quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Primavera


OLAVO BILAC

Primavera

Ah! quem nos dera que isto, como outr'ora,
Inda nos comovesse ! Ah! quem nos dera
Que inda juntos pudéssemos agora
Ver o desabrochar da primavera!

Saiamos com os pássaros e a aurora.
E, no chão, sobre os troncos cheios de hera,
Sentavas-te sorrindo, de hora em hora:
"Beijemo-nos! amemo-nos! espera!"

E esse corpo de rosa rescendia,
E os meus beijos de fogo palpitava,
Alquebrado de amor e de cansaço...

A alma da terra gorjeava e ria...
Nascia a primavera... E eu te levava,
Primavera de carne, pelo braço!
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Não há mal que seja eterno,
dor não há que sempre dure… 
– Não deixa tristeza o inverno
que a primavera não cure!
A. A. DE ASSIS 
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CASIMIRO DE ABREU

Primaveras

I

A primavera é a estação dos risos.
Deus fita o mundo com celeste afago,
Tremem as folhas e palpita o lago
Da brisa louca aos amorosos frisos.

Na primavera tudo é viço e gala,
Trinam as aves a canção de amores,
E doce e bela no tapiz das flores
Melhor perfume a violeta exala.

Na primavera tudo é riso e festa,
Brotam aromas do vergel florido,
E o ramo verde de manhã colhido
Enfeita a fronte da aldeã modesta.

A natureza se desperta rindo,
Um hino imenso a criação modula
Canta a calhandra, a juriti arrula,
O mar é calmo porque o céu é lindo

Alegre e verde se balança o galho,
Suspira a fonte na linguagem meiga,
Murmura a brisa:- Como é linda a veiga!
Responde a rosa: - Como é doce o orvalho!

II

Mas como às vezes sobre o céu sereno
Corre uma nuvem que a tormenta guia,
Também a lira alguma vez sombria
Solta gemendo de amargura um treno.

São flores murchas:- o jasmim fenece,
Mas bafejado s’erguerá de novo
Bem como o galho do gentil renovo
Durante a noite quando o orvalho desce.

Se um canto amargo de ironia cheio
Treme nos lábios do cantor mancebo,
Em breve a virgem do seu casto enlevo
Dá-lhe um sorriso e lhe intumesce o seio.

Na primavera - na manhã da vida-
Deus às tristezas o sorriso enlaça,
E a tempestade se dissipa e passa
A voz mimosa da mulher querida.

Na mocidade, na estação fogosa,
Ama-se a vida- a mocidade é crença,
E a alma virgem nesta festa imensa,
Canta, palpita, s’ xtasia e goza.
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Triste, lembro a primavera 
cheia de luz e alegria, 
em que tendo a vida à espera, 
eu sonhava e não vivia!
CAROLINA RAMOS 
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MARIA NASCIMENTO SANTOS CARVALHO

Primavera

Naquele dia 23 de setembro 
dia ficou maravilhosamente claro, 
o céu, levemente colorido, 
ornamentado de nuvens de brinquedo, 
que se faziam e se desfaziam 
num abrir e fechar de olhos. 

As flores se tornaram mais viçosas 
e desabrocharam antes dos primeiros raios de sol. 

A lua nova, 
que mais parecia um traço de giz 
na tela do firmamento, curiosa, 
fingiu que esqueceu de se recolher na hora marcada, 
e olhava, sonolentamente a transformação da Natureza. 

As estrelas se abalroavam, 
por trás das cortinas do espaço, 
extasiadas com a paisagem celeste 
e, de vez em quando, 
desfilavam entre uma e outra nuvem de brinquedo... 

O mar vestiu-se de calmaria 
para esperar o alvorecer da Primavera... 
Havia música no ir-e-vir das vagas 
que davam cambalhotas, rodopiavam graciosamente 
e se enroscavam nas espumas rendadas, 
imaculadamente brancas, 
do mar de águas mornas e insinuantes. 

O Sol, convidado de honra, 
acordou mais cedo, tomou banho de cheiro, 
e desengavetou sua roupa de gala, 
há meses fora de uso, 
para recepcionar o surgir do novo dia, 
o desabrochar da nova Estação. 

Timidamente, numa curva distante, 
um arco-íris se fez presente, 
com seus lindos anéis coloridos, 
para dar um encanto especial 
à longínqua esquina do infinito. 

E, naquele dia 23 de setembro, 
até as águas-vivas que anunciam perigo no mar, 
se tornaram amigas, sensíveis e inofensivas, 
Porque era o dia da chegada da Primavera...
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Nossa retina é quem sente
quanto a natureza é bela…
na primavera, silente,
as flores falam por ela!
FRANCISCO JOSÉ PESSOA 
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ANTONIO MANOEL ABREU SARDENBERG

Poeminha à Primavera III

A vida em traje a rigor
Está pronta para a festa...
Durou um ano de espera
O mundo multicolor
Que nos trouxe a PRIMAVERA!

Que essa estação tão linda
Desperte também o amor,
Fazendo brotar na gente
Um mundo cheio de luz,
O desejo mais ardente, 
O querer mais envolvente
Que nos encanta e seduz.
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Todo amor se circunscreve 
às ações puras, sinceras. 
Assim, colhemos, de leve, 
as mais belas primaveras. 
WAGNER MARQUES LOPES 
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ANTONIO MANOEL ABREU SARDENBERG

Primavera

A primavera nasce deslumbrante,
Florindo o mundo, dando cor a vida,
Ela que estava há tão pouco escondida
Surge agora como um sol irradiante.

Em cada flor o perfume do querer,
Cada matiz só beleza e esplendor,
Dentro da alma a razão de entender
Criação... criatura...CRIADOR!

Que em prece possamos agradecer,
A beleza que podemos assistir,
- O milagre colorido a explodir - !

Que a humanidade possa então viver,
Imensa paz, muita ternura e amor,
Q' em cada mão haja sempre uma flor!
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Sê, na vida, paciente
ante as agruras da espera
feito os ramos que somente
florescem na Primavera.
ANTONIO JURACI SIQUEIRA 
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HILDA PERSIANI

Primavera

Meu Deus! Que festa!
Os pássaros gorjeando,
As borboletas em bando,
Que alegria será esta?

-É a primavera que está voltando:
Um colorido mais lindo
De belas flores se abrindo,
Com seu perfume exalando.

Ao vê-las, fico sorrindo,
O inverno vai se despedindo,
Dando a ela seu lugar.

A primavera da vida,
Essa fase tão querida,
Passa e nunca mais torna a voltar!...

Monteiro Lobato (O Luzeiro Agrícola)


Sizenando Capistrano é o inspetor agrícola do vigésimo distrito. Incumbe-lhe fomentar a pecuária, elaborar relatórios, ensinar o uso de máquinas agrícolas, preconizar a policultura, combater a rotina e ao fim de cada mês perceber na coletoria a realidade de setecentos mil-réis.

Antes de inspetor Capistrano fora poeta. Cultivara as musas. Não sabia que coisa era pé de café, mas entendia de pés métricos, pés-quebrados e fazia pé de alferes a todas as divas do Parnaso. Tal cultura, entretanto, emagrecia-o. A sua produção de hendecassílabos, alexandrinos, quadras, odes, sonetos, poemas, vilancetes, églogas, sátiras, anagramas, logogrifos, charadas elétricas e enigmas pitorescos, conquanto copiosa, não lhe dava pão para a boca, nem cigarro para o vício. A palidez de Capistrano, sua cabeleira à Alcides Maia, sua magreza à Fagundes Varela, seu spleen à Lord Byron e suas atitudes fatais, ao invés de lhe aureolarem a face dos nimbos da poesia, comiseravam o burguês, que, ao vê-lo deslizar como alma penada pela cidade, horas mortas, de mãos no bolso e olho nostalgicamente ferrado na lua, murmurava condoído:

— Não é poesia, não, coitado, é fome...

O editor artilhava a cara de carrancas más quando Capistrano lhe surgia escritório adentro com a maçaroca de versos candidatos à edição.

— São versos puros, senhor, versos sentidos, cheios de alma. Virão enriquecer o patrimônio lírico da humanidade.

— E arruinar o meu patrimônio econômico — retorquia a fera. — Do lirismo bastam-me aquelas prateleiras que editei no tempo em que era tolo e não se vendem nem a peso.

— Ó vil metal! — murmurava o poeta, franzindo os lábios num repuxo de supremo enojo. — Ó mundo vil! Ó torpe humanidade! Em que te distingues, Homem, rei grotesco da criação, do suíno toucinhento que espapaça nos lameiros? Manes de Juvenal! Eumênides! Musas de Cólera! Inspirai-me versos candentes com que cauterize até aos penetrais da alma este verme orgulhoso e mesquinho! Baudelaire, dá-me os teus venenos...

— Rapazes — berrava o livreiro à caixeirada —, ponham-me este vate no olho da rua!

Ante o manu militari irretorquível, o poeta apanhava a papelada lírica e moscava-se para a zona neutra do passeio, onde, readquirida altivez ossiânica, objurgava para dentro da loja hostil:

— A Posteridade me vingará, javardos!

E sacudia à porta do editor o pó das suas sandálias, que no caso eram surradas e já risonhas botinas de bezerro. Em seguida, remessando para trás a cabeleira, num repelão, ia fincar-se sinistramente à esquina próxima, em torva atitude, à espera dum conhecido esfaqueável, a quem, com gestos soberbos de Bergerac, extorquisse um níquel.

Cansado, entretanto, de ouvir estrelas em jejum, de amar a lua no céu sem possuir um queijo na terra, acatou a voz do estômago e quebrou a lira — para viver. Meteu a tesoura nas melenas, deu brilho aos sapatos, desfatalizou o semblante, substituiu o ar absorto do aedo pelo ar avacalhado do pretendente, e à força de pistolões guindou-se às cumeadas do Morro da Graça.(1) Todo mundo o recomendou ao Gaúcho Onipotente, porque todos andavam fartos daquela perpétua fome lírica a deambular pelas ruas, caçando rimas e filando cigarros. 

Que fosse acarrapatar-se ao Estado. O Estado é um boi gordo, semelhante àquela estátua equestre de Hindenburg, feita de madeira, em que os alemães pregavam pregos de ouro. A diferença está em que no Estado, em vez de tachas de ouro, pregam-se Capistranos vivos.

Foi apresentado ao Pinheiro.

— Então, menino, que quer?

— Um empreguinho qualquer que Vossa Onipotência haja por bem conceder-me.

— E para que presta você, menino?

— Eu? Eu... fui poeta. Cantei o amor, a Mulher, a Beleza, as manhãs cor-de-rosa, as auroras boreais, a natureza, enfim. Romântico, embriaguei-me na Taverna de Hugo. Clássico, bebi o mel do Himeto pela taça de Anacreonte. Evoluído para o parnasianismo, burilei mármores de Paros com os cinzéis de Herédia. Quando quebrei a lira, estava ascendendo ao cubismo transcendental. Sim, general, sou um gênio incompreendido, novo Asverus a percorrer todas as regiões do ideal em busca da Forma Perfeita. Qual Prometeu, vivi atado ao potro do Inania Verba, onde me roeu o Abutre da Perfeição Suprema. Fui um Torturado da Forma...

O general, que era amigo das belas imagens, iluminou o rosto de um sorriso promissor.

— Poeta — disse ele —, eu também sou poeta. Rimo homens. Componho poemas herói-cômicos. Conheces a Hermeida? É obra minha. Amo as belas imagens e tenho lançado algumas imortais. “A mulher de César!” “Os levitas do Alcorão!” Hein? Tu me caíste em graça e, pois, acolho-te sob o meu pálio. Que queres ser?

— Inspetor.

— De quarteirão?

— Isso não.

— Agrícola?

— Ou avícola...

— De que região?

— Não faço questão.

— Sê-lo-ás do vigésimo distrito. Conheces as culturas rurais?

— Já cultivei batatas gramaticais.

— E de pecuária, entendes? Distingues um Zebu dum galo Brama? Um pampa dum murzelo?

— Já cavalguei Pégaso em pelo.

— Conheces a suinocultura? Sabes como se cria o canastrão?

— Sei trincá-lo com tutu de feijão.

— És um gênio, não há que ver. Talvez faça de ti, um dia, presidente da República. Teu nome?

— Sizenando. Capistrano é sobrenome.

— Cá me fica. Vai, que estás aí, estás fomentando a agricultura como inspetor do vigésimo distrito, com setecentos bagos por mês. Os poetas dão ótimos inspetores agrícolas e tu tens dedo para a coisa. Vai, levita do Ideal…

II

Sizenando Capistrano, mal se pilhou transformado de famélico ouvidor de estrelas em peça mestra do Ministério da Agricultura... casou, luademelou três meses e por fim compareceu perante o ministro para saber em que rumos nortear a sua atividade.

O ministro franziu a testa: é tão difícil dar ocupação aos fósforos ministeriais... Pensou um bocado e:

— Escreva um relatório — sugeriu.

— Sobre que, Excia.?

— Sobre qualquer coisa. Relate, vá relatando. A função capital do nosso ministério é produzir relatórios de arromba sobre o que há e o que não há. Relate.

— Mas, Excia., eu desejava ao menos uma sugestãozinha emanada do alto critério de V. Excia., sobre o tema do relatório que a bem da lavoura V. Excia., com tanto descortino, me incumbe de escrever...

— Já disse: sobre qualquer coisa que lhe dê na veneta. Relate, vá relatando e depois apareça.

Sizenando saiu tonto com os processos expeditos do doutor Grifado (2) com assento na pasta, e passou três meses de papo ao ar, procurando uma tese conveniente.

Como por essa época a lua de mel entrasse em plena minguante, houve certo dia rusga brava ao jantar, e a consorte, mulherzinha de pelo crespo no nariz, pespegou-lhe pela cara com um prato de salada de beldroega. Tal o célebre estalo que abriu a inteligência do padre Antônio Vieira em menino, aquele obus culinário teve a estranha ação de iluminar os refolhos cerebrais do inspetor.

— Eureca! — berrou ele radiante. E com um grande riso de gozo na cara emplastada de verdura, ergueu-se da mesa precipitadamente e correu ao escritório. A mulherzinha, entre colérica e pasmada, perguntou de si para si:

— Estará louco?

Sizenando deitou mãos à tarefa e levou a cabo um estudo botânico-industrial da beldroega, com afã tal que, transcorridos dez meses, dava a prelo o Relatório sobre o Papalvum brasiliensis, vulgo beldroega, e sua aplicação na culinária. 

O ano seguinte gastou-o em rever as provas do calhamaço, a modo de escoimá-lo dos mínimos vícios de linguagem. O antigo torturado da Forma ressurtia ali... Saiu obra papa-fina, em ótimo papel e com muitas gravuras elucidativas. Entre estas, em belo destaque, os retratos do ministro e do diretor da Agricultura, do Marechal Hermes, do tenente Pulquério, do Frontim, do Pinheiro e mais protuberantes beldroegas do momento. Pronta a edição, embaraçou-se Sizenando quanto ao destino a dar-lhe. Que fazer de tanta beldroega?

Foi ao ministro.

— Excelência! De acordo com as sábias ordens de V. Excia., venho comunicar a V. Excia. que se acha pronta a edição do relatório sobre o Papalvum.

— Que papalvo? Que relatório? — inquiriu o ministro, deslembrado.

— O que V. Excia. me incumbiu de escrever.

— Quando?

— Haverá dois anos.

— Não me recordo, mas é o mesmo. Mande a papelada para o forno de incineração da Casa da Moeda.

Sizenando abriu a maior boca deste mundo. Compreendendo aquela estuporação, o ministro sorriu.

— Então? Que queria que eu fizesse de cinco mil exemplares de um relatório sobre a beldroega? Que o pusesse à venda? Ninguém o compraria. Que o distribuísse grátis? Ninguém o aceitaria. Se é assim, se sempre foi assim, se sempre será assim com todas as publicações deste ministério, o mais prático é passar a edição diretamente da tipografia ao forno. Isso evitará a maçada de nos preocuparmos com ela e de a termos por aí a atravancar os arquivos. Não acha vossa senhoria que é o mais razoável? Retire o que quiser e forno com o resto.

— E depois, que devo fazer? — indagou Sizenando, ainda tonto com o expeditismo ministerial.

— Escrever outro relatório — respondeu sem vacilar o ministro.

— Para ser queimado novamente? — atreveu-se a murmurar o poeta inspetor.

— Está claro, homem! Para que diabo despendeu o Governo tanto dinheiro na montagem do forno? Está claro que para incinerar as notas velhas e os relatórios novos. Deste modo se conservam em perpétua atividade o pessoal da Imprensa, o do Forno e o dos Ministérios. Veja como é sábia a nossa organização administrativa! A montagem do forno foi a melhor ideia do Governo passado. Antes dele a Imprensa Nacional vivia entulhada de impressos; a produção de relatórios, função capital deste ministério, periclitava; e era tudo uma desordem, um desequilíbrio capaz de induzir o Governo à supressão da Imprensa e do meu ministério. O forno sanou a situação. O fervet opus é magnífico e a espada de Dámocles está para sempre arredada de nossas cabeças. Hein? Vá. Escreva outro relatório, sobre... sobre... o caruru, por exemplo.

Sizenando deixou o gabinete do ministro profundamente meditativo. S. Excia. derrancara-o! Viu com dor de alma as chamas do Forno lerem aquele relatório tão bem acabadinho, tão de encher o olho... E sacou seis meses de licença com vencimentos para descansar.

Esgotada a licença, ia Sizenando começar a pensar em preparar-se para escolher o papel e a tinta com que relatasse o caruru quando a política apeou da administrança o doutor Grifado. Sizenando deixou que transcorressem mais seis meses, ao termo dos quais se apresentou ao novo ministro para lhe sondar a orientação.

O novo ministro era bacharel em ciências jurídicas e sociais, ex-chefe de polícia e tão entendido em agricultura como em arqueologia inca. Mas lera uns números de Chácaras e Quintais e ali se abeberara de umas tantas noções sobre avicultura, policultura, criação de canários etc. Fez dessas uras o seu programa. 

No discurso de apresentação, ao empossar-se no cargo, emitiu os seguintes conceitos, louvadíssimos pelos circunstantes, empregados no ministério quase todos e verdadeiros hortaliças em matéria agrícola.

— A monocultura, senhores, é o grande mal; a policultura é o grande bem; no dia em que produzirmos cebola, alho, batata, repolho, coentro, alpiste, cerefólio, grão-de-bico, tremoço, quiabo, espargo, espinafre, alcachofra...

(Um arrepio de entusiasmo percorreu a espinha dos assistentes, que se entreolharam gozosos, como quem diz: Temos homem pela proa!)

— ... cebolinha, couve-flor, sorgo, soja amarela, centeio, aveia, figos da Trácia, uvas de Corinto, violetas de Parma...

— Bravíssimo!

— ... violetas de Parma... e outros cereais europeus (vermelhidão no rosto), a prosperidade nacional se assentará num soco basáltico, do qual não a arrancarão as mais rijas lufadas dos vendavais econômicos. Conduzir a pátria a essa Canaã da policultura: eis a mira permanente dos meus esforços, eis o meu programa, eis o fim supremo colimado pela minha atividade. Espero, pois, que etc. etc.

Palmas, bravos, guinchos, silvos e outros sons denunciadores de entusiasmo em grau de ebulição estrugiram pela sala. O ministro foi abraçado e beijado — nas mãos. Aquele salvaria a pátria, não havia a menor dúvida! 

O novo ministro da Agricultura era positivamente uma águia — igual às anteriores. Tinha programa. Visava confundir a rotina monocultora com demonstrações práticas das magnificências da policultura mecânica.

Sizenando recebeu ordem de ir desatolar a vigésima região do atascal da rotina. Aquela gente ainda vivia em pleno período da pedra lascada do café; era mister tangê-la à estação áurea da policultura, da avicultura, da sericultura, da criação de canários hamburgueses etc., preluzida no discurso do ministro.

Chegando à sede do distrito, com séquito numeroso e abundante farragem mecânica, Sizenando distribuiu convites para a inauguração dum curso prático. Escolheu para campo de demonstração um “rapador” a um quilômetro da cidade, e lá, no dia emprazado, reuniu os convivas. Veio o prefeito municipal, o porteiro da Câmara, o coletor federal, o promotor público, três jornalistas, quatro professores, o diretor do grupo escolar com a meninada, o vigário da paróquia, o fiscal da iluminação pública, o zelador do cemitério, o carcereiro, dois guarda chaves da Central, cinco inspetores de quarteirão, o delegado, o cabo do destacamento — e um fazendeiro recém-despojado da sua propriedade por dívidas. A turma docente e os bois do arado formavam grupo à parte.

Sizenando trepou a um cupim e pronunciou breve alocução alusiva à personalidade sobre-excelente do ministro, e ao papel dos novos métodos racionais na agricultura moderna.

— O novo método, meus senhores, é baseado na ciência pura. Vem dos laboratórios de braços dados à química. Começarei pela demonstração do arado, ou charrua, a pedra angular de todo o progresso agrícola. Senhor Primeiro Arador, arado para a frente!

Despegou-se da turma um capataz, que empurrou para perto do cupim tribunício um belo arado de disco. Rodearam-no os circunstantes, como a um animal raro.

— Eis, meus senhores, um arado de disco. Esta parte se chama cabo; esta é a roda, serve para rodar; estas rodelas são os discos, servem para sulcar a terra; este ferrinho é a manivela graduadora; este pauzinho é o balancim. Aqui se atrelam os bois e cá toma assento o condutor.

A assistência abria a boca.

— Vejamos-lo agora em ação. Senhor Primeiro Condutor de Primeira Classe, atrelar!

Adiantou-se da turma um carreiro e tangeu os bois para a máquina, jungindo-os à canga. Os assistentes riram-se. Acharam imensa graça no Tomé Pichorra, que nunca fora senão o Tomé Pichorra, carreiro, transformado em Primeiro Condutor de Primeira Classe! Era de primeiríssima.

— Senhor Primeiro Arador, arar!

O Primeiro Arador saltou à boleia e empunhou as manivelas. O Primeiro Condutor aguilhoou a junta de bois.

— ‘amo, Bordado! Puxa, Malhado!

Os dois caracus moveram-se pesadamente. A terra, sulcada pelo ferro, abriu-se em leivas. Sizenando exultou.

— Vejam, senhores, que maravilha! Faz o trabalho de vinte homens, além de que deixa a terra desatada, com grande receptividade para a meteorização atmosférica — o que equivale a um adubamento copioso.

Este pedacinho encantou sobremodo ao zelador do cemitério, o qual não conteve um sincero “Muito bem!”.

Sizenando agradeceu com um gesto de cabeça. O arado deu umas tantas voltas e emperrou. A banda de música, para disfarçar a entaladela, rompeu o Vem cá mulata. E assim terminou a primeira parte da bela demonstração agrícola.

A segunda constituiu no destorroamento e no gradeamento da terra, feitos com o mesmo luxuoso aparato. Havia Primeiro e Segundo Destorroador, Primeiro e Segundo Gradeador. Um mimo de hierarquia!

Ao terminar o serviço, a banda zabumbou um tanguinho. A terceira parte foi absorvida pelo plantio de cebolas, batatas, alho, alfafa e outras salvações nacionais.

— Os senhores verão — concluiu Sizenando — que maravilhosa messe vai brotar, farta, deste torrão sáfaro e ingrato só porque aplicamos sumariamente os processos modernos da cultura racional, os quais centuplicam a produção e diminuem o trabalho. A máquina agrícola é a verdadeira alavanca do progresso! 

— Protesto! A alavanca do progresso sempre foi a imprensa — contraveio um jornalista, cioso da velha prerrogativa.

— Será — retrucou Sizenando —; mas se uma, a imprensa, alçaprema o progresso moral, a outra, a máquina agrícola, alçaprema o progresso econômico!

— Bravíssimo! — rugiu o zelador do cemitério, inimigo pessoal do Zé Tesoura. — Isto é que é!

— Sim, senhor, muito bem! — grunhiram outros.

Rubro de gozo pelo sucesso da tirada, Capistrano espichou o dedo para a filarmônica, a pedir o hino nacional.

Desbarretaram-se todos. Ereto sobre o pedestal de cupim, Capistrano imobilizou-se em atitude de religiosa unção, de olhos fixos no futuro da pátria. E à derradeira nota pôs fim à festa com um escarlate viva à República com três “erres”.

Acompanharam-no, como um eco, o coletor, o zelador do cemitério, o agente do correio e os funcionários federais demissíveis, além dos bois, que mugiram.

Meses mais tarde procedeu-se à colheita. As cebolas haviam apodrecido na terra, devido às chuvas; os alhos vieram sem dentes, devido ao sol; as batatas não foram por diante, devido às vaquinhas; as outras “policulturas” negaram fogo devido à saúva, à quenquém, à geada, a isto e mais aquilo.

Não obstante, seguiu para o Rio um soporoso relatório de trezentas páginas onde Capistrano, entre outras maravilhas, notava: “Os resultados práticos do nosso método demonstrativo in loco têm sido verdadeiramente assombrosos! Os lavradores acodem em massa às lições, aplaudem-nos com delírio e, de volta às suas terras, lançam-se com furor à cultura poli, em tão boa hora lembrada pelo claro espírito de V. Excia. O Senhor Ministro pode felicitar-se de ter aberto de par em par as portas da idade de ouro da agricultura nacional”.

Os jornais transcreveram com garbos estes e outros pedacinhos de ouro. E o conde de Afonso Celso se encheu de mais um bocado de ufania por este nosso maravilhoso país.
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Notas:
[1] Residência do general Pinheiro Machado, o mandão da política na época.

[2] Um ministro da Agricultura da época que não era doutor mas não protestava contra o tratamento.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

domingo, 22 de setembro de 2019

Francisca Júlia (O Sabiá Doente)


Era pequeno ainda o sabiá, quase implume, quando caiu do ninho onde nasceu. Curioso, invejando o voo de outros passarinhos menores que ele, tentou também voar: — abriu as asas mal empenadas, fez um esforço e caiu. Ao cair, foi resvalando pelos galhos, pelas folhas da árvore, de modo que a queda foi pequena e não o magoou.

Quando caiu na grama, começou a ensaiar o voo para subir de novo até ao ninho, arrependido de o ter deixado, piando, piando de medo.

Um homem, que passou, levou-o consigo.

O passarinho cresceu preso na gaiola.

À tarde, quando os outros pássaros cortavam o ar em busca do repouso, ele sonhava com a tepidez do ninho escondido num galho, perdido no meio do bosque. Léguas em redor tudo era verde, coberto de folhagens que o vento agitava.

Além, escorregava entre fileiras de murtas, seixos. O ar livre do campo, a frescura das manhãs, o marulho das folhas, tudo acudia ao seu espírito, o fazia sonhar por muito tempo, arrancando-lhe da sonora garganta as mais angustiosas queixas.

E com a cabecinha no ar, os olhos cerrados, os nervos agitados de comoção, traduzindo a tristeza que o invadia, cantava, cantava horas inteiras, às vezes triste, alegre às vezes, executando escalas e gorjeios ou prolongando numa nota toda a amargura de sua alma.

Os que lhe ouviam o canto, paravam a escutá-lo, encantados.

Assim viveu o sabiá por muitos anos, sempre preso, sem conhecer a liberdade de que gozam os outros pássaros que ele via através da grade, a uma vertiginosa altura, espalhados pelo azul.

Voar! Quem lhe dera também um dia em que a porta da prisão amanhecesse aberta, fugir, e, de asas entendidas, voar, voar, ir muito alto, muito alto, e gozar, até à embriaguez, da vertigem de luz que deve haver lá em cima!.

E o pobre pássaro sentia no corpo estremeções de ânsia, agitações de desejo, e abria as asas; mas a ilusão desfazia-se e ele fechava-as de novo, recolhendo-se à sua tristeza de encarcerado.

Então pensava que, quando ficasse velho e sua voz se tornasse rouca, haviam de apiedar-se dele e dar-lhe a tão desejada liberdade. Vivia dessa esperança.

Envelheceu. Sua vista foi-se escurecendo aos poucos. O sabiá estava cego.

Uma manhã, passeando pelo chão da gaiola, aproximou-se da porta, como de costume, a sentir se estava aberta.

Estava aberta a porta.

Pôs a cabecinha de fora, aspirou o ar, agitou o corpo, sacudiu as asas entorpecidas pela velhice e quis voar. Mas, como já estava cego, teve receio de bater-se contra a parede, no ímpeto do voo, em vez de tomar a direção do campo; então recolheu-se de novo e chorou abundantemente .

Daí em diante nunca mais da sua sonora garganta saíram os gorjeios de outrora.

Fonte:
Francisca Júlia César da Silva Münster. Livro da Infância. Revisão ortográfica: Iba Mendes.

Colar de Trovas: Criança

Organização: Adriano Bezerra,  Aurineide Alencar e Maria Zilnete.

01
Urge esperança de um dia
ver criancas a cantar
hinos da democracia,
*declamando o verbo amar*
(Agostinho Rodrigues - RJ)

02

Declamando o verbo amar
com toda sua inocência
criança  vive a sonhar
*tendo paz de consciência.* 
(Neiva Fernandes - RJ)

03

Tendo paz de consciência,
toda criança é feliz,
descobre na eficiência,
*o que a natureza diz.*
(Antônio Cabral Filho - RJ)

05

O que a natureza diz ?
que criança quer um ninho,
que na vida é aprendiz,
*que  precisa de carinho!*
(Gleyde Costa Campos – RJ)

06

Que precisa de carinho
o mundo tem consciência,
criança que tem seu ninho
*cresce com benevolência.*
(Aurineide Alencar - MS)

07

Cresce com benevolência
a criança desde cedo.
Que o sorriso de inocência
*não se apague pelo medo.*
(Antonio Francisco Pereira - MG)

08

Não se apague pelo medo
na vida não é assim;
a criança tem enredo:
*ser amada até o fim!*
(Agostinho Rodrigues - RJ)

09

Ser amada até o fim -
Júlia, de seu pai, o quis.
Ele nunca está a fim!
*Faço-a eu mesmo então feliz!*
(Oliveira Caruso - RJ)

10

Eu a faço,  então  feliz
na proteção  do Senhor...
pois é Deus mesmo  quem diz
*que a criança  tem valor.*
(Neiva Fernandes - RJ)

11

Que a criança tem valor
e precisa ser feliz
livre de qualquer pavor
*e viva como aprendiz.*
(Prof. Roque - RS)
  
12

E viva como aprendiz
na nossa escola da vida
isto o vate sempre diz
*para a criança querida!...*
(Luiz Cláudio - RN)

13

Para a criança querida, 
daremos o nosso amor, 
protegendo a sua  vida,  
*na  Luz que vem do Senhor!*
(Neiva Fernandes - RJ)

14

Na luz que vem do Senhor
sejam sempre iluminadas
com carinho e muito amor
*por seus pais sejam amadas.*
(Adriano Bezerra – RN)

15

 Por seus pais sejam amadas,  
no carinho mais profundo;
jamais ser abandonadas,    
*ao relento deste mundo.*
(Antônio Cabral Filho - RJ)

16

Ao relento deste mundo
vemos data consagrada
p'ra criança é mês fecundo
*chamo Aparecida amada!...*
(Luiz Cláudio – RN)

17

Chamo Aparecida amada
nos momentos de aflição,
para que não falte nada
*para a criança e nação.*
(Maria Zilnete – RJ)

18

Para a criança e nação
venha a paz tão desejada
com a santa intercessão
*da nossa mãe consagrada.*
(Adriano Bezerra – RN)

19

Oh nossa mãe consagrada!
Olhai por nossas crianças,
que façam o que Lhe agrada
*e tenham fé e esperança.*
(Maria Zilnete de M. Gomes - RJ)

20

Que tenham fé e esperança,
no futuro da nação .
Não deixemos a criança,
*sem amor ao nosso Chão!!*
(Gleyde Costa Campos – RJ)
TROVAS DO FECHAMENTO
*A*

*Sem amor ao nosso chão,*
mas fé  na Virgem Maria:
respeitando nosso irmão
*Urge a esperança  um dia.*
(Neiva Fernandes - RJ)

*B*
*Sem amor ao nosso chão,*

crianças sem alegria,
sonho um mundo em união;
*urge esperança um dia.*
(Maria Zilnete de M. Gomes – RJ)

*C*
*Sem amor ao nosso Chão,*

a criança perderia
amor e dedicação
*urge a esperança um dia!*
(Gleyde Costa - RJ)

*D*
*Sem amor ao nosso chão,*  

não há paz nem alegria,
pois a nossa solução,           
*urge a esperança um dia.*
(Antônio Cabral Filho - RJ)

*E*
*Sem amor ao nosso chão*

nada bom se esperaria
ao futuro da nação
*urge a esperança um dia!*
(Adriano Bezerra – RN)

*F*
*Sem amor ao nosso chão*

nada até me arrepia
vamos dar as nossas mãos
*urge a esperança um dia.*
(Madalena Cordeiro – ES)

Fonte:
https://trovadoresdobrasil.blogspot.com/2017/10/8-colar-de-trovas-brasil-trovador-tema.html

Nilto Maciel (Legenda)


De pé, José Cristiano, silaque, calça frouxa. Cigarro pela metade no canto esquerdo da boca, sorriso morrendo nos lábios e nos olhos negros. Cabelo meio assanhado, diferentemente dos demais personagens. Bigode a Estaline e as primeiras rugas identificando muito cansaço para tão pouca vida. Contava então 28 anos de idade, por mais que se queira ou se presuma.

Sentada, pernas estiradas e juntas, Maria Virgínia. Vestido decotado e cheio de voltas, espalhado pelo capim, como uma enorme dália. Não completara ainda 23 anos de idade. Sorriso de meio palmo no rosto belo, como se fosse grande demais a felicidade. No entanto, no dia seguinte foi recolhida a um manicômio, em estado de completa loucura, após a morte do marido.

Aninhado nas coxas grossas de Maria, o pequeno César também sorri. Morreria aos 22 anos de idade, ao participar de uma rixa entre marginais num bar. Sua mãe, ao tomar conhecimento do crime, tornou-se santa. Falam da produção de uma bela imagem sua, a ser adorada pelos cristãos da cidade: os Moretis.

Na fotografia, o menino mostra um ar de estupenda admiração. Olha fixamente para a câmera. Veste calça curta azul-turquesa e blusinha justa de gola larga. Os cabelos longos espalhados pela testa e sobre as orelhas, que não se veem. Calça botinhas pretas e novas, pelo estado.

Depois da morte do pai e da loucura da mãe, César passou aos cuidados de seus avós maternos, por decisão judicial. Apesar da luta dos avós paternos, que alegaram ter sido Maria a causadora direta da morte de Cristiano. Surgiu então a célebre guerra entre Nascimentos e Moretis, de que resultou até agora a morte de mais de vinte pessoas, inclusive mulheres e crianças. A última vítima, provavelmente assassinada por um Nascimento, foi Maria. Aconteceu em agosto do corrente ano, nas dependências do manicômio onde vivia.

Desde criança César viveu de rusgas nas ruas. Vez por outra, sua mãe conseguia burlar a vigilância dos carcereiros e saía a procurá-lo pelas ruas e ruelas da cidade. Um dia se encontraram. Ela já velha, feia, desdentada, suja, magra. Ele violento, robusto, entre a adolescência e a velhice. Abraçaram-se e choraram.

– És tu, meu adorado César Augusto?

– Sim, mãe amada.

– E que fazes no mundo?

– Atiro pedras em monumentos, igrejas, cemitérios...

– Por que não atiras nos homens?

– É verdade! Por que não atirar pedras nos homens?

– São os melhores alvos.

– E tu onde estás?

– Estou presa por loucos.

– E por que não foges para mim?

– Não temos para onde ir. Nosso lugar era meu marido e teu pai.

– E para onde ele foi?

– Para o Paraíso.

– É verdade?

– Sim, foi para o Paraíso, onde habitam as serpentes.

– Irei procurá-lo.

E se despediram, alegres, como nos velhos tempos de mocidade, infância e felicidade.

Ao fundo, a antiga Igreja do Sagrado Coração de Jesus, com suas largas portas abertas. Alguns fiéis voltam para suas casas. Duas velhas de mãos dadas (talvez irmãs), um velho com uma bengala cabo de cabeça de cascavel e outros rostos ainda no interior do templo. No patamar, um carrinho de fazer e vender pipocas e o provável pipoqueiro a coçar o queixo.

Entre as torres, um céu azul como pano de fundo. Nuvens brancas dão ideia de um crocodilo em perseguição a um carneirinho, um elefante e outras diversas figuras decorativas.

Após desembolsar a bagatela de trinta mil réis, José satisfez as insistências de Maria e apareceram na coluna "Society Braziliense", assinada por Miharbi, do jornal “A República”.

Publicada na edição do dia seguinte, 23 de agosto de 1954, traz a seguinte legenda: “Na foto, o Sr. José Cristiano do Nascimento, sua digníssima consorte, D. Maria Virgínia Moreti do Nascimento, que comemoraram ontem mais um aniversário de matrimônio, o terceiro do feliz enlace, e o lindíssimo garotinho César Augusto, filho do casal. O jovem par é muito benquisto em nosso grand monde, razão pela qual foi efusivamente cumprimentado durante todo o dia que passou, em sua mansion, localizada no elegante e fidalgo bairro das Flores”.

No dia 24, José, sem nada pagar, foi notícia em diversos jornais. Desta feita, na primeira página e em letras quase descomunais: SUICIDA-SE CRISTIANO DO NASCIMENTO.

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.

sábado, 21 de setembro de 2019

Varal de Trovas n. 74


Chico Anysio (Opção)


Está chovendo há dois dias. Os carros passam devagar pela rua, temendo o buraco possivelmente encoberto pela água em­poçada. A chuva começou farta, afinou na primeira madrugada, recrudesceu o dia seguinte inteiro, amainou às primeiras horas da noite e agora voltou a cair caudalosa, insistente, ininterrupta, bastarda. Há 48 horas chove, e o céu, pesado de cinzento, não promete estiagem para tão cedo. As nuvens grossas encobrem a cidade, entristecendo-a. O sol, tão esperado para o fim de semana, fica para outra ocasião. O sábado será também chovido, como também o domingo, é de se imaginar. Há ruas que já se transformaram em pequenos riachos e há as que já são rios. Passa um homem de calças arregaçadas, sapatos na mão, lenço inútil na cabeça. Tem a água pelos joelhos e a chuva dentro da alma, molhando-lhe o espírito, esfriando-lhe a vida.

O homem vai devagar. Seus joelhos afastam a água, graças aos passos arrastados, sem levantar o pé do chão. Tem a camisa colada ao corpo, transparente, de molhada. Vê-se o bico do peito, enrijecido pelo frio que a chuva lhe traz. O relógio, guardado no bolso, na fuga da água, está tão encharcado quanto estaria se o levasse no pulso.

O homem está chovido, como a cidade. E triste. Mais do que a cidade, que a esta hora lamenta o fim-de-semana inutilizado pelas águas.

— Chuva fora de tempo...

É julho, mês seco, via de regra. Mas chove há dois dias. Chove o que Deus dá — como comentam na cidade.

O jogo de domingo já foi cancelado, e o serviço de me­teorologia não acena com possibilidades de melhora. Ao contrário.

O homem está voltando do trabalho. É ourives, na Rua Uruguaiana. Mora no Catumbi, onde a chuva molha mais, insiste em permanecer, não apenas na rua, na calçada, mas dentro das casas, pela ineficiência dos bueiros.

Ele abre a porta, entra e continua na chuva. Sua casa é um lago. A água supera a mancha antiga da parede, fabricada pela chuva de janeiro. Os móveis, previamente colocados sobre estrados, já têm os pés molhados.

Não há ninguém para o ajudar a remover a água. Os baldes são despejados no pequeno quintal. A água do quintal aumenta e volta à casa.

A madrugada o encontra exausto, dentro da água, vencido pela chuva. O vidro quebrado da janela da sala permite que por ali entre mais chuva. Ele cola um jornal ao vidro. Por algum tempo a água não entrará por ali.

— Que chuva!

Lá fora, por um momento, a chuva arrefece seu ímpeto.

— Acho que vai parar...

Meia hora depois chove mais do que antes. Quase não escuta o motor de carros, na rua. Todos em casa, fugindo da chuva, com medo da água que desaba do céu, sem piedade, sem cuidado, sem pedir licença.

O homem nota a primeira goteira. Depois percebe que as goteiras são dez, trinta, o teto da casa tem, neste momento, a utilidade de um para-quedas num submarino.

— E agora?

Está dois palmos acima da mancha, a água da chuva. Já não é da chuva, é água da casa, alagadiço em que mora há 17 anos, esperando um aumento que lhe permitirá o apartamento sonhado.

Da janela vê um conjunto residencial na quadra seguinte. Inveja os que lá estão, secos, enxutos, saudáveis, sadios.

O balde, esquecido, está sobre a cômoda do quarto. Nada há a ser feito. E chove mais, há ainda o que chover.

Faz 50 horas que este aguaceiro desaba.

— De onde vem tanta água?

As gavetas foram retiradas e empilhadas sobre os móveis mais altos, tentativa de salvaguardar suas coisas.

Maria, agora, faz mais falta do que nunca. Não que ela pudesse conter a chuvarada, mas o ajudaria com as palavras antigas de incentivo.

— Um dia a gente muda.

O homem está sozinho, no meio da chuva, que cai, em casa, na rua. A cidade molhada acorda mais tarde. Até agora não passaram mais de dez carros na rua. O sábado vai em meio. A fibra do homem caminha para o fim. A chuva das goteiras — incerta — molha pior. A água sobe pela parede, apodrece os móveis velhos, inunda o armário, esfria a vida, refrigera os nervos.

Chove. De noite se vê que chove mais forte. O lampião da calçada mostra os pingos caindo na diagonal, assim postos pelo vento que açoita.

— Haja água.

É o que há. O étager, submerso, é adivinhado pelo homem que caminha idiota pela casa, com água à cintura. Anda sem destino, caminhando autômato pelos três cômodos da casa-lagoa. Senta sobre a cômoda, pernas levantadas para não ter os pés enfiados na água. Tem frio. Põe, nas costas, um cobertor úmido e enrola no pescoço um velho cachecol que era de Maria.

— Maria... Maria... por que você foi embora?

Pela primeira vez o homem fica triste. Deixa as lágrimas caírem do rosto, juntarem-se à água da sala, que é tanta quanto a do mundo.

— Maria... você fez bem em ir embora. Se estivesse aqui...

Não havia esta chance. Maria mudara para o morro, na companhia de um mulato, trabalhador do cais do porto. Trocara o conforto de uma casa no Catumbi pela insegurança de um barraco. O primeiro a cair, quando a chuva começou.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

Poesias Gauchescas (2)


BERNARDO TAVEIRA JÚNIOR

O Boleador     


(...)
E o destro campeiro na fúria indomável,
Seguindo o cavalo que vai a fugir,
As bola meneia com braço de ferro,
Enquanto as não deixa certeiras partir.

E a certa distância que mede co'a vista,
O impulso tenteia visando o bagual,
E após, lá consigo, contando com a presa,
Desprende o seu tiro terrível, fatal!

E as bolas tremendas fungando no espaço,
Lá vão zig-zigs formando no ar;
Lá vão implacáveis cair como um raio
Na frente do bicho que intenta escapar.

E as pernas das bolas o bicho mal sente
Nas mãos lhe tocarem, priscando coiceia,
E quanto mais prisca, coiceia ariscado,
Mais ele se enreda, nas bolas se enleia.

E os fortes campeiros que adoram proezas
Soltaram mil vivas naquela amplidão;
Um tiro de bolas há muito não viam
Com mais bizarria, com mais perfeição.

Eu te admiro e saúdo,
Ó destro boleador!
Mais te dera, se o pudesse
O teu modesto cantor.

CHICO RIBEIRO

Negrinho do Pastoreio


A mão da noite fechara
a porta grande do dia,
era noite e dentro dela
a tempestade rugia...

O vento! Como ventava!
A chuva! Como chovia!
O trovão de boca aberta!
O raio, de quando em quando,
Soltando-se do trovão,
corria dentro da noite,
cortando em riscos de fogo
o seio da escuridão!

Ia fundo a tempestade:
O vento ventando mais,
a chuva chovendo mais.
E o Negrinho, como a ronda,
dentro da noite perdido!...

A tempestade crescendo,
cada vez roncando mais!...

E o Negrinho acocorado
entre as macegas, ouvindo,
ouvindo, vendo e sentindo,
o bate-bate da chuva,
o martelar do trovão.
E o raio...com que violência
cortava o raio a amplidão!...

E o Negrinho ouvindo tudo!
Tudo lhe vem aos ouvidos,
enche-lhe a vista, os sentidos,
menos o passo da ronda,
que lhe confiara o -Sinhô-,
a ronda que a tempestade
de vento e chuva espalhou...

A tempestade crescendo,
cada vez roncando mais!...

Depois, depois ... oh! Senhor!
Depois que tudo acabou,
que a chuva não mais choveu,
que o vento não mais ventou
e o raio se terminou
porque o trovão se calou.

E o Negrinho também!
A não ser pelos milagres,
pelo bem que ele nos presta
quando se perde um tareco,
ninguém mais dentro do mundo
no vão dos dias, das noites,
acompanhado ou sozinho,
conseguiu botar os olhos,
pode encontrar o negrinho!

CYRO GAVIÃO

Petiço     


Esse petiço troncho que, ao passito,
Vem chegando co'a pipa, lá da fonte,
Foi quebra noutros tempos... foi bonito,
Foi mestre, num rodeio e num reponte.

Mas, hoje, nem o relho, nem o grito
Da gurizada já lhe altera a fronte
Indiferente a tudo, ao infinito,
A mais um dia que se lhe desconte.

Até dá pena ver esse sotreta,
Trocando perna, ao lado da carreta
Num caminhar tristonho, passo a passo...

Petiço velho... joia do meu pago!
Saudade amarga que, comigo, trago,
Espera... qu'eu também sinto cansaço.

GLAUCUS SARAIVA

Borracho


Pobre borracho... ajoelhado
no oratório do bolicho!
Teu presente é como o lixo
que sobrou do teu passado.
Tens o futuro castrado
de esperança e ilusões.
Te incorporaste aos balcões
das pulperias do pampa...
Se vives a meia guampa
encharcado de bebida,
é pra esquecer a caída
dessa outra bebedeira
que tomas, a guampa inteira,
no copo amargo da vida.

Mastigando o teu silêncio,
como quem reza baixinho,
vais garganteando aos pouquinhos
teu ato de contrição,
feito de canha e limão
por monges de estranha cúria,
nesta liturgia espúria
praticada no balcão.

Mas não tem quem te absorva,
nem que ouça a tua reza...
Geralmente te despreza
a maioria, borracho.
E, assim, vais vivendo guacho
de carinho e compreensão.
Mas eu te respeito, irmão,
pois diz o velho ditado
que até Deus, penalizado,
frente a criança e ao borracho.
Deus coloca a mão por baixo...

Todos nós somos borrachos,
a canha é que é diferente.
Eu conheço muita gente
que rola por este mundo
vivendo dramas profundos,
embriagado de dor.
Outros, borrachos de amor,
dão tudo, dão corpo e alma,
vivendo a íntima calma
que só nos traz a bondade.

Alguns, ébrios de vaidade,
bebem tragos de si mesmo
e vão ostentando a esmo
garrafões de narcisismo,
canha feita de egoísmo,
indiferença e arrogância.
Outros, pobre ignorância,
se embriagam de dinheiro
e fazem da vida celeiro
para amontoar a riqueza,
vivendo a extrema pobreza
da indigência espiritual.
Algum prefere o imortal
licor feito de esperança
e a realidade amansa
bebendo ilusão e sonho.

E, por fim, nos vem tristonho,
empochado em desencanto,
um que bebe o próprio pranto,
destilado, com certeza,
do alambique da tristeza
que bate no peito seu!
Agora peço: por Deus,
bolicheiro do meu pago,
venha no mais outro trago
que este borracho... sou eu!

GLAUCUS SARAIVA

Lenda do Quero-quero


Nos velhos tempos de antanho,
quando o campo era sem dono
O guasca era um rei no trono
verde-escuro das coxilhas...
Sua corte eram tropilhas
selvagens dos potros bravos.
O pampa não tinha escravos,
onde tudo era igualdade,
E o pendão a Liberdade !
A espora que retinia,
a garrucha, a lança esguia
a boleadeira e os cavalos,
eram somente os vassalos
que o gaúcho conhecia.

Mas um dia a prepotência
mostrou as garras malvadas!
Banhou de sangue as estradas,
cobriu de luto a verdade,
e em troca de liberdade,
trouxe grilhões de negreiro.
Porém o guasca altaneiro
boleou a perna no pingo,
E foi pra luta sorrindo,
porque o destino mandou.
Muito gaúcho tombou,
mas, entre os guascas sombrios,
a prepotência caiu
e a liberdade ficou!

E no lombo das coxilhas,
no largo dos descampados,
cabos de lança, quebrados,
apontavam cemitérios.
E os quero-queros gaudérios,
por sobre aquela tristeza,
pairavam sua nobreza,
como por artes divinas.

E, descendo nas campinas
por onde o sangue rolou,
Um bando imenso pousou
e embaixo d'asa escondidas,
guardavam as pontas perdidas
da lança que o índio amou...

Agora, pela amplidão,
na coxilha e o pampa enorme
o quero-quero não dorme,
como eterno guardião.

Às vezes, na noite escura,
Como um grito de amargura,
estridula seu cantar...
É a alma de algum gaúcho,
que, num último repuxo,
se levantou pra pelear!

E qual um centauro alado
que se ergue do banhado
cavalgando uma ilusão,
voará, como a esperança,
guardando, à ponta de lança,
a Gaúcha Tradição!

Fonte:
http://www.paginadogaucho.com.br/poes/lista.htm

Lima Barreto (Sua Excelência)


O Ministro saiu do baile da Embaixada, embarcando logo no carro. Desde duas horas estivera a sonhar com aquele momento. Ansiava estar só, só com o seu pensamento, pesando bem as palavras que proferira, relembrando as atitudes e os pasmos olhares dos circunstantes. Por isso entrara no cupê depressa, sôfrego, sem mesmo reparar se, de fato, era o seu. Vinha cegamente, tangido por sentimentos complexos: orgulho, força, valor, vaidade.

Todo ele era um poço de certeza. Estava certo do seu valor intrínseco; estava certo das suas qualidades extraordinárias e excepcionais. A respeitosa atitude de todos e a deferência universal que o cercava eram nada mais, nada menos que o sinal da convicção geral de ser ele o resumo do país, a encarnação dos seus anseios. Nele viviam os doridos queixumes dos humildes e os espetaculosos desejos dos ricos. As obscuras determinações das coisas, acertadamente, haviam-no erguido até ali, e mais alto levá-lo-iam, visto que ele, ele só e unicamente, seria capaz de fazer o pais chegar aos destinos que os antecedentes dele impunham…

E ele sorriu, quando essa frase lhe passou pelos olhos, totalmente escrita em caracteres de imprensa, em um livro ou em um jornal qualquer. Lembrou-se do seu discurso de ainda agora.

“Na vida das sociedades, como na dos indivíduos…”

Que maravilha Tinha algo de filosófico, de transcendente. E o sucesso daquele trecho? Recordou-se dele por inteiro:

“Aristóteles, Bacon, Descartes, Spinosa e Spencer, como Sólon, Justiniano, Portalis e Ihering, todos os filósofos, todos os juristas afirmam que as leis devem se basear nos costumes…”

0 olhar, muito brilhante, cheio de admiração – o olhar do líder da oposição – foi o mais seguro penhor do efeito da frase…

E quando terminou! Oh!

“Senhor, o nosso tempo é de grandes reformas; estejamos com ele: reformemos!”

A cerimônia mal conteve, nos circunstantes, o entusiasmo com que esse final foi recebido.

O auditório delirou. As palmas estrugiram; e, dentro do grande salão iluminado, pareceu-lhe que recebia as palmas da Terra toda.

O carro continuava a voar. As luzes da rua extensa apareciam como um só traço de fogo; depois sumiram-se.

O veículo agora corria vertiginosamente dentro de uma névoa fosforescente. Era em vão que seus augustos olhos se abriam desmedidamente; não havia contornos, formas, onde eles pousassem.

Consultou o relógio. Estava parado? Não; mas marcava a mesma hora e o mesmo minuto da saída da festa.

– Cocheiro, onde vamos?

Quis arriar as vidraças. Não pôde; queimavam.

Redobrou os esforços, conseguindo arriar as da frente. Gritou ao cocheiro:

– Onde vamos? Miserável, onde me levas?

Apesar de ter o carro algumas vidraças arriadas, no seu interior fazia um calor de forja. Quando lhe veio esta imagem, apalpou bem, no peito, as grã-cruzes magníficas. Graças a Deus, ainda não se haviam derretido. O leão da Birmânia, o dragão da China, o língam da Índia estavam ali, entre todas as outras intactas.

– Cocheiro, onde me levas?

Não era o mesmo cocheiro, não era o seu. Aquele homem de nariz adunco, queixo longo com uma barbicha, não era o seu fiel Manuel.

– Canalha, para, para, senão caro me pagarás!

O carro voava e o ministro continuava a vociferar:

– Miserável! Traidor! Para! Para!

Em uma dessas vezes voltou-se o cocheiro; mas a escuridão que se ia, aos poucos, fazendo quase perfeita, só lhe permitiu ver os olhos do guia da carruagem, a brilhar de um brilho brejeiro, metálico e cortante. Pareceu-lhe que estava a rir-se.

O calor aumentava. Pelos cantos o carro chispava. Não podendo suportar o calor, despiu-se. Tirou a agaloada casaca, depois o espadim, o colete, as calças.

Sufocado, estonteado, parecia4he que continuava com vida, mas que suas pernas e seus braços, seu tronco e sua cabeça dançavam, separados.

Desmaiou; e, ao recuperar os sentidos, viu-se vestido com uma reles libré e uma grotesca cartola, cochilando à porta do palácio em que estivera ainda há pouco e de onde saíra triunfalmente, não havia minutos.

Nas proximidades um cupê estacionava.

Quis verificar bem as coisas circundantes; mas não houve tempo.

Pelas escadas de mármore, gravemente, solenemente, um homem (pareceu-lhe isso) descia os degraus, envolvido no fardão que despira, tendo no peito as mesmas magníficas grã-cruzes.

Logo que o personagem pisou na soleira, de um só ímpeto aproximou-se e, abjetamente, como se até ali não tivesse feito outra coisa, indagou:

– V. Exa. quer o carro?