terça-feira, 12 de novembro de 2019

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 3 - Abraço


A cidadania começa com um abraço. O abraço é uma poderosa expressão de afeto. É o corpo falando sua linguagem particular para transmitir emoção. Não existe gesto mais significativo. É um estender de mãos e braços que nos envolve e nos aproxima. Infelizmente, o mundo da tecnologia e a relação fetichista com as coisas que esta produz, torna o abraço um gesto cada vez mais raro.

Hoje é simples ir à Lua,
fica ali... basta um voozinho.,,
Proeza é cruzar a rua
para abraçar o vizinho!
A. A. de Assis - PR

Mas o abraço é aconchego, abrigo, amizade. Pode ser um antídoto à tristeza, à solidão. Estender os braços, abraçar alguém, significa proteção e acolhimento. Faz parte da nossa cultura. Braços abertos remetem a uma origem natural e biológica, remetem à mãe que abriga o filho. É o que recomendam os nossos trovadores.

Abraço, expressão de afeto
que sintetiza amizade;
gesto de emoção repleto
de amor e fraternidade.
Gonzaga da Silva - RN

Minhas trovas são abraços.
Mil braços vou abraçar
nos mil infinitos laços
que a trova sabe engendrar.
Roza de Oliveira - PR

Um abraço com frequência
sempre muito amor nos traz,
ele destrói a violência,
constrói um mundo de paz!
Maria da Graça Stinglin de Araújo - PR

A amizade verdadeira
é infinita como o espaço,
mas se estreita e cabe, inteira,
nos limites de um abraço.
Waldir Neves - RJ

Se os elos de nossos braços
não mais se unirem na vida,
seremos sempre pedaços
de uma corrente partida.
Cezário Brandi Filho - MG

Um abraço carinhoso,
em qualquer situação,
é remédio milagroso...
Não tem contraindicação!
Istela Marina de Souza Gotelipe Lima – PR

O abraço bem apertado
encerra terna magia,
é belo gesto de agrado,
sentimental sintonia.
Beatriz Cartaxo Cotta - MG

Quando unimos nossos braços,
aos braços de outros irmãos,
sentimos que os nossos laços
enfrentam todos os nãos!
Gislaine Canales - RS

Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
Livro enviado pelo autor.

domingo, 10 de novembro de 2019

Arthur de Azevedo (Vovô Andrade)


Ele aparecera um belo dia na casa de pensão de Dona Eugênia, acompanhado de três baús e um pequeno cofre de ferro. Pedira o aposento mais barato, e regateara o preço da comida, porque, dizia ele, estava habituado a tomar uma única refeição por dia, e parca, muito parca.

Ninguém sabia de onde vinha aquele velho, nem ele o dizia, conquanto não fosse precisamente um taciturno. Gostava de dar à língua, mas quando algum abelhudo o interrogava sobre a sua vida, ele não respondia, dando a entender apenas, por meias palavras, que passara por sérios dissabores, que tinha sofrido muito e mudara de terra para que ninguém lhe lembrasse o passado.

Sabia-se apenas que se chamava Andrade, era português, e emigrara muito criança para uma das nossas províncias onde viveu perto de sessenta anos.

Não consentia entrassem no seu quarto que ele próprio varria e espanava, deixando-se ficar horas e horas sozinho, fechado à chave, abrindo e remexendo o cofre e os baús.

Um dos hóspedes, o Braguinha, guarda-livros de uma casa importante, afirmou ouvir no aposento do velho o tilintar de moedas de ouro.

– Aquilo é uma espécie de tio Gaspar, dos Sinos de Corneville – afirmava o dito Braguinha com uma convicção que se comunicou aos outros hóspedes.
*

Mas podia lá ser! O velho Andrade tinha a roupa no fio, o chapéu surrado, os sapatos a rir, e era com um suspiro doloroso e profundo que pagava, no fim do mês, a sua módica pensão.
*

A dona da casa, que era viúva, e tinha três filhos, três bonitos rapazes, o mais velho dos quais contava apenas treze anos, também se convenceu de que o seu novo hóspede era um avarento sórdido; intimá-lo-ia, talvez, a procurar cômodo noutra parte, se ele não se tivesse afeiçoado desde logo aos três meninos, mostrando-lhes uma simpatia fora do comum, contando-lhes histórias que os divertiam. Quem meus filhos beija minha boca adoça.

– Adoro as crianças – dizia o velho a Dona Eugênia. – Que quer? Não tenho mais ninguém sobre a terra: sou completamente só.

– Só? Pois nem um parente?…

– Nem um aderente, minha senhora! A morte levou-me quantos eu amava, e esqueceu-se
de mim neste mundo de atribulações e misérias.
*

Havia um negociante, o Barbosa, sujeito de meia idade, compadre da Dona Eugênia, que a visitava miúdo e a assistia com os seus conselhos de homem prático. As más línguas diziam que esse amigo do defunto era alguma coisa mais que um simples conselheiro, porém sobre esse ponto não tenho nenhuma indicação exata, nem ele importa à minha narrativa.

A verdade é que, com a morte do marido, Dona Eugênia se achou numa situação muito precária, e foi o compadre quem lhe forneceu o capital necessário para o estabelecimento da casa de pensão, que prosperava.

Um dia em que Dona Eugênia lhe disse que a presença do misterioso velhote a aborrecia, e ela já o teria posto a andar, se ele se não mostrasse tão amigo dos rapazes, o Barbosa retorquiu:

– Pô-lo a andar? Que lembrança! Pelo contrário: conserve-o. Este hóspede foi a fortuna que lhe entrou em casa!

– A fortuna?

– A fortuna, sim! É um velho rico e avarento, que não tem herdeiros… Pô-lo fora! Que ideia! Trate-o com todo o carinho, e faça com que seus filhos o respeitem e o amem.

Naquela casa o Barbosa tinha sempre razão. Poucos dias depois, Dona Eugênia oferecia ao velho Andrade, pelo mesmo preço, um aposento maior, mais espaçoso, mais arejado, com boa mobília, colchão de arame e duas janelas dizendo para o jardim.

Fez mais: obrigou-o, com bons modos, a tomar duas refeições por dia, como os demais hóspedes, e pela manhã mandava-lhe chocolate ou café com leite e biscoitos.

O velho derramava lágrimas de reconhecimento, admirando-se, dizia ele, de tanta bondade para com um pobre diabo inútil, que não tinha onde cair morto.

Dona Eugênia conseguiu, com a habilidade de um diplomata, saber o dia em que fazia anos o velho, e nesse dia o pobre homem foi presenteado pelos menos com roupa e calçado. Agora não lhe faltava nada.

O Braguinha, vendo que o velho simpatizava com ele, e na esperança de ser contemplado por sua morte, começou também a mimoseá-lo com guloseimas, charutos finos, livros interessantes, jornais ilustrados, etc.

Entretanto, o velho não modificou os seus hábitos de solidão. Ninguém lhe entrava no quarto onde continuava diariamente, durante horas e horas – a abrir e fechar o cofre e os baús.

Um dia, quando ele ia pagar a Dona Eugênia a sua pensão, esta disse-lhe:

– Não se ofenda com ~ que lhe vou pedir: guarde o seu dinheiro; não tem que pagar coisa alguma; a sua mensalidade não me faz ficar mais rica nem mais pobre; quero que o senhor seja considerado nesta casa como pessoa da família.
*

A situação durou assim muito tempo. O velho Andrade passava uma vida de lorde, tratado a vela de libra.

Agora manifestava desejos, apetecia coisas, e bastava a mais leve insinuação para ser logo presenteado tanto pela viúva como pelo Braguinha.

Este foi afastado a conselho do prudente Barbosa. Era um concorrente perigoso. Tantas ‘fizeram que o guarda-livros foi obrigado a mudar-se, não deixando, contudo, de visitar o velho todas as vezes que o podia fazer, porque a viúva sequestrava o seu precioso hóspede.
*

Já estava o Andrade havia dois anos na casa de pensão, quando uma noite, achando-se a sós com Dona Eugênia, disse-lhe:

– Quero fazer-lhe urna comunicação, minha santa protetora. Estou velho ~ posso morrer de um momento para outro…

– Não diga isso; o senhor tem para dar e levar!

– Há lá no meu quarto um cofre de ferro cuja chave está sempre comigo. Esse cofre é um absurdo, uma fantasia, porque nada tenho senão quatro patacas e umas bugigangas sem valor. Pois bem; previno-a de que lá dentro está o meu testamento… – O seu testamento! dirá a senhora; mas você não tem o que deixar! – Pois tenho. sim, senhora – tendo naqueles baús muitos objetos, de nenhum valor, é verdade, mas que, se eu fechasse os olhos sem ter feito as minhas disposições testamentárias, seriam arrecadados pelo consulado português e vendidos em hasta pública. É isso que desejo evitar, dando destino ao que é meu.

Essa revelação fez com que redobrassem os carinhos que cercavam o velho. Levavam-no aos teatros, às festas, aos passeios; enchiam-no de marmeladas e vinhos finos. Os meninos habituaram-se a chamar-lhe "vovô Andrade".

E o hóspede tornou-se caro. Só não lhe davam médico e botica, porque tinha uma saúde de ferro, e nunca precisou disso.

E sempre a mesma reserva, sempre o mesmo mistério sobre o seu passado; não havia meio de lhe arrancar uma confidência!
*

Dona Eugênia começou a impacientar-se:

– Este velho é capaz de nos enterrar a todos!

– Tenha paciência; ature-o, que há de receber capital e juros acumulados – dizia o Barbosa. – Naquela idade o homenzinho não pode ir muito longe.

E não foi.

Justamente no dia em que se completavam cinco anos que era hóspede da casa de pensão, vovô Andrade caiu fulminado por uma apoplexia. Para festejar o quinto aniversário das suas relações, Dona Eugênia obsequiara-o com um opíparo jantar, abundantemente regado e ele comeu e bebeu demais.

Os meninos que já estavam crescidos (o mais velho ia fazer dezoito anos) choraram sinceramente. A viúva, insofrida, quis abrir logo o cofre, e tê-lo-ia feito se o discreto Barbosa lho não obstasse.

– Não mexa em coisa alguma. Vou chamar quem de direito.

Veio a autoridade consular, que abriu o cofre. Este continha, efetivamente, um invólucro subscritado com estas palavras: "Meu testamento", e cerca de trezentos mil réis em notas do Tesouro e moedas de prata e ouro, as tais que tilintavam aos ouvidos do Braguinha.

Dois baús estavam cheios de ferros velhos, trapos, coisas inúteis, e o outro continha objetos que representavam algum valor: a roupa e os demais presentes com que o vovô Andrade tinha sido durante cinco anos obsequiado na casa de pensão.

O testamento dizia:

"Achando-me septuagenário e reduzido à miséria, sem um parente, sem um amigo, depois de uma vida inteira de trabalhos e infortúnios, tinha que optar entre a mendicidade e o suicídio.

Não optei por uma nem por outra coisa: mudei de terra, fingi-me rico e avarento, bastante para isso dois velhos baús e um cofre de ferro, último vestígio de melhores tempos.

Graças a esse ardil, encontrei tudo quanto me faltava, e mais alguma coisa.

Uns dirão que fui tratante; dirão outros que fui filósofo. Para mim é o mesmo.

Dentro do cofre encontrarão a quantia necessária para o meu enterro".
*

Quem se lavou em água de rosas foi o Braguinha.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XXIX


TÃO SIMPLES ESTE AMOR ...

 Tão simples este amor nasceu... Nós nem notamos
 que era amor e afeição que aos poucos nos prendia...
 O amor, - é aquela flor que engrinalda dois ramos
 aos esponsais de luz do sol de cada dia!

 Dois ramos, - eu e tu, - e as horas desfolhamos
 numa doce, irrequieta e impensada alegria,
 - e assim vamos vivendo, e a viver, acenamos
 sonhos verdes aos céus azuis da fantasia!

 Tão simples este amor nasceu... Tal como nasce
 um beijo em tua boca, um riso em tua face,
 uma estrela no céu... ou uma flor de um botão.. .

 Nem era necessário mesmo eu te falar,
 se já o tens transformado em luz no teu olhar,
 e eu, já o sinto a cantar, dentro do coração!

TEMPLO PAGÃO

Quando inteira te despes, - os teus ombros nus
modelados de luar, de areias e de luz;

os teus seios pequenos, trêmulos e ousados,
como frutos maduros, quentes, sazonados;

e os teus curvos quadris esculturais, e as ondas
das nádegas carnosas, cheias e redondas;

e o detalhe das pernas firmes, que eu contemplo
como a duas colunas áticas de um templo;

e a borboleta fulva, de asas de veludo
imóveis e espalmadas no teu claro ventre;

quando inteira te despes aos meus olhos, - tudo
é um convite de amor a que eu viva, a que eu entre

para rezar no templo escondido e velado
que há no teu corpo esplêndido e marmorizado

uma oração pagã, olímpica e sensual,
em glorificação da beleza imortal!

UM DIA...
   
Um dia ... E para nós há sempre um dia
que tudo modifica de repente,
dando outro rumo, inesperadamente,
ao caminho que a gente percorria.

E então, a hora impensada de alegria
se transforma em tristeza rudemente,
- ou a dor se desfaz - e a alma sente
imprevisto prazer que não sentia.

Ouço falar assim desde menino
e me deixo ficar, sempre esperando
por esse estranho dia do destino...

E às vezes, esta espera me intimida,
porque não sei o que trará, nem quando
chegará esse dia à minha vida!

UMA PALAVRA, UM GESTO...

Não quiseste, - ou quem sabe? ... vacilaste na hora
em que esperei de ti uma palavra, um gesto...
- bastaria um olhar quando me fui embora,
um olhar... e eu feliz entenderia o resto...

Mas, não. Nem um olhar, num um vago protesto,
em um tremor na voz de quem sofre e não chora...
Ah! teria bastado uma palavra, um gesto,
para tudo, afinal, ser diferente agora...

Parti! levou-me a vida, ao léu, e redemoinho...
Hoje, volto, - e tu me olhas a falar de amor
e me entregas as mãos num gesto de carinho...

E evito teu olhar... E não me manifesto...
- É que, já não te posso dar, seja o que for,
nem mesmo uma palavra de esperança, um gesto…

VAIDADE

Tua vaidade é como um deus antigo
exige sacrifícios aos seus pés...
Olhar-te, é desafiar algum perigo,
amar-te, é procurar algum revés...

Olhei-te, e desde então teus passos sigo...
Amei-te, e mesmo assim. não sei quem és...
Meu amor, pobre amor, quase o maldigo,
talvez seja outra vitima a teus pés...

Amores, esperanças e desejos
ardem nos castiçais dessa vaidade
ao incenso sensual que há nos teus beijos.. .

Eis que te trago aqui meu coração.
Já de nada me serve, se em verdade
converteu-se a tão fútil religião!

VARIAÇÕES SOBRE A VIDA...

1
Gota d’água transparente
que brilha, cresce... e que cai!
Assim a vida de gente
que um instante se vai !

2
A Vida, - mistério vão
sombra agora, depois luz,
- estranho traço de união
ligando um berço... a uma cruz !

3
A Vida – uma onda que avança
e volta, - vai-vem do mar...
Quando vai, quanta esperança !
Quanta amargura, ao voltar !

4
A Vida, ansiosa escalada
sobre a paisagem do mundo...
Tanto esforço para nada
se há sempre abismo no fundo !

5
Ás vezes penso que a vida
essa vida – besta vida! –
coisa sem finalidade
que há tanta gente a querer

6
Ás vezes penso que a vida
que há tanta gente a querer,
só existe, - indefinida –
pra gente poder morrer…

VENTO...

Teu amor entrou na minha vida
violentamente,
como um sopro de vento abrindo uma janela
de repente.

Teu amor desarrumou meu Destino,
arrancou das paredes velhos retratos queridos,
e quebrou uma jarra no canto da minha
alma,
cheia de rosas,
cheia de sonhos...

Depois...
Teu amor saiu da minha vida, de repente,
como um sopro de vento fechando uma porta
violentamente…

VINGANÇA

Ontem eu a possuí ... e você não é minha!
Paradoxo talvez, mas tudo aconteceu ...
Em pensamento, o beijo eu colhia, tinha
o sabor desse beijo que você não deu ...

De olhos cerrados, louco, a sua imagem vinha
com a força do que é real e se impôs ao meu "eu" ...
E o corpo que eu tocava e a minha mão sustinha,
na sombra, aos meus sentidos cegos - era o seu!

Ontem por mais que a ideia seja estranha e louca,
- você foi minha enfim!... apertei-a ao meu peito...
desmanchei seus cabelos... machuquei-lhe a boca!

E possuía afinal, - num ímpeto criador –
vingando o meu orgulho abatido e desfeito
num doentio segundo de paixão e amor!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 2. SP: Ed. Theor, 1965.

João do Rio (Coração)


A Irineu Marinho.

Quando chegou a casa para almoçar, João Duarte soube pela criada que a menina ardia em febre. Nem descansou o chapéu. Precipitou-se no quarto onde a pequena Maria, numa grande cama, estendia o seu corpinho ardente.

— Que tens, minha filha?

Maria não respondeu. Apenas agitou a cabeça como se a incomodasse qualquer coisa no pescoço, e tinha a pele de brasa, a pele que parecia fogo.

— Como foi? Como foi? perguntava o pai, curvado sobre o leito. Comeste decerto alguma coisa que te fez mal. Uma fruta decerto? Com este calor, louquinha, com este calor! Mas vamos mandar a Jesuína ao médico. Ele vem já, dá-te umas drogas, e ficas outra vez boa, pois não?

Saiu para a sala de jantar, escreveu á pressa um bilhete.

— Leva já isso ao doutor Guimarães. Depressa.

— E o senhor não almoça? Está pálido.

— Não, perdi a fome. Esta Maria! Decerto fez alguma imprudência. Anda, vai. Diz-lhe que venha imediatamente. Que te parece a doença da Maria?

— Oh! meu senhor, uma das doenças da menina. Oito dias, e sara.

João Duarte forçou um sorriso de esperança e de novo foi-se ao quarto. A pequena continuava numa ânsia, a mover a cabeça, os olhos fixos, uma vermelhidão na face, os braços também vermelhos. João aconchegou-lhe as cobertas, apalpou-a, teve vontade de tirar o cobertor ao mesmo tempo que lembrava ir buscar mais outro, abriu as cortinas das janelas, olhou fora sem ver o movimento da rua, tornou à filha, beijou-a, passeou nervoso, sentou-se à beira da cama, ergueu-se, apanhou uma cadeira, suspirou, quedou-se com uma dor indizível a olhar a pequena. Era sempre assim, era sempre aquele excesso. A sua filha, a sua querida filha! João Duarte era um pobre professor de matemáticas, com uma larga fronte e um gênio arrebatado. Diziam-no de grande talento os discípulos, posto que bastante original. Filho de uma família rica e de raízes nobres, viu-se aos treze anos, ao cursar o primeiro ano da Escola Central, na miséria, porque o pai morrera de congestão em véspera de certa combinação da Bolsa e os sócios, irmanados na infâmia, haviam absorvido com descaro toda a fortuna. João entregou a parte que lhe cabia dos restos da herança às irmãs e continuou só a estudar, ensinando para viver. Os amigos acharam excessivo o gesto do rapaz. Ele nem sorriu — porque sentia na sua alma um desejo infinito de amar e dedicar-se.

— São minhas irmãs! dizia.

Naquele tipo de matemático, havia um ser excepcional, o estofo de um santo? Quem sabe?

Ele resumia a vida no amor que se entrega suave e sem mácula, e enquanto através do seu curso brilhante, lentes e condiscípulos vaticinavam-lhe o mais brilhante futuro, pensava em criar uma família, em ter um lar para ter alguém seu e inteiramente dedicar-se, velando, cuidando, sendo a causa dos prazeres, o principio das alegrias de alguém. Casou com uma pequena de família humilíssima antes de terminar o curso. Era um colégio gratuito em que meia dúzia de rapazes ensinavam meninas pobres. Ela aparecera aos treze anos, pálida, com as mãos bem tratadas, um sorriso de resignação nos lábios. Ele indagou da família, e certa vez em aula:

– Menina, queres casar comigo?

Toda a aula riu, achando graça na pilhéria do senhor professor. A pequena ficou mais pálida e duas grossas lágrimas rolaram-lhe pelas faces brancas. Ele foi dali à casa da mãe, uma senhora viúva de gênio irascível, que vivia com três filhas honestas a fornecer comida para fora.

— Mas, senhor doutor, está louco! Minha filha tem treze anos apenas. É uma criança.

— Não importa. Espero até aos quinze, mas fica noiva.

A mulher desconfiou a princípio e negou-lhe entrada. Ele começou a presentear a criança, e dar-lhe dinheiro entre as folhas dos livros mandados à velha, de quem sabia as necessidades, a enche-la de cuidados, num exagero que a assustava. Era um amor mais de pai que de noivo, um amor sem desejo de carne, espiritual e enorme. Ela foi a pouco e pouco acostumando-se, vendo nele o protetor, menos que o apaixonado. Certa vez, ao entrar na aula, recebeu a primeira carta de amor: “ Venha já. Mamãe com um ataque. Nós três sós e aflitíssimas.” Partiu. A moléstia da velha era grave e ele ficou para fazer-lhe fricções, dar-lhe banhos, enquanto naturalmente as despesas da casa corriam por sua conta. Quanto era preciso trabalhar! Lecionava em três colégios, tinha aulas particulares, ensinava à noite turmas de calouros. Morria de trabalho e estava satisfeitíssimo, sentia-se feliz quando a Aurélia dizia:

— O pai quando era vivo também fazia assim!

Para não chocar a suscetibilidade da velha, imaginou tomar pensão na sua casa, pagando o triplo do que devia pagar, acabou pedindo-lhe um quarto, em cima, no sótão do velho prédio, o quarto em que estavam os cacaréos [1]. Quantos sabiam do fato comentavam-no com acrimônia [2]. Estava o João Duarte de dentro, com três virgens! Que sátiro! Sempre que a opinião da rua filtrava através das portas, a velha em cólera, bramia, gesticulava, bradava. E João, sem forças, dizia súplice:

— Mas se não é verdade? Se a senhora sabe que não tenho intenções más?

— Era melhor que as tivesse! Ao menos sabia-se logo! engrolava a velha no auge do furor.

Que se há de fazer? Cada um como nasceu...

Ao cabo de dois anos, porém, casou. Foi modesto o casamento. Ele apareceu com o mesmo fato preto com que diariamente labutava. Não lhe sobrara dinheiro, tanto era o luxo para a noiva e tantos os objetos comprados para a nova casa, aos poucos, com mil sacrifícios e uma porção de trabalho, muito trabalho. Mas Aurélia não o amava. Nunca amou a ninguém. O desequilíbrio nervoso da mãe redundara nela numa vaga histeria. Precisaria de certo de um homem brutal. Encontrara perdida no mundo uma rara alma. A influencia da mãe, as suas ordens, os seus conselhos era que a regiam. João marido passou a ser a criatura que tem obrigação de dar. Ele dava como um escravo. Nunca um enlevo, um simples gesto terno lhe acolheu sacrifícios de dinheiro, sacrifícios de trabalho. A família, por ver Aurélia feliz, começou a querê-la menos. As duas irmãs solteiras açulavam os maus instintos da velha, e eram elas que faziam a chuva e o bom tempo na casa de João. Às vezes, Aurélia entrava em casa a chorar:

—- São umas miseráveis ! Trataram-me como um cão, depois de lhes ter dado uma porção de coisas!

A cólera estalava na alma de João.

— Já não te tenho dito tanta vez? Não lhes fales! Elas invejam a tua felicidade.

— Se elas soubessem!...

— Então, não és feliz?

—Eu feliz?... Ah! que ideia!

Um grande desejo de insultar aquela criatura vulgar empurpurecia a face de João. Mas para que? A pobre mulher não o compreendia, ele é que escolhera mal amando-a, amando-a com aquele estranho amor de altruísmo e incapaz de viver senão para por ela sofrer e a ela dar todo o produto do seu sangue, dos seus nervos, da sua inteligência. De resto, Aurélia rebentava em choro ou caía em profundos silêncios agonientos. Era preciso diverti-la, dar-lhe mimos, leva-la ao teatro. Então João multiplicava-se. Quando não havia criada, era ele de madrugada que ia acender o lume, preparar o primeiro almoço, levá-lo à cama. Saía, corria às obrigações, com a redingote verde e os sapatos em mau estado, voltava para o a1moço carregado de frutas, de gulosinas [3] de que ela dizia gostar.

— Trouxe-te figos e bombons. Come.

— Não quero, fazia ela instintivamente cruel, empurrando os embrulhos.

Ele tinha um vinco de tristeza e de raiva logo sopitada [4]. Mas comia à pressa qualquer coisa, ia logo trabalhar. Ao jantar trazia-lhe sempre uma recordação, ria verificando que já não existiam frutas e bombons, mandava-a vestir para o teatro, e ainda dava explicações a uma turma, entre o jantar e o teatro. Ela saia sempre contrariada porque o marido tinha pressa e voltava em cólera porque havia no teatro mulheres mais bem postas ou porque a peça não lhe agradara. João, humilde, preparava-lhe o chá, preparava-lhe o leito, ia para a sala escrever e estudar até de madrugada, e muita vez Aurélia acordou sobressaltada, com ele ao lado a olha-la enternecido.

– Ah! que susto! até pareces um lobisomem!

Mas, de súbito, Aurélia aparecia mais alegre, consentindo mesmo numa carícia. Era a reviravolta. Fizera as pazes com os parentes, ou antes, sem recursos, a velha mãe e as irmãs solteiras tinham vindo alegremente fazer-lhe uma visita. As frutas, os bombons iam embrulhados tal qual para a casa delas, os cortes de vestido, os frascos de perfumes sumiam-se do guarda vestido.

— Como estou aborrecida! Se me deixasses ir ver a mamã? Ela afinal é mãe. Não há duas mães...

João sorria.

— Vai, filha. Não te prendo, mas vê se consegues demorar as pazes.

— Se elas brigaram foi culpa tua. Não insultes a minha família. Minha mãe é minha mãe.

— Bom, bom, nada de zangas. Vai, anda...

Por que tentar o impossível? Ela não o compreenderia nunca. Era um espírito de criança numa alma de mulher sem amor. Como sentir aquela afeição tão fina, tão superior em que a honra, a dedicação, o sonho de um homem cheio de coração irradiavam? Um rapazola qualquer com três socos talvez abrisse na rocha a fonte do amor. Um tipo cheio de dinheiro espalhando notas do banco talvez a fizesse esquecer os seus deveres de esposa. E João Duarte recalcava bem no íntimo um vago e atroz ciúme do que não existia, culpava-se, culpava-se e vinha a ama-la mais, a rodeá-la de maiores carinhos para não perde-la, para não se ver perdido, porque precisava amar alguém, dar a sua dedicação a alguém. Assim viveu dez anos. Parecia ter vivido vinte. Estava magro, abatido. As roupas de baixo tinha-as rasgadas. Os fatos duravam-lhe dois anos. Não bebia senão água: comia sempre pensando noutra coisa, e dormia pouco, cada vez menos, com o cérebro cheio de preocupações, as aulas, as vontades de Aurélia a satisfazer, os negócios a liquidar com os prestamistas. Foi por essa ocasião que a mulher se fez mais criança ainda, começou a ter vômitos, a sentir os pés inchados, a vociferar com ciúmes, despedindo as criadas aos gritos. João não acreditava. Seria possível? Mas o médico não lhe deixou dúvidas. Após dois lustros [5] de união, Aurélia estava grávida. Todo o desejo do pobre em fim realizado! O seu amor foi tão grande, o sentimento da paternidade fê-lo tão loucamente feliz, tão cheio de carinho para com a mulher, que ela, uma vez na vida, cedeu, deixou-se embalar. E eram passeios e eram consultas de médico e eram beijos. Nos últimos dias era ele quem a vestia.

— Vamos ter um filho! Um filho! Sorri, tolinha! Sorri ! Vai ser tão bom... Se for mulher, havemos de chama-la Maria, hein? Querias que fosse homem? Ah! egoísta! Os filhos gostam sempre mais das mães que dos pais. Mas há exceções. Tu por exemplo és mulher e gostas muito da tua mãe.

— Não fales! Não fales!

O parto foi laborioso. Aurélia gritou duas noites, julgando-se desgraçada e intimamente culpando daquele horror o marido, que não dormia, de um para outro lado, aflito, pálido. Quando a pequena nasceu, uma noite de temporal no mês de junho, João ao toma-la ao colo sentiu uma tontura de alegria. O mundo se transfigurava. Os móveis tocavam-se de uma luz estranha. O teto abria uma chuva de delícias. Afinal o destino realizava a sua única vontade: uma filha! O seu sangue, parte do seu ser, com alguma coisa da sua alma, o desdobramento belo do seu eu. A essa sim, ele podia amar totalmente, com o seu grande amor sempre contido e represo, a essa devia amar e sentia amar, a essa entregaria a sede de pureza e ideal do seu coração dedicado, porque ela havia de compreende-lo, havia de senti-lo, havia de saber que a sua vida inteira de esforço, de coragem e de sofrimento tinha por fim, por meta do sonho, por último círculo do paraíso — ela.

— Minha filha..., murmurou num êxtase, minha filha...

Mas decerto o destino dando-lhe uma filha queria simplesmente aumentar as angústias desse humilde coração sensível, feito de excessos de ternura e de dedicação. Maria nascera doente. Aurélia, vendo que os carinhos do escravo diminuíam e por uma feição dos seus nervos em desequilíbrio, desinteressou-se dos carinhos maternos ao mesmo tempo que sentia um violento ciúme do marido, apontando-o como o inimigo pronto a roubar-lhe o amor da filha. Era o próprio egoísmo, o feroz egoísmo das histéricas. João entrava da rua ansioso.

— E a pequena?

— Não sei, pergunta à ama. Pois se não a largas!

Ele queria sorrir, hesitava, não compreendia bem aquele azedume eterno e lá se ia para o berço a olhar, a olhar, muito, muito... Sem nunca ter aprendido, viu-se à perfeição a enfaixar a petiza, a embala-la, a cantar cantigas, com uma voz muito triste. Ele, que nunca na sua vida cantara por não ter tempo nem alegria, sentia naquela obrigação de carinho paterno que cantar era para a sua alma como desabafar soluços guardados no seu peito de homem muitos anos antes, toda a sua vida.

Quando se anunciou a dentição, Maria foi presa de uma febre violenta. João desvairado mandou chamar um médico amigo, seguia-lhe as prescrições à risca, com altas doses de quinino, e a pequenita deu de piorar. Era um erro de diagnóstico, o tratamento contrário, a morte. Em casa havia uma balbúrdia. Aurélia, incapaz de resistir, dormia nas cadeiras. As irmãs e a mãe, inteiramente inúteis, julgavam a criança perdida e apostavam o dia da sua morte. Ele nem mais dormia, nem mais comia, aflito, louco, com a pequenita nos braços, sem consentir que a tocassem.

— Deixem! Tenho esperanças! Uma grande esperança...

E a velha muito sincera:

— Qual! aqui só o milagre!

Começaram as conferências. Os remédios enchiam os consolos da sala. Um dia, fora de si, ele chamou o médico.

— Está perdida?

— Meu pobre amigo...

— Está?

— Infelizmente.

— Pois bem. Peço-lhe um grande obséquio de camarada. Venha apenas passar o atestado. Não lhe demos mais medicamentos. Custa-lhe tanto! Ela faz uma cara tão feinha. Eu fico a acalenta-la até a morte. Talvez o meu amor...

— Sim, talvez, fez o médico a sorrir com descrença.

E ele ficou, no escândalo condenador de toda a casa, a passear a filha, a dar-lhe gotas de leite, a anima-la, a incutir-lhe com toda a força da sua vontade o desejo de vê-la viver, de vê-la renascida. Assim passaram quarenta dias. Quando ao cabo desse século de dor e de tensão nervosa, viu a pequena sorrir-lhe sem febre, sã, de aparência sã, mirou-se num espelho por acaso, ao passar, e notou então que tinha ainda envelhecido. O médico chamado confirmou:

– Sim, com efeito, a reação... Mas como sofreste, meu amigo! Estás mais branco.

— Que queres? É a vida, fez ele a rir para os outros que sorriam. E querer bem custa tanto!

A doença da filha viera desorganizar-lhe a vida do lar, se é que tinha isso. Aurélia cada vez mais nervosa, de pior humor, estava realmente doente e não se sentia senão irritada contra a filha. João não podendo conceber esse coração, dividia-se entre as duas, atenuava, mas à proporção que o amor da filha mais se enraizava, a mágoa da esposa aumentava. Maria, a petiza, tinha uma saúde de vidro. O pai fazia-lhe uma atmosfera de suavidades. Foi ele quem lhe ensinou os primeiros passos, foi ele quem a fez repetir as duas primeiras sílabas formando sentido e quem toda noite até Maria ter cinco anos a adormecia numa vasta cadeira de balanço a cantar baixinho velhas canções de embalar crianças. Aurélia, indignada, à hora de ir ao teatro, surgia.

— Mas é espantoso! Adormecer ao colo uma pequena de cinco anos! Bem diz a mamã que as tuas maluquices estragam a menina! João deitava a filha recomendando à criada mil precauções. No teatro ou onde estivesse a conduzir a esposa, apanhava sempre alguns minutos, tomava um tílburi [6], ia até a casa ver se Maria dormia bem.

Esses cuidados, o amor incomparável faziam a petiza grata, com a gratidão das crianças que é de tão grande egoísmo. Como a avó levava a fazer-lhe censuras com o pretexto de a educar assim como as tias, Maria odiava os parentes. Como a mãe nos seus acessos neurastênicos dava razão à família e batia-lhe, tinha pela mãe um sentimento muito vizinho do medo. O pai era bem tudo, resumia todos os amores na sua permanente carícia, e fazia-lhe todas as vontades, comprava-lhe brinquedos, brincava com ela, e nada mais agradável para os seus curtos instantes de descanso do que ir fazer com a filha o “chicote queimado”, fingir que não descobria um lenço escondido e vê-la rir, rir como riem as crianças, pondo um pouco do céu sobre a terra. Enfim ele realizara a felicidade. Havia um ente por quem se sacrificava mas que só no mundo a ele via com amor ! E a cada achaque de moléstia, a cada febre violenta da menina, ficava aí perto do leito, sem pregar olho, olhando-a, exigindo que ela vivesse, com medo dos médicos, da família, de todos. Dos sete anos porém para diante, Maria só adoecera duas vezes e ele estava já pensando num fenômeno de saúde, já descansado, já com o sonho de um futuro risonho ao ver a filha linda, corada, sadia, quando ao entrar em casa encontrava-a assim, a arder em febre. Seria grave? Seria coisa de nada? Maria continuava a agitar a cabecinha, os dois olhos injetados.

Então João suspirou de novo. Teria coragem de ir até ao fim, teria energia para vencer nessa nova luta? E foi ao encontro do Guimarães, que entrava acompanhado da Jesuína.

— A Maria, sabes, aquelas coisas... Parece-me sério.

— Vamos a ver. Não te aflijas.

Entrou, começou a examinar a doentinha, demorou o exame num profundo silêncio, em que João parecia de mármore para não deixar transparecer a sua angústia. Depois, pensou.

— É difícil um diagnóstico. Por enquanto vamos dar-lhe um laxativo e um pouco de quinino para combater a febre.

– Quinino! Ela tem horror ao quinino.

— Ora, João, deixa de tolices. Como queres tu combater a febre? Ela tem trinta e nove e oito décimos.

Foi-se a receitar, e como amigo da casa, ordenou a Jesuína levar a receita.

— Volto à tarde. Até logo. Não te aflijas, homem.

João ficou no quarto, tal qual tinha entrado, com o chapéu na cabeça, a sobrecasaca aberta. Era como se tivesse recebido a notícia de que o mundo ia a desaparecer. Então a sua filha doente? E grave, grave! Sim. Estava grave! A pequena no leito crescia da agitação, erguendo os braços, sacudindo a cabeça nos travesseiros. De repente, ergueu-se atirando longe as cobertas, sentou-se.

— Minha filha, que é isso?

— Já é tarde, vou vestir-me.

— Não podes; estás doente.

— Ah! quanto fogo! É um fogo de artifício. Espera. Onde estão as botinas?

— Maria! Maria! olha teu pai.

— Ah! as baratas, as aranhas. Que porção de baratas! Vamos mata-las, vamos. As botinas...

Era o delírio. Sem forças para rete-la, temendo magoa-la, João acompanhou-a. A pequena corria a casa, ele precipitava-se para fechar uma ou outra janela, para amparar-lhe os passos titubeantes. Era o delírio. Era a morte. Oh! sim, era a morte! Maria entretanto não caminhou muito. Súbito esmoreceram-lhe as pernas, e ele levou-a ao colo para o leito, aconchegou-a bem, ajoelhou na borda da cama.

— Maria, descansa; não morras, minha filha, não morras porque eu não resisto!

E sentiu que chorava, que pela primeira vez na vida chorava na presciência da fatalidade inexorável. Mas era preciso lutar, arrancar o seu entezinho ao irremediável. Enxugou as lágrimas, as ideias um tanto confusas. Aquela calma de amor com que reagia sempre outrora se transformara numa agitação febril em que a sua vontade se per­dia. Quando os medicamentos chegaram, foi ele mesmo a administra-los. A febre continuava.

Para o jantar Aurélia entrou, e ainda toda enfeitada no quarto:

– Então que é isso?

– A Aurélia mal, desde que saíste, parece.

–  Não há de ser nada.

–  É grave. Já delirou, está delirando. Maria, minha filha...

–  Se mandássemos prevenir a mamã?

–  Faze o que quiseres, deixa-me, deixa-me !

Ao escurecer, o doutor Guimarães reapareceu. A febre não cedera, antes aumentara. O médico balançou a cabeça. Era impossível fazer ainda um diagnóstico, mas o estado da menina inspirava cuidados. Se não tinham confiança nele, poderiam chamar outro para uma conferência, e mesmo não o preferir... De resto a casa já tinha esse aspecto que precede as tragédias, como se o inanimado, os móveis, os muros, os quadros, os objetos sentissem antes dos homens o arrepio da morte, a passagem da ceifadora. A família de Aurélia aparecera. A velha dogmática arrasava Guimarães e queria outro médico. As irmãs já asseguravam o caso perdido, como de costume. A vontade de João soçobrava. Ele queria estar apenas perto de Maria, não se tirar dali, ser o único a cuida-la. Então foi pela casa, dirigida pelas mulheres, como um vento de ensandecimento. A primeira conferência relegara Guimarães. Um outro médico moderno e célebre aparecera, imaginando banhos quentes e injeções hipodérmicas de quinino, enchendo os aparadores de frascos e de caixetas. Batiam à porta sinistramente os fornecedores. Uma grande banheira foi instalada no quarto. Para enche-la, cada um trazia o seu jarro d’água a ferver. João calafetava as portas, despia com uma delicadeza infinita a pobre Maria, tomava-a ao colo, depositava-a na banheira com um arrepio, como se estivesse a matar a filha, enquanto o médico contava os minutos. Tomava a pegar da criança, enxugava-a, envolvia-a nos cobertores, quedava-se, com os olhos muito abertos, um vinco de angústia entenebrecendo-lhe a boca. E o médico tomava da agulha, enterrava-a no ventre da filha, indiferente, conversando. Como apesar dos laxativos, o ventre continuava átono [7], recorreram aos clisteres [8]. Ele os dava só, sabia de todos os remédios e passava a noite, aos pés da cama, olhando a filha. Quando ela dormia, chorava, e murmurava tão baixo que só a sua dor o ouvia.

— Não me deixes, Maria, não me deixes... Ah! não que eu morro, que eu morro! Por que vieste, hein? Por que? Para me fazer sofrer? E de uma vez em que estava assim, com a face molhada de lágrimas, ouviu a voz da filha:

— Ah! paizinho! Quanto trabalho está tendo comigo!

— Maria!

— E não vale a pena...

— Meu amor, não fales, ouviste? dorme. Estás muito melhor.

Tocou-lhe nas mãos, e, com efeito, sentiu-as menos quentes. A febre declinara. Uma chama de esperança brotou-lhe no coração. Esperou ansioso a manhã, e quando o médico chegou, disse-lhe quase a sorrir

— Está melhor. A febre diminuiu.

— Acontece. É do curso da moléstia. Tem trinta e oito graus de febre.

— Então?

— O perigo ainda não desapareceu, meu caro. Sua filha tem uma grave moléstia com períodos fatais. Há quanto tempo caiu? Há oito dias. Desde esse momento os dias tem se conservado firmes, de sol. Esperemos que assim continue o tempo mais uma semana e eu garanto a vida da pobre criança. Mas, se por acaso tivermos uma brusca mudança meteorológica, uma tempestade, o abaixamento da temperatura — é difícil dizer qualquer coisa.

— Então, se o tempo conservar-se firme?...

— E se houver a tempestade...

Certo João Duarte nunca na sua vida se sentira tão a braços com o destino triste. Ouvira falar de moléstias em que a variação atmosférica influi perniciosamente, sabia mesmo o nome de algumas, mas a hiperestesia [9] da sua angústia, a tensão nêurica [10] em que o mantinha a iminência do desastre, aquele ror de noites passadas em claro, o esforço físico de andar com a petiza ao colo já tão crescida, e esse martírio de sofrer na alma todos os cruciantes sofrimentos físicos da filhinha faziam-no perder a noção nítida das coisas, esbatiam [11] a vida em torno do grande problema : salvar Maria. A ideia da tempestade entrou-lhe no cérebro de matemático, de homem de ciência sem abusos, sem crendices, como o anúncio da catástrofe que era preciso evitar a todo transe. Um tremor convulsivo tomou-o, e a sua atenção bipartiu-se entre o céu e a filha com o pavor de um primitivo diante dos elementos. Se chovesse, se no céu lindo rolasse o fragor do trovão e nuvens negras toldassem o azul do firmamento, toda a razão de ser da sua existência naufragaria porque a filha não poderia escapar. Não se tirou mais do quarto. Passava a velar Maria e a ir de vez em quando levantar a cortina para olhar o céu, com um medo supersticioso.

Era em novembro, no começo do verão, nessa época de bruscas tempestades em que amainavam os grandes calores. A temperatura subia, o sol era um disco de fogo no azul de cobalto, do céu sem nuvens; e as noites se diluíam num escandaloso luar cor de ouro e cor de opala. Estavam a findar os dias do plenilúnio [12], iam entrar na minguante. Talvez mudasse o tempo. A febre não cessara, queimando a fogo lento os membros emagrecidos de Maria. A nevrose da casa tivera um hiato de cansaço, à espera do acontecimento. A família dormia pelas salas, sem pouso. Aurélia tivera dois ataques com gritos despedaçadores que faziam no seu leito a doentinha contrair o semblante numa inédita angústia de cadáver horrorizado subitamente voltado à agonia. Ele quedava-se, ouvindo o crepitar da lamparina e o tic-tac do relógio na sala de jantar a coser o tempo no pesponto certo dos segundos. Qualquer outro rumor, o arrastar de uma cadeira na casa vizinha, as vassouradas dos varredores pela madrugada, faziam-no pensar em trovões ao longe, em quedas d’água. Corria então à janela, levantava a cortina, perscrutava o céu calmo. Ah! se não chovesse! Se o milagre se desse! Se Deus quisesse! Até mesmo em Deus ele acreditava, pondo a reger aqueles fenômenos que a sua ciência conhecia, um ser sobrenatural e todo poderoso. E assim os dias passaram. Um, dois, três, quatro dias que eram para ele a corrida do seu coração, o galope dos sentidos por um túnel de treva à procura da luz anúncio da vida, dias de que contava as horas e os minutos e os segundos como se os sorvesse sedentamente num contador de fel, dias que lhe chupavam das artérias anos de existência.

— Façam uma promessa. segredava às mulheres, vocês que acreditam. Façam uma grande promessa. Eu cumprirei...

As criaturas, incapazes de sentir assim, estavam afinal tocadas de respeito, lamentando tanto a criança como aquela energia humilde que a seu lado se finava por ama-la demais. Os santos surgiam. Havia oratórios na sala de visitas, no quarto de Aurélia, com velas a crepitar. E a febre continuava a ressecar a pele branca de Maria, sempre, sempre, sem descontinuar. No quarto dia — era de madrugada e já João fora varias vezes olhar o céu — estava sentado a olhar o sono tenebroso da filha, quando pelos seus olhos passou um relâmpago. Não, era de certo alucinação da fraqueza. Correu à cortina e quedou-se com um arrepio de horror. Grossas nuvens vinham vindo do ocidente. A luz da lua era de uma intensidade cegadora, envolvendo de tal sorte o casario que parecia libra-lo [13] numa atmosfera de sol azul, coroando-o de icebergues de flocos. Na linha do horizonte, porém sucediam-se clarões como os que fazem os canhões ao longe a detonar. Era mesmo um canhoneio de chamas, de que ainda não se ouvia o barulho mas que barravam a barra do céu de putrefações luminosas.

João Duarte correu à filha, apalpou-lhe o braço descarnado, que ardia. Nesse momento ouviu-se um grande fragor pelo céu todo. Era o trovão. João passou várias vezes a mão pelo rosto. Era impossível! Era impossível! Talvez ele estivesse tentando os elementos, com a ideia permanente da chuva. Procurou alhear-se, pensar noutra coisa, arquitetou frases vagas, com os ouvidos à escuta, os olhos dilatados.

Esteve assim um instante que lhe pareceu um século. Não resistiu, voltou á janela. Já o céu de um azul de vidro se achamalotava [14] e se rendava de nuvens cor de cinamomo [15]. Qual! Era verdade! A chuva vinha, era fatal! Nunca na sua vida o destino sorrira senão para lhe lançar mais veneno na alma. Assistiria de pé à hecatombe. E depois estalaria, estalaria como estalara o trovão.

Que fazer? O céu em pouco foi todo um licor que baixava, empedrado de nuvens, empurradas pelo vento. A rua, minutos antes banhada de luz, escurecia em treva. Grossos pingos d’água começaram de bater na vidraça onde João tinha a face colada. Em pouco os pingos redobraram saraivando nos vidros, e os trovões tonitroavam, trovoavam, fragoravam no arquejo despedaçante do vento alanhando o negror do espaço de coriscos súbitos que rachavam a treva. E, àquela violência, João, como um náufrago, ainda tinha esperança, ainda pensava, que após o temporal voltasse o tempo firme definitivamente, e ainda houvesse um meio. Qual! Aquilo ia acabar, tinha de acabar. Era chuva de durar pouco! Mas a chuva caía, jorrava do espaço violenta e brutal, inundando a rua.

João olhou então a filha. A pobrezinha mostrava apenas a face de cera entre os caracóis dos cabelos. As olheiras eram roxas e o nariz afilava na sombra do para-luz. Pobrezita! Estava a descansar. Ele ficaria ali, contra o elemento, proibindo-o de entrar, impedindo-o de passar. As ideias fugiam do seu pobre cérebro sempre resignado. Abriu os braços nos portais, ficou assim longo tempo, pensando, pensando na tempestade, na filha, na tempestade que ia acabar, na filha que não podia morrer. Quanto tempo levou assim? Era impossível saber. Um zumbido tomara-lhe os ouvidos na recordação dos trovões, as fontes latejavam-lhe, e tinha as mãos frias como se as tivesse passado em gelo. Só deu acordo quando viu uma luz baça vir surgindo no espaço e viu que a chuva continuava lentamente, sem fim. Era das que não acabam! Deixou cair a cortina, veio na ponta dos pés até o leito, apalpou o corpo da filha. Estava sem febre, sim! sem febre alguma. Dera-se o prodígio? Seria possível? Então a chuva, a tempestade?... Apalpou bem a testa, o peito, os braços, os pés. Os pés estavam até frios. Ora esta! Um sorriso de satisfação abriu-lhe a boca, onde só a dor deixara vincos. Foi buscar um outro cobertor para os pés da queridinha, envolveu-os bem, e de novo apalpou as mãos. Estavam também a esfriar. Hein? Que era isso? Talvez o corpo, desacostumado da temperatura normal... Qual! Era idiota o que dizia! Chamou a filha, baixinho:

— Maria, ó Maria, melhorzinha?

A pobre não respondeu. Também tão fraca ! Nem de certo escutara... Chamou mais alto:

— Maria, então? queres deixar o pai do seu coração sem uma resposta? Não vês? Estou só, eu só aqui, eu que sofro contigo. Maria.

Estava atormentando-a com certeza. Ah! que bruto era, que mau! As mãos, porém, esfriavam. Oh! Uma nova complicação na noite, mais dores, mais males, mais horrores. Que seria? Foi até a cômoda, acendeu uma vela, veio ver de perto a sua adoração.

Maria tinha os olhos abertos, bem abertos, grandes, largos, abertos. Qualquer coisa de vidro cristalizava-lhe o brilho. E os lábios descerrados mostravam entre os dentes uns filamentos brancos, secos, uns filamentos que nunca vira. À luz da vela as pálpebras não bateram. Uma grossa lágrima rolava-lhe pela face. Já se lhe não sentia o respiração.

João Duarte deixou a vela ao lado, na cadeira, virou-se para um lado, virou-se para outro, passou as duas mãos pela cara, esmagando os dedos de encontro aos olhos, quis falar, quis chamar. Parou, pousou de novo o olhar no olhar que se embaciava, olhou, olhou a filha. Um tremor tomou-o, sacudiu-o, abriu-lhe a boca, como que lhe esgarçou os músculos. As mãos crisparam-se-lhe. E, de chofre, caiu para frente, sem apoio, no chão, com a face de encontro ao pé da cama, estalado de muito amar desgraçadamente.
_____________________________
Notas:
[1] Cacaréos – Trastes e utensílios velhos. Cacarecos.
[2] Acrimônia – Acidez. Aspereza.
[3] Gulosinas – Guloseimas.
[4] Sopitada – Adormecida.
[5] Lustros – Dez anos.
[6] Tílburi – Carros de duas rodas e dois lugares, sem capota ou boleia, puxado por um só animal.
[7] Átono – Sem emitir nenhum som.
[8] Clister – Injeção de água ou outro líquido medicamentoso via anal. Enema.
[9] Hiperestesia – Sensibilidade exagerada a qualquer estímulo.
[10] Nêurica – Referente ao sistema nervoso.
[11] Esbatiar – Atenuar.
[12] Plenilúnio – Lua cheia.
[13] Librar – Erguer. Suspender.
[14] Achamalotar – Referente a chamalote, tecido pesado de lã, com efeito ondeado.
[15] Cinamomo – Árvore ornamental cujas flores possuem uma tonalidade azulada.

Fonte:
João do Rio. Dentro da Noite.

sábado, 9 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 112


Vinicius de Moraes (Os Tristes Descaminhos)


     Quanto tempo, meu Deus, vai-se passar ainda até que um homem, rodando por essas estradas brasileiras de conservação tão precária, mas assim mesmo tão lindas, possa-se dizer, como se diz um americano, um alemão, um russo, um holandês, um canadense, um sueco - e pelo menos isto: não há fome? Até quando essas faces terrosas, esses olhos opacos, esses braços finos, essa pasmaceira filha de uma longa indigência sem remédio? Quando virá o dia em que, ao se parar num botequim para um café, não nos chegará de mão estendida uma criança imunda e endefluxada a nos exigir uma esmola com um duro olhar adulto? Ou um idiota de boca torta, os braços ainda saudosos da posição fetal, para nos dizer de sua angústia em sons afásicos, fazendo-nos olhar para outro lado como se não o estivéssemos vendo? Sim, porque o que é que adianta ver?

      São seres humanos, patrícios nossos, que tiveram a desgraça de ser concebidos na miséria, de semente já enfraquecida por endemias e carências - e isto numa terra vasta e generosa, em que se plantando, tudo dá. Ficam parados à porta dos casebres e das tendinhas, ou estão sempre em marcha ao longo das rodovias, transportando suas avitaminoses, seus vermes intestinais, sua dor de dentes crônica, para ir trabalhar num roçado cinco léguas adiante. E à noitinha voltam, silenciosos e apressados, pelas mesmas estradas, para o prato sem proteínas que lhes serve urna velha mulher jovem, a quem faltam os incisivos, enquanto no chão de terra batida choraminga sobre os próprios excrementos o último fruto de sua triste condição. Porque, sim! Constituem, em sua sórdida pobreza, um casal: a célula da criação; um casal que, um amparado no outro, segue em frente, na direção onde o levam a vida e a necessidade, repartindo o trabalho, a comida, o sonho. Sonho? - que sonho? Um casal capaz de criar, produzir, vender, ganhar, ter uma casinha com uma cama, uma mesa, um fogão a lenha e uma privada. Capaz de comprar uma merendeira para a filhinha que vai à escola. Escola? - que esperança!

Não, não são seres humanos. São bichos. É um verme humano, uma lombriga de calça e suspensórios, um ascarídeo que leva outro dentro. Cobrem o teto e a cabeça com palha, fumam palha, dormem sobre palha, são palha eles próprios - palha seca que se desfaz à simples fricção dos dedos.

Por que me apiedo deles? O que posso eu fazer por eles quando acima, muito acima de mim, muito acima do meu país, erguem-se forças cujo fragílimo equilíbrio reside em sua própria capacidade de destruição; forças cuja agressividade já independe, porque ultrapassaram todos os limites do cognoscível, forças que se podem desencadear num átimo por excesso de tensão?

No entanto, corta-me o peito vê-los em exposição como figuras de barro de um mau artista folclórico, acocorados onde os larga sua imemorial fadiga, pitando e cuspindo a saliva grossa do fumo de rolo, portadores, quase sempre, de conjuntivite crônica, às vezes rindo um riso matreiro com as gengivas desdentadas. Matreiro, por quê? Que espécie de inteligência podem ter senão a do instinto aguçado pela necessidade de sobrevivência, que lhes faz preciso o machado, rápida a foice, fulminante a faca que mata para não morrer?

São patrícios nossos, que não têm voz e não têm vez. Em suas vísceras carcomidas se gera lentamente o câncer, alimentado, também, por uma progressiva indiferença. Que adianta lutar? A única coisa a fazer é o gesto de cortar ou ceifar, levar a mão à boca e virar de um golpe a pinga ruim, onde fermenta a cólera assassina, deslocar os ossos da companheira esquálida num breve ato de prazer animal. Prazer? - que prazer? E conformar-se ao ver-lhe o ventre, já inchado de farinha, inchar mais, inchar mais, até, numa primeira lua nova, expelir um feto natimorto, ou destinado a morrer no primeiro ano de vida, quando não vinga por milagre para repetir, anos mais tarde, aquela mesma miserável mímica.

Que tristeza! E aí estão eles, pelas estradas do Brasil adentro, pobres imagens de cerâmica barata toscamente esculpidas. Às vezes, à porta do barraco, ponteiam sem emoção sons de viola e cantam toadas trêmulas, que falam da mesmice de sua vida, ou amores trágicos e valentias justiceiras, tendo como únicos ouvintes uma lua, no céu, um mocho num galho, uma aranha em sua teia, um vira-lata amigo, com as costelas à mostra.

Um dia, amanhecem mortos. Morreram de nó na tripa, transnominação eufemística para o câncer, a ruptura de hérnia, o vólvulo, a úlcera gástrica, a cirrose hepática. E são enterrados em cova rasa, no cemiteriozinho mais próximo: primeira e última generosidade do dono de terra para quem trabalham; senão, é abrir um buraco por ali mesmo e jogar o defunto dentro. Deixam para trás uma nova meretriz, que vende a pele frouxa e os seios deflatados para sustentar a prole. São gente sem história.

Meu amor, acorda, não me deixes, só, nesta sala noturna, a escrever estas tristezas. Não me deixes mais recordar esses casebres pobres de beira-estrada onde dormem e morrem irmãos meus em quem se descoloriu o sangue. Eu os estou vendo agora, dentro da noite negra a mugir inaudivelmente sua indiferença, os magros corpos magoados pela tábua dura das enxergas. Eles não sabem por que vieram, não sabem por que permanecem, não sabem para onde vão. Eles só sabem de uma coisa: ninguém se lembra deles, e eu também não quero lembrar mais. Vem, amiga, me serve um uísque, dose dupla, muito gelo. E põe depressa um disco dos Beatles na vitrola.

Fonte:
Texto publicado no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, em 31/12/1969.

A. A. de Assis (Poemas Diversos) 1


ABDITUM

Vontade
de dormir
mas não sonhar... dormir apenas...

Vontade
de encostar a vida
num abandono macio
esquecido de que existe um mundo inteiro
em torno de minha presença...

Vontade
de sair de mim
deixando meu eu
habitado de nada...

Vontade
de penetrar
num sono leve... longo e leve...
distante da própria respiração...

Vontade
de esquecer que existo
e de que existe um mundo inteiro
em torno de minha presença...

CHUVA

O céu está chorando
distante da cidade
envolta na tristeza
do pálido véu de lágrimas
da chuva que se derrama.

Escorrega na vidraça
uma lembrança
que me perturba.

Umedece-se na chuva
uma saudade
que me confunde.

Meus olhos estão chorando
distantes da lembrança
que escorrega na vidraça
do pálido véu de lágrimas
da saudade umedecida.

ICARAÍ

Barquinho de vela
desliza gostoso
na crista das ondas
pintando de branco
um ponto distante
no verde oceano.

Poeta
na praia
contempla
o poema
que boia
tranquilo
ao sopro
da brisa
fresquinha
do mar.

Barquinho flutua
brincando nas ondas
alguém dentro dele
sorrindo, cantando
fugindo, sonhando
singrando... singrando...

LENDA

Na praça adormecida
o chafariz namora a madrugada.

Menino aparece
quem sabe de onde
com seu violino
cantando e tocando
e bailando e sorrindo.

Um corpo de mulher
misteriosamente
substancia-se no chafariz.

E salta das águas
e cai de joelhos
e grita e lamenta
e chora em delírio
de mágoa e de dor.

Menino calmamente
emudece o violino
aproxima-se do vulto
toma-lhe o rosto nas mãos
trocam olhos, trocam beijos...

E partem os dois bailando...
Ele tocando, ela cantando...

Enquanto na praça adormecida
O chafariz namora a madrugada...

MENINA

Um dia menina linda
no meu quarto apareceu.

Menina sorriu contente
alegrando o mundo meu.

Menina de lábios quentes
minha boca apeteceu.

Beijando menina linda
louco amor em mim nasceu.

Menina foi logo embora
não sei onde se escondeu.

Menina deixou saudade
que até hoje não morreu.

MISSA

Sinos sacros bendenlengam no ar.
- Gutinho, levanta!
- Já vou, mamãe… aahhh!...
- Depressa, menino, está na hora da missa.
Sinos resmungam de novo no ar.
Último sinal
A cidade atende;
vai à Igreja
rezar.
Maria Amélia
e Dona Morgada
enchem de Agnus Dei
o Templo de Sigmaringa,
Padre Augusto gesticula no altar:
- Dominus Vobiscum!
Vozes de coroinhas:
- Et cum spiritu tuum!
Eucaristia!
Silêncio! Silêncio!
Corações em fila
à espera de Deus-Hóstia.
A música de Dona Morgada.
A voz de Maria Amélia,
O latim de Padre Augusto.
- Ave Maria, Gratia Plena...
- Amém!

RONDA

Dorme a cidade,
tranquila e silente.

Na esquina deserta
um poste
confidente mudo do guarda da noite
fura o nevoeiro.

Apitos
curtos e longos
apitos soturnos
misteriosos
furam o silêncio
levando recados
de paz ou de alerta.

Dorme a cidade
tranquila e silente.

Sucedem-se apitos
da ronda noturna.

ÚNICA

Flores de vária espécie
cresceram no meu jardim.
Em algumas amei a forma
em outras o colorido
em muitas bebi o néctar
e no perfume de todas
me embriaguei.

Mas um dia
entre as flores do meu jardim
cresceu uma flor tão linda
e pura
e de perfume tão singular
que todas as outras murcharam
morreram
caíram
desmanchando-se ao toque do tempo.

Apenas aquela flor
permanece em meu jardim:
nas suas pétalas
habita o meu destino.

Fonte:
A. A. de Assis. Robson (Robson 60 anos 1959 – 2019). 2. ed. Maringá/PR: A.R. Publisher, 2019.
Livro entregue pelo autor no lançamento da edição do livro, em 8 de novembro de 2019, na FLIM (Festa Literária Internacional de Maringá)