sábado, 28 de dezembro de 2019

Alcântara Machado (A Sociedade)


- Filha minha não casa com filho de carcamano!

A esposa do Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas. Teresa Rita misturou lágrimas com gemidos e entrou no seu quarto batendo a porta. O Conselheiro José Bonifácio limpou as unhas com o palito, suspirou e saiu de casa abotoando o fraque.

O esperado grito do cláxon fechou o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa Rita do escritório para o terraço.

O Lancia passou como quem não quer. Quase parando. A mão enluvada cumprimentou com o chapéu Borsalino. Uiiiiia - uiiiia! Adriano MeIli calcou o acelerador. Na primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passou de novo. Continuou. Mais duzentos metros. Outra curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a Rua da Liberdade. Pouco antes do número 259-C já sabe: uiiiiia-uiiiiia!

- O que você está fazendo aí no terraço, menina.

- Então nem tomar um pouco de ar eu posso mais?

Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pompeando na rua. Vestido do Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no terraço.

- Entre já para dentro ou eu falo com seu pai quando ele chegar!

- Ah meu Deus, meu Deus, que vida, meu Deus!

Adriano Melli passou outras vezes ainda. Estranhou. Desapontou. Tocou para a Avenida Paulista.

Na orquestra o negro de casaco vermelho afastava o saxofone da beiçorra para gritar:

Dizem que Cristo nasceu em Belém...

Porque os pais não a haviam acompanhado (abençoado furúnculo inflamou o pescoço do Conselheiro José Bonifácio) ela estava achando um suco aquela vesperal do Paulistano. O namorado ainda mais.

Os pares dançarmos maxixavam colados. No meio do salão eram um bolo tremelicante. Dentro do círculo palerma de mamãs, moças feias e moços enjoados. A orquestra preta tonitroava. Alegria de vozes e sons. Palmas contentes prolongaram o maxixe. O banjo é que ritmava os passos.

- Sua mãe me fez ontem uma desfeita na cidade.

- Não!

- Como não? Sim senhora. Virou a cara quando me viu.

... mas a história se enganou!

As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episódios de farra muito engraçados. O professor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-turururum!

- Meu pai quer fazer um negocio com o seu.

- Ah sim?

Cristo nasceu na Bahia, meu bem...

O sujeitinho de óculos começou a recitar Gustave Le Bon mas a destra espalmada do catedrático o engasgou. Alegria de vozes e sons.

... e o baiano criou!

- Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão de Teresa para o filho, você aponte o olho da rua para ele, compreendeu?

- Já sei, mulher, já sei.

Mas era coisa muito diversa.

O Cav. Uff. Salvatore Melli alinhou algarismos torcendo a bigodeira. Falou como homem de negócios que enxerga longe. Demonstrou cabalmcnte as vantagens econômicas de sua proposta.

- O doutor...

- Eu não sou doutor, Senhor Melli.

- Parlo assim para facilitar. Non é para ofender. Primo o doutor pense bem. E poi me dê a sua resposta. Domani, dopo domani, na outra semana, quando quiser. lo resto à sua disposição. Ma pense bem!

Renovou a proposta e repetiu os argumentos pró. O conselheiro possuía uns terrenos em São Caetano. Coisas de herança. Não lhe davam renda alguma. O Cav. Uff. tinha a sua fábrica ao lado. 1.200 teares. 36.000 fusos. Constituíam uma sociedade. O conselheiro entrava com os terrenos. O Cav. Uff. com o capital. Armavam os trinta alqueires e vendiam logo grande parte para os operários da fábrica. Lucro certo, mais que certo, garantidíssimo.

- É. Eu já pensei nisso. Mas sem capital e senhor compreende é impossível...

- Per Bacco, doutor! Mas io tenho o capital. O capital sono io. O doutor entra com o terreno, mais nada. E o lucro se divide no meio.

O capital acendeu um charuto. O conselheiro coçou os joelhos disfarçando a emoção. A negra de broche serviu o café.

- Dopo o doutor me dá a resposta. lo só digo isto: pense bem.

O capital levantou-se. Deu dois passos. Parou. Meio embaraçado. Apontou para um quadro.

- Bonita pintura.

Pensou que fosse obra de italiano. Mas era de francês.

- Francese? Não é feio non. Serve.

Embatucou. Tinha qualquer cousa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se.

- Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade... Sob a minha direção, si capisce.

- Sei, sei... O seu filho?

- Si. O Adriano. O doutor... mi pare... mi pare que conhece ele?

O silêncio do Conselheiro desviou os olhos do Cav. Uff. na direção da porta.

- Repito un'altra vez: O doutor pense bem.

O Isotta Fraschini esperava-o todo iluminado.

- E então? O que devo responder ao homem?

- Faça como entender, Bonifácio...

- Eu acho que devo aceitar.

- Pois aceite.

E puxou o lençol.

A outra proposta foi feita de fraque e veio seis meses depois.

O Conselheiro José Bonifácio
de Matos e Arruda
e senhora
têm a honra de participar
a V. Ex.a e Ex.ma família o
contrato de casamento de sua
filha Teresa Rita com o Sr.
Adriano Melli.
Rua da Liberdade, no. 259-C.

_________________________________________
O Cav. Uff. Salvatore Melli
e senhora
têm a honra de participar       
a V. Ex.a e Ex.ma família o
contrato de casamento de seu
filho Adriano com a Senhorinha
Teresa Rita de Matos Arruda.
Rua da Barra Funda, no. 427.


                       S. Paulo 19 de fevereiro de 1927.

No chá do noivado o Cav. Uff. Adriano Melli na frente de toda a gente recordou à mãe de sua futura nora os bons tempinhos em que lhe vendia cebolas e batatas, Olio di Lucca e bacalhau português, quase sempre fiado e até sem caderneta.

Fonte:
Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 146


Monteiro Lobato (A Gralha Enfeitada com Penas de Pavão)


Como os pavões andassem em época de muda, uma gralha teve a ideia de aproveitar as penas caídas.

– Enfeito-me com estas penas e viro pavão!

Disse e fez. Ornamentou-se com as lindas penas de olhos azuis e saiu pavoneando por ali afora, rumo ao terreiro das gralhas, na certeza de produzir um maravilhoso efeito.

Mas o trunfo lhe saiu às avessas. As gralhas perceberam o embuste, riram-se dela e enxotaram-na à força de bicadas.

Corrida assim dali, dirigiu-se ao terreiro dos pavões pensando lá consigo:

– Fui tola. Desde que tenho penas de pavão, pavão sou, e só entre pavões poderei viver.

Mau cálculo. No terreiro dos pavões coisa igual lhe aconteceu. Os pavões de verdade reconheceram o pavão de mentira e também a correram de lá sem dó.

E a pobre tola, bicada e esfolada, ficou sozinha no mundo. Deixou de ser gralha e não chegou a ser pavão, conseguindo apenas o ódio de umas e o desprezo de outros.

Amigos: lé com lé, cré com cré.
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– Esta fábula é bem boazinha – disse Dona Benta. – Quem pretende ser o que não é acaba mal. O Coronel Teodorico vendeu a fazenda, ficou milionário e pensou que era um homem da alta sociedade, dos finos, dos bem-educados. E agora? Anda de novo por aqui, sem vintém, mais depenado que a tal gralha. Por quê? Porque quis ser o que não era.

– Isso não, vovó! – objetou Pedrinho. – Ele ficou rico e quis levar a vida de rico. Só
que não teve sorte.

– Não, meu filho. O meu compadre apenas se encheu de dinheiro – não ficou rico. Só enriquece quem adquire conhecimentos. A verdadeira riqueza não está no acúmulo de moedas – está no aperfeiçoamento do espírito e da alma. Qual o mais rico – aquele Sócrates que encontramos na casa de Péricles ou um milionário comum?

– Ah, Sócrates, vovó! Perto dele o milionário comum não passa de um mendigo.

– Isso mesmo. A verdadeira riqueza não é a do bolso, é a da cabeça. E só quem é rico de cabeça (ou de coração) sabe usar a riqueza material formada por bens ou dinheiro. O compadre pretendeu ser rico. Enfeitou-se com as penas de pavão do dinheiro e acabou mais depenado que a gralha. Aprenda isso...

– E que quer dizer esse “lé com lé, cré com cré”? – perguntou Narizinho.

– Isso é o que resta de uma antiga expressão portuguesa que foi perdendo sílabas como a gralha perdeu penas: “Leigo com leigo, clérigo com clérigo”. Em vez de clérigo, o povo dizia “crérigo”. Ficaram só as primeiras sílabas das duas palavras.

Fonte:
Monteiro Lobato. Fábulas.

Daniel Maurício (Devaneios Poéticos) 1


Ah,
Como fica bom o meu dia
Quando tu abres a cortina da alma num sorriso
Se constituindo na paisagem mais linda do mundo.
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Ah,
Esse mar beijoqueiro!
Faz tanta onda por um beijo
Mas depois de que dá primeiro
Vai e volta querendo mais.
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Ao passar das sete luas
Abri minha janela pra rua,
Não mais sabático,
De alma curada
Voltei a florir.
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As tuas palavras
Me abraçam
Mas os teus beijos,
Ah!
Estes
Lavam a minha alma.
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Depois de tantas desilusões
Em terra desértica ela se fez
Mas pra conquistar seu coração
Em mandacaru me tornei.
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Desfiando nuvens,
Por você,
Casaco de sol eu me fiz.
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Fechei os olhos pra poesia
E ela saiu
Em forma de oração.
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Hoje
A saudade fez um barulhão no meu peito
Queria de todo jeito
Te trazer pra perto de mim.
Abraço o teu perfume
Beijo o teu sorriso
Como se estivesse contigo
Em silêncio
Vendo passar o rio.
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Mesmo com a tua grandeza
O amor em ti transborda
E eu tão pequeno
Vou sorvendo pelas bordas.
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Na despedida
Lágrimas caídas
Estrelas no chão.
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Na flor da idade
Guardei em mim o teu perfume
Com o passar do tempo
Um belo jardim de nós se fez (filhos).
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Na imensidão da noite
Enquanto o vento grita
A lua se faz de pipa
E brinca enroscada na árvore.
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Nas entrelinhas
Os meus versos brincam de esconde-esconde.
Mas quando aparecem
As rimas-meninas
Elas se divertem no carrossel encantado.
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Nos braços da noite
Amparo meus sonhos
Aguardando tranquilo
Pelo amanhecer.
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Olhos azuis
Ou seriam verdes que me confundem!
Ah, menina!
Quando te vejo
As meninas dos meus olhos
Brincam maravilhadas
Com o oceano que há nos teus.
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Ruidoso mar
Com as tuas batidas
Ensurdeces o fado
Que grita no meu peito.
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Você partiu
Fiquei menor
Pois escapou dos meus olhos
Um pedacinho da alma.
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Fonte:
Facebook da AVIPAF

Rachel de Queiroz (O Homem e o Tempo)

    
Quem lê algum livro das eras de dantes, um romance de Jane Austen, por exemplo, escrito há quase duzentos anos atrás, tem a impressão de que o tempo daquela gente rendia muito mais que o nosso, ou que eles tinham tempo para tudo, enquanto nós não temos tempo para nada. Eles realizavam coisas, erguiam grandes casas, criavam grande família, plantavam jardim e pomar e ainda tinham tempo para meditação e debate, para as artes amenas da convivência civilizada — as visitas, as palestras, a correspondência. E só conheciam como meio de tração terrestre o cavalo, navegavam a vela, não sonhavam com telégrafo nem telefone, quanto mais com rádio e TV!

O que aconteceu com o homem atual, vítima da permanente impressão de que o seu tempo encolheu? A gente se agita, quebra a cabeça, vai lá e vem cá, mas não realiza propriamente nada — ou, pelo menos, o que se realiza nem de longe corresponde ao esforço que se faz. Não se tem tempo. Não se escreve um livro com calma, aqueles substanciosos livros meditados, cheios de digressões, alargados em conceitos tranquilos, que representavam o labor de toda uma vida. E se alguém escrevesse tais livros, como alguma alma anacrônica ainda o tenta, não encontraria ninguém para o ler. A gente vive correndo de Herodes para Pilatos, do nascer ao pôr-do-sol, da segunda ao sábado e se esgota toda nessa correria. Eu, por exemplo, que não sou das mais ativas: atualmente o meu trabalho fica a três mil quilômetros, ou seja, a quinhentas léguas do lugar onde moro. Não é coisa de louco? Mas não sou exceção, a exceção são os que moram perto. D. Pedro II reinou no Brasil durante 58 anos e conheceu apenas uma parte do território nacional, o que foi uma omissão. Mas também é exagero o que faz qualquer presidente atual; numa única semana percorre mais território do que o Imperador em mais de meio século; para governar, governa simultaneamente em duas cidades, separadas uma da outra mais de mil e quinhentos quilômetros — Brasília e Rio.
     Tudo seria muito belo, a velocidade e o mais, se a nossa pessoa física estivesse à altura das exigências que nós lhe impomos. Pois o trágico da vida do homem moderno é que ele não é feito para o ritmo que a sua existência atual lhe exige, mas para o tranquilo, sereno ritmo dos tempos de dantes. A carne, os músculos, o sangue, o coração, as vísceras todas do homem foram criadas para as pequenas distâncias, para o andar a pé. O cavalo já nos exigiu uma adaptação especial — que dirá então do avião, da astronave? Nenhum homem das civilizações antigas poderia conhecer o desgaste prematuro e terrível representado por essa moléstia hoje vulgar em aviadores, rapazes de menos de trinta anos: a fadiga do voo. Para as conquistas deste século deveria haver outro homem, não aquele que nós somos, filhos de Adão feito de barro.

A gente se obriga, mas a carne reclama. Desde o enjoo do mar ao enjoo do ar, ah, o horrendo enjoo do ar que me martirizou por mais de vinte anos de viagens aéreas, até que se usasse a pressurização nos aviões comerciais! Nós vivemos dentro das nossas cidades no seio do progresso que nós inventamos e fabricamos, como hóspedes do interior vivem na casa de primos ricos — onde tudo é uma admiração e um constrangimento. Basta encarar o problema da escala. Pois tudo que a civilização fabrica, ultrapassa a nossa escala, como se fosse destinado ao uso de gigantes. Para termos uma visão do mundo que nos cerca, temos que o reduzir a miniaturas, fotos, mapas, maquetes. Experimente olhar da calçada a torre de um grande edifício — dá vertigens e o nosso olhar não apanha nada do conjunto.

Eu tenho a impressão de que um progresso realmente assimilável pelo homem seria um progresso que funcionasse de dentro para fora quer dizer, se o homem mesmo, o seu corpo, a sua carne participassem do progresso. Mas nós sabemos inventar elementos exteriores que nos transportam, nos elevam no ar, nos afundam, nos cegam, nos deslumbram, sem nada penetrar a nossa essência física, sem sequer melhorar a nossa constituição corporal. Somos pacientes, não agentes. A ave que voa, voa por si, voa mesmo. Nós “somos voados”. Alguma coisa voa nos levando dentro. Nadar e mergulhar com o nosso corpo é uma atividade maravilhosa, que nos dá a sensação de dominar um elemento novo e adverso: mas navegar dá náuseas e mergulhar num submarino a mim, pelo menos, dá horror.

Não sei se me faço entender, mas considero essa questão a própria chave da incompatibilidade do homem com sua obra: nenhum progresso alcança a nossa estrutura,
fica tudo na superestrutura, no exterior.

Tudo é feito de matéria inerte, nada é vivo, nada é de carne, nada cresce, nada dói. Sim, aí é que bate o ponto: nada do que nós fazemos é capaz de sentir nada, mormente sentir dor.

Progresso seria se a gente conseguisse tornar o nosso coração de músculo num coração de duralumínio. Um pulmão de espuma de aço, um sangue incorruptível como petróleo, um cérebro que não tonteie nem esqueça, meu Deus, um cérebro eletrônico. E, dizendo isso, verifico que o homem capaz de fruir com plenitude a civilização de engenhos mecânicos por ele criada tinha que ser também um homem mecânico — tinha que ser um robô.

[17 jun. 1967]

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 145


Contos e Lendas do Mundo (Irlanda: Gobán, o Carpinteiro)

Vivia na Irlanda, há muito tempo, um homem a quem chamavam Gobán Saoir, que era um exímio carpinteiro. Naqueles tempos, era costume construir as casas de madeira, e ninguém o fazia melhor que ele. O seu nome tornara-se famoso em todo o país, pelo que todas as pessoas de certa classe e renome lhe pediam que construísse as suas habitações.

Tinha apenas um filho, que trabalhava com ele, e muita gente recorria a eles, quando precisava de bons profissionais. Um dia, Gobán Saoir decidiu procurar uma mulher para o filho. Como a sua própria esposa estava a envelhecer, concebeu um plano para o ajudar a conseguir uma companheira satisfatória.

Ordenou ao rapaz que fosse buscar uma ovelha e sacrificou-a. Em seguida, retirou-lhe a pele meticulosamente, enrolou-a e guardou-a até ao dia de mercado seguinte.

— Leva a pele da ovelha à cidade, hoje — indicou ao filho. -Depois, volta a trazê-la e o dinheiro que te derem por ela.

O jovem pôs-se a caminho e, ao chegar ao mercado, estendeu a pele no chão. As pessoas que passavam perguntavam-lhe quanto pedia por ela e ele respondia que queria conservá-la em seu poder, juntamente com o preço que tinham de lhe pagar. Todos reconheciam que não devia regular bem da cabeça e, ao anoitecer, regressaram a casa e ele à sua com a pele.

— Vendeste-a? — perguntou o pai.

— Não consegui. Julgavam-me louco.

— Bem, tentarás outro dia.

— Para quê? — replicou o filho. — Com essa condição, ninguém ma comprará!

— Garanto-te que a hás de vender, ainda que demores um ano.

No dia de mercado seguinte, o pai mandou o jovem novamente ao local, assegurando-lhe que venderia a pele. O filho colocou-se no mesmo lugar, e a história repetiu-se. Quando aparecia um interessado e ele o advertia de que teria de manter a pele em seu poder, juntamente com o dinheiro do preço pedido, desinteressava-se. No fim do dia, o mercado encerrou as portas e ele enrolou a pele e regressou a casa.

— Então, vendeste-a? — perguntou o pai.

— Não — respondeu o rapaz. — Fartaram-se de rir de mim.

— Tens de voltar a tentar.

— Aposto o que quiseres que farei essa viagem em vão.

— De qualquer modo, tens de efetuar mais uma tentativa.

Quando se dirigia mais uma vez para o mercado, cruzou-se com uma jovem das imediações, que vinha da fonte com um cântaro de água e lhe perguntou:

— Vais ao mercado?

— Vou, mas acredita que não me apetece nada.

— Que te leva lá?

— Tenho de vender esta pele de ovelha e hoje é a terceira tentativa, mas duvido que o consiga.

— Nesse caso, porque vais lá?

— Estou numa situação muito difícil. Tenho de a entregar ao meu pai, juntamente com o dinheiro que custa.

— E ninguém a quer comprar?

— Ninguém. No mercado, todos se riem de mim.

— Acompanha-me a casa — propôs ela. — Talvez eu te a compre.

O jovem assentiu, sabendo que se tratava da serviçal de um agricultor que vivia perto dali. Uma vez chegados, ela pousou o cântaro e pediu:

— Tira a pele do saco, para que a veja.

Ele obedeceu e desenrolou-a diante da lareira. Em seguida, ela pegou numa tesoura, cortou a lã e pesou-a.

— Pronto — anunciou. — A pele tinha dois quilos de lã e cada quilo custa oito pence*. Aqui tens o dinheiro da lã. Podes ficar com o couro e levá-lo ao teu pai, exatamente como ele te recomendou.

E o jovem regressou a casa satisfeito. Quando Gobán Saoir lhe perguntou se vendera a pele, respondeu:

— Vendi, e não tive de ir muito longe. Comprou-a uma jovem. Deu-me o dinheiro da lã, que ela própria cortou da pele com uma tesoura, e deixou-me ficar com o couro, mas não sei se isso é do teu agrado.

— E, sem dúvida, porque tudo resultou como eu desejava. Agora, procura essa moça e pede-lhe que venha esta noite. Mas atenta no seguinte: não deve vir nem por estrada, nem por caminho, nem através do campo. Além disso, não pode trazer companhia, mas não deve vir só. E não entrará, nem ficará lá fora.

— Com a breca! — exclamou o jovem. — Que exigências tão estranhas!

— Vai e faz o que te mando.

O filho de Gobán Saoir dirigiu-se à fazenda e, quando chegou, perguntou pela jovem à dona da casa.

— Foi buscar batatas ao campo — informou ela. — Podes ir lá procurá-la.

Quando o viu, a jovem mostrou-se surpreendida.

— Não me digas que o teu pai não ficou satisfeito com a venda da pele!

— Não venho por causa disso. Ele quer que o visites esta noite, mas não deves ir nem por estrada, nem por caminho, nem através do campo. Além disso, tens de ir só, mas acompanhada. Como se isso não bastasse, não podes entrar em casa, nem ficar fora.

— Muito bem — concordou. — Comunica-lhe que não faltarei.

Depois de colher as batatas e terminar as outras tarefas que lhe competiam, ela pôs-se a caminho, mas antes chamou o cão. Depois, subiu ao alto vale que se estendia da fazenda até à porta da casa de Gobán Saoir e só desceu de lá quando se encontrou no final. Por fim, colocou um pé dentro da porta e o outro fora.

— Que Deus e a Virgem Maria estejam contigo — proferiu.

— Não queres entrar? — convidou Gobán.

— Segundo a tua ordem, não devo entrar nem ficar fora. Como vês, encontro-me entre os dois pilares da porta.

— Tens toda a razão. Que caminho utilizaste?

— Vim pelo alto vale, do qual só desci aqui, no umbral da porta.

— E a tua companhia? — insistiu ele. — Quem está contigo?

— Este — disse ela, chamando o cão, cujo nome era Sólan.

— Tens razão, mais uma vez. Não estarás só, enquanto se conservar a teu lado. Muito bem. Podes entrar.

Assim fez e sentaram-se à mesa, para saborear um jantar excelente.

— O que eu pretendia, minha querida jovem, era o seguinte - explicou Gobán. — Uma boa dona de casa para o meu filho, e ficaria muito satisfeito se fosses tu. Resta-me fazer a pergunta sacramental. Queres casar com ele?

— Fá-lo-ei de bom grado, desde que queira casar comigo.

O filho do carpinteiro declarou-se encantado com a ideia, pelo que assinaram o contrato matrimonial.
_________________________
Glossário:
Pence – A libra esterlina ou simplesmente libra (em inglês, pound, plural pounds, informal. Pound Sterling, ou pounds sterling, formal) é a moeda oficial do Reino Unido. Desde 15 de Fevereiro de 1971 e da adoção do sistema decimal, ela é dividida em 100 pence (singular: penny). Antes dessa data, uma libra esterlina valia 20 shillings (que valiam por sua vez 12 pence cada um), ou 240 pence. Atualmente (dezembro de 2019), 1 Real é equivalente a 18.90 pence esterlino.

Fonte:
Contos Tradicionais da Irlanda

Silmar Böhrer (Divagações Poéticas) 3


1
A vida é feita de indagações
e elas realmente existem,
por que será que tantas opiniões
nunca jamais mudam, persistem?
2
Vou devagar divagando
para não me assustar,
na vida bem a divagar
vou divagando devagar.
3
Devemos ser espertos
em tudo na vida.
Talvez um dia
cheguemos a expertos.
4
Não é situada a cita
nesta rua transversal,
a citada sempre foi sita
na avenida principal.
5
O esquilador desfia
as ovelhinhas mais leves,
o esquiador desafia
aquelas branquinhas neves.
6
Muitas vezes não sei
se estou certo,
mas certamente
certo estou
em querer saber
se mesmo estou.
7
São múltiplas parcerias
nas nossas miles de faces,
ou acaso pensarias
que és uno quando nasces?
8
Serão nuvens nas alturas
ou são avezinhas do céu,
aquelas imagens-esculturas
sem mácula ou labéu?
9
Na floresta, meu ir e vir
ouvindo o som da cascata.
Mais ver ou mais ouvir?
Gosto de sentir sua cantata.
10
Não tenho visto as ilhas
nestas névoas hibernais,
ainda existem os tais
abrigos de velhas quilhas?
11
O solilóquio das águas
é algo demais aprazível,
será que falam de mágoas
deste mundo tão terrível?
12
Despojados, sim, sejamos,
sejamos mui despojados,
se algum dia nos vamos,
por que viver tão anojados?
13
Daquelas noites sombrias
com friozinho a espantar,
voltaram, será, as invernias
nas vacarias do mar?
14
Será, onde estão indo
estas nuvens passageiras,
buscam o futuro, insistindo
como os humanos toupeiras?
15
Uma indagação do esteta:
Espelho, espelho meu,
tens visto outro mau poeta,
tão mau assim quanto eu?

Fonte:
Versos enviados pelo poeta.

Vinicius de Moraes (Arte e síntese)


Arte não é só "fazer": é também esperar. Quando o veio seca, nada melhor para o artista que oferecer a face aos ventos, e viver, pois só da vida lhe poderão advir novos motivos para criar. Nada pode resultar mais esterilizante que o encontro de uma síntese, se ela não for, como na vida, a consequência de uma análise que se retoma a partir dela. Encontrar uma fórmula é, sem dúvida, uma forma de realização; mas comprazer-se nela e ficar a aplicá-la indefinidamente, porque agradou, ou compensou, constitui a meu ver uma falta de caráter artístico. Como nas ciências positivas, o encontro de uma síntese deve ser o ponto de partida para a busca de outra, e assim por diante, até o encontro dessa grande e única verdadeira síntese que é a morte. E nesse particular eu considero Picasso o maior artista dos nossos tempos.

Picasso é como o câncer às avessas. Sua arte múltipla e prolífica representa uma tremenda afirmação de vida, pois o grande andaluz reformula-se constantemente, até quando varia sobre o mesmo tema. O quadro é para ele como um abismo onde se lança de cabeça, e que uma vez possuído, repele-o fora, como uma mulher violentada. Porque Picasso é dos poucos artistas de qualquer época a quem o abismo teme. O abismo teme esse louco saltimbanco que se atira no vácuo da tela sem saber se vai voltar - e volta sempre. De quantos mais, no nosso século, se pode dizer o mesmo?

Arte é afirmação de vida, em que pese isto aos mórbidos. Afirmação de vida nesse sentido que a vida é a soma de todas as suas grandezas e podridões: um profundo silo onde se misturam alimentos e excrementos, e do qual o artista extrai a sua ração diária de energias, sonhos e perplexidades: a sua vitalidade inconsciente. Tome-se Villa-Lobos, por exemplo. Villa-Lobos é um caudal que se precipita arrastando tudo o que encontra em seu caminho, troncos floridos e paus pobres, ninfeias e cadáveres; e, uma vez represado, harmoniza os elementos antagônicos dessa rica contextura em música, seja da maior tranquilidade, seja do maior tormento - pois tudo faz parte da vida. Como admirar, assim, o artista que se recusa a comer dessa mistura, que desinfeta as mãos para tocá-la, que vive a tomar leite para não se envenenar com suas tintas?

A arte não ama os covardes: e essa afirmação não pode ser mais antifascista. A arte, há que domá-la como a um miúra: e para tanto é preciso viver sem medo. Não a coragem idiota dos que se arriscam desnecessariamente, em franco desrespeito a esse terrível postulado da vida, que ordena uma preservação constante, de maneira a se estar sempre apto para os seus grandes momentos. Esse foi, a meu ver, o pecado maior de Hemingway, e a loucura maior de Rimbaud, que resultou, num, numa morte simulada, temporã, que se antecipou à grande síntese; no outro, numa evasão total, numa recusa pânica a ver o fundo do abismo. Isto sem prejuízo da arte, que ambos exerceram, cada um a seu modo, com gênio e responsabilidade; mas não o gênio e a responsabilidade de um Tolstoi ou de um Picasso. E aí é que está a questão.

É evidente que nenhum prazer poderá jamais substituir uma relação sexual de amor. E é isso o que irrita em certos artistas: eles acabam por se satisfazer solitariamente. Não são capazes, depois de encontrar a síntese, de jogá-la aos peixes, como faz Picasso diariamente, e sair para outra - e não por insatisfação pura e simples: porque sabe intuitivamente que quem acha vive se perdendo, como filosofou Noel Rosa. O negócio é a busca. Aí que a vida incute.

Eu conheço artistas que não se dão mais sequer o trabalho de mergulhar no que fazem, no ato de criar. Trabalham mecanicamente, a partir de um metier adquirido, e elaboram sua obra dentro de esquemas predeterminados por uma síntese atingida. E ficam jogando boxe com a sombra, justificando-se de sua impotência criadora com a auto-satisfação do próprio virtuosismo; aparentemente vaidoso de sua rigidez temática, mas no fundo sabendo que se encontram diante desse fatal impasse em que esbarram sempre os que se recusam às fontes mais generosas da vida e da criação.

Há amigos de Picasso, e a um eu conheci, que o acusam de avarento. Mas certamente não com sua vida e sua arte. Já ouvi toda sorte de histórias a seu respeito: de que guarda a fortuna em casa, dentro de uma arca, e fica a contar e recontar moedas como um usurário de teatro. Histórias absurdas, evidentemente, para quem não deve ter a menor noção do valor do dinheiro; cujos guardanapos e toalhas, que ficava riscando à toa, eram disputados a tapa pelos garçons dos restaurantes onde comia em Cannes. Mas fosse isso verdade - esse horrível pecado que é a avareza - e não seria uma ínfima anomalia neurótica, desculpável, portanto, num homem que criou a maior obra de arte do seu século? Quem fez mais que ele, que revolucionou toda a estética da arte contemporânea e se colocou, chegando o momento, do único lado certo - aquele contra os inimigos do homem e da cultura? Hoje, beirando os noventa, o velho minotauro, ainda sadio, ainda pintando, pode dizer: "Criei um mundo!" E não, bem certo, porque tivesse sido avaro com sua vida. Fecundou mulheres, teve filhos, fez amigos e discípulos por toda parte. Prodigalizou seu sêmen. Foi um homem.

Fonte:
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31/12/1969

Nilto Maciel (A Tragestória de Getúlio)


O bigodão do gordo se mexeu, quando pedi a primeira dose. Ao beber, percebi que ele desconfiava de mim. Seus olhos pareciam lâminas a cortar meus lábios. No entanto, eu precisava beber. Engolir o veneno, o fel. Minhas vísceras, frágeis vertentes por onde desaguavam metais derretidos. Não quis cuspir ao pé do balcão e corri para a porta. Cuspi sobre o lombo do cachorro que lambia o traseiro de outro. Tentei acender, apressado, um cigarro. Uma baforada de ar frio entrou pelas narinas, pela garganta, pelos olhos. Voltei e pedi mais bebida. E mais, mais, mais.

– Acertei.

Ai! Estou caindo. Ai ai ai. Preciso me agarrar a esta parede lisa azul. O chão me arrasta, como correnteza. Tudo está caindo. Esta luz amarela parece o sol do meio-dia. Dói, feito areia nos olhos.

– Matei o safado.

Uma mesa? Um baú? Que cauda é esta crescendo e brilhando? Um animal estranho? Os livros estão dançando. Tela sem imagem. E aquela criança de orelhas enormes? Sofás de tantas cores! Devem ser macios demais para o sono de quem chega muito cansado.

– Meu Deus! Que fizeste, Rodolfo?!

A mulher grita, como se visse o diabo. Treme, chora. Agarra-se às costas do gordo corado alto que fala, gesticula e aponta o cano para a minha boca.

– Deve ter morrido.

Eles me pegaram, me bateram por muito tempo e me quebraram os dentes. Nunca fui a dentista. Os dentes apodreceram cedo e foram caindo, aos poucos. Como o avião que afundou na lagoa. Morreram todos e o povo fez festa. Eu não votei porque não pude. Não tinha documentos. Tirei a carteira de trabalho e saí à procura de emprego. Arranjei, mas nem precisava de carteira.

– Está vivo ainda.

Eles pensavam que eu já tivesse morrido. Bebi muito e dormi à porta do bar. Acordei só de cuecas. Rapazes dançavam, abraçados e sem camisa. Entrei na folia. Viva o Flamengo! Roubei uma camisa de listras pretas e vermelhas e fui embora.

– Estou querendo acabar de matar esse bicho.

O galo sangrava e não percebia as penas ensopadas do próprio sangue. Tive pena, mas sentia muita fome. Então decepei o pescoço ensanguentado com uma faca cega. Arranjei farinha com Seu João e assei o bicho.

– Chame a polícia, enquanto eu vigio.

Quando chegou, já era tarde. O criminoso já havia fugido e o pobre do Bira estava mortinho da silva. E bebemos mais ainda. Até a hora do enterro.

– Chame logo.

Não chamei. Ela não era minha mãe. Levei outra surra e fiquei todo ferido. O corpo doído, como se tivesse sido pisado por um elefante. Ah se eu fosse Tarzan! Saía pulando de galho em galho. Como a Chita. Tão inteligente! Já terá morrido?

– Ele já morreu?

Não sei. Fugi de casa no outro dia. Nunca mais ouvi falar dele. Deve ter morrido bêbado. Ou ainda deve estar no barraco com aquela égua e os meninos. Coitada de Lucinha! Naquele cabaré, bebendo, apanhando, passando fome. Dá até vontade de chorar ou morrer.

– Ouviu a sirene?

Madalena, se fosse mulher. Mas como é homem, será Getúlio. Que nome mais feio! Ora, o nome de um homem como esse não pode nunca ser feio. Estou prestando uma homenagem.

– Abra a porta.

O sol entra em meus olhos. Fechem a porta, não deixem essa bola de fogo invadir a casa.

– Ainda bem.

O mundo é quente e ruim. Como seria bom estar guardado em mamãe.

– Onde está o ladrão?

É um menino. Deus te dê muita saúde e felicidade.

A mãe está morrendo, doutor. Depressa, depressa!

– Parece que já morreu, Seu Delegado.

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.