quinta-feira, 9 de maio de 2019

Arthur de Azevedo (As Cerejas)


– Que fazes tu aí parado? Estás a comer com os olhos aquelas magníficas cerejas?

– Estou simplesmente a namorá-las, ou antes, a resolver-me… Os cobres são tão curtos!.

– Gostas realmente de cerejas?

– Eu? Nem por isso! Prefiro qualquer outra fruta do nosso país! Mas minha mulher dá o cavaquinho por elas, e não se me dava de lhe levar aquelas, que têm boa cara.

– Pois compra-as, que diabo! Não são as cerejas que nos arruinam.

– Tens razão.

Esse ligeiro diálogo foi travado em frente ao mostrador de uma loja de frutas, na Avenida, entre o Antunes e o seu velho amigo Martiniano.

O Antunes comprou as cerejas. O Martiniano despediu-se e foi tomar o bonde.

Aquele dispunha-se a fazer o mesmo, e já estava num ponto de parada, esperando o elétrico de Vila Isabel, quando passou a Pintinha, um diabo de uma mulher que ele não podia ver sem sentir imediatamente o imperioso desejo de acompanhá-la, para reatar o fio de uma conversação agradável que se interrompia de meses a meses.

Acompanhou-a.

Ela, quando o viu, disse-lhe com toda a franqueza:

– Que fortuna encontrar-te! Estava com muitas saudades tuas. Jantas hoje comigo. Não admito desculpas, tanto mais que leio nos teus olhos que estás morto por isso. Vou esperar-te em casa.

Meia hora depois, o Antunes subia as escadas da Pintinha. Esta, a primeira coisa que fez foi tirar-lhe das mãos o embrulho que ele trouxera da loja de frutas e desamarrá-lo.

– Que é isso? Cerejas? Como és amável! Não te esqueceste da minha sobremesa predileta!

O Antunes pensou consigo: – guardado está o bocado para quem o come – e pediu mentalmente perdão a dona Leopoldina, sua legítima esposa.

Isto passava-se à tardinha, e era noite fechada quando as cerejas foram alegremente comidas.

A hora em que o Antunes entrou no lar doméstico, já D. Leopoldina estava deitada, mas não dormia ainda.

– Com efeito, Antunes! Já lhe tenho pedido um milhão de vezes que não jante fora sem me prevenir! Esperei-o até às 7 horas!

– Perdoa, benzinho, fui desencaminhado por um amigo que me levou ao Pão
de Açúcar.

– Ao Pão de Açúcar?

– Sim, o Pão de Açúcar é um restaurante da Exposição. Come-se ali muito bem, e o lugar é aprazível.

– Demais, eu estava doida por que você chegasse; nunca o esperei com tanta impaciência!

– Por quê?

– Por causa das cerejas.

– Que cerejas?

– As tais que você comprou na Avenida para me trazer; você bem podia tê-las mandado pelo "rápido" com o aviso de que não vinha jantar. Onde estão elas?

– As cerejas?

– Sim, as cerejas!

– Mas como soubeste que eu…?

– Muito simplesmente. Saí para ir ao dentista, e quando voltava para casa encontrei no bonde aquele teu amigo Martiniano, que me disse: "A senhora vai ter hoje magníficas cerejas ao jantar; vi seu marido comprá-las na Avenida. Ele disse-me que a senhora dá o cavaquinho por elas." Onde as puseste? Na sala de jantar?

Já o Antunes tinha arranjado a mentira:

– Oh! diabo! E se não me falas não me lembrava! Deixei no bonde o embrulho das cerejas!.

– Eu logo vi!…

D. Leopoldina voltou-se para o outro lado e não disse mais palavra.

No dia seguinte esteve amuada todo o dia, e só voltou às boas quando o Antunes, entrando em casa às horas de jantar, lhe entregou um embrulho de cerejas, dizendo:

– Estavam na estação.

Pobre D. Leopoldina! Se soubesse que a Pintinha…

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Silmar Bohrer (Lampejos Semanais) XI


Consiglieri Pedroso (A Menina e o Bicho)


 Era uma vez um homem que tinha três filhas.

 Eram todas muito amigas dele, mas havia uma que ele estimava mais.

 Foi um dia à feira e perguntou às filhas o que é que elas queriam de lá. Uma delas disse:

– Um chapéu e umas botas!

 A outra disse também:

– Um vestido e um xale!

Mas a que ele estimava mais não lhe disse nada.

 O homem, muito admirado, perguntou:

– Ó minha filha, tu não queres nada?

– Não quero nada, disse ela. Quero que meu pai tenha saúde!

– Tu hás de também pedir uma coisa, seja o que for, que eu trago-te! - respondeu o pai.

Ela, para que o pai a deixasse, disse então:

– Quero que meu pai me traga um corte de goraz em campo verde.

O homem foi para a feira, comprou todas as coisas que as filhas lhe tinham pedido, e não fazia senão procurar o corte de goraz em campo verde. Mas não o encontrou. Era coisa que não havia. Por isso vinha muito triste para casa, porque era a filha que ele mais estimava.

 Quando vinha andando, aconteceu-lhe ver luzir uma luz no caminho, porque já era noite.

 Foi andando, andando, até chegar àquela luz.

 Era um pastor, que estava ali numa cabana. O homem chegou-se a ele e perguntou:

– Sabe-me dizer que palácio é aquele, e se me podiam dar agasalho!

O pastor respondeu muito admirado:

– Oh!, senhor, mas... naquele palácio não habita ninguém; aparece lá uma coisa, e todos têm medo de lá estar!

– Deixá-lo, disse o homem, não me hão de comer, e como não tem ninguém, vou lá dormir esta noite!

Foi. Encontrou tudo iluminado e muito rico e, entrando mais para dentro, viu uma mesa posta. Quando se ia a chegar à mesa, ouviu uma voz dizer:

– Come e vai-te deitar naquela cama que ali está, e pela manhã levanta-te e leva o que está em cima daquela mesa, que é o que a tua filha te pediu, mas, ao fim de três dias, hás de me trazer ela aqui.

O homem ficou muito contente por levar à filha o que ela tinha pedido, mas ao mesmo tempo ficou triste pelo que a voz lhe tinha dito.

 Deitou-se e ao outro dia levantou-se, foi direito à mesa e viu o corte de goraz em campo verde; agarrou nele e foi para casa.

 Apenas chegou, começaram as filhas de roda dele:

– Meu pai, que é que nos trouxe? Deixe ver.

O pai deu-lhes tudo quanto trazia.

 A outra filha, a que ele estimava mais, perguntou-lhe só se ele tinha saúde. O pai respondeu-lhe:

– Minha filha, venho contente e ao mesmo tempo triste! Aqui tens o teu pedido.

A filha respondeu-lhe:

– Oh! meu pai, eu tinha-lhe pedido isto, porque era coisa que não havia. Mas porque é que vem tão triste?

– Porque tenho de levar-te ao fim de três dias aonde me deram isto!

E contou tudo o que lhe tinha acontecido no palácio e o que a voz lhe tinha dito. A filha, quando ouviu tudo, respondeu:

– Não esteja triste, meu pai, que eu vou, e há de ser o que Deus quiser!

Assim foi. Ao fim de três dias o pai levou-a ao palácio encantado.

 Estava tudo iluminado, a mesa posta e duas camas feitas.

 Quando entraram, ouviram uma voz dizer:

– Come e deixa-te estar três dias com a tua filha, para ela não ter medo.

O homem esteve os três dias no palácio. No fim, foi-se embora, ficando a filha só.

 A voz falava com ela todos os dias, mas não se via ninguém.

 Ao fim de uns poucos dias, a menina ouviu cantar um passarinho no jardim. A voz disse-lhe:

– Tu ouves o passarinho a cantar?

– Ouço, sim! - disse a menina - É alguma novidade?

– É tua irmã mais velha que está para casar. E tu queres ir? - perguntou a voz.

A menina, muito contente, disse:

– Eu quero, sim. E tu deixas-me ir?

– Eu deixo - tornou a voz - mas tu não voltas!

– Volto, sim! – disse a menina.

A voz deu-lhe então um anel, para ela se não esquecer, e disse-lhe:

– Olha que ao fim de três dias vai um cavalo branco buscar-te; há de bater três pancadas: a primeira é para te vestires, a segunda é para te despedires e a terceira é para te montares. Se às três não estiveres em cima do cavalo, ele vem-se embora e deixa-te lá!

A menina foi. Houve uma grande festa, e a irmã casou-se. Ao fim de três dias, foi o cavalo branco bater três pancadas. A primeira a menina começou a vestir-se, à segunda despediu-se e à terceira montou a cavalo.

 A voz tinha dado à menina um caixote de dinheiro para levar ao pai e às irmãs, e por isso elas não queriam que ela tornasse para o palácio encantado, porque já estava multo rica.

 Mas a menina lembrou-se do que tinha prometido, e apenas se viu em cima do cavalo foi-se embora.

 No fim de certo tempo tornou o passarinho a cantar muito contente no jardim. A voz disse-lhe:

– Tu ouves o passarinho a cantar?

– Ouço, sim! - disse a menina - É alguma novidade?

– É a outra tua irmã que está para casar. E tu queres ir? perguntou a voz.

A menina, muito contente, disse:

– Eu quero, sim! E tu deixas-me ir?

– Eu deixo. - tornou a voz - Mas tu não voltas!

 – Volto, sim! - disse a menina.

  A voz disse, então:

 – Olha que se ao fim de três dias não vieres, ficas lá, e serás a rapariga mais desgraçada que há no mundo!

A menina foi. Houve uma grande festa, e a irmã casou-se. Ao fim de três dias veio o cavalo branco. Deu a primeira pancada, e a menina vestiu-se; deu a segunda, e a menina despediu-se; deu a terceira, e montou a cavalo e foi para o palácio.

 Passados tempos tornou o passarinho a cantar no jardim, mas muito triste, muito triste.

 A voz disse-lhe:

 – Tu ouves o passarinho?

 – Ouço, sim! - disse a menina - É alguma novidade?

- É, sim, é o teu pai que está para morrer, e não morre sem se despedir de ti!

– E tu deixa-me ir? - perguntou a menina, muito triste.

– Deixo, sim, mas desta vez é que tu não voltas!

– Volto, sim! - disse a menina.

A voz disse-lhe:

– Não voltas, não, que as tuas irmãs não te deixam vir! E tu e mais elas, serão as raparigas mais desgraçadas deste mundo, se não voltares ao fim de três dias!

A menina foi, o pai estava muito mal e não podia morrer, mas apenas se despediu dela, morreu.

 As irmãs, como ela tinha perdido a noite, deram-lhe dormideiras e deixaram-na dormir.

 A menina pediu muito que a acordassem antes de vir o cavalo branco.

 As irmãs que fizeram? Não a acordaram e tiraram-lhe o anel do dedo.

 Ao fim de três dias veio o cavalo. Bateu a primeira pancada, bateu a segunda, bateu a terceira e foi-se embora, e a menina ficou.

 Ela andava muito satisfeita com as irmãs, porque não tinha o anel e já não se lembrava de coisa nenhuma.

 Daí a uns poucos dias, começou a fortuna a andar para trás, a ela e às irmãs.

 Até que uma vez as duas disseram-lhe:

 – Mana, tu não te lembras do cavalo branco?

  A menina lembrou-se, então, de tudo e disse a chorar:

 – Ai. que desgraça a minha! Ai, que me desgraçaram! Que é do meu anel?

  As irmãs deram-lhe o anel, e a menina, com muita pena, foi-se logo embora. Chegou ao palácio encantado, mas viu tudo muito triste, muito escuro e muito fechado.

 Foi direta ao jardim e encontrou um bicho muito grande, estendido no chão. O bicho, apenas a viu, disse-lhe:

 – Retira-te, tirana, que me dobraste o meu encanto! Agora serás a rapariga mais desgraçada do mundo, tu e as tuas irmãs!

  O bicho estava a acabar e, assim que disse isto, morreu. A menina voltou para as irmãs, muito triste e a chorar multo, meteu-se em casa sem comer nem beber, e dali a dias morreu também.

 As irmãs, essas ficaram cada vez mais pobres, por terem sido a causa disto tudo.

Antonio Cabral Filho (2º Colar ABC em Trovas)


Organizador: Antonio Cabral Filho - RJ
Tema - Fugacidade

Obs.: o primeiro verso se inicia com a letra A e a estrofe fecha com a letra B. Assim, o segundo trovador dará sequencia a partir da letra B, fechando na letra C. E assim por diante, cada trovador fará sua sequencia. Vale lembrar que não podemos fugir do tema nem repetir autores, exceto em caso de faltar quem queira continuar:
*FUGACIDADE*


01- A
Às vezes, sem mais nem menos,

foge-me do pensamento,
em aluviões pequenos,
Belezas do firmamento.
Antonio Cabral Filho - RJ


02 - B
Belezas do firmamento,
noites plenas de luar,
provocam meu pensamento
com um fugaz desejar.
Márcia Jaber - MG


03 - C
Com um fugaz desejar,
lembro o teu rosto e te espero,
mas não sei se vou aguentar
dor por não ter quem eu quero.
Claudia Bergamini - PR


4 - D
Dor por não ter quem eu quero
é uma dor passageira,
por isso eu não desespero
e vivo à minha maneira.
Antonio Francisco Pereira - MG


5 - E
E vivo à minha maneira,
sempre alegre e otimista,
dançando toda faceira,
formando-me uma passista...
Ester Figueiredo - RJ

6 - F
Formando-me uma passista
vou em meus sonhos bailar,
faço da vida uma pista,
giro até eu te encontrar!
Rita de Cássia - MG


7 - G
Giro até eu te encontrar
Pelas ruas, sem mutreta,
Vendo a vida a se lançar
Hoje e sempre na sarjeta.
Francisco Queiroz - RN


8 - H
Hoje e sempre na sarjeta
vejo n'água o meu reflexo,
mas é coisa do capeta,
ideia que não tem nexo!
Oliveira Caruso - RJ


9 - I
Ideia que não tem nexo
é achar que Jesus Cristo,
separa a gente por sexo,
jamais acredito nisto!
Aurineide Alencar - MS


10 - J
Jamais acredito nisto,
pois não é minha verdade:
somos a imagem de Cristo;
luz de intensa claridade.
Ronnaldo Andrade - SP


11 - L
Luz de intensa claridade
que mostra o abraço do irmão,
rápido, mas na verdade,
me tirou da escuridão.
Romilton Faria - MG

12 - M
Me tirou da escuridão
e está sempre ao meu lado,
dando paz ao coração:
não posso ficar calado.
Madalena Cordeiro - ES


13 - N
Não posso ficar calado
aos tormentos do coração
fique atento a este recado:
ouça cada pulsação!
Rita de Cássia - MG


14 - O
Ouça cada pulsação,
quando estamos bem juntinhos,
exaltado coração, 
perdido nos teus carinhos.
Claudia Bergamini - PR


15 - P
Perdido nos teus carinhos,
absorto de paixão,
eu percorro teus caminhos
querendo mais explosão.
Francisco Queiroz - RN

16 - Q
Querendo mais explosão
vivo a vida a te esperar
e com amor em profusão...
Rezo para te encontrar!
Dilercy Adler - MA

17 - R
Rezo para te encontrar
por essa estrada, meu bem.
Estou morrendo de amar,
saudade mata também.
Aurineide Alencar - MS


18 - S
Saudade mata também,
já dizia minha avó,
que teve seu grande bem.
Tanto sofrer. Quanta dó.
Dilercy Adler - MA

19 - T
Tanto sofrer. Quanta dó
quando o amor vai embora;
dia e noite sem xodó,
usurpa-se a minha hora.
Francisco Queiroz - RN


20 - U
Usurpa-se a minha hora
essa densa tão ferida,
de só ater-me no agora,
vivendo a arte com vida
Vanda Salles - RJ


21 - V
Vivendo a arte com vida
encontro a felicidade,
deixo a vida divertida,
xeque-mate na maldade.
Claudia Bergamini - PR

22 - X
Xeque-mate na maldade
isso é tudo o que mais quero,
grito de felicidade
sanfona  no meu bolero.
Madalena Cordeiro - ES


Fonte:
Trovadores do Brasil

Chico Anysio (Domingo em Madureira)


Depois do primeiro galo, cantaram todos da rua. Era domingo, no entanto, um dia em que os galos não têm necessidade de acordar tão cedo assim.

— Cocorocó!... — fez o galo de Climério, o primeiro, sempre, a cantar.

Climério acordou com o canto, habituado que estava. E era domingo. Domingo! O dia da sua folga. Serem cinco da manhã não tinha tanta importância quanto a importância que tinha o fato de ser domingo.

Climério abriu a bocarra num bocejo longo e bom. Emitiu um som grunhido na espreguiçada comprida, reconfortante chia­do, botando fim no bocejo. Coçou a perna ao comprido, deu mais jeito nos cabelos. Um comecinho de dia entrava pela janela, duvidando da cortina — falha da veneziana. A mulher abriu os olhos e lembrou que era domingo.

— Dorme, Climério, ainda é cedo.

— Cinco horas.

— É domingo.

Ele fez que não ouviu. Achou o par de chinelos debaixo de sua cama, vizinho ao urinol — mau hábito que a mulher insistia em preservar — e, a arrastá-los sem pressa, dirigiu-se ao banheiro.

A mulher ficou na cama, forçando a volta do sono.

A torneira despejou uma água quase morna. Era janeiro. Um domingo de janeiro em Madureira. Climério, de mãos em concha, lavou o rosto três vezes. Não fez barba. Era domingo, dia de folga pra cara. Gargarejou com escândalo. Urinou e urinou-se.

Esqueceu de dar descarga.

Depois, voltou para o quarto, onde a mulher já se sentava na cama, na oração de acordar. Persignou-se ao final da prece.

O despertador barato indicava cinco e quinze. A mulher, por se acordar, iria à missa das seis.

Climério abriu a janela para o dia que nascia. O dia entrou no quarto, espalhando-se sem pressa, por saber que era domingo.

Climério desamarrou o cadarço do pijama. Deixou que as calças caíssem. Saiu delas, que ficaram amarrotadas no chão. Vestiu uma roupa velha. Era domingo, não iria trabalhar, não teria que bater ponto na repartição.

Julieta, sua esposa, sugeriu que ele acordasse as meninas e Julinho. Foi, depois, para o banheiro, onde sentou confortável para o primeiro xixi de jato que acalentava. Deu descarga, no final.

De longe chegaram os cantos de outros galos. Ou dos mesmos. Segundo aviso do dia. Climério se espreguiçou, bateu na barriga enorme.

— São gases... — sentenciou, para explicar o ruído muito oco e um tanto surdo, quase baticum de bumbo, que as pancadas produziam.

Julieta pôs-se nua. Climério estendeu-lhe lerdo a combi­nação pendida e que ela pôs sobre a pele. Julieta não usava nem calça nem sutiã. Tinha cara de sofrida a lhe aumentar a idade. Era magra c agrisalhada. Sofria de reumatismo e era dada a varizes, por tanto ficar de pé no seu trabalho diário. Em casa fazia tudo, inclusive os uniformes dos meninos que estudavam num colégio estadual.

Climério empurrou os sapatos para debaixo da cama. Sentiu os pés confortáveis no velho chinelo gasto. Saiu do quarto. Tirava resto de sono dos olhos.

De cama em cama seguiu, acordando os filhos: as três meninas e Júlio, o filho do seu encanto que servia na Aeronáutica.

— Que horas são?

— São cinco e meia.

As filhas se levantaram. Não queriam perder a missa das seis. Muito mais aproveitavam o dia lindo que vinha. Podiam até ir à praia. A de Ramos, como sempre.

Julinho demorou mais. Tinha tempo. Ronronou. A pelada a ser jogada no campo do Confiança só começaria às oito. Dormiu o resto do sono. Podia. Era domingo. Dia de glória! Uma pena que sempre fosse tão curto e um só por semana.

Climério foi à cozinha no automatismo de hábito. O café de ontem à noite requentou em banho-maria. Julieta entrou de­pois, tentando, com o polegar, coçar as costas no ponto em que sentia coçar. Acompanhava a coceira com um bocejo pro­longado. Pediu socorro ao marido.

— Coça aqui.

Ele coçou. Custou a achar o lugar.

— Todo mundo já acordou?

— As meninas. Júlio, não.

— Você já viu o leitão? — perguntou, sem interesse, en­quanto tirava a tampa do bule que requentava o café feito de véspera, preguiça que cultivava num comodismo idiota. — O leitão cabe no forno?

— Hum, hum — ela fez que sim.

Do banheiro vinha o ruído de dentes que se escovavam. Quase às seis entraram as filhas, já vestidas para a missa. En­traram as três em vestidos cor-de-rosa. Cada uma fez a parte que lhe cabia fazer. O leite foi recolhido por uma, o pão, por outra. Dircinha acendeu o fogo que aqueceria a leiteira. Café com leite tomavam somente ao voltar da missa. Climério sabia o momento de pôr o leite no fogo. Só que hoje anteci­para uma hora esse costume, por ter levantado às cinco, e não às seis, tempo certo de levantar aos domingos.

Julieta e as três mocinhas tomaram um cafezinho e, depois, apressadas, saíram à procura de Jesus. No domingo comungavam.

Climério foi ao quintal, reparando no que havia a ser feito. A tela do galinheiro... a cerca que separava o terreno do vizinho... a velha calha do alpendre... uma torneira enjam­brada ... Havia sempre umas coisas a arrumar no domingo.

O filho apareceu com a chuteira escondida numa sacola "Adidas".

— Vai jogar?

— Bater uma bola.

Perguntou por perguntar. Respondeu por responder.

Saíram antes que as filhas regressassem da igreja. Julinho pegou o ônibus, Climério entrou no bar.

— Duas garrafas de pinga! — mandou ao botequineiro, também recém acordado, olho inchado, cara marcada de tra­vesseiro.

— Duas?

— Duas. Praianinha. É pra fazer uma batida. Tem limão aí, Seu Severo?

Tinha, e do sumarento. Ele levou uma dúzia.

Fazia muito calor, e o sol já tinha chegado, prometendo 38, na hipótese mais mansa.

Climério guardou os limões, já cortados, na panela. O re­lógio consultado informou que era hora de pôr o leite a ferver.

Ele fez. Deu de comer aos passarinhos queridos, com beijos es­peciais a cada um que servia. Assobiou agudo, fez cantar o sabiá.

Sete e meia a mãe e as filhas retornaram da igreja com o Jornal dos Sports, que nunca se esqueciam de comprar para Climério.

— Você tem que consertar a tela do galinheiro — era a esposa lembrando o que ele já sabia.

O leite chiou no fogo, transbordante. Ele correu. Tomaram café com leite, e o pão os cinco comeram, barrado de margarina.

— Mamãe, nós vamos na praia — avisaram as três filhas, sumindo no corredor para vestir os biquínis, sem esperar que a mãe concordasse ou desse contra.

Julieta recolhia a louça do desjejum. Climério chupando os dentes, palito inútil na boca, checava a escalação dos times pra logo mais.

O compadre apareceu eram quase nove horas. Trazia na cara a cara que a gente usa aos domingos. Com ele, vinha a mulher — comadre Emerenciana — muito alegre, como sempre; como sempre muito gorda.

— Quem é vivo sempre chega! — Climério estreitou o compadre num abraço comovido.

— Bote água no feijão — disse Juca a Julieta e depois mandou risada.

Num canto, as duas comadres contavam suas mazelas.

— E o reumatismo, comadre?

— No verão não incomoda. As pernas é que me doem, que já nem sei o que faça.

— Eu sei de uma receita que o caboclo da Onilda ensinou.

A chegada dos compadres endomingou mais a casa.

— Como é? Tem um leitão? — era Juca quem falava. — É leitão mesmo, ou vocês mataram um gato e assaram? — e gargalhou de dobrar, engasgando-se.

— São Brás! São Brás! — invocava a mulher com afli­ção, enquanto Climério, rindo, lhe dava tapas nas costas.

— Esse Juca não tem remédio — comentava Julieta, en­quanto se dirigia, com a comadre, à cozinha para cuidar do almoço.

— Deixe, que eu faço a batida — disse Juca, já tirando o paletó e a gravata.

Às dez horas tudo havia mudado um pouco de jeito. Eme­renciana usava um vestido amarfanhado — Julieta emprestara — e Juca vestia um short.

Uma garrafa e dois copos acompanharam os compadres, que se foram pro quintal com pregos, martelo, arame, apetre­chos de conserto. Juca ia dar u'a mão nos consertos a fazer.

— O galinheiro é comigo! — gritou Juca.

— Manda brasa!

A disposição de Juca cresceu com a batida que Climério lhe estendeu. Comentou:

— Tá de lascar! Vira aqui.

E ele bebeu a oitava de um só gole.

O vizinho apareceu com um prato de bolinhos — batata com bacalhau — tira-gosto que chegava no momento mais preciso.

Deu onze horas na igreja. O filho voltou suado, restos de lama no corpo.

— 5x2 — comunicou. — Eu fiz os dois, de cabeça.

Ficou, ainda sem banho, ajudando a Juca e ao pai, que trabalhavam o possível na cerca e na batidinha.

— Tá demais, essa batida.

As galinhas, irritadas, ciscavam sem precisão. Cacarejavam e voavam, odiando o toque-toque do barulho do conserto que os compadres faziam. A cerca não deu trabalho. Em meia hora acabaram.

As filhas, vindas da praia no Nash verde de Rui, namorado de uma das três, chegaram quinze pras duas.

— Boa tarde, Seu Climério — Rui cumprimentou solene, sem nenhuma intimidade.

Rui juntou-se à mão-de-obra dos três que já trabalhavam — Juca, Julinho e Climério — e a torneira foi tirada para o reparo preciso.

— Um pedacinho de sola — pediu Seu Juca, entendido.

Climério providenciou, cortando um velho sapato.

— Comé? Não se bebe nada? — inquiriu Juca, risonho, voz já saindo difícil, pastosa, meio embrulhada.

— Tamos aqui, cidadão! — e Climério encheu o copo de modo desajeitado, batida caindo farta pelas bordas, pela mão.

Na cozinha, as comadres. Entremeando a conversa sobre a vida, cortavam as frutas a usar na salada costumeira.

A filha mais velha — Irene — secando o cabelo ao sol, cantava Roberto Carlos com uma voz desagradável. A do meio, no banheiro, fazia qualquer coisinha antes de encarar o chuveiro. A mais nova, Suzaninha, molhava o sofá de plástico com o maiô ainda úmido.

Rui despediu-se e se foi para voltar pro leitão. O forno aceso trazia à cozinha o cheiro bom do leitão que já dourava.

Júlio brigava e brigava pedindo prioridade para usar o banheiro.

A calha velha do alpendre, como num esfregar de olhos, Juca deixou como nova. Fez por merecer o prêmio: a batida de limão que Climério lhe estendia.

— Nessa aqui eu caprichei.

Provou.

— Está uma brasa!

Julinho reapareceu com a camisa justa, manga curta e mais dobrada, dando jeito no topete — cabeleira demodê que in­sistia em usar. Mostrou que ia sair.

— Não vai almoçar, Julinho?

— Não dá, mãe, tô com pressa. Como um troço por aí.

Pegou o rádio de pilha e saiu para o estádio. Ia ver o Olaria enfrentar o Madureira.

Às quatro Rui retornou, trazendo numa sacola meia dúzia de garrafas que foram pra geladeira. Santas Brahmas do domingo!

O leitão foi posto à mesa. Copos cheios de batidas eram fácil devorados em goles longos e frios.

Na tevê, o animador pregou um sorriso na cara. Era do­mingo, dia bom pra sorrir.

Na mão de Emerenciana surgiram as Brahmas geladas.

— Vira, vira, vira. . .

— Vira, vira, vira. . .

Beberam as seis e mais seis que Rui pegou no boteco.

Na rua, as crianças jogavam um racha com o gol demar­cado por tijolos. Era domingo, quase não passavam carros.

Comeram falando muito e muito desencontrado. Ninguém prestava atenção ao que os outros falavam e cada um respondia à pergunta que queria, sem se importar se a resposta levava endereço certo.

Saíram Rui e as moças para um cinema provável.

O arroto de Climério avisou que ele acabara.

— Saúde — lhe disse Juca, rindo de cuspir farofa.

As comadres, na cozinha, rasparam os pratos no lixo. Con­versavam sobre o aumento que os maridos garantiam receber dentro de pouco tempo. Depois, então, se ensinaram novos pon­tos de tricô.

— Um cafezinho, compadre — ofereceu Julieta, com um sorriso maroto.

Era tarde. Já dormiam. Climério e Juca, os compadres, já não prestavam atenção ao que se passava em volta. Dormiam...

— Dormindo!

— Deixa.

Afinal, era domingo.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

terça-feira, 7 de maio de 2019

Daniel Maurício (Poemas Avulsos) III


Não meço o teu amor
Nem sequer dele peço provas
Me entrego sem temor
E em teus braços esqueço as horas.
Faça frio ou faça calor
Em ti eu me abrigo
Sentindo o coração falar pro teu,
Como é bom estar contigo.
=================================

Entre as pedras
Pequenas sementes de lua
Carregadas de meninice
Desejam viajar.
Basta um assopro
E os sonhos ganham voo
Nas asas do vento-garoto
Que sorridentes,
Se entregam ao livre planar.
=================================

Ainda passeia em minha pele
O teu cheiro cioso
Que transborda tão gostoso
Por entre as dobras do lençol.
A poesia encharcada de nós
Também ainda dança
No quarto desarrumado
Que bela lembrança!
Confundo os nomes
Esqueço os pronomes
E por instantes sou só teu.
=================================

Da pequena flor amarela
A rã fez um sol
Pra aquecer a alma dela
Que estava carente de amor
Mas o calor foi crescendo
E acabou recebendo
Da borboleta um protetor
Assim o dia ficou incrível
E a rã acabou descobrindo
Que o amor é o melhor cobertor.
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No silencioso espelho d'água
Converso com o irmão gêmeo que nunca tive,
Mas que sempre me acompanhou
Quem sabe ele era os cochichos da alma
Indicando o caminho com setas
Mas que preferia chamar de intuição
No reflexo silencioso do espelho d'água
As imperfeições perfeitamente a mostra
Tiram a máscara do eu-narciso
Que se convence que somos breves
Bastando um pingo de chuva nas águas do tempo
A imagem vira onda
Zummmmm...
E a ilusão se acabou.
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Poema infantil

Roinque, roinque, roinque
O porquinho está alegrete
Hoje é o seu aniversário
De presente ganhou sorvete.
Não importa o sabor
Sendo de frutas todos apetece
Pois além de tapiar o calor
De energia o corpo enriquece.
Roinque, roinque, roinque
O porquinho agradece.
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Vindos da terra dos sonhos
Os pássaros outrora ciganos
Dão pausa aos cantos
Deixando que o encanto
Fique por conta
Do silêncio das cores.
Pássaros flores
Descansam suas asas
No campo fazem moradas,
Criam raízes
Conservam as matizes
E em flores se transformam.
Na paisagem bucólica
Meus olhos em ninho
Acolhem os passarinhos
Que só com o vento passeiam.
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Somos presas
Indefesas
Contra as garras afiadas do tempo
Mas o amor e a amizade
São botox de verdade
Que amenizam
O sofrimento.
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Caminhos traçados
Amarrotados nós.
Lembranças colhidas,
Onde eu e tu
Éramos nós.
Antevendo o fim
A razão procura
Novos recomeços,
Mas no verso do vento
Com o teu cheiro
Ainda estremeço.
Eta, coração travesso!
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Grita em mim
Tuas palavras engasgadas
Palavras rasgadas
Palavras molhadas de adeus.
Grita em mim
O inesperado silêncio
O gesto do lenço
Antevendo o fim.
Grita em mim
A carne nua do desejo
Abafada pela ausência do beijo
Que voou em outra direção.
Grita em mim
O amor ainda latente
Vulcão em cinzas quentes
Cavando um sim pra ressurgir.
Ah! Como grita em mim,
O silêncio do teu olhar.

Fonte:
AVIPAF (Facebook)

Carolina Ramos (A Família Abano)



Seu Abano nascera de sete meses. Mirradinho. Pernas e braços finos, que nem caniço de bambu. Todo olhos e orelhas. Na pia batismal, recebeu o nome de Felizberto. Bertinho, para os pais. E, mais adiante, Abano, para quantos lhe medissem, com espanto, as orelhas avantajadas, que lembravam duas ventarolas. Orelhas teimosas. Levaram a mãe do menino ao desespero, na ânsia de vê-las fixas mais próximo da cabeça. Inúteis os esparadrapos, as fitas adesivas, as toucas de meia, as ataduras de gaze, que davam ao garoto a aparência de alguém fugido às trincheiras ou sobrevivente a alguma catástrofe.

Catástrofe mesmo, eram a tais orelhas! Rebeldes, insubordinadas, resistentes a qualquer medida disciplinatória! Por causa delas, Fellzberto, que a partir do nome, tinha tudo para ser feliz, não era. Vivia cercado de chacotas e deboches e piparotes. Alvo frequente das impertinências da molecada do bairro e, mais tarde, dos colegas de classe. Quem mais sofria, por ver sofrer o filho, era a infortunada mãe. Morreria sem se conformar! Felizberto, ou Bertinho, teve cedo o nome trocado. O apelido — Abano — impôs-se por força das circunstâncias. Ou, melhor dizendo, das evidências. Que bastava olhar, para aceitá-lo. E ninguém, jamais, questionou a troca de nomes. Abano cresceu carregando nos ombros o peso da alcunha.

O amor que nele eclodiu, por Giovana, foi paixão à primeira vista! A garota tímida, cabelo puxado para atrás, intencionalmente prendendo as pontas das orelhinhas rosadas, exerceu sobre ele uma atração irresistível. As orelhinhas, sempre escondidas, intrigavam-no. Despertavam-lhe suspeitas que o levaram a ousadias. Tão logo teve oportunidade, desvendou o mistério. A pretexto de um carinho, libertou uma das conchinhas rosadas que saltou, lépida como asa de borboleta, livre de amarras! Constrangimento por parte da moça. Emoção e íntimo júbilo iluminaram os olhos de Abano. Identificação total! Perfeita! Se duvidara, antes, dos próprios sentimentos, nada mais havia a temer!

Casaram-se pouco depois. Mais nove meses e nascia o primeiro filho, trazendo a marca registrada da família — orelhas de abano. Um após outro, no total de cinco, chegaram novos rebentos portando, sempre, as características inconfundíveis do pai e da mãe. Em consequência, a prole dividia entre si os mesmos desgostos, as mesmas angústias dessa herança indesejável, impossível de ser descartada.

E assim foi, até que preocupação maior assumiu o primeiro plano. Abano I, ou seja, o primeiro filho do casal, não mais escondeu o macabro interesse por bichos mortos. Virou esquartejador de primeira! Não havia gato, ou cachorro atropelado, que lhe escapasse. Nem rato morto. Nem passarinho. Não raro, horrorizava quem o surpreendia a abrir a barriga desses bichos, vasculhando o mórbido conteúdo, com minuciosidade alarmante! Isto custou-lhe muito pescoção. — "Que porcaria é essa, menino?!" E tome tabefe, E tome beliscão e castigo. — "Seu coisa ruim! Você matou o gato!"

— "Matei, não! Eu só tava vendo que recheio ele tinha!" — a defesa não convencia e lá vinham as palmadas e ameaças. O que não acontecia, era puxação de orelhas. Isso, não! Questão de honra familiar. Não se agride um patrimônio. Tudo, menos puxão de orelhas! A preocupação da família cresceu, até que veio o esclarecimento. Abano I decidira-se profissionalmente: — queria ser médico. Caso de vocação explícita, que tudo esclarecia. Alívio geral!

De pronto, o jovem passou de malfeitor a herói. As economias foram carreadas para o seu lado. Os esforços, não medidos. Tudo é nada, quando a meta é a concretização de um sonho! Diploma na mão, Dr. Abano I conquistara o título de Cirurgião Plástico, disposto a embelezar o mundo. E não perdeu tempo. Começou pela família, dando um jeito nela. Um ponto lá, outro cá, e as orelhinhas rebeldes da mãe, dos irmãos e do filho recém nascido, ocuparam, definitivamente, o lugar devido.

O velho Abano, origem de toda essa rebelião auricular anti-estética, foi o único que não se submeteu à técnica. Acostumara-se com o visual da família. Por isso mesmo, estranhou a mulher. Estranhou os filhos. Estranhou o neto. E, quando, afinal, se foi, levou consigo, conformado, aquelas mesmíssimas insubordinadas orelhas que Deus lhe dera e que, aos trancos, conseguira amar!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

Zé Ramalho (Universos de Versos Diversos)


CHÃO DE GIZ

Eu desço dessa solidão
Espalho coisas
Sobre um Chão de Giz
Há meros devaneios tolos
A me torturar
Fotografias recortadas
Em jornais de folhas
Amiúde!

Eu vou te jogar
Num pano de guardar confetes
Eu vou te jogar
Num pano de guardar confetes

Disparo balas de canhão
É inútil, pois existe
Um grão-vizir
Há tantas violetas velhas
Sem um colibri
Queria usar, quem sabe
Uma camisa de força
Ou de vênus

Mas não vou gozar de nós
Apenas um cigarro
Nem vou lhe beijar
Gastando assim o meu batom

Agora pego
Um caminhão na lona
Vou a nocaute outra vez
Pra sempre fui acorrentado
No seu calcanhar
Meus vinte anos de boy
That's over, baby!
Freud explica

Não vou me sujar
Fumando apenas um cigarro
Nem vou lhe beijar
Gastando assim o meu batom

Quanto ao pano dos confetes
Já passou meu carnaval
E isso explica porque o sexo
É assunto popular

No mais, estou indo embora!
No mais, estou indo embora!
No mais, estou indo embora!
No mais!

AVÔHAI

Um velho cruza a soleira
De botas longas, de barbas longas
De ouro o brilho do seu colar
Na laje fria onde quarava
Sua camisa e seu alforje de caçador

Oh meu velho e invisível
Avôhai
Oh meu velho e indivisível
Avôhai

Neblina turva e brilhante
Em meu cérebro, coágulos de sol
Amanita matutina
E que transparente cortina
Ao meu redor

E se eu disser que é mei sabido
Você diz que é mei pior
E pior do que planeta
Quando perde o girassol

É o terço de brilhante
Nos dedos de minha avó
E nunca mais eu tive medo da porteira
Nem também da companheira
Que nunca dormia só

Avôhai!
Avôhai!
Avôhai!

O brejo cruza a poeira
De fato existe um tom mais leve
Na palidez desse pessoal
Pares de olhos tão profundos
Que amargam as pessoas que fitar

Mas que bebem sua vida
Sua alma na altura que mandar
São os olhos, são as asas
Cabelos de avôhai

Na pedra de turmalina e no terreiro da usina eu me criei
Voava de madrugada e na cratera condenada eu me calei
E se eu calei foi de tristeza você cala por calar
E calado vai ficando só fala quando eu mandar

Rebuscando a consciência com medo de viajar
Até o meio da cabeça do cometa
Girando na carrapeta no jogo de improvisar
Entrecortando eu sigo dentro a linha reta
Eu tenho a palavra certa
Pra doutor não reclamar

Avôhai! Avôhai!
Avôhai! Avôhai!

MISTÉRIOS DA MEIA-NOITE

Mistérios da Meia-Noite
Que voam longe
Que você nunca
Não sabe nunca
Se vão, se ficam
Quem vai, quem foi

Impérios de um lobisomem
Que fosse um homem
De uma menina tão desgarrada
Desamparada se apaixonou

Naquele mesmo tempo
No mesmo povoado se entregou
Ao seu amor, por quê?
Não quis ficar como os beatos
Nem mesmo entre Deus
Ou o capeta
Que viveu na feira

Mistérios da Meia-Noite
Que voam longe
Que você nunca
Não sabe nunca
Se vão, se ficam
Quem vai, quem foi

Impérios de um lobisomem
Que fosse um homem
De uma menina tão desgarrada
Desamparada, se apaixonou

Naquele mesmo tempo
No mesmo povoado se entregou
Ao seu amor, por quê?
Não quis ficar como os beatos
Nem mesmo entre Deus
Ou o capeta
Que viveu na feira

Mistérios da Meia-Noite
Que voam longe
Que você nunca
Não sabe nunca
Se vão, se ficam
Quem vai, quem foi

Impérios de um lobisomem
Que fosse um homem
De uma menina tão desgarrada
Desamparada, seu professor

Naquele mesmo tempo
No mesmo povoado se entregou
Ao seu amor, por quê?
Não quis ficar como os beatos
Nem mesmo entre Deus
Ou o capeta
Que viveu na feira

Mistérios da Meia-Noite
Que voam longe
Que você nunca
Não sabe nunca
Se vão, se ficam
Quem vai, quem foi

Impérios de um lobisomem
Que fosse um homem
De uma menina tão desgarrada
Desamparada, seu professor

O GOSTO DA CRIAÇÃO

Somos o mundo girando no meio da imensidão
Algo que tem a verdade e o gosto da criação
Somos o muito e o pouco na múltipla sensação
Quando sacode a poeira do sagrado chão

Luzes explodem além do espelho que refletiu
Ao se afastar a imagem de alguém que você não viu
Não adianta mudar o destino que prosseguiu
Nem afastar o desejo que você sentiu

Como saber da final esperança pra saber
Que há fartura e muita bonança pra dizer
Onde fica o mágico fim é assim
É você e o gosto de mim

Pra saber onde fica o mágico fim é assim
É você e o gosto de mim

PORTA DE LUZ

De onde vem
Essa mania de saber
Como é bom
Quando estou perto de você
Parece o mundo
Que acabou de começar
Num movimento
De paixão e de silêncio

De onde foi
Que essa estrela apareceu
Que oceano ou que céu iluminou
A minha estrada tão comprida
Vai chegar ao seu final
Quando abraçar você

Só agora compreendi
Que o caminho que segui
Veio dar na sua porta de luz
Tudo agora está tão fácil
E seguro para nós
Minha voz está bem dentro da sua

Se for buscar
Aquele sonho
Eu vou
Para provar
Que amo só você

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Trova 349 - André R. Rogério


Contos e Lendas do Mundo (Índia: A Divindade dos Homens)

Houve um tempo em que todos os homens eram deuses. Mas eles abusaram tanto de sua divindade que Brahma, o mestre dos deuses, tomou a decisão de lhes retirar o poder divino. Resolveu então escondê-lo em um lugar onde seria absolutamente impossível reencontrá-lo. O grande problema era encontrar um esconderijo. Brahma convocou um conselho dos deuses menores, para juntos resolverem o problema.

- Enterremos a divindade do homem na terra, foi a primeira ideia dos deuses.

- Não, isso não basta, pois o homem vai cavar e encontrá-la.

Então os deuses retrucaram:

- Joguemos a divindade no fundo dos oceanos.

Mas Brahma não aceitou a proposta, pois achou que o homem, um dia iria explorar as profundezas dos mares e a recuperaria. Então os deuses concluíram:

- Não sabemos onde escondê-la, pois não existe na terra ou no mar lugar que o homem não possa alcançar um dia.

Brahma então se pronunciou:

- Eis o que vamos fazer com a divindade do homem: vamos escondê-la nas profundezas dele mesmo, pois será o único lugar onde ele jamais pensará em procurá-la.

Desde esse tempo, conclui a lenda, o homem deu a volta na terra, explorou escalou, mergulhou e cavou, em busca de algo que se encontra nele mesmo.

Fonte:
Contos de encantar