terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Lairton Trovão de Andrade (Panaceia de Trovas) VII


A estrela do firmamento
da grandeza é o brasão;
nossa glória esvai-se ao vento
feito bolha de sabão.
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A hortência está no horto,
onde há flores por vintém;
tanto quer, pra seu conforto,
o aroma que ela não tem.
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A justa sabedoria
despreza vis aparências;
triunfa a Filosofia
no universo das essências.
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Além do bem e do mal
não se contempla ninguém;
jamais nascerá um tal
que seja um "super alguém".
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Apesar de algum espinho,
levo à frente o caminhar;
os tropeços do caminho
não me impedem de sonhar.
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A rica mata florida
vê a vida massacrada;
por um cruel homicida,
a natureza é linchada!
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As árvores da natura
têm a beleza cativa;
a brisa suave e pura
faz a aurora mais festiva.
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A verdade é que nos diz:
Não há maior decepção
que ver o povo infeliz
com tanta retaliação.
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A vida, neste interior,
reflete feliz bonança;
a natureza em vigor
renova toda esperança.
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Destruam toda floresta,
desprezem valores certos,
mudem o clima que resta
e verão novos desertos.
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Dizem que o mundo sorri
e seu sorriso é de artista;
há muita ilusão, ali,
naquela voz de sofista.
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É o refulgir da evidência,
que ao conhecer dá firmeza;
forte alicerce da ciência
é o critério da certeza.
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Leva desprezo maior
o torpe réptil traidor;
não pode haver coisa pior
que trair seu benfeitor.
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Merece o trabalhador,
após jornada sem fim,
ser do seu tempo senhor,
bem aposentado enfim.
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Motosserra na floresta
destrói o nosso futuro;
é ação vil e funesta
que nos traz fim prematuro.
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Na letra desta poesia,
há sonho com muito ardor.
Que bom alcançar, um dia,
a doce paz interior!
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Na minha vida em percurso,
perante ofensa velada,
prefiro usar o discurso
do meu silêncio e mais nada.
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Não morrerá a esperança
pra quem a tem por preceito;
quem trabalha sempre alcança
o bom fruto e o seu efeito.
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Nas mornas noites de outono,
com este lindo luar,
muitas vezes, perco o sono,
por um bem além do mar.
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Neste mundo de surpresa,
conservo a minha coragem;
na abundância ou na pobreza,
hei de sempre seguir viagem.
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O amor que vibra em meu peito
já não tem mais dimensão:
é chama de sumo efeito
e delícia em explosão.
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Observo, sem compreender,
hipócritas em ação;
o que sempre mostram ser
é tudo o que eles não são.
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O tirano prepotente,
por ter feito tanto mal,
mesmo na vida presente
terá desprezo total.
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Por vez, quem perde eleição
quer, ao eleito, insucesso;
instiga só insurreição,
é contra o bem e o progresso.
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Pouco importa o que eu escrevo
no discurso, em cada linha;
certas coisas só me atrevo
declarar nas entrelinhas.
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Quando a palavra se cala,
pode inda haver advertências:
Nem só a palavra fala...
há vozes nas reticências...
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Riqueza não compra tudo,
nem mesmo a tranquilidade;
compra o dinheiro, contudo,
amigos com falsidade.
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Se eu pudesse, te daria
grande presente de escol,
e você se assentaria
num trono acima do Sol.
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Torna-se, às vezes, o amor
só lenda de dicionário,
que não tem mais resplendor
nem nas letras de um hinário.

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Perene alvorecer. 2016.

Manuel Antonio de Almeida (Uma História Triste)


Dois passarinhos tinham tido na primavera uns amores muito inocentes e muito ternos. Começaram por um trinado alegre nos ramos da mesma árvore, depois fizeram juntos um voo para a árvore vizinha, depois chamaram-se um ao outro nuns pios muito doces para o denso da mata, depois um deles baixou à terra, e ergueu-se levando no bico uma palhinha seca.

Sobre o rio que ali perto corria debruçava-se o ramo de uma grande árvore, e com suas folhas beijava quase a superfície das águas.

Para esse ramo foi levada a palhinha seca que deu começo ao ninho.

Por cima havia a copa da árvore, por baixo as águas do rio. O ninho ficou naquele meio voluptuoso de sombra e de frescura.

Durante alguns dias passaram-se ali ao pôr do sol alguns mistérios que a solidão escondeu; ouviam-se uns chilros entrecortados, o sussurro de umas asas que se debatiam, o ramo que se agitava. Depois a aragem, passando pela copa da árvore, desfolhava sobre o ninho as flores que haviam desabrochado naquela mesma aurora.

Um dia, ao despontar do sol, os dois passarinhos cantaram mais do que nunca, esvoaçaram alegres em torno do ramo, pousaram em todas as grimpas da árvore, e de cima de cada uma delas cantaram, trinaram, chilraram.

De dentro do ninho partiram uns pios que mal se ouviam, e começaram a agitar-se umas asas pequeninas cobertas de penugem.

Nesse mesmo dia, ao cair da tarde, os céus cobriram-se de nuvens, e as águas do rio tornaram-se turvas.

De noite caiu a tempestade.

Ao amanhecer, um dos passarinhos, tendo ficado a noite inteira com as asas abertas sobre o ninho para protegê-lo, cedeu o lugar ao outro, e foi nos ramos mais altos esperar um raio de sol que lhe enxugasse as penas úmidas da chuva.

Debalde esperou, o sol não veio nessa manhã.

No entanto, as águas do rio, engrossadas pela chuva da noite, começaram a crescer com um ruído longínquo e surdo.

Já as últimas folhas do ramo se achavam mergulhadas, e este começava a balançar com o movimento da corrente.

Os infelizes pressentiram o perigo que iam correr as premissas do seu amor, e começaram a esvoaçar inquietos em torno do ninho.

As águas continuaram a crescer, e já se não via a extremidade do ramo.

A inquietação dos malfadados crescia com eles; continuavam a esvoaçar soltando uns gemidos rápidos, mas repetidos, único meio por que podiam manifestar a sua aflição. Quando cansavam, pousavam num ramo vizinho, mas só por um instante, e recomeçavam logo a esvoaçar e a gemer.

As águas cresciam sempre, e já grande parte do ramo estava mergulhado na corrente.

Os infelizes redobravam os voos e os gemidos.

Depois o ramo vergou com a força da água, estalou e partiu-se. Preso às plantas marinhas ficou alguns instantes no mesmo lugar; depois começou a correr levado pela corrente.

O ninho ficara fora da água, e dentro dele os recém-nascidos agitavam medrosos suas asas de penugem para os pais que acompanhavam o ramo, disputando no voo a velocidade da corrente.

Correram assim por muito tempo, o ninho sobre as águas, os pássaros cortando o ar.

Quando encontravam alguma raiz ou planta, ou quando nalguma volta do rio a corrente menos rápida demorava o ramo, os infelizes tentavam pousar nas bordas do ninho; mas este ameaçava submergir-se com o peso: eles erguiam-se de novo, e começavam, voando, a descrever em torno dele círculos tão estreitos, que muitas vezes suas asas se encontravam.

Fatigados da luta inútil, já o seu voo era rasteiro, trêmulo e incerto. Pousando em qualquer árvore da margem poderiam cobrar novas forças, mas durante esse tempo onde teriam ido o ninho, e os filhinhos que pipitavam de fome!

Continuaram a voar, e o ninho a correr.

Afinal um deles caiu numa vertigem da fadiga sobre a corrente; quis erguer de novo o voo; abriu as asas na superfície das águas; pesaram-lhe porém as penas molhadas; e sumiu-se num redemoinho que fazia o rio.

O companheiro continuou a seguir ainda por algum tempo o ninho; mas venceu-o também o cansaço; abateu-se trêmulo sobre um ramo da margem, donde caiu desfalecido na corrente.

No entanto era já de tarde; o céu tinha-se tornado limpo, aparecera o sol, as águas do rio tinham baixado.

O ninho encalhou por fim no remanso da areia, onde os infelizes filhinhos de um amor tão inocente e tão puro morreram de fome, de orfandade e de abandono, não tendo vivido duas auroras!

Pois sobre aqueles seres tão inocentinhos, tão inofensivos, que parecem não ter sido criados senão para adorno da criação, pesará também a fatalidade da desventura?

Pois nem aquele amor que fora tão puro e tão breve deixou de pagar ao infortúnio o seu tributo de dores?

Ou será que a Providência que rege os destinos do homem deixa o dos outros seres à lei do acaso?

Se não tivesse medo que se rissem de uma questão de passarinhos, havia de apresentar estes problemas aos grandes pensadores, a ver se os resolviam.

Fonte:
Manuel Antonio de Almeida. Obra dispersa.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 178


Gracéli Maria (A Chinesinha)


Comprei o jornal, como de costume, na banca do Sr. Juvenal. Mas, aquele dia estava apressado demais para dar uma paradinha no café. Todas as manhãs minha rotina era a mesma; comprava o jornal, trocava algumas palavras com Sr. Juvenal, acendia meu primeiro cigarro do dia, caminhava até a esquina, onde costumava tomar um cafezinho bem forte, enquanto lia as notícias e, em seguida, voltava calmamente para casa.

É bem certo que duas ou três vezes por semana, Dona Samira varria a calçada em frente ao seu velho sobrado e me dirigia algumas perguntas.

- Como vai sua menina, mandou notícias já, foi?

- Não, Dona Samira, ela não telefonou esta semana, nem a passada. Está em época de provas - respondi apressado.

- Ah! Sim! Uma sobrinha de meu marido estava a estudar na Europa, mas a pobrezinha...

- Já conheço a estória - interrompi, antes que ela continuasse. - Desculpe-me, mas tenho de ir. Preciso dar uns telefonemas - acrescentei.

Entrei o mais rápido que pude no prédio. É bem verdade que ela continuou a balbuciar algumas coisas, mas eu já me encontrava na porta do elevador.

Mal toquei no trinco e o telefone tocava. Atendi.

– Alô!

- Sr. Fernando, é da lavanderia La Maris.

- Pois não! - respondi

- A respeito do seu terno azul-marinho, ele já está pronto faz dias.

- Mas, estou sem tempo - eu disse

- O senhor passe hoje aqui faça o favor, ou daremos seu terno - disse ela, batendo o telefone na minha cara.

Acabei saindo apressado.

Chegando á lavanderia deparei com uma jovem atrás do balcão, que eu nunca vira antes. Atendia pelo nome de Dolores. Usava um penteado esquisito, mascava um chiclete estrondoso e parecia ter um imenso prazer em deixar as pessoas esperando.

A lavanderia estava cheia, pelo menos umas dez pessoas.

Ela, a tal Dolores, me chamou.

– Até que enfim o senhor apareceu - disse ela.

- Desculpe, mas eu não tive tempo de vir antes. Trabalho demais! - disse eu.

- Esta insinuando que eu não trabalho demais? - perguntou ela.

- Não, senhorita. Me referia à minha falta de tempo. - respondi - Bem, pode me trazer meu terno, por obséquio? - acrescentei.

Ela não me respondeu e arregalou os olhos para a porta. Então, virei - me para olhar.

Uma jovem de baixa estatura, olhos puxados e vestindo um traje oriental, estava parada à porta da lavanderia. Dolores correu para dentro, voltou com um embrulho e o entregou à jovem.

A figura lembrava uma frágil boneca chinesa, tinha pele de porcelana, usava um chapéu chinês. Ela pegou o embrulho, agradeceu numa espécie de reverência oriental. E saiu em movimentos rápidos.

- Sr. Fernando, vou buscar o terno - disse Dolores.

Enquanto esperava, recordava-me da figura que saíra há pouco. Olhei para fora, o tempo estava feio, parecia que ia chover. Dolores voltou e me deu o terno.

- Obrigado! - respondi.

Ao sair, pisei num envelope caído à porta, olhei para trás, Dolores havia desaparecido por detrás do balcão.

Peguei-o e resolvi correr para escapar da chuva.

Entrei no carro e abri o envelope. Era uma passagem com um nome quase ilegível. Destino: Xangai. Só então liguei as coisas, devia ser da jovem chinesinha, ela estava apressada. A data da passagem era vinte e três e estávamos no dia vinte e dois.

Olhei à volta e nem sinal dela. Desci do carro e tentei caminhar em direção ao metrô, talvez ainda pudesse encontrá-la.

Da escada rolante, olhei a multidão na plataforma e avistei-a. Pequena, ela se desviou entre as pessoas. E quando quase consegui alcançar seu braço, ela sumiu de novo, com a multidão que se apertava metrô adentro.

Pensei em como iria achá-la.

Resolvi, no maior sacrifício, voltar à lavanderia. Indaguei sobre a chinesinha com a antipática figura de Dolores. Mas a má vontade dela, quase me desanimou.

- Dolores, trata-se de uma passagem. Com data marcada e para amanhã - disse eu.

- Está bem! Mas antes tenho de dar um telefonema.

- Santo Deus! - pensei comigo.

Ela fez a tal ligação, parecia que falava com alguém muito íntimo, pois se escancarava de rir ao telefone e se não ria, estourava uma bola de chiclete enorme.

Esperei uns quatro ou cinco minutos até que ela desligasse o telefone.

Voltou. Me deu um nome. Akitami.

- Como? - repeti - Akitami?

- É surdo?

- Tem sobrenome?

- Na ficha não diz.

– É ela?

- Não sei.

- Tem um telefone?

- Só endereço: Rua Chamoios, 557.

Anotei o endereço e saí.

Voltei pra casa e olhei num mapa da cidade. O tal endereço ficava num bairro muito afastado.

Chamei Amanda, uma amiga, para me acompanhar.

Fomos com meu carro. Durante o trajeto, Amanda dormiu.

Depois de entrar em algumas ruas sem nome, desertas, e sem vermos uma pessoa sequer para dar informações, achamos o dito endereço.

Em frente à casa com o referido número havia uma placa gigante de neon onde estava escrito "Boite Lumière".

Descemos do carro, toquei a campainha. Um jovem, também oriental, abriu a porta.

- Boa tarde, procuro por Akitami - disse eu.

O jovem fechou a porta na minha cara. Mas resolvi bater novamente. Ele abriu-a outra vez dizendo: - Não conheço ninguém Akitami.

- É uma jovem de baixa estatura, traços chineses.

- Espere aqui.

Veio uma garçonete nos atender. 

- Vocês procuram uma jovem oriental?

- Sim, uma chinesinha.

– Ela saiu.

- Podemos esperar?

- Entrem! - disse a moça.

Lá dentro havia uma penumbra perturbadora, mal podíamos enxergar as mesas.

A garçonete nos ofereceu drinques, e uma mesinha num canto.

Vieram as bebidas. Os copos eram compridos, saindo deles uma estranha fumaça colorida. Ficamos ali, bebendo e conversando.

De repente, tudo começou a girar. As luzes da boate acenderam-se, um globo no centro da sala começou a rodar. Uma estranha fumaça, tomou conta do recinto. E começaram a surgir algumas figuras bizarras.

Amanda ria e se divertia, achando tudo normal.

Alguém me convidava para dançar, mas em meio à penumbra, mal vi seu rosto.

Quando olho para os lados, Amanda havia sumido!

Chamei o garçom, e indaguei sobre ela, mas ninguém a vira.

Uma dançarina aproximou-se de mim, tinha um rosto pálido e imensos olhos castanhos. Em sua boca, um batom marrom escuro.

Perguntei se ela conhecia a chinesinha.

- Somos amigas - respondeu. - O que deseja com ela? - perguntou em seguida.

- Tenho algo para entregar-lhe.

A dançarina se aproximou de meus ouvidos e disse:

– Não devia ter vindo aqui. Em seguida desapareceu.

Fiquei angustiado, solitário ali na mesa.

Comecei a gritar pelo nome de Amanda. Então, a dançarina reapareceu.

– Acalme-se - disse ela. - Há algo que o senhor precisa saber.

- Preciso entregar a passagem, a data é para amanhã, entende? Amanhã! - gritei.

- Deixe que eu entrego a passagem.

- Eu quero entregar pessoalmente!

- O senhor não sabe de nada. Não se envolva.

~ Qual o problema?

– Amanda? Akitami? Chinesinha? O senhor está louco! - disse ela, agarrando-me o braço e acrescentou: - Encontre-me agora na rua do canal. Você deve sair já daqui!

Levantei-me meio cambaleante e saí da boate. Lá fora, o luminoso estava apagado. Ninguém na rua, meu carro não estava mais ali. 

Lá na esquina, de um táxi, saltava alguém. Aproximei-me, era a chinesinha.

Gritei seu nome. Mas ela dobrou a esquina e foi em outra direção.

Eu gritava e comecei a correr... correr...

Senti o suor descendo em meu rosto. Até que tudo se apaga. Ouço um som estridente, que parece um telefone, mas não é...

Acordo! Que alívio! Não existia boate, nem chinesinha, nem lavanderia.

Levantei-me. No rádio anunciavam um dia muito quente.
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Gracéli Maria nasceu em Curitiba, bacharelou-se em letras na UFPR. Contista. Trabalhou como atriz de teatro. Apaixonada por arte, dedica-se à dança.

Fonte:
Isabel Florinda Furini (org.). 50 Contos por 14 Autores. 
Curitiba: JM, 2008.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 10 - Fome e Miséria


Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. 
Quando pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista 
[Dom Helder Câmara).

A fome aniquila o ser humano, alucina consciências, gera desespero. A fome rouba a honra e a altivez do homem, que sem forças para a luta entrega-se à languidez e assim é acusado de preguiça. Josué de Castro em seu livro Geografia da fome mostra bem este indesejável fenômeno.

A geografia da fome
mostra a distância traçada
entre quem tudo consome
e quem não consome nada.
Gonzaga da Silva - RN

Eu sei de uma negra cruz,
de tão negra não tem nome:
essa que o pobre conduz
pelo calvário da fome.
Sebastião Soares - RN

A tristeza me consome
diante desta crueldade!
A violência da fome
dizimando a humanidade.
Reinaldo Aguiar - RN

A miséria por capricho
sai bem cedo vasculhando...
Mexe mil latas de lixo
volta de mãos abanando.
Minervino Wanderley - RN

É o abuso da riqueza
e o desprezo à educação
que põe sobre a nossa mesa
a fome, em lugar do pão.
Sônia Sobreira da Silva - RJ

Poderosa, ela se ajeita
e entre o bem e o mal permeia
a infame fortuna feita
à custa da fome alheia...
Divenei Boseli - SP

Quando a miséria se ajeita,
na ausência d'água e de pão,
faminta a fome se deita
na esteira que forra o chão!
Prof. Garcia - RN

A miséria devora os seres humanos. A miséria crônica é uma patologia social que poderia e deveria ser evitada. Mas como evitar a fome se os Estados preferem gastar com armamentos? Não podemos deixar de lembrar o título completo do livro de Josué de Castro: Geografia da fome: o dilema brasileiro - pão ou aço. Parece que o mundo prefere mesmo o aço.

A fome que o mundo assola
tem raízes na injustiça:
o pobre vive de esmola
sob o jugo da cobiça!
Angélica Villela Santos - SP

A arma mais poderosa
que o homem já inventou
foi esta fome horrorosa
que a tantos já dizimou.
Gonzaga da Silva - RN

O triste da caminhada,
na longa estrada da vida,
é ver a fome estampada
em tanta gente excluída!
Hermoclydes Siqueira Franco - RJ

Não pode haver raciocínio
quando a miséria, sem nome,
invade qualquer domínio
e o domina pela FOME!...
Hermoclydes Siqueira Franco - RJ

Se o teu riso é de grandeza,
vaidade que te consome,
- olha bem para a tristeza
do pranto de quem tem fome.
Fernando Câncio - CE

Sentir fome e não comer
porque não tem condição
pode mesmo comover
quem tem duro coração.
Aracy da Silveira Cavalcante - CE

Mas como se comover se em geral a fome em sua forma mais terrível está longe dos nossos olhos? Nossos amigos não passam fome, nossos vizinhos não passam fome, no meio social que frequentamos não vemos ninguém passando fome... Os meios de comunicação não mostram os bolsões de fome, preferem mostrar o "progresso" das vitrines... É como diz o provérbio: O que os olhos não veem o coração não sente! Só mesmo uma convulsão social drástica para alertar o mundo.

As revoltas não têm fim
e explodem cada vez mais,
que a fome acende o estopim
das convulsões sociais!
João Freire Filho - RJ

Treme o mundo e se consome
ao som de um terrível brado:
- o grito que sai com fome
da boca do ínjustiçado!
A. A. de Assis - PR

Metade da humanidade
infelizmente não come;
e não dorme a outra metade,
temendo os que passam fome,
Geraldo Amâncio - CE

Há mil gritos e protestos
na fila ingente da fome,
onde a migalha dos restos
não chega pra quem não come!
Delcy Canalles - RS

Hoje a fome encontra abrigo
nos campos de plantação...
Violência é plantar o trigo
e não ter direito ao pão,
Arlindo Tadeu Hagen - MG

Quando os muros da opressão
enfim forem derrubados,
o mundo terá mais pão
e menos injustiçados.
Gonzaga da Silva - RN

Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. 
Natal/RN, abril de 2019.

Malba Tahan (Mil Histórias sem Fim) Narrativa 14 e 15


Da janela de minha casa, em Bagdá, observava uma tarde o vaivém dos aventureiros e beduínos, quando a minha atenção foi despertada por um fato que me pareceu estranho e muito singular.

Um homem, ricamente trajado, aproximou-se de um velho mercador que oferecia à venda, sob largo toldo, uma bela coleção de jarros de diversas formas. Depois de escolher, com um empenho que me pareceu exagerado, a peça que mais lhe interessava, o desconhecido pagou ao vendedor, sem hesitar, o preço exigido. Isso feito, encaminhou-se para o meio da rua e levantando, com ambas as mãos, o jarro atirou-o com toda força contra uma pedra, espatifando-o.

- É um louco! - murmurei. E, como não sei resistir à atração que sobre mim exerce o ímã da curiosidade, fui sem demora juntar-me ao grupo dos que faziam roda ao desatinado comprador.

O homem, entretanto, sem se preocupar com os árabes e cameleiros que bem de perto o observavam, abaixou-se e começou a ajuntar vagarosamente os cacos, como se lhe movesse a intenção de reconstituir o que ele mesmo destruíra inexplicavelmente.

Sheiks e caravaneiros que cruzavam a rua, vendo o caminho impedido pelo ajuntamento, gritavam do alto dos maharis (camelo de sela):

- Passagem! Eia! Por Alá! Passagem!

Ao cabo de algum tempo tornou-se enorme a confusão; os mais exaltados, proferindo insultos e blasfêmias de toda espécie, tentavam maldosamente atropelar e pisar com seus camelos os curiosos parados em grupos no meio da rua.

Temendo que aquele incidente degenerasse num conflito mais sério, deliberei intervir. Aproximei-me do desconhecido, tomei-o pelo braço e disse-lhe:

- Quero levar-vos, meu amigo, até a minha casa! Tenho em meu poder diversos jarros persas e chineses com desenhos admiráveis.

Sem se mostrar surpreendido ou contrariado pelo intempestivo convite, o jovem acompanhou-me sereno, sob o olhar atônito da multidão!

Ficamos sós. Ofereci-lhe, com demonstrações de alta cerimônia, tâmaras e água, mas ele nada aceitou. Quis apenas provar o pão e o sal da hospitalidade.

Teria, afinal, o meu estranho hóspede perdido o uso da razão?

- Onde estão os teus jarros chineses? - perguntou-me, percorrendo insistente, com o olhar, todos os cantos da sala.

- Peço perdão, ó sheik! - respondi -, faltei há pouco à verdade quando vos disse possuir jarros da China e da Pérsia. Queria, apenas, inventar um pretexto para arrancar-vos do meio daqueles exaltados muçulmanos! Bedal matghechoc ôlloh fê-vechoc! (1) Bem vejo que sois estrangeiro e desconheceis, por certo, o gênio arrebatado e violento do povo desta terra. Rara é a semana em que não assistimos, pelas praças e ruas, distúrbios e correrias. Às vezes, por causa de ninharias e frivolidades, homens são assassinados e ricas lojas saqueadas em poucos instantes. Os guardas não dominam os ímpetos sanguinários da população. Se houvesse, há pouco, um conflito com os caravaneiros turcos, a vossa vida estaria em grave perigo!

Riu o desconhecido ao ouvir a minha explicação.

- Uallah! (Por Deus!) - exclamou. - Julgavas, então, que eu fosse um fraco, um demente? É interessante! Vou contar-te a minha história e o motivo que me levou a quebrar um jarro no meio da rua.

Antes, porém, de dar início à prometida narrativa, o jovem maníaco sentou-se sobre uma almofada (que cuidadosamente ajeitara), colocou diante de si, sobre o tapete, dois fragmentos do jarro que ele, pouco antes, estilhaçara em plena rua e pôs-se a observá-los com a atenção de um obstinado.

Pareceu-me que seria mais delicado ou talvez mais cauteloso não perturbar o meu hóspede. Acomodei-me, sem-cerimônia, diante dele, acendi o meu delicioso narguilé e entreguei-me à tarefa de reparar e estudar as estranhas atitudes do lunático quebrador de vasos.

Teria, no máximo, trinta e um ou trinta e dois anos; seus olhos eram azulados; sua barba clara tinha reflexos cor de ouro vivo. Ostentava, com natural elegância, um aparatoso turbante de seda amarela no qual cintilava uma pequena pedra verde-escura.

De repente, a fisionomia do jovem tornou-se radiante, como se surpreendente inspiração o iluminasse. Ergueu o rosto e disse-me risonho:

- Afinal, o sultão perdoou o segundo condenado e este, sem querer, salvou o companheiro!

Aquela frase, para mim, não tinha sentido. Parecia disparate.

- Que sultão é esse, ó jovem? - interpelei-o com exagerada complacência, na certeza de que falava a um infeliz demente.

- Lamentável distração a minha! - exclamou com vivacidade. - Acreditei que fosses capaz de adivinhar os meus pensamentos e seguir o rumo da história que estive, aqui sentado, a arquitetar! Conforme prometi, vou contar-te o enredo de minha vida, e esclarecer os episódios que me forçaram a esfacelar o jarro diante da tenda de um mercador. E tudo compreenderás.

E na linguagem límpida e correta de um homem educado e culto, contou-me o seguinte:

Rafi An-Hari é o meu nome. Meu pai, que era um hábil negociante, fazia de quando em vez uma viagem a Sirendib (antigo nome do Ceilão), aonde ia em busca de especiarias que ele revendia com apreciáveis lucros aos seus agentes de Basra.

Quis, porém, o destino que meu pai viesse a morrer em consequência de um naufrágio, desaparecendo com todas as riquezas e dinheiro que transportava. Ficou a nossa família em completo desamparo. Forçado pelas necessidades da vida a procurar trabalho, empreguei-me como escriba em casa de um sheik muito rico chamado Ibraim Hata. 

Uma noite, conversando casualmente com o meu patrão, disse-lhe que sabia contar várias histórias.

- Se é verdade o que acabas de revelar - ajuntou o sheik -, vou dar-te, em minha casa, o emprego de contador de histórias. Passarás a ganhar o triplo de teu atual ordenado!

Aquela decisão do meu generoso amo causou-me não pequena alegria. Passei a exercer no palácio de Ibraim Hata um cargo invejável: contador de histórias. Todas as noites, invariavelmente, o sheik Ibraim reunia em sua casa vários parentes e amigos; e eu, na presença dos ilustres convidados, contava uma lenda ou uma fábula qualquer. 

Em geral, finda a narrativa, os ouvintes mais entusiasmados felicitavam-me com palavras de estímulo e davam-me ainda peças de ouro. Vivi assim, regaladamente, durante meses semeando na imaginação dos que me ouviam todos os sonhos e fantasias dos contos árabes.

Hoje, finalmente, pela manhã, fui avisado de que haviam chegado do Egito vários amigos do sheik, mercadores ricos e prestigiosos, que seriam incluídos entre os meus numerosos ouvintes para o conto da noite.

Em outra ocasião tal acontecimento seria para mim motivo de júbilo; agora, porém, veio causar-me um grande pavor, deixando-me o coração esmagado por uma angústia sem limites. E a razão é simples: tendo desfiado, sem cessar, até a minha última pérola, o colar das minhas histórias e fábulas, nada mais restava do meu tesouro! 

Como inventar, de momento, um conto interessante e maravilhoso capaz de agradar aos meus nobres e exigentes ouvintes?

Preocupado com a grave responsabilidade que pesava sobre meus ombros, deixei pela manhã o palácio de meu amo e deliberei caminhar ao acaso, pelas ruas da cidade, pois tinha a esperança de encontrar alguém que me pudesse tirar do embaraço em que me achava. Procurei nos cafés os contadores profissionais de maior fama e consultei-os sobre as melhores narrativas que conheciam; apesar da recompensa que eu prometia, não consegui ouvir de nenhum deles história que fosse nova para mim; citavam-me algumas - é verdade - mas todas elas já tinham sido por mim mesmo narradas ao sheik.

O desânimo - acompanhado de uma inquietação perturbadora - já começava a esmagar as fibras restantes de minha energia, quando me veio, não sei por quê, à lembrança, um antigo provérbio hindu: “Um jarro quebrado alguma coisa recorda.” “Quem sabe”, pensei, agarrando-me ainda uma vez à esperança, “quem sabe se um jarro partido não me fará lembrar uma história há muito esquecida no meu passado pela caravana indolente da memória?”

Conta-se (Alá, porém, é mais sábio!) que o famoso poeta Moslini ben el Valid foi, certa vez, vítima de grave atentado. Fizeram cair sobre ele, atirado do alto de um terraço, grande e pesadíssimo jarro. Veio o jarro espatifar-se aos pés do poeta e um dos estilhaços, saltando impelida pela violência do choque, foi ferir de leve o rosto de Moslini. O jarro, fabricado por um oleiro de Medina, trazia em letras douradas, sobre fundo azul, a seguinte inscrição:

“O que se adquiriu pela força só se pode conservar pela doçura.”

O fragmento que feriu Moslini era, precisamente, aquele que continha a palavra “doçura”.

Aconselharam ao poeta que levasse o caso ao conhecimento do juiz. A culpada (fora uma jovem ciumenta a autora do atentado) devia ser punida. Recusou-se, porém, Moslini, a apresentar queixa ou acusação, dizendo: “Não posso pedir castigo ou punição para uma pessoa que me feriu com tanta ‘doçura’.”

Confirmava-se, mais uma vez, o provérbio: “Um vaso quebrado alguma coisa recorda.”

Movido por essa ideia, adquiri um jarro, depois de meticulosa escolha e pondo em execução o plano delineado, limitei-me a reduzi-lo a estilhaços no meio da rua.

- E o processo deu resultado? - perguntei, interessado. - Veio à vossa memória, depois do sacrifício, alguma história interessante, digna de ser contada a um auditório seleto?

A minha ingenuidade fez rir novamente o inteligente Rafi An-Hari.

- Ualá! - exclamou, batendo-me no ombro. - O tal jarro, depois de partido, fez-me recordar um conto, muito original, que poderá divertir os viajantes ilustres e agradar ao bom e generoso sheik Ibraim. E sabes, meu amigo, que história é essa?

- Interessa-me conhecê-la - respondi. - Deve ser muito original.
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Nota
1 É preferível agora não enganar, e dizer-te logo a verdade!

Continua…

Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim.

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Franccis Yoshi Kawa e Helena Douthe (Lançamento do livro Namida Taiko*)


Um livro esperado pela comunidade japonesa no Brasil é "Namida Taiko", dos romancistas Franccis Yoshi Kawa e Helena Douthe.

O livro será lançado em
29 de fevereiro,
a partir das 18 horas,
na NIKKEI de Curitiba,
rua  Padre Júlio Saavedra, 598 – Bairro Uberaba,
Curitiba - PR .

Em entrevista concedida para a Revista Cazemek os autores falam sobre a criação da história do livro:

Durante viagem ao norte do Paraná em junho deste ano, visitamos a Colônia Esperança que fica no município de Arapongas. De início foi difícil imaginar que pudesse surgir uma aventura, um romance, algo mirabolante que pudesse dar sustentação à narrativa, sem ofender ou incomodar os ex moradores e moradores da colônia. Apesar de todos os personagens serem fictícios, sempre há alguém que tenta associar a alguém ou vincular a algo que aconteceu. Helena como sempre, deu uma chacoalhada com suas ideias. Criamos quatro personagens que não fazem parte da colônia, chegam disfarçados de agricultores e se transformam em protagonistas de um enredo cheio de aventura, drama, amor e fantasia.”

“Tudo é muito contido para se manter dentro do comportamento de moradores de uma colônia japonesa. O capítulo mais difícil foi imaginar o que seria a vida nos anos 40.”

Franccis e Helena apresentam uma história recheada de bom humor, drama, amor e dor, onde o taiko deixa de ser apenas um simples instrumento de percussão. Uma trama complexa baseada em honra e disciplina, conta a saga de uma jovem lutando até as últimas consequências para conquistar seu sonho.
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 Sobre os Autores

Franccis Yoshi Kawa é brasileiro, natural de Arapongas, Paraná. Formado em Ciências Contábeis pela UFPR.  Participou da Oficina "Como Escrever Livros", da escritora Isabel Furini. Publica no site Recanto das Letras. É autor do romance “Ajoelhar jamais” - em parceria com Helena Douthe. Cadeira n. 38 da AVIPAF.
 
Helena Douthe é brasileira, natural de Curitibanos, Santa Catarina. Graduada em Administração pela PUC-PR. Sempre teve inclinação para a literatura e a música. Compositora, escritora de poesias e romancista. Helena escreve seus livros em parceria com Franccis Yoshi Kawa. Helena também escreve para o público infantil. Cadeira n. 39 da AVIPAF.
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Glossário do Blog:
* Taiko é a denominação usualmente dada ao instrumento de percussão japonesa que surgiu há mais de 2000 anos e que já serviu a propósitos militares, religiosos, teatrais, musicais e práticos, devido ao seu som vibrante, vigoroso e místico. 

Contudo, Taiko não é, unicamente, a simples tradução para tambor japonês. A palavra carrega um significado mais amplo e profundo, de forma que serve para definir tanto o gênero dos instrumentos japoneses de percussão quanto a prática dessa arte, que não se resume a simplesmente bater tambores, mas sim, a incorporar e expressar sentimentos, além de por em prática valores morais e sociais em busca de um constante aperfeiçoamento do ser.

A Arte do Taiko é a arte do aprimoramento diário, da esmerilhação da alma, e para exercê-la é necessária força física, mental e espiritual, bem como disciplina, rigor, força de vontade, energia, união e harmonia. É uma arte normalmente coletiva que exige a comunhão espiritual daqueles que a buscam. 

Existem diversos tipos de taiko, variando em tamanho, formato, material, método de fabricação, método de afinação, origem e forma de uso.

* Namida: literalmente significa lágrimas.

Fontes:
- Texto do lançamento enviado por Isabel Furini
- Sobre a criação do livro: Revista Cazemek 
- Sobre os autores: site da AVIPAF (Academia Virtual Internacional de Poesia, Artes e Filosofia) 
- Sobre o Taiko no site Ishindaiko 
- Foto do livro: Editora Insight