quarta-feira, 26 de junho de 2019

Carolina Ramos (Eulália Só...)


Trouxa de roupa equilibrada à cabeça, vinha ela. O pescoço firme, bem torneado, descendo vertical até perder-se na curva suave do colo cheio, garantia a estabilidade da
carga.

Da varanda fresca, franjada de samambaias, o velho médico examinava a figura esguia, atento à elegância flexível e natural. As damas da alta, empilhavam livros à cabeça, para emprestar leveza e graça ao caminhar. Para ela, a trouxa de roupas bastava. O efeito, embora não buscado, era o mesmo. Sob o aplauso das chinelas, que batiam plac-plac, no lajedo da calçada, tudo era graça e equilíbrio, desde a carapinha cuidadosamente trançada, à curva das canelas finas. Conceituado cirurgião, de há muito aposentado, Dr. Breisser seguia-lhe os passos desde que dobrara a esquina. Viu-a aproximar-se, através da fumaça do cigarro preso entre os dedos trêmulos, analisando-a quase que com interesse anatômico. Lembrava-se de quando a vira pela primeira vez, menina, ainda. Dez ou doze anos, no máximo. Viera pedir emprego. Magrinha. Perebenta. Olhos grudados no chão.

A senhora Breisser indagara, com ternura, erguendo-lhe o queixo, com a ponta dos dedos: — "Como é que você se chama?"

A menina respondera num fio de voz: — "Eulália."

Insistira a senhora Breisser: — "Eulália do quê?”

— "Só Eulália..." — um altear rápido de ombros, e a menina encerrara o assunto: — "Eulália só..."

Não houve jeito de descobrir-lhe a origem. Pais desconhecidos. O nome fora escolhido par ela mesma, quando sentira necessidade de um. Eulália era o nome da mãe da primeira amiguinha encontrada em seu caminho e que lhe despertara um lampejo de afeição. Gostou dele. Adotou-o. Ficou sendo mesmo Eulália. Ou melhor, Eulália Só. Assim fora registrada. Nascera em algum lugar. Crescera por aí, abastecendo-se aqui e ali, ajudada pelo lado bom da humanidade. Difícil de ser encontrado, mas ainda existente. Que nem tudo é perdido! Questão de procurar e achar aquela mão dadivosa, pronta a abrir-se no momento exato.

Eulália Só — semente solta ao vento — desconhecia o ventre do fruto que a gerara, mas, conservava dentro de si o germe da vida, Lutou por ele. Sobreviveu! Como fora parar naquele local, nem ela mesma sabia. Pela mão de alguém, lá chegara e deitara raiz. O vento arrasta a semente, porém chega o dia em que ela se agarra a alguma coisa e se fixa.

Se encontrar solo propício, viceja. Foi o que se deu com Eulália. Fixou-se. Vicejou. Aos quinze anos, descobriu o amor. Descobriu também, e muito cedo, que o carinho dos homens pode produzir frutos. Não tardou em frutificar. Nem chegou a usar a grinalda, comprada com tanto carinho.

Enquanto sentia expandir-se dentro de si a molécula do amor, via escapulir-se o noivo. E sem deixar pista. Guardou a grinalda no fundo da gaveta, escondida como coisa proibida. Não usada, parecia-lhe prova de pecado. Nove meses depois, nascera Dora. Por sadismo do destino, fraquinha e doente. Os membros inferiores logo provaram a incapacidade de acompanhar o desenvolvimento do corpo. Negavam-se a andar, Não andaram nunca. Dora passou a viver recostada em travesseiros, num cesto ao qual um vizinho generoso adaptara rodas. E esse mesmo generoso vizinho fizera com que, ano e meio depois, o lar de Eulália se embandeirasse, novamente, de fraldas, festejando a chegada do Zeca, mais clarinho do que a mana, já que o pai era branco. Pai que, a exemplo da irmã, não chegou a conhecer.

Ao vir á luz, já o vizinho tinha novos vizinhos, em plagas não vizinhas. Não fora a prodigalidade do seio materno, o garoto não teria tido chances, nem condições físicas futuras para empurrar, com tanta desenvoltura, o carrinho da irmã maior.

Com dois filhos à roda e mais um a caminho, Eulália Só não era mais só, mas, manteve o nome. Ninguém lhe oferecera outro. A grinalda permanecia guardada no fundo da gaveta. As flores de laranjeira, feitas de cera perolada, amarelando.

Cada vez que chegava ao velho casarão dos Breisser, corpo arredondado por nova gravidez, Eulália vinha de olhos baixos e voz sumida. Tinha brio. Brio não custa dinheiro. E patrimônio. Dificilmente se perde. Morre com ele, quem com ele nasce. E era o peso do brio que baixava os olhos de Eulália e fazia sua voz sumida. A senhora Breisser, com ternura infindável e paciência de santa, renovava os conselhos, um a um. 

Eulália chorava. Eulália prometia. Prometia não acreditar mais em promessas de ninguém. Prometia... por isso, não chegava a acreditar nem nas próprias promessas!

O quarto filho levou-a ao hospital. A criança não resistiu. E quase carregou a mãe consigo. Não fora a dedicação dos Breisser, e adeus Eulália! A lição, afinal, surtiu efeito.
Eulália pôs distância definitiva entre o seu coração e o coração dos homens. Instalada em seu casebre modesto, de janelas verdes e telhado de uma água, passou a viver só para os filhos. Continuou a lavar roupas. As mãos escuras não maculavam a alvura da espuma e, por estranha alquimia, as roupas saíam branquinhas. Mais branquinhas do que de outra qualquer mão!

Tantos anos passados, e vinha ela uma vez mais chegando, trouxa à cabeça, como sempre. Ia longe o tempo em que se apresentara ao casal Breisser pela primeira vez, perebenta, olhos grudados no chão, voz sumida. Agora, mulher feita, mãe de três filhos. Dois rodando por aí, fazendo sabe-se lá o quê, esquecidos dela. A outra, presa à cadeira de rodas, presente do doutor.

Eulália passou a mão por cima do portão, fazendo correr o trinco. O pescoço permanecia firme, equilibrando a trouxa.

— "Boa tarde, seu doutor..."

— "Boa tarde, Eulália. Como vão as coisas?"

— "Mais pra lá do que pra cá..."

— "E Dorinha?"

— "Na pior! Anda encucada. Não dá nem pra gente conversar. Também, do que é que a gente vai falar?! Pra não mastigar tristeza, melhor, mesmo, é ficar de boca fechada."

O médico examinava, com atenção, a mulher que tinha à frente. Moça ainda. Pobre Eulália! De longe, o vulto enxuto a fazia mais jovem. De perto, o cansaço e o desencanto, artistas implacáveis, alteravam-lhe os traços, com pinceladas de desesperança e tintas de angústia.

Há algum tempo, Dr. Breisser peneirava o assunto. Planejara e medira tudo com desvelo de minucioso arquiteto. Difícil, contido, expor o que havia arquitetado. Viúvo, sem filhos, aposentado, via a idade avançar, sem maiores preocupações ou ambições. Tinha, porém, como objetivo, não deixar perdida, com o seu desaparecimento, a polpuda aposentadoria. Alguém teria de beneficiar-se dela. E esse alguém, bem que poderia ser Eulália. Ninguém preenchia melhor os requisitos, uma vez que, só, desamparada e sustentando, ainda, uma filha doente.

Beirando os oitenta, o velho cirurgião sabia terem de ser práticas e rápidas as decisões. Fechou o livro que tinha em mãos. Esmagou o cigarro no cinzeiro, descansando os olhos claros na figura cor de café.

— "Eulália, eu vou me casar com você."

Ao trança-pé da surpresa, Eulália sentiu, pela primeira vez, desequilibrar-se a trouxa que trazia á cabeça. Amarelou! Tinha, pelo Dr, Breisser, a veneração, o carinho e o especial respeito que dedicaria a um pai, caso a vida lhe tivesse dado um. Profundamente embaraçada, desceu devagarinho a trouxa, colocando-a sobre a mesa. Reunindo forças conseguiu gaguejar, num sussurro;

— "Que é que foi que o doutor disse?!"

A voz grave do velho médico confirmou, clara e pausadamente:

— "Eu disse que vou me casar com você, Eulália,"

Petrificada, sem saber o que fazer, ou dizer, Eulália, como em tempos passados, grudou os olhos no chão, mais confusa do que nunca. A bondade do médico prontificou-se em ajudá-la:

— "Não fique assim, Eulália. Não há nada demais! Casamos e pronto! Você continua lá, na sua casa, eu continuo aqui. Quando eu morrer, você receberá o que eu lhe deixar. Simples, não ?!

Os olhos de Eulália, redondos de espanto, desgrudaram do chão. A emoção derreteu o gelo da perplexidade e dobrou-lhe os joelhos. Com lágrimas e beijos, lavou e enxugou as mãos do benfeitor.

Casaram-se, um mês depois. No civil e no religioso. Cerimônia íntima, sem convidados. Presentes, apenas, as testemunhas indispensáveis e Dorinha, na primeira fila, em sua cadeira de rodas.

À noite, sozinha no quarto, Eulália colocou, na carapinha trançada, a grinalda de flores de laranjeira, já sem a cobertura perolada. Era uma senhora. A senhora Breisser! Repetiu, acentuando as sílabas: — "Brais-ser...!" — um nome que se escrevia de um jeito e se lia de outro. Um nome aberto... claro! Claro e luminoso como os olhos do doutor.

Apesar da idade, o doutor tinha olhos de menino. De menino bom, cansado de olhar o mundo perverso. E ele lhe dera o nome de presente, como menino que dá de presente um brinquedo muito usado, mas, muito precioso, também. Breisser não era um nome qualquer. Era nome honrado, respeitado, querido! Nome de alguém que acrescentara muitos nomes á lista promissora da vida e roubara tantos outros ao doloroso rol da morte.

Resignou-se. O nome claro não combinava com a sua pele escura! Eulália Breisser era um nome que soava falso! Era como se, de uma hora para outra, passasse a usar no dedo um enorme brilhante, Embora faiscante, quem acreditaria nele?! O pouco que poderiam dizer é que seria falso ou, o que era pior... que o teria roubado. Cruzes! Eulália Breisser... soava como sacrilégio!

Em sua auto-punição, lembrou-se da primeira senhora Breisser... tão linda, tão fina, tão inteligente! E tão sua amiga! Aquela, sim, merecia o nome do doutor!

Eulália, casada, continuou a cuidar, agora, com redobrado carinho, das roupas do doutor. À dedicação e ao desvelo de outrora, somava-se a gratidão do presente. Apenas isto poderia explicar saírem as roupas mais brancas do que nunca, das mãos escuras de Eulália.

Um ano após o casamento, Eulália enviuvou. E chorou. Chorou muito! Tanto quanto chora quem sabe ter perdido um grande pai!

Trouxeram-lhe papéis para que assinasse. Fez tudo certinho, como lhe mandaram, desenhando letras com muito cuidado. Certinho, também passou a receber a sua cota de viúva. Todavia, quando lhe indagavam o nome, vinha-lhe à mente a figura bondosa e amiga da primeira senhora Breisser. E então respondia segura, sem voz sumida, sem olhos grudados no chão:

— "Meu nome é Eulália... Eulália Só."

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XVII


A POESIA...
    
Para... Há sombra aqui! Para e descansa!
Já ficou para trás a aridez do deserto!
Ao teu lado, a fugir num leito claro e incerto
brinca um riacho feliz de alma ingênua de criança!

Aqui, a terra veste as cores da esperança
e na árvore que oscila e faz sombra, e está perto,
há um pássaro que canta e irrequieto balança
o ramo que de flores todo está coberto!

Há sombra aqui... há um pouco de paz ao redor...
Chegas cansado e triste a arrastar tuas mágoas,
para, - descansa um pouco... e sonha que é melhor...

Dorme, e ouve a canção que te embala dos ninhos,
- se a vida, é como um rio a rolar suas águas,
a poesia- é uma sombra à margem dos caminhos.

ADOLESCÊNCIA

Cabelos leves de vento,
       vento de sol, ouro e música,
boca úmida, alvorada, 
      canto de pássaro sem nome.

Mãos de sonho, vagas mãos
como desejo impossível,      
pressentir como bailados,   
- onde o palco iluminado?  

Curvas, não formas, apenas
     curvas despontando - geração.
Ritmo solto, avançando      
pelo futuro talvez                 
ou pela rua dos olhos.        

Riso, dor irrevelada,         
canto efêmero, prenúncio,
mistério infinito do eco     
múltiplo, pelos espelhos     
se projetando no tempo.     

Irrevelada brancura             
passo no espaço, ascensão,
desejo, ah! o desejo é tudo  
na louca metamorfose,      
- sonho de asas, quase vida!

AH! NÃO SERIA ISTO POESIA?

A alegria provocante do teu sorriso
a fresca alegria
da tua boca molhada como os caminhos
ao nascer do dia,
-ah ! não será isto poesia?

A música de abismo no silencio longo
do teu beijo que atrai,
essa estranha vertigem que inebria,
- ah! não será isto poesia?

O vento a acariciar os tens cabelos soltos
teus cabelos revoltos
macios e leves,
como painas, como nuvens, como neves,
tecidos de seda e de luz
numa estranha magia
ah! não será isto poesia ?

E o mistério de teus olhos profundos, castanhos,
que atraem como horizontes
para mundos estranhos,
onde há noites de amor, e nunca chega o dia ...
- ah! não será isto poesia ?

A visão do teu pescoço branco, selado como um templo,
pelo véu de teus cabelos louros, que eu descubro
nos delírios de minha fantasia,
- ah! não será isto poesia?

E o lóbulo de tua orelha, pequenino, redondo,
onde a maciez do teu corpo se adivinha,
e onde mora o perfume de tua carne que antevejo
e se anuncia ...
- ah! não será isto poesia?

E a beleza de tua adolescência, insubmissa e revolta,
no ritmo de tuas formas libertadas
ferindo o meu olhar como saga bravia ...
- ah! não será isto poesia?

E a tua voz
- a noite que se fez sorri numa flauta macia -
e teu corpo, uma bandeira inquieta desfraldada,
teu amor, prece sensual para a minha heresia...
- ah! não será isto poesia?

- Sim, isto tudo é poesia, em vida revelada,
porque tu és a Poesia, oh! minha doce amada!

ÂNSIA  VAGA
   
Sempre a vida em conserva
o mundo a os acontecimentos
na tela dos mesmos cinemas,
e as mesmas historias em livros diferentes
   e em livros diferentes sempre os mesmos poemas . . .

Sempre a vida em conserva
gravada em discos, irradiada de longe, fotografada,   
nunca a presença, a emoção sentida
deslumbrada...

Ah! pisar outros chãos, colher flagrantes reais
de imprevistas naturezas
feliz a irresponsável como um menino
sem ninguém compreender o que eu faço e o que eu falo . . .

Ah! tomar de surpresa o meu próprio destino,
olhá-lo com os meus olhos cheios de belezas
e assombrá-lo!

AUSÊNCIA 
   
Quando estás longe, querida,
na minha angústia sem fim,
saudade, é o nome da vida
que morre dentro de mim...

Saudade, - estranha ilusão
que à solidão recompensa,
presença no coração
maior que a própria presença.   

Presença no coração
que à vida não satisfaz...
Saudade, estranha emoção
que a distância aumenta mais.

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. SP: Ed. Theor, 1965.

Malba Tahan (Mil Histórias sem Fim) Narrativa 9


História singular de um turbante cinzento e a estranha aventura de um enforcado. O encontro inesperado que teve o herói do conto com uma jovem que chorava no meio de uma grande floresta.

 Das Mil histórias sem fim é esta a nona!

 Lida a nona restam, apenas, novecentas e noventa e uma.

Meu nome é Sind Mathusa. Poucos homens têm havido, na Índia, mais ricos do que meu pai e não sei de um só que o excedesse em inteligência, bondade e prudência.

Sentindo-se, certa vez, assaltado de grave enfermidade, e na certeza de que os dias que lhe restavam na vida podiam ser contados pelos dedos da mão, meu pai chamou-me para junto de seu leito e disse-me:

- Escuta, ó jovem desmiolado! Atenta bem no que te vou dizer. És pela lei o herdeiro único de todos os bens que possuo. Com o ouro que te vou deixar poderias viver regaladamente, como um rajá, durante duzentos anos, se a tanto quisessem os deuses prolongar a tua louca e inútil existência. Como sei, porém, que és fraco para resistir aos vícios, e forte em seguir os maus exemplos, tenho a triste certeza de que muito mal empregarás a riqueza que vai em breve cair-te nas mãos. Quero, assim, fazer-te agora um pedido: se for atendido morrerei tranquilo e não levarei para a vida futura o tormento de uma angústia.

- Dizei-me, meu pai - respondi -, qual é o teu desejo. Quero ser mais repelente do que um chacal se deixar de cumprir a tua vontade!

- Meu filho, quero arrancar de ti um juramento. Vês aquele turbante cinzento que ali está? Vais jurar pela imaculada pureza dos ídolos e pelas asas de Vichnu (1) que se algum dia te sentires desonrado procurarás imediatamente a reabilitação que a morte concede aos infelizes, enforcando-te naquele turbante!

Fiz, sem hesitar, a vontade ao enfermo. Jurei pelos ídolos e pelos complicados deuses da Índia que se me visse, no futuro, ferido pela mácula da desonra, procuraria a morte ao enforcar-me no turbante cor de cinza.

Passados dois ou três dias, meu pai, fechando os olhos para a vida, integrou-se no Nirvana. Vi-me, de um momento para o outro, senhor de inúmeras propriedades, das quais auferia uma renda que chegava a causar inveja e insônia ao orgulhoso xá da nossa província. Passei a ostentar uma vida de luxo e dissipações; rodeavam-me, dia e noite, falsos amigos e bajuladores da pior casta que me induziam a praticar toda a sorte de leviandades e loucuras.

Uma noite, tendo reunido em minha casa, como habitualmente o fazia, em grande festa, vários e divertidos companheiros da nossa laia, um deles chamado Ishame, que adquirira considerável riqueza vendendo camelos e elefantes, convidou-me para uma partida de jogo de dados. A princípio a sorte me foi favorável; cheguei a ganhar num golpe o meu peso em marfim. Cedo, porém, perseguido por uma triste fatalidade, entrei a perder e os meus prejuízos excederam de mais de cem vezes o lucro inicial. 

Com a esperança de recuperar o dinheiro perdido redobrei as paradas. Perdi novamente. Na progressiva loucura do jogo, já alucinado, arrisquei nos azares da sorte as minhas joias, escravos e propriedades. Mais uma vez perdi, e ao nascer do sol sobre o Ganges nada mais me restava da herança de meu pai. Na certeza de que poderia contar com a generosidade e auxílio daqueles que me rodeavam, fiz, com a garantia da minha palavra, uma grande dívida de honra, ao perder a última partida. Procurei um jovem brâmane, filho de opulenta família e que sempre vivera a meu lado, no tempo da fartura, e pedi-lhe que me emprestasse algum dinheiro.

- Meu caro Sind - disse-me o brâmane conduzindo-me para o interior de sua rica vivenda -, chegas em péssima ocasião. Fui obrigado a enviar ontem, para resgatar uma dívida de meu pai, cerca de duas mil rupias para Benares. Encontro-me inteiramente desprevenido. Lamento, portanto, não poder servir a um amigo tão querido.

Olhei para as pratarias que se amontoavam por todos os recantos de sua casa. Havia narguilés riquíssimos e bandejas com inscrições que deviam valer alguns milhares.

- Nada disso é nosso - acudiu logo o brâmane, apontando para os adornos e enfeites. - É desejo de meu pai casar minhas irmãs com homens de boa casta, e para atrair os pretendentes alugou toda essa prata e esses tapetes bordados a ouro. Todos acreditam, desse modo, que somos ricos e que vivemos na fartura e na opulência.

Irritado com o cinismo daquele falso amigo, disse-lhe com calculada frieza:

- Bem sabes que sou descendente de nobres e que meus avós pertenciam à mais alta linhagem da Índia. Declaro, pois, que para fugir da situação em que me encontro, estou disposto a casar com uma jovem fina e educada. Peço, pois, a tua irmã mais moça em casamento.

Sorriu o brâmane:

- Pedes em casamento uma jovem que não conheces e que talvez não te aceite para esposo. Em nossa família os casamentos não são ditados pelos interesses pessoais; a mulher deve ser ouvida e suas inclinações pessoais levadas em linha de conta. Se desejas pagar dívidas de jogo com o dote de minha irmã mais moça, sinto dizer-te que estás equivocado, jamais aceitaria, como cunhado, um homem que se arruinou em consequência de uma vida desregrada e pecaminosa!

E, conduzindo-me até a porta de seu palácio, empurrou-me delicadamente para a rua.

Apesar desse péssimo acolhimento, não desanimei. Fui ter à casa em que morava um mercador chamado Meting, que era assíduo frequentador de minha mesa. De mim havia Meting recebido inúmeros obséquios e finezas, e muito dinheiro para ele eu perdera no jogo.

- Que desejas de mim? - perguntou-me. Disse-lhe que precisava de pequeno auxílio.

- Julgas que eu sou algum imbecil da tua espécie? - respondeu-me. - De mim não terás nem um thalung (2) de cobre!

Desesperado, vendo-me repudiado por todos, e sem recursos para pagar o imenso débito que contraíra, abandonei o palácio e fui ter a um grande bosque nas vizinhanças da cidade. Era meu intento cumprir o juramento que formulara junto ao leito de meu pai.

Escolhi, portanto, entre muitas, uma belíssima árvore. Subi pelo nodoso tronco, sentei-me em um dos galhos mais altos, desenrolei o longo e belo turbante cor de cinza, amarrei uma das suas extremidades em outro galho que estava a meu alcance e fiz na outra extremidade um laço seguro em torno do pescoço. Todos esses preparativos trágicos executei-os com a maior calma, sentindo, embora, o coração opresso pela mais imensa tristeza.

Já ia deixar cair o corpo no espaço, quando, ao reforçar o laço fatal que me estrangularia, notei que havia na ponta do turbante, por dentro, qualquer coisa de muito resistente. Que seria? Na esperança louca de encontrar ali qualquer coisa que me pudesse salvar, rasguei o turbante. Embora pareça incrível, senhor, devo contar: de dentro dele retirei uma carta de meu pai redigida nos seguintes termos:

Estás desligado do teu juramento. Vai à casa de Kashiã, o tecelão, e pede-lhe a caixa de areia. Quem se salva por um milagre da desonra e da morte deve evitar o erro e procurar o caminho reto da vida.

Ébrio de alegria saltei da árvore e quase a correr fui ter à choupana onde morava o pobre Kashiã, apelidado “o tecelão”; recebi das mãos desse pobre homem a lembrança que meu pai ali deixara para me ser entregue.

Ao abrir a misteriosa caixa quase desmaiei, tão grande foi o meu assombro. Estava repleta de brilhantes, pérolas e rubis - alguns dos quais valiam mais que as coroas dos príncipes hindus.

Possuidor de tão grande riqueza, não soube dominar a tensão de que fui presa e chorei. Lembrei-me de meu bom pai, sempre generoso e prudente, que ao prever a minha desgraça usara daquele artifício para salvar-me. Era evidente que eu só poderia obter a caixa com auxílio da carta, e a existência desta só chegaria ao meu conhecimento se o turbante fosse por mim próprio desmanchado.

Como louco que se salva de um abismo ao fundo do qual se atirara, assim me vi naquele momento. Depois de lançar aos pés do velho Kashiã um punhado de preciosas gemas, tomei a caixa e encaminhei-me para a cidade. Era minha intenção pagar todas as minhas dívidas e readquirir as minhas antigas propriedades. Quis, porém, a fatalidade que tal não acontecesse.

Ao atravessar um pequeno e sombrio bosque nas margens do Elir, encontrei sentada sob uma grande árvore uma jovem de deslumbrante formosura. Os seus olhos azuis tinham um pouco do céu da Índia com os reflexos mais verdes do mar de Omã. As faces eram como as da terceira deusa do templo de Yhamã. Os lábios da linda criatura tinham um encanto a que talvez não pudesse resistir o faquir mais puro e mais santo da terra. Com essas comparações não exagero a beleza da desconhecida; ao contrário, fico muito aquém da verdade.

A jovem chorava. Os seus soluços vibravam em ondas de indizível angústia.

- Que tens, ó jovem? - perguntei-lhe carinhoso, aproximando-me dela. - Qual é o motivo do teu pranto? Se para o teu mal há remédio, dentro dos recursos humanos, certo estou de que saberei livrar-te de qualquer desgosto!

Isso eu dizia tendo sob um dos braços a preciosa caixa, cheia de cintilantes pedras que me dariam ouro, fama e poderio.

Sem interromper o seu copioso pranto, a jovem olhou com surpresa para mim, segurou com os lábios o belo manto de seda que lhe caía sobre os ombros, e, puxando-o para o lado, deixou a descoberto o colo e os braços mais alvos, ambos, do que as penas das garças sagradas de Hamadã.

Recuei horrorizado. A infeliz tinha as duas mãos cortadas junto aos pulsos!

- Ó desditosa criatura! - exclamei, a alma oprimida pela maior angústia. - Qual foi o bárbaro autor de tamanha crueldade? Conta-me a causa de tua desgraça, e fica certa de que poderás armar o meu braço com o ódio que a vingança te souber inspirar.

A desditosa jovem, entre soluços, narrou-me o seguinte:
_____________________________
Notas
1 Uma das muitas formas que os hindus atribuem às divindades. Vichnu é representado por dez formas diferentes.
2 Thalung - moeda de ínfimo valor.
________________________
continua…
_________________________________

Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. vol. 2.

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Baú de Trovas e Versos Afins n. 2


O SELO
(1920)

Subiu o imposto do selo,
mas quem do selo se priva?
Inda é bom que não rareie
a produção da saliva!

CALORÃO
(1920)

Em todas as terras frias
está faltando o carvão;
Que pena que não se exporte
este brabo calorão!

NA BAHIA
(1920)

Na Bahia toda gente
tem liberdade bastante,
contanto que esteja dentro
...do partido dominante.

BURRO VELHO
(1909)

Tanta gente que se admira
do macaco fazer renda,
mas eu já vi um burro velho,
ser caixeiro numa venda.

Fonte:
Iba Mendes (seleção/organização). Trovas e Cantigas. São Paulo, 2019.

Luciano Dídimo (Poemas Avulsos) 1


A SINFONIA

Na nossa oração
de cada dia
estamos unidos a cada irmão
como um conjunto de
instrumentos
em harmonia
mesmo na nossa solidão

Na nossa oração
de cada dia
elevamos a Deus
nossa gratidão
nossa alegria
e nossa intercessão
numa única e grande
sinfonia

JARDIM FLORIDO

Os mártires de ontem
Adubaram com sangue
A terra desse jardim
Que hoje florifica

Os mártires de hoje
Regam com sua vida
As flores desse jardim
Assim o fortifica

Com sangue derramado
Ou com martírio branco
Pelas vidas doadas
O jardim frutifica

Cada gesto de amor
Cada mão estendida
Cada ato de louvor
O jardim vivifica

 O BIBLIOTECÁRIO

O bibliotecário
Nos ajuda a navegar
No mar de informações

No oceano dos livros,
Revistas e documentos
Ele é a bússola
Que orienta
A nossa busca

No grande mar
Da leitura e da cultura
Ele é o farol
Que nos guia
Na noite escura

No velejar
Nas águas da pesquisa
Ele é a âncora
Que nos faz aportar
Em segurança

O POETA INTERNAUTA

O poeta internauta
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Constrói as suas stories

O poeta internauta
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No seu site e facebook
Na sua linha do tempo

O poeta internauta
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Na lista de transmissão
E nos grupos de whatsapp

O poeta internauta
compartilha seu poema
No direct e no twitter
Por e-mail e pelo messenger

O poeta internauta
Só esquece um detalhe
Se um dia sair o livro
Todo mundo já vai ter lido!

TEMPO E VIDA
Para Vicente Vieira, nos seus 80 anos

Convertido em poeta
Caminha a letras largas
Vai andando sobre o mar
Deixa rastro de pegadas

Sozinho na multidão
Sem rumo no rumo certo
Contempla o universo
Que cabe em um só verso

No seu olhar no espelho
Você está muito bem
Fica atento ao conselho
Que lhe sussurra alguém

Lá no seu gabinete
Na própria companhia
Vem à memória o tempo
Que o Tempo prevalecia

No embalo da rede
Entoa a poesia
Traduz sua melodia
Afasta a melancolia

Entoa os seus cantos
E os seus desencantos
Versos sem rima brancos

Descobre que o amor
transborda nas discussões
e traz sempre as soluções

Descobre que mãos abertas
Nas ocasiões certas
Mostram as limitações

Não é tempo de despedida
Que a saúde se hospede
E tenha boa guarida

Que Deus mantenha viva
O brilho da fagulha
Na fogueira da vida

Até chegar a colheita
Quando a nova trajetória
Será enfim perfeita

Fonte:

Luciano Dídimo (1971)


Luciano Dídimo Camurça Vieira, nasceu em Fortaleza/CE, em 1971. Filho do poeta, ficcionista e ensaísta Horácio Dídimo Pereira Barbosa Vieira e Maria Evendina Camurça Vieira.

Graduado em Administração de Empresas pela Universidade Estadual do Ceará, em Direito pela UNIFOR - Universidade de Fortaleza. Pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela UNIDERP. Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região. Diretor de Secretaria da 7ª Vara do Trabalho de Fortaleza. Secretário de Imprensa e Cultura do Sindissétima - Sindicato dos Servidores da 7ª Região da Justiça do Trabalho nos biênios 2016/2017 e 2018/2019. 

Membro da Ordem dos Carmelitas Descalços Seculares (OCDS). Presidente Provincial da OCDS (Província São José) nos triênios 2013-2016 e 2016-2019. Membro da Academia Brasileira de Hagiologia (ABRHAGI), integrando sua diretoria como Relações Públicas nos biênios 2016/2017 e 2018/2019. Cadeira n. 31 da AVIPAF – Academia Virtual Internacional de Poesia, Artes e Filosofia.

Luciano Dídimo publicou artigos e livros, participou da Antologia Carmelitana da editora LumenGraf, São Paulo, e organizou um livro.

Obras
O Meu Carmelo é Marrom (2011)
A Rosa da Certeza (2016)

Fontes:

Malba Tahan (Mil Histórias sem Fim) Narrativa 8


História surpreendente do infeliz Balchuf, que deixou o trono, a título de experiência, nas mãos de um príncipe louco.

 Das Mil histórias sem fim é esta a oitava!

Lida a oitava restam, apenas, novecentas e noventa e duas...

No país de Astrabad vivia outrora um rei perverso e mau chamado Balchuf.

Não tendo filhos, era seu herdeiro um sobrinho - o príncipe Kabadiã -, moço desajuizado e turbulento que vivia a cometer toda sorte de loucuras e estroinices. Raro era o dia em que o futuro rei não praticava uma proeza qualquer.

O rei Balchuf, longe de procurar corrigir-lhe a índole arrebatada e travessa, distraía-se com suas extravagâncias e ria-se quando ouvia contar alguma nova tropelia daquele a quem já chamavam o “Príncipe Louco”.

O povo de Astrabad antevia bem triste os dias que o aguardavam. Entregue a um monarca impiedoso e sanguinário, o país entraria fatalmente em completa decadência. 

Os estrangeiros já fugiam de Astrabad com receio das perseguições, e o comércio arrastava-se onerado e sem ânimo, coberto de impostos exorbitantes.

Um grupo de patriotas, compreendendo que aquele estado de coisas levaria todos à ruína, resolveu conspirar contra o rei, proclamar a República e entregar ao mais digno a direção do Estado.

Houve, porém, entre os oposicionistas um miserável delator que se apressou em levar ao conhecimento do rei o plano deliberado pelos conspiradores.

Enfureceu-se o soberano ao ter notícias de que alguns ricos súditos pretendiam subverter a ordem legal do país, e resolveu castigar implacavelmente os chefes daquele movimento republicano. Mandou degolar alguns, eliminando os mais influentes, desterrou outros, prendeu os suspeitos e confiscou os bens de todos os adeptos da revolução.

Esta vitória não lhe restituiu, porém, a tranquilidade que perdera. O fantasma da revolta continuava a povoar-lhe a mente, como um sonho mau.

“Uma tentativa destas”, pensava, “deixa terríveis germes nos corações dos descontentes e dos vencidos. Se eu não tomar uma providência enérgica, cedo terei de dominar outra rebelião. E encontrarei, porventura, quem me avise a tempo?”

Preocupado com tais pensamentos, resolveu o rei Balchuf mostrar ao seu povo que ele não era tão ruim como os seus adversários faziam crer.

“Para isto”, refletiu maldoso, “vou afastar-me durante um ano do governo e deixar meu sobrinho no trono. Tais loucuras há de ele praticar, tão frequentes serão os seus atos de tirania que quando eu voltar o povo respirará menos oprimido e verá em mim um soberano ponderado e justo.”

Ora, o rei Balchuf fora informado de que o Príncipe Louco dissera várias vezes a seus amigos e companheiros que quando subisse ao poder praticaria, de início, três façanhas espantosas: uma represa das águas do rio Gurgã; a construção de um castelo subterrâneo; e a abolição do véu para as mulheres.

E, antegozando a dura lição que infligia ao país inteiro, esfregava as mãos de contente:

“O primeiro ato de meu tresloucado sobrinho levará o país às portas da miséria; o segundo à ruína completa; e o terceiro à revolução religiosa e à guerra civil!”

E resolvido a pôr em execução, sem mais delongas, o plano diabólico, o rei Balchuf assinou um decreto em virtude do qual seu sobrinho Kabadiã o substituiria no governo pelo espaço de um ano. Ele - o rei - iria, durante esse tempo, fazer uma visita ao seu velho amigo Iezide II, sultão do Hajar.

Foi com verdadeiro pavor que o povo de Astrabad recebeu a nova da viagem do rei e a consequente ocupação temporária do trono pelo Príncipe Louco.

Partiu o rei Balchuf resolvido a regressar dentro do prazo marcado. Preso, entretanto, por uma grave e prolongada enfermidade no longínquo país de Hajar, não pôde voltar senão quatro anos depois.

Chegado a Astrabad, depois de tão longa ausência, notou que os seus domínios haviam progredido extraordinariamente. Um vizir que por ordem do governo veio esperá-lo na fronteira disse-lhe, sem mais preâmbulos:

- Penso que Vossa Majestade não deve tentar reassumir o trono, pois o povo poderia revoltar-se e massacrá-lo.

- Como assim? - exclamou o rei. - Será possível que meus súditos prefiram ser governados pelo Príncipe Louco a ter-me no trono?

- Peço humildemente perdão a Vossa Majestade - recalcitrou o vizir. - Devo asseverar, porém, que Vossa Majestade está completamente equivocado. O príncipe Kabadiã está governando admiravelmente o país. Até hoje, não havíamos encontrado um chefe de Estado de mais ampla visão e sabedoria!

- É incrível! - protestou o rei. - E a represa do rio Gurgã? E o palácio subterrâneo? E a célebre abolição do véu feminino? Não teria o príncipe praticado nenhuma dessas tão prometidas loucuras.

O vizir explicou, então, ao rei Balchuf que tudo isso e muito mais havia feito o príncipe. A represa do rio Gurgã fora de consequências magníficas, pois as águas espalharam-se pelas terras vizinhas, fertilizando-as e tornando-as mui aperfeiçoadas à agricultura, que logo se desenvolveu; o palácio subterrâneo, depois de construído, tornou-se grande atrativo, e milhares de forasteiros visitaram a capital unicamente para admirar essa nova maravilha, o que para o comércio de Astrabad fora manancial de grandes lucros, e para o país fonte de gerais prosperidades. A abolição do véu feminino fora outra medida de alcance admirável. As raparigas passaram a andar com o rosto descoberto: abandonaram a ociosidade dos haréns e puderam trabalhar livremente não só nos bazares como nas pequenas indústrias. Uma vez condenado o véu, teve o príncipe ocasião de observar que suas jovens patrícias eram belíssimas e resolveu casar-se. Escolheu para esposa uma menina, formosa e inteligente, filha de um grande sábio. A nova princesa exerceu tão boa influência sobre o gênio de seu jovem esposo que o transformou radicalmente. Aconselhado pela fiel e dedicada companheira, o príncipe escolheu bons ministros, esforçados auxiliares, e, bem guiado e melhor secundado, soube modificar bastante o seu gênio irrequieto e impulsivo. Até então não assinara uma única sentença de morte, nem mandara confiscar os bens de nenhum cidadão.

Ao ouvir tão assombrosas revelações, o rei Balchuf ficou pasmado e percebeu que havia perdido para sempre o direito ao trono; jamais poderia ele contar com o apoio de suas tropas ou com a antiga submissão de seu povo.

- Insensato fui eu - confessou ele ao vizir. - Insensato, pois não soube governar o meu povo como ele merecia! Insensato em escolher maus ministros e péssimos conselheiros! Louco era eu quando premiava os vis delatores e perseguia os bons patriotas!

- Agora é tarde para arrependimentos, ó rei - retorquiu com impaciência o vizir. - Volte Vossa Majestade para o país de Hajar e procure acabar lá sossegado os seus dias, que o povo de minha terra não poderá suportá-lo mais!

E, tendo pronunciado tão ásperas palavras, o vizir afastou-se com a sua aparatosa comitiva, deixando o infeliz rei abandonado na estrada, como se fosse um camelo moribundo.

Sentindo-se perdido e sem forças para reconquistar o trono de seus avós, sentou-se o rei Balchuf, tomado de indizível tristeza, numa pedra à margem da estrada, e pôs-se a meditar nos espantosos erros de seu passado e na dolorosa expectativa que lhe oferecia o futuro.

- A morte - exclamou - é para o vencido o caminho mais seguro da reabilitação e do descanso. Devo, pois, morrer!

Um xeque desconhecido que passava no momento pela estrada, acompanhado de seus servos, ao ouvir as palavras de desespero do rei Balchuf, parou o camelo em que ia e assim falou:

- Ó desassisado viandante! Por que te pões, para aí, como um louco, a falar em morrer quando, graças a Deus, há na vida remédio para todos os males? Vem comigo, pois estou certo de que acharei solução para o teu caso!

Vamos olhar, apenas, o lado belo e puro
 Das coisas que circundam este mundo,
 Deixando à margem, voluntariamente,
 Ideias más que vivem no inconsciente
 Como rainhas nefastas do escuro. (1)

- Continua, meu amigo, a tua jornada - redarguiu secamente o rei. - O abismo que se acha diante de mim é intransponível! O problema do meu destino é inexplicável; os versos não me trazem alívio; os conselhos e advertências são, agora, para mim inúteis; os auxílios materiais nada poderão adiantar. Só a morte será capaz de tirar-me da negra situação em que me encontro.

- Estás enganado - contraveio o desconhecido. - Não sei ainda qual é a angústia que pesa sobre teus ombros; ignoro quais são os males que afligem a tua existência. Asseguro-te, porém, que já estive em situação muito pior do que a tua e que logrei salvação precisamente no momento em que decidira morrer. É preciso que a esperança exista sempre em nosso coração. Bem disse o poeta:

Esperança, ventura da desgraça, trecho puro do céu sorrindo às almas, na floresta de angústias e incertezas. (2)

“E por que não crês, ó irmão dos árabes!, na esperança? Serve a esperança de lenitivo para as dores mais torturantes e de bálsamo para as tristezas.”

Só a leve esperança, em toda a vida,
disfarça a pena de viver, mais nada:
nem é mais a existência resumida,
que uma grande esperança malograda! (3)

O xeque do deserto, vendo que o rei continuava taciturno e infeliz, disse-lhe:

- Ouve a história de minha vida e verás se eu tenho ou não razão para confiar no futuro e exaltar a esperança.

E narrou a seguinte e singular história:
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Notas
1 Versos do livro Angústia dos Séculos, de Adroaldo Barbosa Lima.
2 Versos de Aníbal Teófilo.
3 Do soneto “Velho Tema”, de Vicente de Carvalho.
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continua…
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Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. vol. 2.