcos meios de subsistência, e o melhoramento da sua posição, finalmente continha também algumas palavras de exortação e amizade.

A situação de Emílio da Cunha e a sua filha sofreu, passado algum tempo, uma modificação muito mais inesperada, do que a que se havia seguido ao aniquilamento da sua fortuna. Emílio da Cunha foi chamado a casa de um capitalista, aonde lhe entregaram 20 contos de reis de que um anônimo lhe mandava dar posse a título de restituição. Donde tinha vindo este dinheiro?

Emílio da Cunha pensou muito naturalmente, que o procurador que o tinha roubado, mortificado pelo remorso, e querendo sossegar um pouco a sua consciência, lhe tinha mandado entregar aquela quantia, como uma parte da restituição, que lhe tinha a fazer. Valentina estava muito longe de concordar com a opinião do seu pai, mas nem por isso teve a franqueza de lho declarar, nem lhe dar a entender qual era a sua.

Qual das duas opiniões era a verdadeira, é o que nos não importa saber, o que se sabe é que a abastança ou decência tinha reentrado em casa de Emílio da Cunha, e as ideias do digno e honrado velho, foram-se tornando mais brandas sob a influencia do bem-estar.

Foi ele próprio que num dia falou primeiro a Valentina no seu primo Roberto, e ela não perdendo esta ocasião tão propicia, que se lhe oferecia, advogou por muito tempo, com calor e eloquência, a causa do seu primo. Emílio da Cunha deixou-a falar como e todo o tempo que ela quis, sem lhe dar a mais pequena resposta, nem lhe replicar a coisa alguma.

Estaria ou não convencido?

A pergunta não tinha muito fácil resposta, mas pelo menos tinha ouvido sem cólera e com sossego as alegações a favor do seu sobrinho, o que já era um bom indicio da mudança que nele se havia operado.

Valentina, contente e satisfeita com o resultado do seu primeiro cometimento, escreveu imediatamente ao seu primo informando-o do que havia, e a esta carta seguiram-se outras muitas, noticiando-lhe sempre algum novo passo dado na estrada da reconciliação.

Aconteceu um dia que Emílio da Cunha, no meio de uma conversa, que tinha seguido num objeto muito diverso, parasse precipitadamente para dizer a sua filha:

— Tu acreditas sinceramente no arrependimento do teu primo?

— Oh! sim, meu pai — apressou-se em responder Valentina.

— Queira Deus que te não enganes.

Um outro dia acordou de uma pequena sesta, que se tinha seguido ao jantar, gritando, como se continuasse uma conversa começada:

— Ah! se Roberto estivesse arrependido realmente, como tu o supões, com que prazer e alegria…

Não terminou a frase, mas a expressão benévola da fisionomia de Emílio da Cunha indicou a Valentina o complemento da ideia.

Isto foi objeto para uma ultima carta a Roberto, a que ele respondeu, e fechou-se a correspondência.

Uma manhã Emílio da Cunha achava-se com Valentina num a pequena, mas elegante sala, que deitava sobre o jardim porque eles tinham deixado a sua pobre morada, trocando-a por outra mais decente. Emílio da Cunha sentado junto de uma mesa, sobre a qual se achava uma magnifica jarra de flores, olhava sorrindo para Valentina, que, de pé, junto de um açafate em que estavam dois pombinhos, repreendia, acariciando-o, um deles:

— Eis-te aqui, meu belo fugitivo — dizia-lhe ela — pensavas que era só voltar para te ser concedido o perdão, depois de me teres feito sofrer com a tua ausência e ingratidão? Muito bem; visto que o teu regresso prova um arrependimento sincero, perdoo com prazer; não é assim, paizinho — acrescentou ela com voz meiga e levantando os lindos olhos com uma expressão de candura para Emílio da Cunha — que se devem receber os filhos pródigos, que regressam arrependidos e contritos?

Emílio da Cunha não deu uma palavra, mas rolou-lhe uma lágrima sobre a face. Neste momento surpreendeu ele um olhar de inteligência, que Valentina dirigia a alguém, que estava pelo lado detrás da cadeira em que estava sentado. Voltou-se rapidamente, e soltando um grito, ouviu-se o nome de Roberto.

Era Roberto realmente. A cena que se seguiu o meu caro vizinho melhor a poderá imaginar, do que eu pintar-lha, ou descrever-lha.

Roberto voltava honrado e rico. Julgo que já compreendeu que, para socorrer o seu tio, ele concebeu e executou o plano da restituição.

D. Mafalda calou-se. Parecia esperar, que eu, convencido pela sua historia, sancionasse com o meu voto a doutrina, que ela tinha expendido antes de começar.

— Ah! — disse-lhe eu com admiração sincera – vossa excelência podia facilmente escrever um romance.

— Isso quer dizer que me faz a honra de julgar esta minha historia como produção da minha imaginação e fantasia?

Limitei-me a inclinar-me respeitosamente, e aqui terminou a nossa discussão.

No dia seguinte D. Mafalda ofereceu-se para me apresentar a um seu sobrinho, proprietário de um estabelecimento industrial importante nos subúrbios do Porto. Aceitei gostosa e prontamente. Fui recebido com extrema bondade e franqueza. O sobrinho de D. Mafalda gozava uma felicidade digna de ser invejada; era casado com uma mulher, que era um anjo de beleza e bondade, e tinha um filho o mais lindo e traquinas que se pode imaginar; o seu estabelecimento florescia e prosperava; o seu nome figurava entre os principais e os mais honrados do mundo comercial e industrial, numa palavra nada faltava à sua gloria, fortuna, e felicidade domestica.

— Que pensa do meu sobrinho?-me perguntou D. Mafalda, quando nos retiramos.

— Ah! minha senhora, nada mais ambiciono do que poder imita-lo.

— Pois aquele que viu é o Roberto da minha historia.

Recolhi-me a casa fazendo para mim as seguintes reflexões: Que a regeneração do homem pelo arrependimento não é utopia, e que a sociedade e a sua organização é que são as causas principais, que ocasionam que muitos dos seus membros não se regenerem, por lhe embargarem ou matarem logo algumas centelhas de virtude, que ainda tinham no coração.

Pensem, e verão o corolário que tiram.

Fonte:
Camilo Castelo Branco. Contos e textos.

sábado, 27 de abril de 2019

Thalma Tavares (Jardim de Trovas) 1


A distância para o amante
é menor que a brevidade,
porque nunca está distante
o amor que deixa saudade.

Andarilho que não cansa
de alentar um sonho antigo,
sou caracol da esperança
carregando o próprio abrigo.

Carícia em forma de prece
que no ocaso vou rezando,
teu amor é sol que aquece
um outro sol se apagando.

Coração, nunca te emendas!...
És de fato um sonhador...
Até nas duras contendas
tu vês motivos de amor!

Das bofetadas que a vida
me deu sem muita piedade,
tu foste a mais dolorida
e a que mais deixou saudade.

Enquanto a lua me encanta
e a solidão se acentua,
um galo cansa a garganta
tentando encantar a lua.

És hoje, distante e rara,
saudade aumentando o espaço
da solidão que separa
teu corpo do meu abraço.

- És meu príncipe! - dizia
vovó com seu jeito doce...
Tão doce que eu me sentia
como se príncipe fosse.

Este perdão que me negas
por "um nada" que te fiz,
é mais um cravo que pregas
na cruz de um peito infeliz.

É tão lindo o seu sorriso!...
Seu beijo é tão perfumado,
que aqui vou, perdendo o siso,
cometer mais um pecado.

Já não me sinto um proscrito
nem também um forasteiro,
se pões o olhar - tão bonito -
sobre o meu ser derradeiro.

Luz plena! A noite é bela!
E eu só, morrendo de zelos,
porque o luar na janela
faz carícia em seus cabelos.

Na minha vida sem graça,
de sonhador solitário,
a autora no céu não passa
de um por-do-sol ao contrário.

Não é saudade, é castigo
toda saudade enganada...
É sonho implorando abrigo
sabendo a porta fechada.

No aceno discreto e mudo
que entre lágrimas fizeste,
teus olhos disseram tudo
do amor que nunca disseste.

Numa pétala orvalhada,
uma gota luminosa
é um adeus que a madrugada
deixou na face da rosa.

O amor em nossa jornada
tem rumos tão divergentes,
que andamos na mesma estrada
por caminhos diferentes.

Por dar crença ao teu sorriso,
que tantas paixões atiça,
construí um paraíso
sobre a areia movediça.

Quando a saudade se esconde
pelos confins da cidade,
eu torno em sonhos um bonde
e vou matar a saudade.

Que festa! O neto correndo,
fingindo ser um robô,
erguendo os braços, dizendo:
- "Eu vou te pegar, vovô!"...

Que o teu sorriso de agora
permaneça eternamente...
Eu te quero sempre aurora...
Mesmo quando eu for poente.

Querida eu tenho ciúme,
- não há desdouro em dizê-lo...
Ciúme até do perfume
que perfuma o teu cabelo.

Teu olhar tem a beleza
de um céu claro à luz do dia,
mostrando, embora, a tristeza
que esconde a tua alegria.

Fonte:
Livro gentilmente enviado por Edy Soares.
Dáguima Verônica - Edy Soares - Thalma Tavares. Três em trovas. Vila Velha/ES: Edição do Autor, 2017.