quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Baú de Trovas XV (para descontrair)


Se a moda seguir assim,
sempre encurtando os vestidos,
está bem próximo o fim
das fábricas de tecidos...
A. A. DE ASSIS
- - - - - -
Com uma festinha à-toa,
que não requer muito estudo,
qualquer secretária boa
vence um patrão carrancudo...
APARÍCIO FERNANDES
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Comigo guardo escondidas,
debaixo do meu colchão,
as duplicatas vencidas,
que nunca mais vencerão...
ARMANDO GONÇALVES MIGUEIS
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Quando te vais confessar,
bem que eu quisera que Deus
me permitisse constar
de algum pecado dos teus.
BALTHAZAR DE GODOY MOREIRA
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Ele mente e se arrebata,
com tal veemência e desplante,
que, se um besouro ele mata,
vira o besouro elefante!
CAROLINA RAMOS
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Fui ao cinema contigo
e ficamos de mão dada.
Do nosso amor eu sei tudo,
do filme não soube nada!...
CECIL RAMON MODESTO
- - - - - -
Quando o doutor Serafim
deixou, rico, a medicina,
a Morto gemeu assim:
— Como vou ficar mofina!
CELSO FURTADO DE MENDONÇA
- - - - - -
Com aquele rebolado
que é tão fora do comum,
a mulher do delegado
também prende qualquer um...
COLBERT RANGEL COELHO
- - - - - –
Do pouco que sabe e tem,
vale-se muito a Maria:
não vai à escola, porém
dá aulas de anatomia.. .
DAVID DE ARAÚJO
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De tua boca engraçada,
fonte de loucos desejos,
eu nunca esperei mais nada
senão tolices e beijos.
DJALMA ANDRADE
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Diz o doutor: "A bebida
mata cedo o cachaceiro."
Mas, — ironia da vida —
o doutor morreu primeiro…
DURVAL MENDONÇA
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Quando eu era gato novo,
miava pelos telhados.
Hoje, que sou gato velho.
ninguém ouve meus miados...
EDSON MACEDO
- - - - - –
Ateu mais que outros ateus,
aquele duro nababo.
— Se alguém lhe dizia: "Adeus",
gritava logo: "Ah, diabo!"
ELIAS BARBOSA
- - - - - -
Se beijo desse sapinho,
como às vezes se apregoa,
tua boca pequenina
era beira de lagoa...
EVANDRO MOREIRA
- - - - - -
Os honestos, meu amigo,
esses bem poucos o são!
— Alguns, temendo o castigo,
sem nenhuma vocação...
HERALDO LISBÔA
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Vi um velhinho fitando
as tuas formas, menina,
assim como um surdo olhando
os rádios de uma vitrina...
ILDEFONSO DE PAULA
- - - - - –
No velório do Tião
tanto molharam as goelas,
que, com medo de explosão,
apagaram logo as velas.
JOAQUIM MACEDO FERNANDES
- - - - - -
Sem um gesto, sem um grito,
morre a sogra do Mateus.
E, no inferno, o Diabo, aflito,
exclama: — Valha-me Deus!
JORGE ROCHA
- - - - - -
Em plástica, o doutor diz:
— Que operação oportuna!
Diminuo este nariz
e aumento minha fortuna!...
MADALENA LÉA
- - - - - –
Desquitadas mãe e filha,
tem a neta igual fadário.
Conclusão: nessa família,
o desquite é hereditário.
NELSON VAZ
- - - - - -
A mulher, ou por vaidade,
ou por ser demais esperta,
depois de uma certa Idade,
não tem mais idade certa!
NERO DE ALMEIDA SENA
- - - - - -
Quando você me falou
que quatro filhos já tinha,
nesse instante se acabou
meu grande amor, queridinha...
PAULO EMÍLIO PINTO
- - - - - –
Certos críticos se impõem
como mestres de poesia...
Mas os versos que compõem,
santo Deus, que porcaria!
RODRIGUES CRÊSPO
- - - - - -
Seja lá pelo que for,
um dia nos desaponta:
— foi Deus que inventou o amor,
mas o Diabo tomou conta...
SEBASTIÃO NORONHA
- - - - - -
Seu critério nas consultas
- talvez um dos mais sutis –
é cobrar contas adultas,
pelas curas infantis.
SYLVIO MACHADO

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Lima Barreto (A Nova Califórnia)


Ninguém sabia donde viera aquele homem. O agente do Correio pudera apenas informar que acudia ao nome de Raimundo Flamel, pois assim era subscrita a correspondência que recebia. E era grande. Quase diariamente, o carteiro lá ia a um dos extremos da cidade, onde morava o desconhecido, sopesando um maço alentado de cartas vindas do mundo inteiro, grossas revistas em línguas arrevesadas, livros, pacotes...

Quando Fabrício, o pedreiro, voltou de um serviço em casa do novo habitante, todos na venda perguntaram-lhe que trabalho lhe tinha sido determinado.

— Vou fazer um forno, disse o preto, na sala de jantar.

Imaginem o espanto da pequena cidade de Tubiacanga, ao saber de tão extravagante construção: um forno na sala de jantar! E, pelos dias seguintes, Fabrício pôde contar que vira balões de vidros, facas sem corte, copos como os da farmácia —um rol de coisas esquisitas a se mostrarem pelas mesas e prateleiras como utensílios de uma bateria de cozinha em que o próprio diabo cozinhasse.

O alarme se fez na vila. Para uns, os mais adiantados, era um fabricante de moeda falsa; para outros, os crentes e simples, um tipo que tinha parte com o tinhoso.

Chico da Tirana, o carreiro, quando passava em frente da casa do homem misterioso, ao lado do carro a chiar, e olhava a chaminé da sala de jantar a fumegar, não deixava de persignar-se e rezar um "credo" em voz baixa; e, não fora a intervenção do farmacêutico, o subdelegado teria ido dar um cerco à casa daquele indivíduo suspeito, que inquietava a imaginação de toda uma população.

Tomando em consideração as informações de Fabrício, o boticário Bastos concluirá que o desconhecido devia ser um sábio, um grande químico, refugiado ali para mais sossegadamente levar avante os seus trabalhos científicos.

Homem formado e respeitado na cidade, vereador, médico também, porque o doutor Jerônimo não gostava de receitar e se fizera sócio da farmácia para mais em paz viver, a opinião de Bastos levou tranquilidade a todas as consciências e fez com que a população cercasse de uma silenciosa admiração a pessoa do grande químico, que viera habitar a cidade.

De tarde, se o viam a passear pela margem do Tubiacanga, sentando-se aqui e ali, olhando perdidamente as águas claras do riacho, cismando diante da penetrante melancolia do crespúsculo, todos se descobriam e não era raro que às "boas noites" acrescentassem "doutor". E tocava muito o coração daquela gente a profunda simpatia com que ele tratava as crianças, a maneira pela qual as contemplava, parecendo apiedar-se de que elas tivessem nascido para sofrer e morrer.

Na verdade, era de ver-se, sob a doçura suave da tarde, a bondade de Messias com que ele afagava aquelas crianças pretas, tão lisas de pele e tão tristes de modos, mergulhadas no seu cativeiro moral, e também as brancas, de pele baça, gretada e áspera, vivendo amparadas na necessária caquexia dos trópicos.

Por vezes, vinha-lhe vontade de pensar qual a razão de ter Bernardin de Saint-Pierre gasto toda a sua ternura com Paulo e Virgínia e esquecer-se dos escravos que os cercavam...

Em poucos dias a admiração pelo sábio era quase geral, e não o era unicamente porque havia alguém que não tinha em grande conta os méritos do novo habitante.

Capitão Pelino, mestre-escola e redator da Gazeta de Tubiacanga, órgão local e filiado ao partido situacionista, embirrava com o sábio. "Vocês hão de ver, dizia ele, quem é esse tipo... Um caloteiro, um aventureiro ou talvez um ladrão fugido do Rio."

A sua opinião em nada se baseava, ou antes, baseava-se no seu oculto despeito vendo na terra um rival para a fama de sábio de que gozava. Não que Pelino fosse químico, longe disso; mas era sábio, era gramático. Ninguém escrevia em Tubiacanga que não levasse bordoada do Capitão Pelino, e mesmo quando se falava em algum homem notável lá no Rio, ele não deixava de dizer: "Não há dúvida! O homem tem talento, mas escreve: 'um outro', 'de resto'..." E contraía os lábios como se tivesse engolido alguma cousa amarga.

Toda a vila de Tubiacanga acostumou-se a respeitar o solene Pelino, que corrigia e emendava as maiores glórias nacionais. Um sábio...

Ao entardecer, depois de ler um pouco o Sotero, o Candido de Figueiredo ou o Castro Lopes, e de ter passado mais uma vez a tintura nos cabelos, o velho mestre-escola saía vagarosamente de casa, muito abotoado no seu paletó de brim mineiro, e encaminhava-se para a botica do Bastos a dar dous dedos de prosa. Conversar é um modo de dizer, porque era Pelino avaro de palavras, limitando-se tão-somente a ouvir. Quando, porém, dos lábios de alguém escapava a menor incorreção de linguagem, intervinha e emendava. "Eu asseguro, dizia o agente do Correio, que..." Por aí, o mestre-escola intervinha com mansuetude evangélica: "Não diga 'asseguro' Senhor Bernardes; em português é garanto."

E a conversa continuava depois da emenda, para ser de novo interrompida por uma outra. Por essas e outras, houve muitos palestradores que se afastaram, mas Pelino, indiferente, seguro dos seus deveres, continuava o seu apostolado de vernaculismo. A chegada do sábio veio distraí-lo um pouco da sua missão. Todo o seu esforço voltava-se agora para combater aquele rival, que surgia tão inopinadamente.

Foram vãs as suas palavras e a sua eloquência: não só Raimundo Flamel pagava em dia as suas contas, como era generoso—pai da pobreza—e o farmacêutico vira numa revista de específicos seu nome citado como químico de valor.

II

Havia já anos que o químico vivia em Tubiacanga, quando, uma bela manhã, Bastos o viu entrar pela botica adentro. O prazer do farmacêutico foi imenso. O sábio não se dignara até aí visitar fosse quem fosse e, certo dia, quando o sacristão Orestes ousou penetrar em sua casa, pedindo-lhe uma esmola para a futura festa de Nossa Senhora da Conceição, foi com visível enfado que ele o recebeu e atendeu.

Vendo-o, Bastos saiu de detrás do balcão, correu a recebê-lo com a mais perfeita demonstração de quem sabia com quem tratava e foi quase em uma exclamação que disse:

—Doutor, seja bem-vindo.

O sábio pareceu não se surpreender nem com a demonstração de respeito do farmacêutico, nem com o tratamento universitário. Docemente, olhou um instante a armação cheia de medicamentos e respondeu:

— Desejava falar-lhe em particular, Senhor Bastos.

O espanto do farmacêutico foi grande. Em que poderia ele ser útil ao homem, cujo nome corria mundo e de quem os jornais falavam com tão acendrado respeito? Seria dinheiro? Talvez... Um atraso no pagamento das rendas, quem sabe? E foi conduzindo o químico para o interior da casa, sob o olhar espantado do aprendiz que, por um momento, deixou a "mão" descansar no gral, onde macerava uma tisana qualquer.

Por fim, achou ao fundo, bem no fundo, o quartinho que lhe servia para exames médicos mais detidos ou para as pequenas operações, porque Bastos também operava. Sentaram-se e Flamel não tardou a expor:

— Como o senhor deve saber, dedico-me à química, tenho mesmo um nome respeitado no mundo sábio...

— Sei perfeitamente, doutor, mesmo tenho disso informado, aqui, aos meus amigos.

— Obrigado. Pois bem: fiz uma grande descoberta, extraordinária. . .

Envergonhado com o seu entusiasmo, o sábio fez uma pausa e depois continuou:

— Uma descoberta... Mas não me convém, por ora, comunicar ao mundo sábio, compreende?

— Perfeitamente.

— Por isso precisava de três pessoas conceituadas que fossem testemunhas de uma experiência dela e me dessem um atestado em forma, para resguardar a prioridade da minha invenção... O senhor sabe: há acontecimentos imprevistos e...

— Certamente! Não há dúvida!

— Imagine o senhor que se trata de fazer ouro...

— Como? O quê? fez Bastos, arregalando os olhos.

— Sim! Ouro! disse, com firmeza, Flamel.

— Como?

— O senhor saberá, disse o químico secamente. A questão do momento são as pessoas que devem assistir à experiência, não acha?

— Com certeza, é preciso que os seus direitos fiquem resguardados, porquanto...

— Uma delas, interrompeu o sábio, é o senhor; as outras duas, o Senhor Bastos fará o favor de indicar-me.

O boticário esteve um instante a pensar, passando em revista os seus conhecimentos e, ao fim de uns três minutos, perguntou:

— O Coronel Bentes lhe serve? Conhece?

— Não. O senhor sabe que não me dou com ninguém aqui.

— Posso garantir-lhe que é homem sério, rico e muito discreto.

— E religioso? Faço-lhe esta pergunta, acrescentou Flamel logo, porque temos que lidar com ossos de defunto e só estes servem...

— Qual! E quase ateu...

— Bem! Aceito. E o outro?

Bastos voltou a pensar e dessa vez demorou-se um pouco mais consultando a sua memória... Por fim, falou:

— Será o Tenente Carvalhais, o coletor, conhece?

— Como já lhe disse...

— E verdade. E homem de confiança, sério, mas...

— Que é que tem?

— E maçom.

— Melhor.

— E quando é?

— Domingo. Domingo, os três irão lá em casa assistir à experiência e espero que não me recusarão as suas firmas para autenticar a minha descoberta.

— Está tratado.

Domingo, conforme prometeram, as três pessoas respeitáveis de Tubiacanga foram à casa de Flamel, e, dias depois, misteriosamente, ele desaparecia sem deixar vestígios ou explicação para o seu desaparecimento.

III

Tubiacanga era uma pequena cidade de três ou quatro mil habitantes, muito pacífica, em cuja estação, de onde em onde, os expressos davam a honra de parar. Há cinco anos não se registrava nela um furto ou roubo. As portas e janelas só eram usadas... porque o Rio as usava.

O único crime notado em seu pobre cadastro fora um assassinato por ocasião das eleições municipais; mas, atendendo que o assassino era do partido do governo, e a vítima da oposição, o acontecimento em nada alterou os hábitos da cidade, continuando ela a exportar o seu café e a mirar as suas casas baixas e acanhadas nas escassas águas do pequeno rio que a batizara.

Mas, qual não foi a surpresa dos seus habitantes quando se veio a verificar nela um dos repugnantes crimes de que se tem memória! Não se tratava de um esquartejamento ou parricídio; não era o assassinato de uma família inteira ou um assalto à coletoria; era coisa pior, sacrílega aos olhos de todas as religiões e consciências: violavam-se as sepulturas do "Sossego", do seu cemitério, do seu campo santo.

Em começo, o coveiro julgou que fossem cães, mas, revistando bem o muro, não encontrou senão pequenos buracos. Fechou-os; foi inútil. No dia seguinte, um jazigo perpétuo arrombado e os ossos saqueados; no outro, um carneiro e uma sepultura rasa. Era gente ou demônio. O coveiro não quis mais continuar as pesquisas por sua conta, foi ao subdelegado e a notícia espalhou-se pela cidade.

A indignação na cidade tomou todas as feições e todas as vontades. A religião da morte precede todas e certamente será a última a morrer nas consciências. Contra a profanação, clamaram os seis presbiterianos do lugar—os bíblicos, como lhes chama o povo; clamava o Agrimensol Nicolau, antigo cadete, e positivista do rito Teixeira Mendes; clamava o Major Camanho, presidente da Loja Nova Esperança; clamavam o turco Miguel Abudala, negociante de armarinho, e o cético Belmiro, antigo estudante, que vivia ao deus-dará, bebericando parati nas tavernas. A própria filha do engenheiro residente da estrada de ferro, que vivia desdenhando aquele lugarejo, sem notar sequer os suspiros dos apaixonados locais, sempre esperando que o expresso trouxesse um príncipe a desposá-la—, a linda e desdenhosa Cora não pôde deixar de compartilhar da indignação e do horror que tal ato provocara em todos do lugarejo. Que tinha ela com o túmulo de antigos escravos e humildes roceiros? Em que podia interessar aos seus lindos olhos pardos o destino de tão humildes ossos? Porventura o furto deles perturbaria o seu sonho de fazer irradiar a beleza de sua boca, dos seus olhos e do seu busto nas calçadas do Rio?

Decerto, não; mas era a Morte, a Morte implacável e onipotente, de que ela também se sentia escrava, e que não deixaria um dia de levar a sua linda caveirinha para a paz eterna do cemitério. Aí Cora queria os seus ossos sossegados, quietos e comodamente descansando num caixão bem feito e num túmulo seguro, depois de ter sido a sua carne encanto e prazer dos vermes...

O mais indignado, porém, era Pelino. O professor deitara artigo de fundo, imprecando, bramindo, gritando: "Na estória do crime, dizia ele, já bastante rica de fatos repugnantes, como sejam: o esquartejamento de Maria de Macedo, o estrangulamento dos irmãos Fuoco, não se registra um que o seja tanto como o saque às sepulturas do 'Sossego'. "

E a vila vivia em sobressalto. Nas faces não se lia mais paz; os negócios estavam paralisados; os namoros suspensos. Dias e dias por sobre as casas pairavam nuvens negras e, à noite, todos ouviam ruídos, gemidos, barulhos sobrenaturais... Parecia que os mortos pediam vingança...

O saque, porém, continuava. Toda noite eram duas, três sepulturas abertas e esvaziadas de seu fúnebre conteúdo. Toda a população resolveu ir em massa guardar os ossos dos seus maiores. Foram cedo, mas, em breve, cedendo à fadiga e ao sono, retirou-se um, depois outro e, pela madrugada, já não havia nenhum vigilante. Ainda nesse dia o coveiro verificou que duas sepulturas tinham sido abertas e os ossos levados para destino misterioso.

Organizaram então uma guarda. Dez homens decididos juraram perante o subdelegado vigiar durante a noite a mansão dos mortos.

Nada houve de anormal na primeira noite, na segunda e na terceira; mas, na quarta, quando os vigias já se dispunham a cochilar, um deles julgou lobrigar um vulto esgueirando-se por entre a quadra dos carneiros. Correram e conseguiram apanhar dois dos vampiros. A raiva e a indignação, até aí sopitadas no ânimo deles, não se contiveram mais e deram tanta bordoada nos macabros ladrões, que os deixaram estendidos como mortos.

A notícia correu logo de casa em casa e, quando, de manhã, se tratou de estabelecer a identidade dos dois malfeitores, foi diante da população inteira que foram neles reconhecidos o Coletor Carvalhais e o Coronel Bentes, rico fazendeiro e presidente da Câmara. Este último ainda vivia e, a perguntas repetidas que lhe fizeram, pôde dizer que juntava os ossos para fazer ouro e 0 companheiro que fugira era 0 farmacêutico.

Houve espanto e houve esperanças. Como fazer ouro com ossos? Seria possível? Mas aquele homem rico, respeitado, como desceria ao papel de ladrão de mortos se a coisa não fosse verdade!

Se fosse possível fazer, se daqueles míseros despojos fúnebres se pudesse fazer alguns contos de réis, como não seria bom para todos eles!

O carteiro, cujo velho sonho era a formatura do filho, viu logo ali meios de consegui-la. Castrioto, o escrivão do juiz de paz, que no ano passado conseguiu comprar uma casa, mas ainda não a pudera cercar, pensou no muro, que lhe devia proteger a horta e a criação. Pelos olhos do sitiante Marques, que andava desde anos atrapalhado para arranjar um pasto, pensou logo no prado verde do Costa, onde os seus bois engordariam e ganhariam forças...

Às necessidades de cada um, aqueles ossos que eram ouro viriam atender, satisfazer e felicitá-los; e aqueles dois ou três milhares de pessoas, homens, crianças, mulheres, moços e velhos, como se fossem uma só pessoa, correram à casa do farmacêutico.

A custo, o subdelegado pôde impedir que varejassem a botica e conseguir que ficassem na praça, à espera do homem que tinha o segredo de todo um Potosi. Ele não tardou a aparecer. Trepado a uma cadeira, tendo na mão uma pequena barra de ouro que reluzia ao forte sol da manhã, Bastos pediu graça, prometendo que ensinaria o segredo, se lhe poupassem a vida. "Queremos já sabe-lo," gritaram. Ele então explicou que era preciso redigir a receita, indicar a marcha do processo, os reativos—trabalho longo que só poderia ser entregue impresso no dia seguinte. Houve um murmúrio, alguns chegaram a gritar, mas o subdelegado falou e responsabilizou-se pelo resultado.

Docilmente, com aquela doçura particular às multidões furiosas, cada qual se encaminhou para casa, tendo na cabeça um único pensamento: arranjar imediatamente a maior porção de ossos de defunto que pudesse.

O sucesso chegou à casa do engenheiro residente da estrada de ferro. Ao jantar, não se falou em outra coisa. O doutor concatenou o que ainda sabia do seu curso, e afirmou que era impossível. Isto era alquimia, coisa morta: ouro é ouro, corpo simples, e osso é osso, um composto, fosfato de cal. Pensar que se podia fazer de uma coisa outra era "besteira". Cora aproveitou o caso para rir-se petropolimente da crueldade daqueles botocudos; mas sua mãe, Dona Emilia, tinha fé que a coisa era possível.

À noite, porém, o doutor percebendo que a mulher dormia, saltou a janela e correu direto ao cemitério; Cora, de pés nus, com as chinelas nas mãos, procurou a criada para irem juntas à colheita de ossos. Não a encontrou, foi sozinha; e Dona Emília, vendo-se só, adivinhou o passeio e lá foi também. E assim aconteceu na cidade inteira. O pai, sem dizer nada ao filho, saía; a mulher, julgando enganar o marido, saía; os filhos, as filhas, os criados—toda a população, sob a luz das estrelas assombradas, correu ao satânico rendez-vous no "Sossego". E ninguém faltou. O mais rico e o mais pobre lá estavam. Era o turco Miguel, era o professor Pelino, o doutor Jerônimo, o Major Camanho, Cora, a linda e deslumbrante Cora, com os seus lindos dedos de alabastro, revolvia a sânie das sepulturas, arrancava as carnes, ainda podres agarradas tenazmente aos ossos e deles enchia o seu regaço até ali inútil. Era o dote que colhia e as suas narinas, que se abriam em asas rosadas e quase transparentes, não sentiam o fétido dos tecidos apodrecidos em lama fedorenta...

A desinteligência não tardou a surgir; os mortos eram poucos e não bastavam para satisfazer a fome dos vivos. Houve facadas, tiros, cachações. Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur e mesmo entre as famílias questões surgiram. Unicamente, o carteiro e o filho não brigaram. Andaram juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno, uma esperta criança de onze anos, até aconselhou ao pai: "Papai vamos aonde está mamãe; ela era tão gorda..."

De manhã, o cemitério tinha mais mortos do que aqueles que recebera em trinta anos de existência. Uma única pessoa lá não estivera, não matara nem profanara sepulturas: fora o bêbado Belmiro.

Entrando numa venda, meio aberta, e nela não encontrando ninguém, enchera uma garrafa de parati e se deixara ficar a beber sentado na margem do Tubiacanga, vendo escorrer mansamente as suas águas sobre o áspero leito de granito—ambos, ele e o rio, indiferentes ao que já viram, mesmo à fuga do farmacêutico, com o seu Potosi e o seu segredo, sob o dossel eterno das estrelas.

Fonte:
BARRETO, Lima.   A Nova Califórnia - Contos.  Publicado em 1910.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 380

 


Arquivo Spina 7 (Maura Luza Martins Frazão)




Fábulas (A Inveja do Grilo)


Certo grilo vivia num espaçoso campo, revestido de uma relva verde e cheia de viço e onde de tempo em tempo se viam flores silvestres de todas as cores, embelezando e enchendo de agradável perfume toda a vasta extensão daquele campo.

Numa ensolarada manhã primaveril, enquanto o Sol despontava fazendo brilhar com seus raios as gotas de orvalho que pendiam das pétalas coloridas, ele cochilava escondido entre as folhas de um arbusto espesso. De repente, despertou assustado com o esvoaçar ligeiro de um inseto que se aproximava. Era uma borboleta leve e graciosa que enfeitava o espaço.

- Que maravilha! - exclamou o grilo encantado - que asas delicadas e que colorido tão harmonioso que se distribui complementando o conjunto!

Diante de um quadro tão espetacular - uma borboleta cheia de beleza e graça beijando as flores orvalhadas - o pobre grilo, olhando o seu corpinho escuro e suas asas transparentes, sentiu uma vívida inveja e pôs-se a lamentar com amargura e descontentamento:

- Como sou feio! Malformado, incapaz de alçar um voo ágil. Gostaria tanto de possuir uma parcela do encantamento da borboleta, com sua leveza e seu colorido encantador. Quem me dera poder experimentar uma metamorfose que me transformasse e me fizesse feliz como a borboleta.

Enquanto o pobre grilo se angustiava nesse pensamento, chegou um bando de crianças que, vendo a linda borboleta que por ali voava, investiu contra ela na mais louca perseguição, sem tomar conhecimento da existência do grilo que, infeliz, lamentava-se na escuridão do arbusto.

Voa daqui, voa dali, e a borboleta, embora ágil, acabou mesmo sendo caçada pelo grupo de crianças. Vendo tão lindo inseto preso sem poder se defender diante de tamanha crueldade, foi que o grilo reconheceu:

- Afinal, é muito bom ser assim tão feio como sou. A borboleta perdeu a liberdade, e quem sabe a vida, só por ser bela!

Então, aliviado, o grilo voltou a cochilar no seu galhinho despreocupadamente.

(autoria desconhecida)

Frazão Teixeira (Poemas Diversos)


AMORZANDO

Este longo viver já me fatiga,
mas há o amor; o amor é uma serpente
que às delicias da carne nos instiga,
fazendo-nos de Adão impenitente.

De ti quero o milagre que consiga,
pela magia do teu corpo ardente,
— das cinzas, que renasça a chama antiga,
— do amor, que eu não me canse e não me ausente.

Por este amor eu luto bravamente,
enquanto houver no frasco dos desejos
a ânsia derradeira dos meus beijos,

que um dia há de exaurir-se finalmente;
e este animal que existe em mim se afasta
restando apenas amizade casta.
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BREVE ENTRECHO

Eis-me aqui, triste e só, onde moramos.
Neste palco de eterno encantamento,
o amor que nos ligou por um momento
foi breve ato que então representamos.

Neste cenário, os pássaros nos ramos
vinham de longe em busca de alimento;
além, no rio, o gado ia sedento,
e nós, artistas, quanto nos amamos!

Tu foste a estrela, bela, sem igual,
e eu o galã, indômito, sem medo,
na trama de uma história tão banal.

Porém não foi feliz o autor do enredo;
sem ao menos ter sido original,
o desenlace veio muito cedo.
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O MILAGRE DE UMA IMAGEM

Sem possuí-la, o que de mim seria?
Vivia sem ninguém, desesperado;
a mim nada de bom acontecia,
enfim, eu era um pobre desgraçado.

Ela veio, coberta, e ainda fria,
mas, logo, diante dela, já sentado,
revelou-se-me a imagem que eu queria,
como um corpo de fêmea desejado.

Gozei-lhe as formas, tão sensuais e belas,
com brilho e nitidez de um claro dia.
Foram horas vividas de alegria.

Porém, como acontece a todas elas,
a conserto mandei num caminhão
a minha "comercial" televisão.
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TEMPO

Não te apresses, não vás assim voando,
pois, preso em tuas asas, vou contigo,
és um corcel alado sem comando,
e em teus arrancos loucos há perigo.

Sê calmo como antigamente, quando
em minha infância foste meu amigo;
é mister que progridas lento e brando
neste breve caminho que ora sigo,

onde és prazo da vida, mensurável
no espaço que me resta tão precário.
A Morte sempre chega em seu horário

e cumpre seu destino inexorável.
Detém-te, Tempo, escuta o que te peço,
minha viagem não terá regresso!
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UMA MENINA E UM RAPAZ

Sempre via passando pela rua
a menina de encantos celestiais;
seu sorriso a beleza lhe acentua,
sua graça ela exibe até demais.

Uma saudade logo se insinua
na lembrança sentida de um rapaz:
sua ausência mais triste fez a rua,
como tristes meus olhos ela faz.

Nos meus braços, à luz sutil da lua,
- sonho impossível — eu quisera tê-la,
mas Deus lhe deu para morada sua

o céu, onde é talvez errante estrela,
que vejo nos meus sonhos, clara e nua,
eu que daria um mundo para vê-la.

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

Fernando Sabino (Conversa de Botequim)


— Essa rainha da Inglaterra vai acabar entrando pelo cano.

— Por quê?

— Vir no Brasil uma hora dessas? Pau comendo solto por aí...

— Tem polícia pra proteger ela, que é que há?

— Polícia? A polícia mesmo é que está baixando o pau, armando bochincho...

— Psiu, fala baixo, crioulo. Tá querendo ir em cana? Meu chapa! Solta mais uma, bem gelada!

— Vi o retrato dela na capa duma revista: até que é uma coroa bem apanhada. Nós vamos tomar mais uma?

— Vamos. Te aguenta aí que quem paga sou eu. Hoje estou com o tutu.

— O rei também vem?

— Que rei?

— Marido da rainha.

— Tu é mesmo crioulo doido: o marido dela não é rei, é príncipe.

— Quem te disse isso?

— Vai por mim.

— Essa não! Marido de rainha só pode ser rei. Príncipe é filho.

— Pois o dela é príncipe. Deixa pra lá, tu não entende disso: é coisa de inglês.

— Um cara aí me disse que ela vai inaugurar a ponte Rio—Niterói.

— Só se for nadando: a ponte ainda nem começou!

— Diz também que ela quer ver o Pelé jogar.

— Cariocas e paulistas. Eu tou nessa boca.

— A gente devia ter uma também, até que seria bacana.

— Uma o quê?

— Uma rainha.

— Tu tá com essa rainha na cabeça, que é que há?

— Por que é que não pode ter?

— Porque aqui não é reinado, é presidência, só por isso. Essa já não tá tão gelada.

— Uma rainha era capaz de consertar essa joça. Pra te falar a verdade... Posso falar a verdade?

— Pode. Mas fala baixo, crioulo, que não tou pra entrar em fria. Olha o doutor aí na outra mesa ouvindo a gente. Acaba essa e vamos pedir outra mais gelada.

— E daí? Tou falando o que todo mundo sabe: que esse país tá uma joça. E tá mesmo.

— Pronto, começou a ignorância. Continua assim, que eu vou puxando.

— Só uma rainha pra dar jeito nessa gente, botar respeito. Enquadrar essa polícia, esses milicos.

— Com essa eu me mando. Garotão! Suspende a brama, traz a nota! Tu ainda vai se dar mal, crioulo.

— Pera aí! Não tou falando nada demais. Só tou falando que uma rainha mesmo de verdade ficava no trono até morrer, todo mundo respeitava ela, não tinha esse negócio de toda hora tirar o presidente e botar outro. Tou certo ou não tou?

— Tu tá é no fogo, olha aí: entornou a lourinha.

— No tempo do Getúlio não tinha dessas coisas: Getúlio era feito uma rainha.

— Não tinha? E o fim que ele teve? Para com essa conversa de comunista, crioulo, que tu ainda vai ver o sol nascer quadrado. A gente já não tivemos rainha? Princesa Isabel, Pedro II, essas coisas? E deu certo? Me diga se deu certo.

— Pede outra cerveja pra gente chulear a conversa.

— Então muda de assunto. Para de falar nessa rainha, que já tá enchendo.

— Então no que é que a gente vai falar?

— Sei lá. Melhor ficar calado do que ficar falando besteira.

— Mas tu concorda que nem conversa boa a gente pode ter mais.

— Ah, isso eu concordo. Olha aí, essa tá que é uma beleza de gelada.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 379

 


Arquivo Spina 6 (Solange Colombara)

 











Nota:

Ressuda epicédio = transpiração poética.

Stanislaw Ponte Preta (A Velha Contrabandista)


Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava pela fronteira montada na lambreta, com um bruto saco atrás da lambreta. O pessoal da alfândega — tudo malandro velho — começou a desconfiar da velhinha.

Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da alfândega mandou ela parar. A velhinha parou e então o fiscal perguntou assim pra ela:

— Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com esse saco aí atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco?

A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais os outros, que ela adquirira no odontólogo, e respondeu:

— É areia!

Aí quem sorriu foi o fiscal. Achou que não era areia nenhuma e mandou a velhinha saltar da lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o fiscal esvaziou o saco e dentro só tinha areia. Muito encabulado, ordenou à velhinha que fosse em frente. Ela montou na lambreta e foi embora, com o saco de areia atrás.

Mas o fiscal ficou desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia com areia e no outro com muamba, dentro daquele maldito saco. No dia seguinte, quando ela passou na lambreta com o saco atrás, o fiscal mandou parar outra vez.

Perguntou o que é que ela levava no saco e ela respondeu que era areia, uai! O fiscal examinou e era mesmo. Durante um mês seguido o fiscal interceptou a velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia.

Diz que foi aí que o fiscal se chateou:

— Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com quarenta anos de serviço. Manjo essa coisa de contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça que a senhora é contrabandista.

— Mas no saco só tem areia! — insistiu a velhinha. E já ia tocar a lambreta, quando o fiscal propôs:

— Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não apreendo, não conto nada a ninguém, mas a  senhora vai me dizer: qual é o contrabando que a senhora
está passando por aqui todos os dias?

— O senhor promete que não "espáia"? — quis saber a velhinha.

— Juro — respondeu o fiscal.

— É lambreta.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

Apollo Taborda França (Grandes Temas da Literatura) O Poema 2, final


Paulo Corrêa Lopes
Itaqui/RS, 1898 – 1957, Porto Alegre/RS

POEMA

Quando eu falo ficas calada
e o teu silêncio põe um perfume de sonho
em minhas palavras.
Se eu pudesse te dizer
tudo o que anda nos meus olhos
depois que meus olhos te encontraram!

Se eu pudesse te dizer um pouco ao menos
do meu amor!

Se eu pudesse falar sobre o meu amor
verias sóis caindo sobre o mundo
verias mares estranhos terras distantes
cantando cantando!

Se eu pudesse falar sobre o meu amor
ouvirias clarins de guerra
longe vibrando entre montanhas!

Se eu pudesse te dizer
tudo o que anda nos meus olhos
depois que os meus olhos te encontraram,,.
****************************************

Noel Nascimento
Ponta Grossa/PR, 1925 – 2013, Curitiba/PR

O POEMA DO BEM

Não consta em antologia
ou num livro de poesias
o mais belo dos poemas.

Poema no ar,
revoada de palavras
— arco-íris nas asas —
anunciando a nova primavera.
Bálsamo aramaico
de arabescos milagrosos,
verso bíblico
de palavras semeadas
e frutificando amores.
Perene poesia
de bem-aventurança
e glória dos humildes.
Poema puro,
poema santo,
forma de esperança.
A fé faz ouvi-lo
e compreendê-lo,
repicam-no os sinos,
cantam-no os pássaros,
poema eterno,
Ruem os impérios,
mas permanece a poesia
do Sermão da Montanha.
****************************************

Alziro Zarur
Rio de Janeiro/RJ, 1914 -1979

POEMA AO DEUS DIVINO

O Deus que é o Perfeito, e que ora eu tento
Cantar em versos de sinceridade,
Eu nunca O vi, como em nenhum momento
Vi eu o vento ou a eletricidade.

Mas esse Deus, que é o meu eterno alento,
Deus de Amor, de Justiça e de Bondade,
Eu, que O não vejo, eu O sinto de verdade,
Como à eletricidade, como ao vento.

E O sinto na ânsia purificadora,
Na manifestação renovadora
Do Belo, da Pureza, da Afeição.

Com ele falo em preces inefáveis,
Envolto em vibrações inenarraráveis,
Que me trazem clarões da Perfeição.

Pois creio é nesse Deus imarscecível
Que ampara a Humanidade imperfeitíssima;
Deus de uma Perfeição inacessível
A humana indagação falibilíssima.

Fonte:
Apollo Taborda França. 10 grandes temas (clássicos) da literatura. Curitiba/PR: Gráfica Vitória, 1989.

Arthur de Azevedo (A Praia de Santa Luzia)


Maurício casara-se muito cedo, aos dezenove anos, e era feliz, porque ia completar os vinte e quatro sem ter o menor motivo de queixa contra vida conjugal. Justiça se lhe faça: era marido exemplaríssimo em terra tão perigosa para os rapazes de sua idade. Tinha essa virtude burguesa, que as mulheres amantes colocam acima dos sentimentos mais elevados: era caseiro. Ia para a repartição às nove horas, e às quatro estava em casa, invariavelmente. Só por exceção saía à noite, mas acompanhado por sua mulher. Adorava-a. Adorava-a, mas um dia...

Não! não precipitemos o conto; procedamos com método:

Maurício exercia na Alfândega um modesto emprego de escriturário, e, como residisse nas proximidades do Passeio Público, e era por natureza comodista e ordenado, tomava sistematicamente, às nove horas, o bondinho que contornava parte do morro do castelo, e ia despejá-lo no Carceler, perto da repartição. Habitou-se a atravessar todas as manhãs dos dias úteis a praia de Santa Luzia, e, afinal, tanto se apaixonara por esse sítio, realmente belo, que por coisa alguma renunciaria ao inocente prazer de contemplá-lo com tão rigorosa
pontualidade.

Num dia as montanhas da outra banda pareciam desfazerem-se em nuvens tênues e azuladas, confundindo-se com o horizonte longínquo; noutro, violentamente batidas pelo sol, tinham contornos enérgicos e destacavam-se no fundo cerúleo da tela maravilhosa. O outeiro da Glória, a fortaleza de Villegaignon, a ponte pedregosa do Arsenal de Guerra, — tudo isso encantava o nosso Maurício pelos seus diversos e sucessivos aspectos de coloração. Era ali e só ali que notava e lhe comprazia a volubilidade característica da natureza fluminense — moça faceira que cada dia inventa novos enfeites e arrebiques.

E o belo e opulento arvoredo defronte da Santa Casa? Como era agradável atravessar a sombra daquelas árvores frondosas e venerandas, cuja seiva parece alimentada por tantas vidas que se extinguem no hospital fronteiro! A praia de Santa Luzia de tal modo o extasiava, que, ao passar pelo Necrotério, Maurício descobria-se, mas desviava os olhos para que o espetáculo da morte não lhe desfizesse a boa e consoladora impressão do espetáculo da vida.

Notava com desgosto que outros passageiros do bondinho estendiam o pescoço, voltando-se para inspecionar a lúgubre capelinha. Pela expressão de curiosidade satisfeita, ou de contrariedade, que ele claramente lia no rosto desses passageiros, adivinhava se havia ou não cadáveres lá dentro.

Um velhote, com quem se encontrava assiduamente no bondinho, e já o cumprimentava, de uma feita o aborreceu bastante, dizendo-lhe, depois de olhar para o Necrotério:

— Três hóspedes!

Foi morar para a rua de Santa Luzia, numa casinha baixa, de porta e janela, certa família pobre, de que fazia parte uma lindíssima rapariga dos seus dezoito anos, morena, desse moreno purpúreo, que deve ser a cor dos anjos do céu.

Maurício via-a todas as manhãs, e não desviava os olhos, como defronte do Necrotério; pelo contrário, incluiu-a na lista dos prodígios naturais que o deslumbravam todos os dias. A morena ficou fazendo parte integrante do panorama, em concorrência com a serra dos Órgãos, o outeiro da Glória, o ilhote de Villegaignon e as árvores da Misericórdia.

Aquele olhar cronométrico, infalível, à mesma hora, no mesmíssimo instante, acabou por impressionar a morena.

Pouco tardou para que entre o bondinho e a janela se estabelecesse ligeira familiaridade. uma dia a moça teve um gesto de cabeça, quase imperceptível, e Maurício instintivamente levou a mão ao chapéu. Daí por diante nunca mais deixou de cumprimentá-la.

Quinze dia depois, ela acompanhou o cumprimento por um sorriso enfeitado pelos mais belos dentes do mundo, e isso lhe revelou, a ele, que a beleza de tão importante acessório do seu panorama também variava de aspecto. Maurício correspondeu ao sorriso, maquinalmente, com os dois lábios curvados por uma simpatia irresistível, - e se os dois jovens já se não viam sem se cumprimentar, de então em diante não se cumprimentavam sem sorrir um para o outro.

Um dia o cumprimento mudou inesperadamente de forma; ela disse adeus com a mãozinha, agitando os dedos, com muita sem cerimônia, como o faria a algum amigo íntimo. Ele imitou-a, num movimento natural, espontâneo. quase inconsciente.

Estavam as coisas neste ponto — o fogo ao pé da pólvora — quando um dia, depois do cumprimento e do sorriso habitual, um moleque saltou levípede à plataforma do bondinho, e entregou uma carta à Maurício.

— Esta que Sinházinha mandou.

O moço, muito surpreso e um pouco vexado, pois percebeu que o velhote, o tal da pilhéria dos três hóspedes, e dois estudantes de medicina riam à socapa, guardou a carta no bolso, e só foi abri-la Alfândega.

“Me escreva e me diga como chama-se em que ano está e cuando se forma, e quero saber se gostas de mim por passatempo ou se pedes a minha mão a minha família, que é meu Pay, minha Mãy e um irmão. Desta que lhe ama, - Adélia.”

Maurício caiu das nuvens, e só então reparou que cometera uma monstruosidade. Nunca lhe passara pela cabeça ideias de namoro, amava muito sua mulher, a mãe do seu filho, e era incapaz de traí-la, desencaminhando uma pobre menina que o supunha solteiro e estudante, e era para ele apenas um acessório do seu panorama.

Aquela carta surpreendera-o tanto, como se a própria fortaleza de Villegaignon lhe perguntasse: — Quando te casas comigo? — ou a ermida da Glória lhe dissesse: — Pede-me a papai!...

Nas ocasiões difíceis Maurício consultava o seu chefe de seção, que o apreciava muito. Expôs-lhe francamente o caso, e perguntou-lhe:

— Que devo fazer?

— Uma coisa muito simples: nunca mais passar pela praia de Santa Luzia. Olhe que o menos que pode arranjar é uma tunda de pau!

— Mas o senhor não imagina o sacrifício que me aconselha! A praia de Santa Luzia entrou de tal forma nos meus hábitos, que hoje até me parece indispensável à existência; Por amor de Deus, não me prive da praia de Santa Luzia.

— Nesse caso, diga-lhe francamente que é casado.

— Dizer-lhe... Mas como?

— Amanhã, quando passar, em vez de cumprimentá-la, mostre-lhe o seu anel de casamento. Ela compreenderá.

Maurício cumpriu a recomendação à risca, e Adélia viu perfeitamente a grossa aliança de ouro.

Mas no dia seguinte a moça esperou-o ainda mais satisfeita e risonha que na véspera - e o moleque, trepando pela segunda vez à plataforma do carro, entregou a Maurício outra cartinha.

— Que diabo! pensou ele, guardando a epístola. Ela sorria. Vaidade feminina, não é outra coisa... Sorria para que eu não a supusesse despeitada. As mulheres são assim. Faço ideia da descompostura que aqui está escrita!

Enganava-se:

“Meu amor — Vejo que você já comprou sua Aliansa e eu também ontem mesmo incomendei a minha, amanhã paça a pé e me diz cuando formas-te e cuando pedes-me a meu Pay. Nem çei o teu nome. Tua até morrer, Adélia."

Maurício tomou — pudera! — a heroica e sublime resolução de se privar da praia de Santa Luzia.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos fora de moda. Belém/PA: UNAMA. Domínio Público.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 378

 


Arquivo Spina 5 (Antonio Queiroz)

 


Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Dezesseis


SONO INVULGAR

ARTEROSCLEROSO FOI FLAGRADO enquanto dormia na sala de aula. Boca aberta roncava e babava. Vez em quando, restrugia, tempestuando uns sons que estalejavam acima do normal. Os colegas, em vista disto, dispostos em derredor de sua ociosa prostração, algazarravam imitando o desditoso moleque. A tia Virgínia, professora de português, a certa altura, quase a perder o fio de meada e, sobretudo, furiosa, face aquela falta de atenção de seu aluno, e por conta dele, a classe inteira descaseada em alvoroço, achou por bem acordá-lo e, ato contínuo, mandá-lo para casa. Como era a primeira cochilada, apesar de muitíssimo aperreada com a falta de modos do garoto, daria uma chance.

Perdoaria o moleque não tomando nenhuma decisão mais drástica, como encaminhar o dorminhoco para a diretoria, ou o que considerava mais incisivo que isso, advertir os pais com um bilhete para que viessem ter com ela uma conversa de pé de ouvido. Assim que Arteroscleroso saiu de cena, a mestra, à promessa de uma compensação a ser observada na próxima aula, pediu para que os demais esquecessem aquela cena objetivando que a notícia não virasse chacota e vazasse, ou fosse parar nos ouvidos dos responsáveis pelo moleque cansado. Quanto a isto, tudo transcorreu dentro da normalidade esperada. E o caso, de fato, caiu arquivado no esquecimento.

Ao contrario, a mãe do moleque, dona Ximanga, vendo o filho mais cedo em casa, ficou com a pulga coçando atrás da orelha, além de obstinadamente cabreira. Resolveu tirar a história a limpo assim que ele cruzou o portão de entrada:

— Ar, — perguntou, de chofre. — Por que chegou antes do horário previsto?

O piá se fez evasivo e peremptório:

— Não cheguei, mãe!

Dona Ximanga insistiu resoluta:

— Como não? Seu horário é às cinco da tarde e ainda não deu três horas. Qual o motivo do seu regresso tão repentino?

Arteroscleroso teimoso como uma mula, rebateu na tecla do que havia dito:

— Estou dentro do meu horário, mãe.

A mulher começou a dar sinais de impaciência diante daquela lorota arguciante:

— Não minta...

O guri desconversou embaiado num logro que se fazia visível:

— Seu relógio é que está errado, mãe.

Dona Ximanga bateu com a mão esquerda sobre o tampo da mesa. Um vaso que sobre ela estava, à guisa de enfeite, com uma flor de plástico entubada, deu um salto, como se tivesse, de repente, se assustado:

— Ar, não se faça de besta e não me tire como tonta.

Arteroscleroso seguiu reservado no inalterado da sua resposta una:

— Não estou lhe tirando...

Dona Ximanga embrabeceu o tom da voz:

— Está sim. Acaso está escrito aqui na minha testa que sou BURRA?

O Filho procurou uma vez mais mostrar uma calma inexistente prestes a escorregar pelo ralo da sua palidez:

— Não, senhora!

A mãe arrochou o cerco pegando carona nesta brecha:

— Ar, não mude de assunto. E nem pense em bancar o espertinho para cima de mim. Vamos, me fale, por que chegou mais cedo?

— Não cheguei mãe, já disse!

— Ar, não insista em perpetuar um erro ostensivo querendo se fazer de idiota. Você não é um pateta. Seu nariz vai crescer. Está lembrado daquele menino do livro que pegou outro dia na biblioteca onde um tal de Timóteo...?

— Não é Timóteo, mãe, é Pinóquio.

— O nome da criatura não importa. O que conta é a mentira. Vamos, desembucha...

— Está bem mãe. Eu conto — obtemperou a fisga de uma nova paparrotice. — A tia Virgínia, minha professora de português me pegou beijando a Glorinha...

— Aonde?

— No banheiro das meninas...

— Em que lugar foi o ato, mocinho?

— Ah, sim. A senhora não explica! Na boca... Onde mais poderia ser?

Dona Ximanga, ao saber dessa proeza do filho, saltitou.  Pulou de alegria. Todo seu ego se satisfez orgulhoso:

— Puxou seu pai. O cachorro do seu pai...

— E por que chama papai de cachorro?

— Porque quando começamos a namorar, o danadinho me cobriu de beijos.

— Não sabia! Onde, mãe?

— Não vem ao caso...

Sem esperar por outra indagação, a jovem mãe se achegou de seu querido filho e o cobriu carinhosamente num forte e afetuoso abraço apertado:

— Graças a Deus, Ar. Temos a perpetuação da espécie. O mais novo machão do pedaço. Pensei que a tia Virginia, a sua professora, houvesse surpreendido você de boca aberta, dormindo e roncando na aula dela. Pior, babando. Ai meu querido, a sua mãe iria perder a esportiva e ficar muito louca da vida. Talvez até lhe desse uns bons tabefes. Glorinha? Legal! Ótima notícia. Safadinho, hein? — Agora vá tirar o uniforme e lavar as mãos. Vou preparar um lanche bem gostoso para nós.  
   
Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.      Texto enviado pelo autor.

Luiz Poeta (Poliniz - Arte)


- Me dê a  a mão - pediu a planta trepadeira -
A uma roseira exuberante  e delicada,
Que, prontamente, a atendeu, lisonjeada
Com aquele afago de uma amiga tão... faceira.

Mas a plantinha, que a princípio aparentava
Uma ternura tão sublime e envolvente,
Fez do carinho, um abraço intransigente,
Que... mansamente... a roseira... sufocava.

Suas ramagens tão sutis... mas tão nocivas,
Se transformaram em algemas e cipós
Que entrelaçaram-se na... amiga... em fortes nós,
Com suas garras passionais e possessivas.

Brotos, botões e as flores mais   maravilhosas
Foram, aos poucos,  definhando, entristecidas...
Um jardineiro, preocupado em criar vidas,
Por um instante percebeu a dor das rosas...

E com cuidado, doce afeto e gratidão
Às flores lindas  que enfeitavam  seu jardim,
Desenlaçou-as das amarras, pondo fim
Àquela cena de tortura e de prisão .

Essa liana leviana e intransigente
Foi conduzida ao habitat de onde viera
Porque a planta que é ruim, sempre se esmera
Em destruir, desde que brota da semente.

Qual trepadeira de  aparência  inocente
Há muita gente que usa o outro e o destrói
Sem nem saber o quanto o abandono dói
Porém  dói mais,  sermos usados...  falsamente.

A ingenuidade dos que têm algum encanto
Porque produzem, com amor, a criação,
É uma flor que poliniza a emoção
Até com as gotas mais sutis do próprio pranto.

E toda vez que algumas plantas venenosas
Nos despetalam, por inveja ou desamor,
Os nossos polens sempre fazem nossa dor
Se transformar na brotação de novas rosas.

Quem te abandona...após usar-te... é  assim:
Sorri contigo e te elogia...  mas te cobra.
Só  não consegue compreender que a tua obra
É só uma flor que ainda brota em seu jardim.

Fonte:
Facebook do poeta

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Assim Começou o Albergue


Meados de 1958. Manoel Tavares (diretor de “A Tribuna de Maringá”), parou diante de minha casa montado numa motocicleta e armado de máquina fotográfica. Pediu-me que subisse à garupa e o acompanhasse numa visita sem aviso prévio a uma instituição então conhecida como “albergue noturno”, que funcionava em Maringá por conta de um órgão do estado, o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural – FATR. Era uma hospedaria sem nenhum conforto, destinada a acolher migrantes que chegavam de várias origens atraídos pela fama do novo Eldorado, e que ali permaneciam enquanto procuravam emprego.

Dava medo só de olhar. Camas quebradas, colchões rasgados, percevejos, baratas, mau cheiro. E os albergados espalhados no meio daquela sujeira toda.

O funcionário que nos recebeu ficou meio assustado, deu algumas tímidas explicações, disse que a verba era curta, pouca gente ajudava... Só ele e mais dois ajudantes para cuidar da limpeza, da cozinha, do dormitório. No dia seguinte “A Tribuna” soltou a matéria em primeira página, com larga manchete, denunciando aquela coisa horrível. A repercussão foi imediata.

Dom Jaime Luiz Coelho, primeiro bispo de Maringá, havia chegado à cidade fazia pouco mais de um ano. Alertado pela reportagem, foi conhecer a situação de perto. Deu uma olhada geral nas instalações, fez algumas perguntas ao encarregado e conversou longamente com os migrantes. Saiu de lá chorando e prometeu dar um jeito naquilo o mais rápido possível. Logo em seguida entrou em contato com autoridades do governo estadual.

Após as negociações necessárias, conseguiu que o estabelecimento fosse transferido para a diocese. Oficializada a documentação, Dom Jaime de pronto mandou fazer uma ampla faxina, reformou os sanitários e colocou camas e colchões novos.

No início de 1959 a instituição foi reinaugurada, passando a chamar-se Albergue Santa Luísa de Marillac, inicialmente dirigido por três irmãs vicentinas: Sebastiana, Ivone e Delfina.

Pouco depois, assumiu a direção do Albergue uma santa e heroica vicentina, Irmã Vicenza, fervorosa devota de São José. Lembro-me bem de uma entrevista que publicamos na revista “NP” com o título “São José resolve tudo”, na qual a querida irmãzinha contava como conseguia resolver os problemas de manutenção da casa. Se, por exemplo, faltava feijão, ela dava um “aperto” em São José e sem demora aparecia algum bondoso doador trazendo um saco do produto.

Após alguns anos, já velhinha e sem condições de saúde para continuar a cuidar dos seus pobrinhos, Irmã Vicenza passou a direção a outra pessoa maravilhosa, Irmã Salomé.

Desde então, com o apoio da comunidade e a proteção contínua de São José, o albergue Santa Luísa de Marilac, hoje aos cuidados de dedicados irmãos franciscanos e num prédio bem equipado e com amplos espaços, continua prestando extraordinário serviço a milhares de carentes, que ali encontram abrigo, alimento e amor.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 03-9-2020)

Fonte:
http://aadeassis.blogspot.com/2020/09/assim-comecou-o-albergue.html

domingo, 13 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 377

 


Arquivo Spina 4 (Valéria Gurgel)

 


Silmar Böhrer (Croniquinha) 8


Amanheceu azul a cambraia celeste.

Ventinhos vivaces. As galharias farfalham levemente. Canarinhos sonoros na quirerinha. Eis que nuvens escuras surgem não sei de onde. Ventos trazem mormaço e as trovoadas. Vem a chuva.

A orquestra da vida também toca em tons variados e variáveis. Vê-se e se ouve que pessoas têm adoecido por conta do mal que assola o mundo e transformou (transtornou) tanta coisa inimaginável. Momento de calma.

Há males passageiros que temos que suportar. Essa pandemia passará e voltaremos ao normal. Muitas atividades mudarão de rotina, mas o importante é que a vida segue.

Lembremos Domenico de Masi - filósofo e escritor, além de educador - que no início dos anos 2000 revolucionou as ideias com o conceito chamado "ócio criativo", apregoando que num futuro próximo as pessoas iriam trabalhar em casa. A evolução tecnológica iria mudar as formas de trabalho. Viria o tempo para o ócio criativo, quando as pessoas trabalham em casa e têm também tempo para o ócio ligado ao lazer, ao estudo, ao lúdico. Premonição?Vaticínio? Ou visão? Chegamos a este tempo?

Ideias de adaptação vão clarear e até inspiração para o "home working" surgirá.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Edy Soares (Cristais Poéticos) IV


CONTO DE FADAS

Todo mundo fala
Que conto de fadas não existe,
Mas eu posso mudar tudo
E inventar um só pra nós dois.

Tem gente que fala
Que o amor é coisa triste,
Que tem medo de se entregar
E deixa tudo pra depois.

Mas eu posso te mostrar
Que o amor pode nos dar
Asas pra voar até o céu,

Basta você se entregar
Que eu posso te mostrar
Que o amor tem o sabor do mel,

E se, mesmo você não aceitar,
Vou pedir um anjo cupido pra flechar seu coração
E trazer você pra mim,
Pra ser a rima dos meus versos
E a melodia da minha canção.

(Celso Malzotti / Edy Soares)
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FIM DE ESTAÇÃO

Quando acabar a guerra,
Não precisa mais munição.

Quando acabar a dor,
Não precisa mais compaixão.

Quando acabar o amor,
Os mortos estarão mortos,
Os corpos sobrepostos
E a alma sem salvação.

Quando acabar a esperança,
Terá acabado a razão.

Quando não tiver mais quem lute,
Estará dominada a nação.

Os abutres continuarão com fome,
Sem como explorar mais os homens,
Terá chegado o fim da estação.

Quem produzia fora exterminado;
Quem explorava, condenado
A não ter mais quem lhe dê o pão.

Os virtuosos foram dizimados;
Do fruto do trabalho, despojados
E destruídos por quem conduziu o mundo
À ultima estação.
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REINO DE AVILAN

Frívola cúpula, travestida,
Consciente de que é despudorada,
Se iguala a qualquer prostituta,
Não se importa em ficar mal falada.

Se vende a qualquer vagabundo,
Acompanha qualquer delinquente,
Não tem moral para ser respeitada.
É vulgar e envergonha sua gente.

Se vendesse apenas seu corpo,
Poderia ser, talvez, perdoada.
Mas entrega barato sua prole,
Para ser também explorada.

Não tem cura, é pecadora,
Dá- se assim desde menina,
Não é de hoje que se lambuza
Num prostíbulo de gente grã-fina.

Fonte:
Edy Soares. Flores no deserto. Vila Velha/ES: Ed. do Autor, 2015.
Livro gentilmente enviado pelo poeta.