terça-feira, 22 de outubro de 2019

Antonio Cabral Filho (8. Colar de Trovas) Tema: Criança


Organização: Adriano Bezerra,  Aurineide Alencar e Maria Zilnete.

01
Urge esperança de um dia
ver criancas a cantar
hinos da democracia,
*declamando o verbo amar*
(Agostinho Rodrigues – RJ)

02
Declamando o verbo amar
com toda sua inocência 
criança  vive a sonhar
*tendo paz de consciência.*  
(Neiva Fernandes – RJ)

03
Tendo paz de consciência,
toda criança é feliz,
descobre na eficiência,
*o que a natureza diz.*
(Antônio Cabral Filho – RJ)

04
O que a natureza diz ?
que criança quer um ninho,
que na vida é aprendiz,
*que  precisa de carinho!*
(Gleyde Costa Campos – RJ)

05
Que precisa de carinho
o mundo tem consciência,
criança que tem seu ninho
*cresce com benevolência.*
(Aurineide Alencar – MS)

06
Cresce com benevolência 
a criança desde cedo.
Que o sorriso de inocência 
*não se apague pelo medo.*
(Antonio Francisco Pereira – MG)

07
Não se apague pelo medo
na vida não é assim; 
a criança tem enredo:
*ser amada até o fim!*
(Agostinho Rodrigues – RJ)

08
Ser amada até o fim - 
Júlia, de seu pai, o quis.
Ele nunca está a fim! 
*Faço-a eu mesmo então feliz!*
(Oliveira Caruso – RJ)

09
Eu a faço,  então  feliz
na proteção  do Senhor... 
pois é Deus mesmo  quem diz
*que a criança  tem valor.*
(Neiva Fernandes – RJ)

10
Que a criança tem valor
e precisa ser feliz
livre de qualquer pavor
*e viva como aprendiz.*
(Prof. Roque – RS)
   
11
E viva como aprendiz
na nossa escola da vida
isto o vate sempre diz
*para a criança querida!...*
(Luiz Cláudio – RN)

12
Para a criança querida,  
daremos o nosso amor,  
protegendo a sua  vida,   
*na  Luz que vem do Senhor!*
(Neiva Fernandes – RJ)

13
Na luz que vem do Senhor
sejam sempre iluminadas
com carinho e muito amor
*por seus pais sejam amadas.*
(Adriano Bezerra – RN)

14
 Por seus pais sejam amadas,   
no carinho mais profundo;
      jamais ser abandonadas,     
*ao relento deste mundo.*
(Antônio Cabral Filho – RJ)

15
Ao relento deste mundo
vemos data consagrada
pra criança é mês fecundo
*chamo Aparecida amada!...*
(Luiz Cláudio – RN)

16
Chamo Aparecida amada
nos momentos de aflição,
para que não falte nada
*para a criança e nação.*
(Maria Zilnete de M. Gomes – RJ)

17
Para a criança e nação
venha a paz tão desejada
com a santa intercessão
*da nossa mãe consagrada.*
(Adriano Bezerra – RN)

18
Oh nossa mãe consagrada!
Olhai por nossas crianças,
que façam o que Lhe agrada
*e tenham fé e esperança.*
(Maria Zilnete de M. Gomes – RJ)

19
Que tenham fé e esperança,
no futuro da nação .
Não deixemos a criança, 
*sem amor ao nosso Chão!!*
(Gleyde Costa Campos – RJ)

20
Sem amor ao nosso chão
nada bom se esperaria
ao futuro da nação
*urge a esperança um dia.*
(Adriano Bezerra – RN)

TROVAS DO FECHAMENTO

*A*
*Sem amor ao nosso chão,*
mas fé  na Virgem Maria: 
respeitando nosso irmão 
*urge a esperança  um dia.*
(Neiva Fernandes – RJ)

*B*
*Sem amor ao nosso chão,*
crianças sem alegria,
sonho um mundo em união;
*urge esperança um dia.*
(Maria Zilnete de M. Gomes  – RJ)

*C*
*Sem amor ao nosso chão,*
a criança perderia
amor e dedicação, 
*urge a esperança um dia!*
(Gleyde Costa – RJ)

*D*
*Sem amor ao nosso chão,*   
não há paz nem alegria,
pois a nossa solução,            
*urge a esperança um dia.*
(Antônio Cabral Filho – RJ)

*E*
*Sem amor ao nosso chão*
nada bom se esperaria
ao futuro da nação
*urge a esperança um dia!*
(Adriano Bezerra – RN)

*F*
*Sem amor ao nosso chão*
nada até me arrepia
vamos dar as nossas mãos,
*urge a esperança um dia.*
(Madalena Cordeiro – ES)

João do Rio (Duas Criaturas)


A Viriato Correia.

O grande hall do hotel estava repleto. Pelas janelas semi-cerradas, na suave ondulação das cortinas brancas, entrava um vago perfume de violeta e de rosa. Lá fora, entre os tufos de verdura do jardim e o céu muito azul, devia esplender a pálida luz de um sol de inverno. As mesas, todas ocupadas e cintilantes de cristais, prolongavam-se até ao fundo numa orquestração de tons brancos, que iam do branco de prata ao branco gris[1] nos lugares mais em sombra.

Os criados passavam apressados, erguendo numa azáfama os pratos de metal. Ao alto, os ventiladores faziam um rumor de colmeias. Senhoras e cavalheiros, perfeitamente felizes, as senhoras quase todas com largos “ boás” [2] de plumas brancas, chalravam e sorriam. Estávamos bem na bizarra sociedade de entalhe que é o escol dos hotéis. Alta, longa, comprida, com uma cintura de esmaltes translúcidos e o ar empoado de uma íntima do general Lafayette, a escritora americana. cuja admiração por Gonçalves Dias chegara a faze-la estudar e propagar o Brasil, mastigava gravemente. Logo ao lado, um grupo de engenheiros, também americanos, bebia, com gargalhadas brutais e decerto inconvenientes, champanhe Munn. Mais adiante a encantadora viúva do milionário Guedes, com o seu perfil de Luigni, de que tanto mal se dizia, sorria num vago sonho para a senhora Alda, a formosa divorciada do dia, Alda Pais anteontem, Alda Pereira hoje, como há cinco anos, antes de casar... De vez em quando parava à porta um novo hóspede, hesitava, percorria com o olhar a extensa fila de mesas onde o debinage[3] se acalorava. A um canto, Mlles. Peres, filhas de um rico argentino, yatch-recorderman[4] nas horas vagas e vendedor de gado nas outras, perlavam[5] risadinhas de flerte para o solitário e divino Alberto Guerra, seguro dos seus bíceps, dos seus brilhantes e quiçá dos seus versos.

Bem ao centro, o nosso vasto ministro em Honduras desdobrava a sua simpática adiposidade numa roda de mocitos elegantes, ferozes pretendentes ao secretariado diplomático, e, de vez em quando, cortando o zumbido elegante do grande hall, retinia imperiosamente o som de uma campainha elétrica.

Estávamos a almoçar cinco ou seis, convidados pelo barão Belfort, esse velho dandy sempre impecável, que dizia as coisas mais horrendas com uma perfeita distinção. E fora decerto uma extravagância aquele demorado almoço, a fazer horas para um match de football, a que seria impossível deixar de assistir. O barão, de veia, com a sua voz de navalha, recortava na pele dos presentes as caricaturas perversas. Nós já tínhamos rido muito e entrávamos com apetite num vulgaríssimo salmis[6] de coelho, quando de repente um dos nossos companheiros exclamou:

— Olha, a Chilena aqui!

À porta surgiu uma triunfal figura de Ceres, com o cabelo cor de ouro e o verde olhar coado por umas negras pestanas de azeviche. O seu lindo corpo era como que modelado pelo vestido de Irlanda e rendas verdadeiras. Nos dedos afilados e tênues como as pétalas esguias dos crisântemos, três ou quatro pérolas rosas; nos lóbulos das orelhas, duas negras pérolas e por sobre a gola leve de rendas brancas um virginal colar de pérolas. Acompanhavam-na um cachorrinho branco de neve, de focinho impertinente, e um cavalheiro, baixo, gordo, cheio de joias, enfiado numa redingote[7] azul.

— A Chilena! A Chilena aqui! Mas que sociedade é esta? bradou o mais jovem dos convivas.

O barão teve um sorriso cético.

— Meu caro, o Rio tem, como Paris ou Londres ou mesmo Montevideo, a sua season[8]. A season começa regularmente com a chegada do primeiro mambembe[9] estrangeiro, mambembe naturalmente insuportável, e fecha com os calores da primavera, na abertura do salão de pintura. É a época do luxo, da exibição, do sacrifício para aparecer, da tagarelice, em que toda a gente fala mal do próximo e entende de arte, é a época escolhida pelos que pretendem tomar lugar na sociedade. Nós somos uma sociedade em formação — a mais atraente, a que mais tenta por consequência, não só pelas suas taras, que há vinte anos não eram julgadas mal, como pelo nosso fundo meio ingênuo de aceitar tudo o que brilha, seja diamantino ou seja montana. Anualmente, de envolta com os políticos, os fazendeiros, os estrangeiros exploradores, aparecem essas figuras com um passado estranho, decididas a dominar, a entrar nos lugares honestos, a serem respeitadas.

São figuras de inverno. Querem dominar. E olhe que aqui, quase todos têm a sua história: as demoiselles Peres, talvez enteadas de um rei morto, o wildeano[10] conde Rossi, lá longe, com o seu excepcional secretário cubano; Alberto Guerra, o sedutor irmão de D. Juan[11] e também de Shylock[12], porque vive de emprestar a juros; a viscondessa Guilhermina, que chegou de Vicchy e só está aqui de passagem; a Alda, a baronesa...

— Barão, cale-se, por favor! Cale-se! Figuras de inverno, não duvido. Mas a Chilena é menos que isso.

— Ora, a Chilena já não usa esse pseudônimo tão picante e ao mesmo tempo tão significativo para os guerreiros do Rio Grande. Todos vocês sabem a história de vício dessas três irmãs que cerca de dez anos amaram e arruinaram varias criaturas. Mas tinham de ter um nome honesto. As duas primeiras casaram. Esta é hoje a esposa do cônsul do Haiti no Pará.

— Então o homenzinho?.

— Um explorador riquíssimo que se presta a ser cônsul, auferindo todos os lucros do cargo. Deve ter uma fortuna superior a cinco mil contos. Tivemos relações em Belém e em Paris. É um caso de embrutecimento passional.

— Mas são realmente casados?

— Não há dúvida. Vocês conhecem a história das chilenas, três lindas criaturas da fronteira que se diziam chilenas por picante e a que os rio-grandenses chamavam chilenas como lembrança de certos estribos em que os pés ficam à vontade e toda a gente pode usar. Elas tinham topete, beleza, audácia. Para ser o vício arrasador não precisava muito outrora no Rio. Chegaram e logo a fama irradiou. De um dia para outro, os fazendeiros ricos sentiram a necessidade de dar-lhes palácios, os banqueiros ofereceram-lhes as carteiras, os amorosos sem vintém prometeram vigor e paixão. As gaúchas ardentes, ardentes mesmo demais, faziam grandes loucuras sensuais, mas prestavam atenção ao futuro. Há mulheres que podem se entregar com frenesi a vida inteira sem conseguirem ser prostitutas Elas tinham o frenesi, não, tinham o sinal de profissão, e depois, haviam nascido sob as estrelas complacentes. A Luísa partiu com um fazendeiro, e se o engana é com os cometas, raramente. Natália recolheu com um negociante riquíssimo Ficou apenas Maria, que diriam um caso anormal de luxúria, malbaratando dinheiro, embriagando-se, tripudiando no torvelinho da vida. Ora, Azevedo apaixonou-se pela Maria, há sete anos, vendo-a guiar uma parelha de cavalos zebrados que foram acabar no Jardim Zoológico como raridade. Maria atravessava uma das suas crises, devendo a casa, as mobílias, os cavalos, os criados, e até mesmo o adolescente robusto que fazia de Augias[13] no fundo do palacete e de Automedonte[14] à tarde, no passeio. Azevedo foi seringueiro ou coisa que o valha. Precisamente voltara do Amazonas, esfomeado de mulher e cheio de dinheiro. Teve o deslumbramento diante da beleza que Maria tornava provocante. Tentou o assalto, deixou-se prender, pôr o freio, montar, esvaziar. A opinião geral — e aliás alegre, era que Maria arruinaria o marchante selvagem. A sorte porém de Azevedo era intensa. Quanto mais dava, quanto mais pagava, mais ganhava. Isso devia ter concorrido poderosamente para a paixão do animal, fetiche como todos os simples, e irritar Maria, inimiga dos pagadores como todas as boêmias. Azevedo empolgou-a inteiramente. Ela, até então a Vênus vingadora, que arruina, arrasa, domina, de gênio voluntarioso, só encontrava uma satisfação engana-lo, traí-lo, roubar-lhe o corpo para o banquete dos esfomeados. Era uma performance entre a paixão cega e a raiva de fugir dessa paixão. Ao cabo de quatro meses, Maria proibiu-lhe a entrada, despediu-o. Estava coberta de joias, com o cofre cheio e enfarada, aborrecida, excedida pela convivência do pobre homem apaixonado e pagador. Meteu-se na grande orgia, para se convencer de que estava livre, livre por completo. Mas Azevedo, aguilhoado por aquela despedida, sentira de repente que perdia a sua carne e a sua sorte e recorria a todos os meios imagináveis para de novo apanha-la, peitando consciências, interessando na sua desgraça à custa de bilhetes de banco; as amigas da Maria, convencendo os camaradas de que era preciso fazer mudar de opinião Maria, aquela louquinha incapaz de pensar no futuro. Logo a Chilena sentiu em torno, cada vez mais presente, o fantasma do Azevedo. Falavam nas pândegas as amigas, por acaso: ah! se aqui estivesse o Azevedo! Falava a cartomante que de oito em oito dias lhe deitava as cartas: vejo aqui um homem sério que muito a ama e agora afastado voltará a faze-la feliz! Falavam os criados: Coitado do patrão; passou hoje por aqui, olhando muito... Falavam até os camaradas de cama e mesa: Afinal o Azevedo é um bom homem. E Maria viu que tendo despedido o Azevedo agora é que o tinha a todo o instante na lembrança, sem poder fazer-lhe mal, sem poder vingar-se, quase a convencer-se de que o idiota era bom. Certa vez disseram lhe : o Azevedo parece resignado : vai montar casa para a Benevente. Maria teve um grande ódio e no outro dia Azevedo estava de dentro outra vez, louco de amor e ainda mais perdulário.

— Maria resignara-se?

— Para a obra da vingança, tornando-o epicamente ridículo. Não importava a pessoa, a questão era do ato. Ah! Eu imagino sempre, quando o meu egoísmo quer eternizar o amor, o desespero de um pobre ente sem poder livrar-se de outro que se molda e curva e dá tudo, e é passivo e é humilde. Há torturas, imperceptíveis à maioria dos mortais, que são dantescas. E nenhuma como essa em que o ambiente, a fatalidade, o destino forçam a vitória do mais fraco dando-lhe o que deseja, fazendo-o realizar o seu fim, impondo-o a outro corpo, a goza-lo, a senti-lo, a apalpa-lo. A grande desgraça do amor, a maior desgraça é essa porque laça ao mesmo horror duas almas. Maria devia ter crises de desespero e de lágrimas, enquanto Azevedo devia sofrer na sua muda humildade de cão sedento de carícias! E quando levou-a para o Pará, a Chilena tinha a nevrose de engana-lo. Ora, imaginem vocês, em Belém, terra pequena, onde Azevedo tinha uma posição evidente! As denuncias anônimas choveram exigindo vergonha, mais pudor, mais brio. O grosso Azevedo lia e calava, porque, se revelasse uma palavra das cartas, Maria fechava-lhe a porta semanas e semanas. Uma vez, entretanto, como recebesse uma denuncia violenta, Azevedo teve tensões de ciúmes e foi encontra-la como a princesa Falconière da Dalila, cantando num barco com certo tenor de zarzuela[15]. Não havia dúvida! O cônsul do Haiti berrou de cólera, o tenor deu às gâmbias[16], a polícia apareceu. O escândalo, porém, permitiu à Maria um desses cinismos épicos. Agarrou o Azevedo pelo casaco, meteu-o dentro do carro sem dizer palavra, ofegante, e ao chegar à casa mediu-o de alto a baixo e teve esta frase, célebre há cinco anos : — o senhor é um indigno! Desconfia de mim !

É preciso pensar o alcance, a extensão moral de uma dessas frases num cérebro, obsedado pela ideia de não perder uma carne cada vez mais desejada. Maria dissera por cinismo profissional. Ele sentiu-se comovido a princípio. Afinal se enganava, procurava não o afrontar. Já era uma consideração. E depois engana-lo-ia ela? Há tantos inocentes condenados, mesmo com provas visíveis comprometedoras! E o tenor, sem querer, foi a pedra angular do casamento.

— Oh! não...

Quinze dias depois da cena Azevedo sentiu que nem de negócio e de borracha poderia entender mais. Maria, muda, grave, solene, vivia com o quarto fechado sem responder primeiro aos seus insultos, depois às suas ironias, depois aos desesperos e já agora aos rogos, porque Azevedo vivia como à espera da notícia de ter um mal irremediável, sem dormir, sem descansar, só pensando que de novo ela o deixaria. E dessa vez para sempre. Então caiu de joelhos, suplicou, pedindo perdão, jurando que não vira nada, que jamais acreditaria na calúnia... Há entre os sexos um ódio latente. Quando um se humilha a outro, esse outro toma crueldades de tirano, refocila em perversidades e em excessos. A Chilena percebeu a excelência do momento, teve um assomo de dignidade, borrifada de lágrimas: Cale-se, Azevedo! O senhor é um ingrato! Nunca mais serei sua! Desconfiar de mim. Só se me der uma grande prova de confiança, o seu nome, a sua mão...

Na roda correu um desabalado riso, que fez voltar-se o grupo aspirante ao secretariado diplomático. O barão limpou o seu monóculo de cristal e continuou tranquilamente:

— Ela nesse tempo era mais magra e tinha os cabelos castanhos, mas de um castanho que às vezes era quase negro e de outras vezes se tornava quase louro. Esse cabelo era a sua alma. Azevedo, coitado! refletiu vinte dias, torturou-se vinte dias. E nesses vinte dias, a Maria lutou, em arte e manha, mais que um diplomata, graduando sabiamente as concessões que dessem ao velho apaixonado uma vaga ideia do que poderia ser o lar com uma doce criatura meiga, boa, fiel, sem azedumes, sem neurastenias. Os amigos, sabedores do desastre, reuniram-se para salvar Azevedo. Todos os meios falhavam; ou antes redundavam a favor da Maria. Um rapaz, Teofano de Abreu, se bem me recorda, latagão inteligente e bem colocado da colônia portuguesa, com certo desejo na Maria, prestou-se a um sacrifício colossal: fazer-lhe a corte, conseguir possui-la e vir contar depois para o Azevedo o fato. A Maria não resistiu, e Teofano, apesar de ter gostado, sacrificou-se —“ Azevedo, disse em presença de várias testemunhas, não podes casar com a Maria” — “Porque?”

— “ Porque te engana.” — “ Não admito que insultem uma mulher que vive comigo." — “ Mas foi comigo, venho agora de lá. Ela será incapaz de negar na minha cara. E se faço este ato indigno é para te salvar de uma horrível e irremediável indignidade.” Azevedo fez-se pálido, correu casa, e no outro dia não cumprimentou mais nenhum dos seus amigos. Era fatal. E afinal, para de novo possuir Maria, casou...

Fui encontra-los em Paris, elegantemente instalados numa das avenidas da Étoile, num palácio discreto. Maria tinha carruagens, coupé elétrico, arrastava à noite pelos pequenos teatros maravilhosas capas de peles de muitos bilhetes de mil, e frequentava vários lugares maus porque vendo-a um dia a pé a rodar um bistrô[17], lembrei-me que bem podia estar de paixão por algum jovem apache[18], que os apaches são os homens belos de Paris. É mesmo provável que tivessem deixado Paris, quando já Maria dava uns chás a alguns vagos titulares internacionais, por alguma chantagem de escândalo, que o Azevedo teve de saber e pagar.

Mas isso não era nada! As exigências e o descaro de Maria cresceram na proporção do embrutecimento do marido. Quando voltaram de Paris, ela exigiu no seu palacete toda a ala direita mobiliada à indiana, com autênticos bambus de Calcutá, potiches de cobre de Benares, deuses bramânicos de porcelana e de metal. O seu quarto tinha guarnições de seda verde pregadas a grampos de coral; os cortinados eram de gaze de Decã, a mais leve gaze do mundo. Aos pés da cama, um Vixnu[19] de marfim, o deus dos ricos, olhava-a a dormir. Frequentava-os por essa ocasião uma turba-multa de homens sem preconceitos e rapazes bem dispostos, que forneciam as traições ao Azevedo. Maria era uma pilha de nervos. Não se resignara ao pobre cônsul; e a sua neurastenia explodia em desejos de humilhações e um desenfreado apetite de sedução. À mesa, fazia o cônsul levantar-se, ir buscar o seu leque ao segundo andar, para beijar o conviva, principalmente quando o jantar era a três. De outras vezes, marcava-lhe a hora da entrada: — preciso estar só. Apareça depois da meia noite. E nesses dias sempre alguém conhecia a pele de tigre real com forro de brocado rubro, que havia na terceira sala da ala esquerda, onde se amontoava a coleção de armas usadas por todos os soldados dos rajás imagináveis.

Vocês riem! Eu afinal tenho pena. Esse homem ganhava rios de dinheiro, gozava de boas relações... Julguei-o um indigno. Não era. Era e é um ser que ama. Qual de nós não tem o seu segredo inconfessável e um desejo irreprimível? O amor é o desejo, mas o desejo da completa satisfação, dessa ilusão dos sentidos. Quando se quer assim, somos arrastados como por uma corrente. Há casos piores a que apertamos a mão...

— Mas, agora, que fazem eles?

— Não os vejo há dois anos. Naturalmente ela quer ser família. É uma aspiração natural. Vi-a com ele, na abertura da Câmara, numa pose de duquesa pintada pelo La Gandara. Decerto já se resignou ao Azevedo e estão ambos aqui, a gozar o inverno, a dar a impressão de que são felizes. E entretanto a Maria é a alma envenenada, agrilhoada a um corpo que detesta, desejando, no desequilíbrio de carne a tropa dos homens, desejando, no desequilíbrio de moral, a posição e o respeito; o Azevedo é o pobre bruto sacrificando tudo, a honra, o dinheiro, a vergonha, rastejando o ignóbil só para que lho consintam um pouco de amor pela criatura que lhe agradou aos sentidos. E ambos desgraçados, desvairados, seguem a vida, com o sorriso no lábio e a vaga inquietação no olhar febril.

Nesse momento, a bela Chilena, Maria de Azevedo, ergueu-se. O impertinente fraldiqueiro[20] saltou da cadeira. O homenzinho baixo também, de outra. Ela viu o barão, que se levantou, curvou-se. Azevedo abriu os braços.

— Oh! você! Há dois anos!

— Donde vem?

E os dois homens abraçaram-se. Ele parecia velho, meio desconfiado. Ela, sob a luz opalizada das cortinas brancas, sorria, um sorriso misto de inexprimível ironia e de vaga satisfação, enquanto os seus olhos pousavam, como uma perturbadora carícia, na mesa em que Alberto Guerra continuava a almoçar, seguro dos seus bíceps, dos seus brilhantes e talvez dos seus versos, no brouhaha entontecedor do vasto hall.
__________________________
Notas:
[1] Acinzentado.

[2] Boá. Espécie de xale de plumas. Em francês no texto.

[3] Maledicência. Fofoca. Em francês no texto.

[4] Batedor de recordes no iatismo. Em inglês no texto.

[5] Dar forma ou aparência de pérola.

[6] Tipo de ensopado. Em francês no texto.

[7] Sobrecasaca. No original está: rendingote. Evidentemente um erro de impressão.

[8] Temporada anual elegante. Em inglês no texto.

[9] Companhia teatral em excursão, em geral de segunda classe.

[10] Referente ao escritor inglês Oscar Wilde, condenado em 1895 a 2 anos de prisão por homossexualismo.

[11] Personagem da literatura europeia, arquétipo do grande conquistador de corações femininos.

[12] Personagem da peça de Shakespeare O mercador de Veneza, é um judeu em empresta dinheiro a juros.

[13] Na mitologia grega, personagem do 7ª Façanha de Hércules, que teve de limpar sua famosas cavalariças de 3000 animais, o que não era feito há 30 anos. Como Augias não quis pagar o combinado, Hércules o matou.

[14] Na mitologia grega, condutor do carro de Aquiles e seu companheiro de combates. Sinônimo de cocheiro hábil.

[15] Tipo de ópera cômica espanhola.

[16] Pernas. Dar às gâmbias: fugir.

[17] Restaurante pequeno e simples, mas aconchegante. Em francês no texto.

[18] Gigolô.

[19] Deus, que, ao lado de Brahma e Shiva, forma a trindade sagrada do Hinduísmo.

[20] Afeminado.

Fonte:
João do Rio. Dentro da Noite.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Vinicius de Moraes (Anteato: Palavra por Palavra)


      A ideia ocorreu-me em março de 1967, quando ganhei pela... ésima vez, para grande prazer meu, um novo Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa, de meu velho amigo Aurélio Buarque de Holanda, que nada tem a ver com Sérgio e Chico, mas é, também, homem de muita cachola. Lembro-me de que era noite, e fiquei folheando-o à toa, e verificando uma vez mais a minha imensa ignorância do nosso léxico. De cada dez palavras, não sabia o significado de três ou quatro. É verdade que eram, o mais das vezes, palavras eruditas, de conteúdo científico e - bolas! - eu não sou cientista nem nada. Mas para um escritor, uma tal constatação é, de qualquer forma, humilhante. Passei a ler com mais frequência o dicionário como recomendava Gide - o que, aliás, constitui para mim uma ocupação melhor que a leitura desses escritores de best sellers que andam em voga. 

      Muitos amigos me têm pedido que escreva as minhas memórias, Fernando Sabino em particular. Fico pensando... Para quê? Parece-me um ato de vaidade, mais que de despudor. Mas, pondera ele - o Otto Lara Resende já me disse o mesmo - eu percorri um caminho de tal modo vário em experiências, aqui e no estrangeiro, que sonegá-las aos que acreditam no que escrevo, à mocidade em particular, é, de certo modo, uma forma de vaidade maior ainda. Considerando-se, ademais, que minha vida sempre foi, por assim dizer, vivida abertamente... 

      Não sei. Tenho horror à ideia de tornar-me literário, de começar a redigir no ato de escrever. O que me dificulta, hoje em dia, a leitura dos escritores em geral, com pouquíssimas exceções, é justamente esse detestável defeito. Mal sinto, em lugar de estilo, o menor maneirismo, a menor fita, largo o livro de mão. Acho-os, na maioria, uns chatos, só contam o que todo mundo já sabe ou logo adivinha. A vida é infinitamente mais rica que suas palavras - e estou certo de que mesmo os mais medíocres são portadores de experiências que nas mãos de um bom romancista ou um bom biógrafo dariam matéria de interesse universal. Pois tudo tem interesse, mesmo o coito de duas moscas, desde que provoque no ser que o observa um reflexo vital. 

      Vale dizer que pouca gente vive: esta é a grande verdade; vive no sentido de queimar-se sem reservas, sem preconceitos, sem atitudes, sem julgamentos canonizados por uma moral convencional imposta. Mas, por outro lado, eu não gostaria de escandalizar. Escandalizar pode ser também uma forma infame de vaidade, um processo autocomplacente de criar uma antimoral como justificação de taras ou fraquezas pessoais. Não: eu sou um homem que, até certo ponto, venceu as barreiras do medo de viver, e viver é, hoje em dia, para mim, um ato simples, perturbado apenas pelas neuroses consequentes do simples ato de viver. A vida, trata-se de cumpri-la bem, sem outro temor que ter de apertar-lhe as rédeas. Ai de mim, que ilusão! - dizer isto na quadra dos cinquenta, quando os frutos do amor crescem cada vez menos ao alcance das mãos, do meu desejo... 

      Mas o curioso em tudo isso é que, aquela noite de março de 1967, a leitura à toa do Pequeno dicionário fez-me voltar a 15 anos atrás, num hotel em Genebra, quando - lembro-me tão bem agora - veio-me pela primeira vez a vontade de escrever minhas memórias, e eu chamei um mensageiro e dentro em breve punha-me a rabiscar num grosso caderno suíço. O resultado de um dia de trabalho pareceu-me, na manhã seguinte, tão... não digo literário, mas auto-suficiente, que larguei aquela choldra com um profundo aborrecimento de mim mesmo. Eu nada fizera senão ir, conscientemente, tentar justificar-me, apresentar-me sob uma luz falso-modesta, ficar lambendo as próprias feridas. 

      Agora, não. Agora sinto que vou poder escrevê-las, usando as letras do alfabeto e as palavras da língua sob seus capítulos, como ímãs mnemônicos capazes de me mergulhar compulsivamente num abismo de lembranças: palavras concretas desagregando-se em memórias, um infinito de saudades, um sumidouro de associações caóticas, mas de onde possam vir à tona, tal um agente lisérgico, os fragmentos desse grande puzzle a reconstituir, que é a vida de um homem, de qualquer homem, de todos os homens. E fazê-lo dia a dia, numa hipnose consciente que possa resultar, quem sabe, numa auto-análise, tanto quanto possível próxima da verdade - que desta, realmente, não se sabe nunca. 

      Sim, a ideia me apaixona. Por que não tentar? Por que não pousar os olhos numa palavra e, através de conjeturas, sentir refluir o que ficou do tempo? Que mundo de livros, sobrasse-me vida, não poderia eu escrever com a palavra amor, a palavra amigo, a palavra mulher... Não criou a palavra ressentimento condições para que eu possa mergulhar na palavra sonho, e sonhar, e sonhar minha existência... - palavra por palavra?

Fonte:

Silmar Bohrer (Caderno de Versos) 2

Caçador/SC

O ÁS DO SONETO
Ao Dr. Miguel Russowski, amigo

Criatura sempre envolvente
nas planuras deste mundão,
desde cedo um competente,
fez-se hábil cirurgião.

Sendo um vivente facetado,
poliedro multilavra,
agita este mundo agitado,
também é operário da palavra.

Dos seus versos não vou falar,
pois doçuras eu não espalho,
verdadeiramente prometo.

Apenas algo eu quero evocar,
que se existe o ás do baralho,
ele é o nosso ás do soneto.

ESQUECIDOS?!

Aqueles versos perdidos
entre os meus alfarrábios
podem não ser versos sábios
nem são versos esquecidos.

Na gestação deles tantos
sempre há os demorados,
pensamentos depravados,
rimas más, sem encantos.

Para a catarse sem pressa
ficam um tempo guardadinhos
no (quase) baú, lá à beça . . .

Pois versos são como as gentes,
purificam bem devagarinho
remindo maus antecedentes.

OH ! MAGIA

Ninguém a desafinar,
a orquestra cedo cantando,
corruíras, tico-ticos, sabiá,
joão-de-barro, bem-te-vi vibrando.

Uma sabatina em festa
então cá(qui) amanheceu,
os passarinhos na sua gesta
dão ao mundo o que Zeus lhes deu.

Eis-me loguinho a perguntar
nesta insólita romaria
em que vamos nós a navegar,

Que outra mágica magia
haverá que se possa igualar
aos passarinhos em sinfonia.

SERRA ACIMA

Vinte e tantos foram os dias
na orla chamada marítima
onde me tornei então vítima
dos silêncios, doces companhias.

Bebi de ares purinhos
pisando areias finíssimas,
banhos em águas claríssimas,
com céus azuis marinhos.

Agora andando serra acima
vem a sensação de finitude
desta vidinha numa boa . . .

A reminiscência se aproxima
com vívida mansuetude
lembrando belos dias à toa.

TRANSCENDÊNCIAS

Ora (rireis), ouvir asneira,
o poeta Bilac não cantaria,
se as estrelas ele ouvia,
a verdade é verdadeira.

Tenho ouvido as estrelas
nestas minhas romarias,
o Cruzeiro, as Três-marias,
preciso ouvi-las e vê-las.

Num mundo de turbulências
busco mesmo transcendências
para uma vida de bonança.

Em momentos aflitivos
as estrelas são lenitivos
e bálsamos de esperança.

Fonte:
Recanto das Letras

Clarisse da Costa (Lançamento do Livro Solaris IV, de Samuel C. da Costa)


Posso dizer que cada escritor tem um caso de amor com a sua obra. Criam-se laços, dedicação e tempo. Muitos autores se envolvem e prestam um pouco de si para a sua obra. E esse envolvimento é como uma pertença de um mundo particular que passa a ser depois de muitos leitores. O autor se envolve e nos prende ali.

Eu como leitora posso dizer que inúmeras vezes eu fiquei envolvida com uma obra literária e quis ter escrito aquilo ou vivido aquele momento. Particularmente como escritora eu estou no atual momento tendo um caso de amor com um livro lançado no mês de outubro. Refiro-me ao livro do autor Samuel da Costa, Solaris IV.

Devo salientar que quem está escrevendo essa matéria não é a amiga Clarisse e sim a profissional Clarisse da Costa. Eu tenho a minha participação nessa construção literária, mas cabe aqui ressaltar o autor catarinense e o seu livro. 

Samuel da Costa no dia 17 de outubro, exatamente quinta-feira, lançou com expectativa e sorrisos de mais uma batalha vencida o livro Solaris IV. O lançamento foi no SESC de Itajaí, no local tivemos muita presença de escritores e escritoras do cenário cultural, artístico e literário catarinense. 

A obra traz muitas vertentes e vem com um simbolismo que exalta os deuses imortais. As suas belas musas são quase como seres perfeitos e intocáveis. O autor tem a capacidade de viajar para dentro de si e em nanossegundos se perder em um mundo particular onde estão todos os seus questionamentos, dores e perdas. Como eu havia dito no prefácio desta obra, ‘’um mundo totalmente seu em um sonhar acordado para uma realidade pós-modernista entre o tempo e o espaço’’. 

No lançamento do livro dava para se perceber a expectativa e a emoção nos olhos do autor. É compreensível tudo que ele sentia naquele momento, o Samuel levou dez anos para amadurecer e pôr a luz do dia o seu livro. 

Não pude me conter e dias após o lançamento eu perguntei ao autor o que vai ser daqui para frente, o que ele espera. Posso adiantar a vocês que vêm muitas coisas boas por aí. 
Samuel da Costa entra numa nova jornada da vida, decidido retomar a fase acadêmica fazendo pesquisas no campo da literatura e dentro de sua possibilidade, lançar um pequeno romance, uma novela dividida em duas partes. Que por sinal tem títulos um tanto misteriosos: ‘’Em dias de sol e calor, em noites de tempestades e frio’’. Por ora é se dedicar a divulgação do livro Solaris IV. 

Sobre o Solaris IV perguntei ao autor o que o livro tem de significado para ele. O escritor me disse que: - ‘’É um trabalho, um avanço. Um livro e um produto’’. 

Considerando-se que levou um longo tempo para ficar pronto, o livro Solaris IV é um trabalho que reflete poesias e uma sensualidade feminina em cada musa ali presente. 

Fonte:
E-mail enviado pela escritora.

Convite do CLMM (Solenidade de Premiação, em Formiga/MG, 25 de Outubro)


Clube Literário Marconi Montoli (CLMM) convida:

Solenidade de Premiação aos vencedores do Concurso Literário "8º Troféu Formiga de Letras do CLMM", edição 2019, onde haverá também uma palestra especial versando sobre “A Literatura Brasileira e os Desafios Atuais da Língua Pátria”, proferida pelo Presidente da Academia Itaunense de Letras Dr. Arnaldo de Sousa Ribeiro, com lançamento de seu livro: Tributo ao Professor Roque Camêllo. 

O evento acontecerá no dia 25/10/19 (sexta) às 19horas, no Auditório Prof. Eunézimo Lima do Centro Universitário de Formiga - UNIFOR-MG, Rua Dr. Arnaldo de Senna, 328, Bairro Palmeiras, Formiga/MG.

Maiores Informações:
(37) 99923.8122 ou pajo121@yahoo.com.br 

Fonte:
Paulo José de Oliveira 
Presidente do Clube Literário Marconi Montoli - CLMM

domingo, 20 de outubro de 2019

Olivaldo Júnior (Lamento de Narciso)


Ali, por sobre as águas refletido,
vejo a face do inimigo. 

Narciso - Michelangelo Merisi
Caravaggio (1571-1610)
Sei bem onde ele peca, 
por que peca, 
por quem peca 
e, além disso, 
por que acredita 
no pecado. 

Pedaço de Deus, costela divina, 
meu inimigo é do sexo 
masculino, adâmico, 
primordial. 

É tão bonita sua face ondulada, 
ondulante, no lago existencial 
em que se debatem 
os dilemas de cada um 
que a ele se inclina 
e se reflete também! 

Narciso, (im)preciso, 
seu sorriso é uma folha 
desprendida de si, 
sina afoita a vagar, 
perpassar todo o lago 
em que se miram 
Narcisos e Narcisas, 
tão seguros de si 
mesmos quanto a folha, 
que não sabe aonde 
vai...

Fonte:
Poema enviado pelo poeta

Carlos Drummond de Andrade (Caso de Chá)


A casa da velha senhora fica na encosta do morro, tão bem situada que dali se aprecia o bairro inteiro, e o mar é uma de suas riquezas visuais. Mas o terreno em volta da casa vive ao abandono. O jardineiro despediu-se há tempos; hortelão, não se encontra nem por milagre. A velha moradora resigna-se a ver crescer a tiririca na propriedade que antes era um brinco. Até cobra começou a passear entre a folhagem, com indolência; é uma cobrinha de nada, mas sempre assusta.

O verdureiro que faz ponto na rua lá embaixo ofereceu-se para matá-la. A boa senhora reluta, mas não pode viver com uma cobra tomando banho de sol junto ao portão, e a bicha é liquidada a pau. Bom rapaz, o verdureiro, cheio de atenções para com os fregueses. Na ocasião, um problema o preocupa: não tem onde guardar à noite a carrocinha de verduras.

— Ora, o senhor pode guardar aqui em casa. Lugar não falta.

— Muito agradecido, mas vai incomodar a madame.

— Incomoda não, meu filho.

A carrocinha passa a ser recolhida nos fundos do terreno. Todas as manhãs o dono vem retirá-la, trazendo legumes frescos para a gentil senhora. Cobra-lhe menos e até não cobra nada. Bons amigos.

— Madame gosta de chá?

— Não posso tomar, me dá dispepsia, me põe nervosa.

— Pois eu sou doido por chá. Mas está tão caro que nem tenho coragem de comprar. Posso fazer um pedido? Quem sabe se a madame, com esse terreno todo sem aproveitar, não me deixa plantar uns pés, pouquinha coisa, só para o meu consumo?

Claro que deixa. Em poucas horas o quintal é capinado, tudo ganha outro aspecto. Mão boa é a desse moço: o que ele planta é viço imediato. A pequenina cultura de chá torna alegre outra vez a terra abandonada. Não faz mal que a plantação se vá estendendo por toda a área. A velha senhora sente prazer em ajudar o bom lavrador. Alegando que precisa fazer exercício, caminhando com cautela pois enxerga mal, ela rega as plantinhas, que lhe agradecem a atenção prosperando rapidamente.

— Madame sabe: minha intenção era colher só uma pequena quantidade.

Mas o chá saiu tão bom que os parentes vivem me pedindo um pouco e eu não vou negar a eles. É pena madame não experimentar. Mas não aconselho: se faz mal, não deve mesmo tocar neste chá.

O filho da velha senhora chegou da Europa esta noite. Lá ficou anos estudando. Achou a mãe lépida, bem-disposta.

— E eu trabalho, sabe, meu querido? Todos os dias rego a plantação de chá que um moço me pediu licença para fazer no quintal. Amanhã de manhã você vai ver a beleza que está.

O verdureiro já havia saído com a carrocinha. A senhora estende o braço, mostra com orgulho a lavoura que, pelo esforço em comum, é também um pouco sua.

O filho quase cai duro:

— A senhora está maluca? Isso nunca foi chá, nem aqui nem na Índia. Isso é maconha, mamãe!

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.