segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Malba Tahan (7ª Narrativa das Mil histórias sem fim)


História de um povo triste e de um rei que se viu ameaçado por uma terrível profecia. Neste capítulo vamos encontrar um rei que só criou juízo no dia em que resolveu enlouquecer.

I

Conta-se que existiu outrora, na Índia, entre o Indo e o Ganges, um país tão grande que uma caravana, para atravessá-lo de um extremo ao outro, era obrigada a repousar setenta e sete vezes.

Era esse país governado por um rei, chamado Talif, filho de Camil, Camil filho de Ludin, Ludin filho de Maol, o Forte.

Certo dia, o rei Talif chamou o seu grão-vizir Natuc e disse-lhe:

— Tenho notado, meu bom amigo, que os meus súditos, desde o mais humilde remendão ao mais opulento e prestigioso emir, de há algum tempo a esta parte, andam todos tristes e abatidos. Desejo vivamente saber qual é a causa dessa epidemia de tristeza e abatimento que oprime meu povo!

— Rei magnânimo e justo — respondeu o judicioso Natuc — que o Distribuidor (1) vos conceda todas as graças que mereceis! Sou forçado a dizer-vos a verdade, embora tenha certeza de que ela vai causar-vos grande desgosto! O povo anda triste e abatido porque dentro de poucos dias deverá ser festejado em todo o reino o trigésimo quinto aniversário de vossa existência!

— Pelo manto do Profeta! — exclamou o rei Talif. — Que absurdo é este? Não vejo que relação possa existir entre o meu aniversário e a melancolia dessa gente!

— Bem sei que ignorais ainda — explicou o grão-vizir — que esse dia tão ansiosamente esperado, do vosso aniversário natalício, será para o reino o mais calamitoso do século!

— Calamitoso? Positivamente, ou tens o juízo fora da cabeça, ou terás, em breve, a cabeça fora do corpo. Já vai a tua audácia além do que eu poderia tolerar.

— Espero, ó rei magnânimo, me perdoeis a licença das expressões ao contar-vos a razão delas.

E o dedicado Natuc narrou ao soberano da Índia o seguinte:

— Uma semana depois do vosso nascimento, mandou o saudoso rei Camil, sobre ele a bênção de Alá!, chamar o famoso Ben-Farrac, o sábio astrólogo de maior prestígio do mundo, e pediu-lhe que lesse nas estrelas visíveis e nos astros invisíveis do firmamento o futuro de Talif, o novo príncipe do Islã. O grande Ben-Farrac, sobre ele a misericórdia de Alá, depois de consultar os voos dos pássaros, as constelações e a marcha dos planetas mais propícios, declarou que o filho de Camil subiria ao trono aos vinte e um anos de idade, e durante quatorze outros governaria, com agrado de todos, o novo reino herdado de seu pai. No dia, porém, em que completasse trinta e cinco anos, o rei Talif seria acometido de um ataque de loucura! Se ao atingir essa idade fatal, escrita no céu pelos astros luminosos, não apresentasse o rei sintomas de demência, uma grande e indescritível calamidade, que não pouparia nem mesmo as palmeiras do deserto, devastaria o país de norte a sul! E até agora, ó rei do tempo! Não houve uma só previsão de Ben-Ferrac que fosse tida por falsa ou errada. O povo tem assistido já a realização completa de várias delas!

E, depois de pequena pausa, o grão-vizir continuou:

— Eis aí, glorioso senhor, a causa da tristeza de vossos dedicados súditos. No próximo dia do vosso aniversário seremos vítimas de uma desgraça: ou a loucura apagará para sempre a luz de vossa inteligência, ou uma calamidade, que ainda não teve igual na história, devastará o país de norte a sul!

O bondoso rei Talif, ao ter conhecimento desse triste augúrio que pesava ameaçadoramente sobre seu futuro, ficou tomado da mais profunda tristeza e sentiu invadir-lhe o coração piedoso uma onda de amargura.

— Bem triste é a minha sina! — lamentou o rei depois de longo e penoso silêncio.

— Certo estou, ó vizir, de que não poderei fugir aos decretos irrevogáveis do destino. Apelo, meu amigo, para o teu esclarecido espírito e longa experiência! Não haveria um meio de atenuar-se a grande desgraça que paira presentemente sobre o meu povo e sobre mim mesmo?

— Só vejo um meio — respondeu sem hesitar o grão-vizir — e nele venho pensando há muito tempo. Segundo a previsão formulada pelo astrólogo, se ficardes louco no dia do vosso aniversário, o país não mais terá a temer futuras calamidades. Assim sendo, no dia do vosso natalício, logo pela manhã, fingireis, por vários atos absurdos, que o destino vos privou da luz da razão. Não deveis, porém, com a simulada loucura, deixar que desapareça, ou mesma diminua, a confiança que o povo deposita em vós. Para isto, penso que os vossos atos de falsa demência deverão ser de molde que não tragam qualquer perigo ou a menor perturbação à vida dos vossos súditos. O povo depressa poderá verificar que o rei, apesar de louco, continua a exercer o governo do país com justiça e tolerância. É preferível, poderão dizer todos, um rei demente, piedoso e justo, a um soberano de espírito lúcido, mas perverso e vingativo! E, assim, a vida de todos nós continuará, como até agora tem sido, calma, tranquila e feliz!

— Grande e talentoso amigo! — exclamou o rei Talif, movido por sincero entusiasmo — Como admiro a tua sagacidade, como aprecio a tua dedicação! É, na verdade, uma solução admirável para o meu caso; fazendo-me passar por louco farei com que se realize a terrível previsão do maldito astrólogo, e restituirei a calma e o sossego ao meu povo!

E desta sorte, tendo assentado com o grão-vizir os planos para a curiosa farsa que devia representar — fingindo-se louco —, ordenou o rei Talif que o seu trigésimo quinto aniversário fosse condignamente festejado em todas as cidades e aldeias do reino. Chegado que foi o dia, todos os vizires, nobres e ricos mercadores foram, conforme o tradicional costume, levar as felicitações e os votos de prosperidade ao régio aniversariante.

Ordenou o rei Talif fossem os seus ilustres homenageantes conduzidos à sala do trono e recebeu-os de pé, tendo numa das mãos uma caveira e à cintura longa corrente de ferro a cuja extremidade vinha presa uma figura, feita de barro, que representava um gênio infernal de horripilante aspecto.

Os ricos, nobres e vizires, ao verem a estranha e descabida atitude do rei Talif, concluíram logo que o soberano da Índia havia enlouquecido. Aqueles que ainda tinham dúvida sobre o desequilíbrio mental do rei depressa se convenceram da dolorosa verdade, quando o ouviram declarar que estava resolvido a caçar elefantes no fundo do terceiro mar da China!

E quando um dos honrados vizires ponderou sobre as dificuldades de tal empresa, o rei pôs-se a enunciar frases sem nexo.

— Qual peso é excessivo aos esforçados? Que é diante ao perseverante? Que país é estranho aos homens da ciência? Quem é inimigo dos afáveis?

— Está louco o rei! — murmuraram todos. — De dois males o menor. Estamos livres da calamidade que devia devastar o país de norte a sul!

E o povo festejou nesse dia, com demonstrações de grande alegria, o trigésimo quinto aniversário do rei Talif, apelidado o Louco.

Desde logo, porém, compreenderam todos que a branda loucura do rei Talif em nada prejudicava a marcha natural dos múltiplos negócios do governo. Na verdade, os atos provindos da demência do monarca eram inofensivos. Ora decretava o casamento de uma palmeira com um coqueiro, ou assinava uma lei ridícula pela qual tomava posse de uma parte da Lua, ou de uma nuvem pardacenta do céu.

Quis Alá, o Exaltado, que o inteligente plano concebido pelo talentoso grão-vizir Natuc desse o melhor resultado. O país continuou a prosperar e o povo da Índia vivia tranquilo e feliz, embora tivesse no trono um rei privado da luz da razão.

II

Um dia, afinal, inspirado talvez pelo Demônio (Alá persiga o Maligno!), resolveu o rei Talif sair do seu palácio, disfarçado em mercador, a fim de ouvir o que diziam a seu respeito os homens do povo.

Bem oculto por hábil disfarce, entrou num grande khã (2) onde se reuniam, à noite, viajantes, peregrinos e aventureiros, vindos de todos os cantos. Um cameleiro, que se achava a seu lado, murmurou com voz pesarosa:

— Pobre do nosso rei Talif! Depois do seu último aniversário ainda não recuperou a razão! Ainda hoje praticou nova insensatez! Concedeu o título de emir ao rio Ganges!

— Meus amigos — replicou um velho de venerável aspecto, que fumava silencioso a um canto. — Creio bem que o povo deste país anda treslendo! Estamos diante de um dos casos mais singulares que tenho observado em minha vida. Julgam todos que o rei Talif enlouqueceu no dia em que completou trinta e cinco anos, mas exatamente o contrário sucedeu! Foi nesse dia, precisamente, que o soberano recuperou o juízo!

— Como assim? — perguntaram os mais curiosos. — Não é possível! Como explicar os disparates e as ridículas decisões do rei?

— Já observei — continuou o ancião — que os últimos atos praticados pelo rei são inofensivos e servem apenas para divertir o povo. Antes, porém, de seu último aniversário, o rei Talif só procedia como louco ditando leis que eram profundamente prejudiciais aos interesses e ao bem-estar do país!

E, ante a admiração de todos, o velho hindu continuou:

— Não se lembram daquela estrada que o rei, há dois anos, mandou abrir, pelas montanhas de Chenab? Foi isto um ato de inconcebível loucura, visto como a tal estrada, que tantos sacrifícios nos custou, lá está abandonada sem utilidade nem valor algum. E aquele grande castelo mandado erguer no meio do lago de Magdalane? Foi outro ato de insânia do nosso soberano. Na primeira cheia do lago as águas invadiram impetuosamente a ilha e derrubaram todas as obras de arte que já estavam quase concluídas!

O bom monarca, que tudo ouvia, pálido de espanto, sentia-se obrigado a reconhecer que as palavras do desconhecido eram a expressão da verdade. A estrada e o famoso castelo tinham sido, realmente, erros lamentáveis de sua administração.

— E não foi só — acrescentou ainda o velho. — Há cerca de três anos o rei Talif mandou demitir o governador de Bhavapal, homem honesto e digno, para pôr no lugar um nobre protegido, que fora sempre um sujeito desonesto e mau. Só um rei insensato é que procede assim! E mais ainda. De outra feita o rei Talif, a pretexto de aumentar o salário dos servidores do reino...

Não quis o rei Talif continuar a ouvir a análise imparcial que o velho hindu fazia de todos os erros que ele praticara. Sem proferir uma só palavra, levantou-se e saiu vagarosamente do khã.

“É singular e espantoso”, pensava ele, enquanto vagava a esmo por vielas desertas e mal iluminadas. “É espantoso e singular o que sucedeu comigo! Creio bem que sou fraco para governar o meu povo. E no tempo em que julgava ter perfeito juízo pratiquei tantas loucuras, o que não terei feito agora que resolvi passar por demente?”

Absorto em profunda meditação, voltava o rei para o palácio quando, ao atravessar uma praça, encontrou um árabe que chorava desesperado sentado junto a uma fonte.

— Que tens, meu amigo? — perguntou-lhe o monarca. — Qual é a causa de tua grande tristeza?

O desconhecido, sem reconhecer na pessoa que o interrogava o poderoso rei da Índia, respondeu:

— Sou um infeliz, ó muçulmano! Há perto de um ano que procuro falar ao rei Talif e não consigo chegar à sala do trono nos dias de audiência pública.

— E que queres dizer ao nosso bom soberano? — insistiu curioso o rei hindu. Respondeu o desconhecido:

— Quero transmitir-lhe uma importante mensagem que recebi há tempos de meu saudoso pai, o astrólogo Ben-Farrac!

E, como o rei quedasse pouco menos que atônito ao ouvir o nome do fatídico astrólogo, o árabe continuou:

— Pouco antes de morrer, meu pai chamou-me e disse: “Meu filho, vou contar-te uma história singular intitulada: ‘O Rei Insensato’. Peço-te que repitas fielmente essa história ao rei Talif, quando o nosso monarca festejar o trigésimo quinto aniversário. Se, por qualquer motivo, não atenderes a este meu pedido, que tem unicamente por fim salvar o rei, serás mais infeliz do que o mais desprezível dos mamelucos!”(3) Eis a causa do meu desespero; não vejo um meio de chegar à presença do rei Talif, filho de Camil, e receio que a maldição paterna venha a pesar sobre mim!

Ao ouvir tais palavras, não mais se conteve o rei Talif. Arrancando, no mesmo instante, as grandes barbas postiças e a negra cabeleira que lhe alteravam completamente a fisionomia, apresentou-se ao filho do astrólogo no seu verdadeiro aspecto, e gritou-lhe enérgico e ameaçador:

— Fica sabendo, ó infeliz!, que eu sou Talif, o rei. Exijo que me contes imediatamente essa história que para transmitir-me ouviste, há tantos anos, de teu pai, o astrólogo Ben-Farrac!

O árabe, ao reconhecer naquele simples e modesto mercador a pessoa sagrada e respeitável do rei, ajoelhou-se humilde, beijou a terra entre as mãos e assim falou:

— É bem possível, ó Rei do Tempo, que o simples conhecimento da narrativa a que me referi seja suficiente para causar graves e profundas alterações em vossa vida. Desse momento em diante, porém, os nossos destinos estão ligados por laços inquebráveis. Tal é a sentença ditada pela sabedoria do astrólogo Ben-Farrac, meu saudoso pai. Sereis, ó glorioso Talif, responsável pela minha vida e, mais ainda, responsável também pela vida de meus filhos e de meus amigos mais caros.

— Afirmo, sob juramento — declarou, logo, o rei —, que nada farei de mal contra ti, nem contra qualquer amigo ou parente teu!

— Agradeço-vos a inestimável garantia que as vossas palavras traduzem — retorquiu o filho do astrólogo. — Vejo-me, entretanto, forçado a exigir outro penhor e outra segurança de vossa parte.

— Que segurança é essa? — indagou nervoso o monarca aproximando-se de seu jovem interlocutor.

— O aviso que me cumpre fazer — explicou o enviado — é o seguinte: não deveis, sob pretexto algum, interromper a narrativa que, dentro de breves instantes, vou iniciar. Graves e desastrosas seriam as consequências de um gesto de impaciência ou protesto de vossa parte.

— Juro, pelas cinzas de meus antepassados — retorquiu gravemente o monarca —, que ouvirei a tua narrativa em absoluto silêncio!
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continua…
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Notas
1 Distribuidor – Um dos muitos nomes com que os muçulmanos se referem a Alá.
2 Khã — lugar onde se reúnem viajantes e mercadores.
3 Mameluco ou mameluj –  escravo. O plural seria mamelik.


Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim. Rio de Janeiro/RJ: Editora Record, 2013.

domingo, 2 de outubro de 2022

Nélio Bessant (Caderno de Trovas) 4

 

A. A. de Assis (Viva o Elevador!)

 

Sempre que se fala em vizinhos me vem à lembrança um vexame que passei, há coisa de 20 anos, numa viagem de ônibus de São Paulo para Maringá.

Na poltrona ao lado estava um rapaz que puxou conversa, me chamando pelo nome. Parecia-me também conhecê-lo, mas não me lembrava de onde. Só depois de um bom tempo de papo me caiu a ficha: éramos vizinhos, residentes no mesmo prédio. Era dos encontros no elevador que me lembrava dele...

Esse exemplo (mau exemplo) não é dos mais ilustrativos, porque sou meio distraído mesmo. Mas serve para demonstrar como enfraqueceram nos últimos tempos os velhos “elos de vizinhança”. Até nos edifícios de apartamentos, onde as pessoas moram quase juntas, “é-difícil” o relacionamento. O elevador é o único ponto de encontro. Daí a preciosa função social do sobe-e-desce naquele apertado “minimetrô” vertical onde os moradores trocam algum “bom-dia”, “como vai”, “puxa, que calor...”

É nos nervosos momentos de espera do elevador, e durante os poucos segundos em que viajamos nele, que a gente começa a conhecer os vizinhos. Primeiro, apenas de vista; depois, pouco a pouco, pelo nome. O blá no início é na base da chamada linguagem fática: um “oi” qualquer para quebrar o gelo. De tanto subir e descer, a conversa vai ficando mais animada, na medida em que uns vão sabendo coisas dos outros.

 A troca de visitas, até entre os que moram no mesmo andar, continua rara. Apesar de tudo, entretanto, vão se estreitando os laços. Os rostos vão se tornando mais familiares. As mulheres já se encorajam a bater às portas das outras para pedir emprestado um pedacinho de fita adesiva. As crianças, mais comunicativas, vão se enturmando, organizam brincadeiras no playground, e por causa dos filhos os pais vão devagarinho aprendendo também a dialogar mais intimamente uns com os outros. Alguns chegam logo a até formar grupos para jogar truco ou promover churrascadas no salão de festas.

É, porém, no elevador que toda essa aproximação começa. Bendito aparelho que, embora de vez em quando enguice, tem sido, nestes tempos de gente apressada, o mais eficiente fazedor de amizade entre vizinhos,

Nem todos chegam a conhecer-se pelos nomes, menos ainda pelo apelido ou pela profissão, e raros deles já entraram na sala ou na cozinha do parceiro de condomínio, mas todos acabam capazes de pelo menos reconhecer uns aos outros quando se encontram em algum lugar fora do prédio.

Viva então o elevador! Nos edifícios residenciais ou de escritórios, graças a ele quantos amigos já fizemos. O meu vexame com o companheiro de ônibus não vale como regra.

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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 22-9-2022)

Baú de Trovas LVI


Vai, riozinho, sem pressa…
lembra ao mar, sem raiva ou mágoa,
que ele é grande, mas começa
num modesto olhinho d’água!
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR
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No grande amor que vivemos
tão logo, à primeira vista,
até hoje não sabemos
qual dos dois fez a conquista...
ALBA CHRISTINA CAMPOS NETTO
Bauru/SP
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Ave feita prisioneira,
meu pássaro coração
tem lutado a vida inteira
contra as grades da razão!
ARLINDO TADEU HAGEN
Juiz de Fora/MG
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Vão-se os dias… os milênios…
e, no anseio do saber,
cresce o delírio dos gênios,
fazendo o mundo crescer!
CAROLINA RAMOS
Santos/SP
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Qual o mérito do amor
que é ganho à primeira vista?
- Muito mais vale o que for
o fruto de árdua conquista.
CLÉBER ROBERTO DE OLIVEIRA
São João de Meriti/RJ
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Sei quando vais demorar…
Mesmo assim, tudo ofereço:
quem espera para amar
paga ao tempo qualquer preço!
CLENIR NEVES RIBEIRO
Nova Friburgo/RJ
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Contendo ideia completa
e pregando o bem geral,
um só verso de um poeta
pode torná-lo imortal!
DARI PEREIRA
Maringá/PR
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Passando a vida em revista
descubro, ao fim dos meus dias,
ter sido o NADA a conquista
que eu trago nas mãos vazias...
DARLY O. BARROS
São Paulo/SP
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Quem no mundo, o seu espaço
conquista, com muito amor,
dia a dia, passo a passo,
com certeza é um vencedor!
DIRCE DAVÊNIA GUAYATO
Londrina/PR
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Na conquista deste amor
me empenhei... não fui covarde!...
E só não fui vencedor
porque cheguei muito tarde!
ERCY MARIA MARQUES DE FARIA
Bauru/SP
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Não há sorriso que emplaque
na comédia desta vida,
se na ironia da claque
qualquer verdade é escondida.
JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA
Bauru/SP
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Tanta gente em si perdida
entre sombras se escondendo.
Cada dia é outra vida
que em disfarces vai morrendo.
JOSÉ FELDMAN
Campo Mourão/PR
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O malandro te enganou
com truques, filha querida?
E a mocinha perguntou:
– Truque, paizinho, engravida?
JOSÉ LUCAS DE BARROS
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN
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Fugir, poeta, não queiras,
do que a vida preceitua:
teu destino é abrir fronteiras
e deixar que o sonho flua!
JOSÉ OUVERNEY
Pindamonhangaba/SP
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Crê na conquista e tem calma,
ante o revés que alucina...
Quem traz um sol dentro da alma
não se perde entre a neblina!
JOSÉ TAVARES DE LIMA
Juiz de Fora/MG
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A cada dia que passa,
muda minha realidade,
meus sonhos viram fumaça,
amores viram saudade.
LUIZ HÉLIO FRIEDRICH
Curitiba/PR
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Saudade quase se explica
nesta trova que te dou:
saudade é tudo que fica
daquilo que não ficou.
 LUIZ OTÁVIO
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP
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Na conquista de um ideal,
penosa escada é o caminho...
Surgindo em cada degrau,
poucas rosas... muito espinho!
MARIA LÚCIA DALOCE
Bandeirantes/PR
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Falaste em breve regresso:
marcaste mês, dia e horário.
Mas a saudade que eu meço
é maior que o calendário!
MARINA BRUNA
Franca/SP, 1935 – 2013, São Paulo/SP
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É da flor mais delicada,
e fruto do bom trabalho,
o suor que à madrugada
brota em pétalas de orvalho.
MÁRIO ZAMATARO
Curitiba/PR
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Passou por mim. Eu, sem fala,
mandei-lhe versos de artista.
Como iria conquistá-la,
se dela fora a conquista?
MIGUEL RUSSOWSKY
Santa Maria/RS ,1923 – 2009, Joaçaba/SC
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Nesse teu corpo bonito
buscam meus lábios, frementes,
a conquista do infinito,
em volúpias sempre ardentes...
MILTON NUNES LOUREIRO
Campos/RJ, 1923 – 2011, Niterói/RJ
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Sangra a terra quando arada:
fica frágil, tão exposta…
Mesmo sofrendo calada,
com seus frutos dá a resposta.
OLGA AGULHON
Maringá/PR
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Tendo a vontade por guia
e a perfeição como fim,
a cada sol, cada dia,
saio à conquista de mim...
ORLANDO BRITO
Niterói/RJ, 1927 – 2010, São Luís/MA
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Desato o nó da lembrança
e um facho de luz sem fim
me traz de volta a criança
que o tempo levou de mim.
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/SP
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Minha magoa e desencanto
foi ver, no adeus, indeciso:
– Eu disfarçando o meu pranto…
– Tu disfarçando um sorriso…
RODOLPHO ABBUD
Nova Friburgo/RJ, 1926 – 2013
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Quando o amor do peito dista,
dando espaço à dor que brota,
a saudade é uma conquista
que tem gosto de derrota.
SÉRGIO BERNARDO
Nova Friburgo/RJ
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Maior conquista na vida
não é fama nem riqueza
mas, sim, a vida vivida
para o Bem, para a Beleza!...
SÔNIA MARIA DITZEL MARTELO
Ponta Grossa/PR, 1943 – 2016
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Doce palavra vibrante,
lapidada na emoção…
É a trova um raro brilhante,
moldado na nossa mão.
VANDA ALVES
Curitiba/PR
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Preferindo a espada à toga,
o mundo, injusto e egoísta,
no sangue de irmãos afoga
sua sede de conquista.
WALDIR NEVES
Rio de Janeiro/RJ, 1924 – 2007

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) Vagões 73, 74 e 75

 
ENCONTRO

O personagem de Lúcio Cardoso hospedou por algumas semanas o personagem de Cornélio Pena. Nunca se viam, porque um dormia pela madrugada e o outro ao anoitecer. Não se encontravam à mesa, mas ambos diziam “bom dia”, sozinhos, referindo-se ao companheiro.

O personagem de Guimarães Rosa, encontrando aberta a porta da casa, entrou, não viu ninguém, deu tiros para o alto. Um buriti cresceu na sala de jantar, a vereda fluiu suas águas. Os personagens de Lúcio e de Cornélio acudiram ao mesmo tempo, surpresos. Ouviu-se a viola de Miguelão entoar modinhas do Urucuia. Todos beberam muito, e a noite acabou em antologia mineira, com ilustrações de Poty.
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EPISÓDIO VENEZIANO

A duquesa de Arrivabene apaixonou-se por um gondoleiro de Veneza e, para não deixá-lo um só momento, acompanhava-o no trabalho. Frequentemente manejava o remo, deixando a cabeça do namorado repousar em seu colo alabastrino.

Era ciumenta a duquesa, e Paolo tinha de recusar passageiras cujo sorriso parecia demasiado promissor. Com o tempo, nem mais os homens eram admitidos na gôndola, que vogava ao sabor do capricho feminino, entre beijos que se diria capazes de inflamar a água do canal.

Paolo, exausto, quis fugir, mas sua amante ameaçou afundar com ele e com a embarcação, em derradeiro enlace amoroso.

A gôndola envelheceu, os dois também. Se já não se amavam como antigamente, é porque tinham chegado a formar uma só individualidade, meio carne meio madeira. Um dia o barco afundou, levando consigo os dois amantes, não se sabe se ainda vivos ou mumificados. Desde então os gondoleiros temem o amor das duquesas e preferem não transportá-las, pretextando que a gôndola está com defeito.
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EXCESSO DE COMPANHIA

Os anjos cercavam Marilda, um de cada lado, porque Marilda ao nascer ganhou dois anjos da guarda.

Em vez de ajudar, atrapalhou. Um anjo queria levar Marilda a festas, o outro à natureza. Brigavam entre si, e a moça não sabia a qual deles obedecer. Queria agradar aos dois, e acabava se indispondo com ambos.

Tocou-os de casa. Ficou sozinha, sem apoio espiritual mas também sem confusão. Os dois vieram procurá-la, arrependidos, pedindo desculpas.

— Só aceito um de cada vez. Passa uns tempos comigo, depois mando embora, e o outro fica no lugar. Dois anjos ao mesmo tempo é demais.

Agora Marilda é o anjo da guarda dos seus anjos, um de cada vez.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

sábado, 1 de outubro de 2022

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 28

 

Vanice Zimerman (Saudade…) – 1


AS MÃOS QUE COLHERAM AS UVAS...


Feito, finas rendas que com o tempo
Tornaram-se translúcidas e, aos poucos
Desapareceram,
As mãos que colheram as uvas,
Permanecem vivas, pulsando
Nas lembranças de outras mãos
Colhendo uvas em um antigo ritual
Árduo e encantado,
Mantendo a tradição de colher com cuidado e,
Carinho, e assim extrair
Dos doces cachos, o vinho...
As mãos que colheram as uvas,
Vivas permanecem em vinícolas,
E na solitária garrafa escura, ao lado do queijo,
E também, em telas
E no olhar de quem, curioso
As observa ao alcance das mãos
Em um fim de tarde, repleto
De cores, amor e silêncio...
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CHAVE DO TEMPO

Tarde de inverno,
Imóvel no arame
Ele continua
O prendedor de roupas
Silencia-se
Sem a companhia
Do lençol ou da camisa branca...
Em sua geometria
Ostenta as marcas
Do sol, da chuva
E das noites frias...
A ferrugem
Com seus tons cobriu seu metal,
E a boa parte de sua madeira
Foi tingida com a passagem
Do por do sol e do amanhecer
Prendendo com suas pontas
Lembranças de ontens -
Admirável sua resistência,
Quase, dobra-se à rotina
Das horas, dias e anos -
Mas, a essência permanece
Misteriosa
Chave do Tempo...
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JANELA AZUL


Na pausa do olhar
A poesia, devagarzinho
Alisa e desliza
Na janela de madeira azul
Os nós trabalhados pela
Passagem do tempo
São imóveis olhares...
Há uma rústica e desbotada
Interação entre os tons de azul
Que se mesclam à madeira-
Na pausa do olhar
A delicadeza
Das mãos, agora, invisíveis
Que tantas vezes
Entreabriram a janela...
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LEMBRANÇAS DE MINAS GERAIS

De manhãzinha -
Janela entreaberta
A mesa de madeira
Pequenas flores perfumam
A caneca de ágata,
Recebendo os tênues raios de sol,
Enquanto o gato se espreguiça
À soleira da porta -
Distancia-se o som da trem,
Sinto o aroma de café
Que evola do antigo bule azul,
Emoldurando
O despertar da vida
Em poesias e nas alegres
Borboletinhas brancas -
Manhã de primavera
Desperta em Minas...
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RISCOS E RABISCOS

Riscos
Na mesa de madeira,
Rabiscos nos tijolos
Do fogão a lenha...

Desenhos no vidro
Nublado da janela,
Linhas curvas e retas
Na cadeira de palha
Marcam presença,
Pincelando ausências,
Enquanto a chuva risca
Mais um fim de tarde...
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"RODA DE FIAR"

As lembranças tecidas em lãs,
Algodão e linho aquietam-se
E observam a antiga roda de fiar,
Transformando a palha em ouro -
"Rumpelstiltskin"...
A roca
Lembra o leme de um barco
Roda da Vida, num contínuo movimento
De fibras em fios.
As mãos invisíveis do Tempo
Ainda permanecem
A mover a roda de fiar - tecer destinos
Delicados fios entrelaçando
Sonhos e vida -
Enquanto,
Uma, curiosa, gota de sangue
Desliza no fuso...
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TEXTURAS

Aconchega-se
À toalha de seda lilás
Ao bule branco,
Mesclam-se luz e sombra
Em dobras,
Tecidas na delicada seda -
Um labirinto...
Ao toque da porcelana
A sensação
De uma atemporal imagem,
Uma tela, um devaneio -
Saudade.

Fonte:
Vanice Zimerman y Gustavo Henao Chica. Saudade… . Curitiba/PR: Nogus Ed., 2021.
Livro enviado pela poetisa.

Hans Christian Andersen (O menino insolente)

Há muito tempo, vivia um velho poeta, um velho poeta muito gentil. Quando ele estava sentado uma noite em seu quarto, uma tempestade terrível surgiu, e a chuva escorreu do céu; mas o velho poeta sentou-se quente e confortável em sua lareira, onde o fogo ardia e a maçã assada assobiava.

"Quem não tiver um teto sobre a cabeça ficará molhado na pele", disse o bom e velho poeta.

"Oh, deixe-me entrar! Deixe-me entrar! Estou com frio e estou tão molhado!" exclamou de repente uma criança que estava chorando na porta e batendo na entrada, enquanto a chuva caía e o vento fazia todas as janelas estremecerem.

"Pobre criança!" disse o velho poeta, quando foi abrir a porta. Havia um garotinho, completamente nu, e a água escorria de seus longos cabelos dourados; tremia de frio e, se não tivesse entrado em uma sala quente, certamente teria morrido na terrível tempestade.

"Pobre criança!" disse o velho poeta, enquanto pegava o garoto pela mão. "Entre, entre, e em breve te revigorarei! Terás vinho e maçãs assadas, pois és realmente uma criança encantadora!"

E o garoto era realmente muito encantador. Seus olhos eram como duas estrelas brilhantes; e, embora a água escorresse por seus cabelos, ela ondulava em lindos cachos. Ele parecia exatamente como um anjinho, mas estava tão pálido e todo o seu corpo tremia de frio. Ele tinha um belo pequeno arco na mão, mas estava bastante estragado pela chuva, e os matizes de suas flechas coloridas correram um contra o outro.

O velho poeta sentou-se ao lado da lareira e levou o pequeno no colo; ele espremeu a água pingando dos cabelos, aqueceu as mãos entre as dele e cozinhou para ele um pouco de vinho doce. Então o garoto se recuperou, suas bochechas ficaram novamente rosadas, pulou do colo onde estava sentado e dançou em volta do velho poeta.

"Você é um sujeito alegre", disse o velho. "Qual o seu nome?"

"Meu nome é Cupido", respondeu o garoto. "Você não me conhece? Aí está meu arco; ele dispara bem, posso garantir! Olha, o tempo está clareando e a lua brilhando novamente pela janela."

"Ora, seu arco está estragado", disse o velho poeta.

"Isso foi realmente triste", disse o garoto, e ele pegou o arco na mão - e o examinou por todos os lados. "Oh, está seco novamente e não está machucado; o fio está bem apertado. Vou tentar diretamente." E ele dobrou o arco, mirou e atirou uma flecha no velho poeta, dentro de seu coração. "Você vê agora que meu arco não foi estragado", disse ele rindo; e para longe ele correu. O garoto travesso, para atirar no velho poeta dessa maneira; aquele que o levara ao seu quarto quente, que o tratara com tanta gentileza e que lhe dera vinho quente e as melhores maçãs!

O pobre poeta jazia na terra e chorava, pois a flecha realmente voara em seu coração. "Que droga!" disse ele. "Quão travesso é um garoto, Cupido! Vou contar a todas as crianças sobre ele, para que tomem cuidado e não brinquem com ele, pois ele só lhes causará tristeza e muitas dores de cabeça."

E todos os bons filhos a quem ele contou essa história prestaram muita atenção a esse Cupido travesso; mas ele ainda os fez de tolos, pois é espantosamente astuto. Quando os estudantes universitários vêm das palestras, ele corre ao lado deles com um casaco preto e com um livro debaixo do braço. É completamente impossível para eles conhecê-lo, e andam com ele de braços dados, como se ele também fosse um estudante como eles; e então, despercebido, ele joga uma flecha no peito deles. Quando as jovens donzelas passam por serem examinadas pelo clérigo, ou vão à igreja para serem confirmadas, lá está novamente atrás delas. Sim, ele está sempre seguindo as pessoas. Na peça, ele se senta no grande lustre e queima em chamas brilhantes, para que as pessoas pensem que é realmente uma chama, mas logo descobrem que é outra coisa. Ele anda pelo jardim do palácio e pelas muralhas: sim, uma vez que ele atirou em seu pai e sua mãe no coração. Peça apenas a eles e você ouvirá o que eles dirão. Oh, ele é um garoto travesso, aquele Cupido; você nunca deve ter nada a ver com ele. Ele está sempre correndo atrás de todo mundo. Apenas pense, ele atirou uma flecha uma vez na sua velha avó! Mas isso foi há muito tempo e agora é passado; no entanto, uma coisa desse tipo ela nunca esquece. Que droga, Cupido travesso! Mas agora você o conhece e também sabe como ele é mal-comportado!

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 14

 

Contos e Lendas do Paraná - 13 (Curitiba: assombrações)


A LOIRA FANTASMA

Prestem atenção na história que vou contar...
Pois, este conto é de arrepiar!
É uma lenda famosa dos anos setenta...
E que até hoje faz sucesso e arrebenta!

Lurdes era uma loira muito bonita,
Que morava na cidade de Curitiba!
Certa noite, ao sair muito tarde...
Ela resolveu pegar um táxi sem alarde...

Mas, o taxista era um psicopata tarado,
Que estava muito perturbado!
Então, ele levou a loira para o matagal...
Estuprou e matou a pobre com todo o seu mal!

Mas, o que ele não sabia...
É que a loira pertencia...
A uma seita de magia!

Por isto, o espírito da loira ainda rondava...
A cidade como uma escrava!
Um mês se passou e o mesmo taxista...
Ainda trabalhava na estrada e na pista!

Ele estava trabalhando numa noite de chuva e de frio,
Que a todos causa um tremendo arrepio!
Então, uma mulher com capa preta e escura...
Pediu para que o táxi parasse de uma forma dura!

O táxi parou e a mulher entrou no carro com o rosto coberto...
No meio daquele caminho deserto...
Pedindo para o motorista seguir em direção ao Cemitério Municipal...
Com uma voz misteriosa e nada normal!

Chegando na rua nebulosa do cemitério...
A mulher disse ao motorista com todo o mistério:
“– Pode me deixar aqui, minha morada é um túmulo decente...
Mas, você gostaria que fosse diferente... “

O motorista então, falou:
“– Não estou entendendo nada...
Pare de brincadeira , pois já é madrugada!”
Então, a moça tirou o seu escuro véu,

Que mostrou o seu rosto de um jeito cruel!
A loira assim, falou:
“– Sou a mulher que você matou com loucura,
Que, agora, deseja colocar seu corpo numa sepultura! “

O motorista reconhecendo o fantasma...
Teve um ataque de asma...
E morreu asfixiado...
No seu carro, todo congelado!

Mas, o fantasma da loira continuou assustando vários taxistas...
Porém, sua alma nunca deixou rastros e nem pistas.
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O FANTASMA DA GRÁVIDA DA PRAÇA DA UCRÂNIA

Por favor, não se surpreenda...
Contarei mais uma lenda:
Em Curitiba, toda a sexta-feira...
Havia uma tradicional feira,

Na praça da Ucrânia...
Toda espontânea!
Mas, num inverno de gelar...
Bem numa noite sem luar...

Uma grávida passeava com o seu marido,
Fiel, amado e querido,
Pela feira da Praça da Ucrânia...
Numa sexta-feira espontânea!

Então, esta grávida bela...
Numa barraquinha cor de canela...
Pediu um sanduíche com mortadela!

Enquanto ela esperava o lanche ansiosamente...
Aconteceu algo que embaralhou a mente...
Das pessoas no local:
Um motoqueiro mau...

Desceu da moto e começou a disparar...
Tiros, bravamente, pelo ar!
Mas, ao ver o marido da grávida,
Que já estava toda pálida...

Este motoqueiro tentou acertar vários tiros sem paz...
Naquele pobre, assustado e indefeso rapaz!
Mas, alguns tiros atingiram a gestante...
De um jeito nada elegante!

Então, levaram a grávida para o hospital...
Porém, aconteceu algo mau:
A grávida faleceu...
No meio do breu!

Então, a partir daquele dia...
Começou a ocorrer algo com toda a agonia:
Toda a sexta-feira espontânea...
Bem na praça da Ucrânia...
Uma grávida...
Misteriosa e pálida...
Começou a aparecer de um jeito ruim,
Pedindo para alguém, bem assim:

– Sou uma gestante...
Faminta e nada brilhante!
Porque numa noite nada singela...
Eu tive uma morte nada bela...

E nem tive o meu último pedido...
Socorrido e atendido,
Que era comer um sanduíche de mortadela...
Numa barraca cor de canela!

Mas, como eu sei que você não é ruim:
Você poderia pagar um sanduíche para mim?
Dizem que toda a sexta-feira, de um jeito dolorido...
Ela aparece na Praça da Ucrânia e faz este mesmo pedido.

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná.
Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

Marcos Rey (Celebridades instantâneas)


Talk shows servem até para vender  espanador giratório a pilha

Hoje em dia quem aparece num talk show dá uma pisada no hall da fama. Sai da sombra do anonimato. É como se o próprio Deus acendesse um spotlight. Aproveite, chegou a sua vez de brilhar!

Houve época em que nem escrevendo Os sertões se alcançava de pronto a celebridade. Carlos Drummond de Andrade, pouco chegado à autopromoção, apenas se tornou conhecido – não lido – pelo público já nos finais oitenta anos. Lima Barreto, o romancista de Clara dos Anjos, só passou a ser mencionado com maior frequência para eliminar a confusão que se fazia entre seu nome e o do cineasta Lima Barreto. Van Gogh, mesmo decepando a orelha para presentear uma namoradinha, ato romântico e original, permaneceu na obscuridade até o fim da vida e sem vender um único quadro.

As portas do sucesso atualmente são mais acessíveis. Podem ser transpostas em minutos. Chamam-se talk shows ou, em linguagem bárbara, programas de entrevistas na televisão. Segundo acabo de ler, chegam a vinte, apresentados em quase todas as emissoras, diariamente e nos mais diversos horários. É um gênero de espetáculo de baixo custo porque os entrevistados, doidos para aparecer no vídeo, naturalmente não cobram nada. Pelo contrário, muitos até pagariam.

Quem tem necessidade urgente de se promover, lançar produtos ou aparecer na telinha para provar que ainda não morreu – estou vivo e atuante, gente! – visita infalivelmente todos os programas do naipe. Nada mais eficiente para ser reconhecido na rua e em toda parte. Gente que nunca viu o entrevistado o cumprimenta com um largo olá. Os mais ousados arriscam: “O senhor estava ótimo ontem no Jô”.

Eu também tenho talento, preciso apenas de uma oportunidade para me destacar. É o sonho de muitos. E onde aparecer, para milhões e ao mesmo tempo, senão na televisão? Figurar nos talk shows é o único jeito de ficar conhecido instantaneamente e poder vender o seu peixe. Foi o que declarou o dono de um restaurante de frutos do mar...

Para os desconhecidos, conseguir ser programado num talk depende de relacionamento e boa dose de paciência. Uns esperam meses. Para os já conhecidos, mais preocupados em manter certa popularidade, é até relativamente fácil. O difícil é fazer cara convincente de que está no programa de seu querido entrevistador, preferido entre todos. E morrendo de saudade. Este, por seu turno, tem de fazer a cara certa de que se trata de uma entrevista exclusiva, única, fingindo ignorar que o convidado já compareceu no mínimo a três emissoras na mesma semana. Ontem mesmo esteve no programa do seu concorrente, aquele fofoqueiro, aquele vaidosão, aquele...

Quando o entrevistado, mesmo ignorado pela mídia, cai no agrado do auditório, o referido peixe está vendido. Lembro o espevitado autor de um espanador giratório a pilha, de duvidosa utilidade. O público adorou à primeira vista o curioso inventor: foi no seu papo solto, riu o quanto pôde. E aplaudiu frenético. Soube-se que vendeu milhares de espanadores giratórios, encalhados há anos.

Uma entrevista bem-sucedida resolve. O homem que promovia o reconstituinte leite de jacaré foi até bisado. Há também os que não querem vender nada, interessados somente na divulgação da imagem, na satisfação do ego. O conceito de muita gente dá saltos andinos após um cara a cara com Marília Gabriela ou um tapa no microfone do Jô.
Torno a lembrar Van Gogh, em vida o mais joão-ninguém dos gênios, o durango e biruta que pintava telas que hoje valem dezenas de milhões de dólares. Théo, o mano e protetor, após a dramática amputação, para salvar Vincent certamente recorreria aos programas de entrevistas, a última chance de sucesso artístico e equilíbrio mental.

Antes de exibir seus girassóis, talvez perguntassem ao pintor:

– Não querendo interromper e já interrompendo, o que você fez com a sua orelha?

Ou aprovassem:

– Sem orelha você fica uma gracinha, Van.

Ou se arrepiassem a ponto de não fazer a entrevista:

– Nossas estrelas comerciais entram agora e depois a gente volta.

Fonte:
Marcos Rey. Crônicas para jovens. Global, 2015. Edição digital.

Henriette Effenberger (Trovas Temáticas)

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SAUDADE
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Para falar de saudade
sempre se vai precisar
ter um pouquinho de idade
e coisas para lembrar...

Saudade de nossa infância,
saudade de tempos idos...
Saudade pela distância
dos nossos entes queridos.

Saudade de gargalhadas,
saudades da adolescência,
das noites enluaradas,
plenas de efervescência...

Saudade não é lembrança,
saudade não é sofrer.
Lembrança sem esperança,
isso ela pode até ser.…

A campa tão nua e fria
do morto desconhecido
recebeu a cortesia
de um ipê todo florido.

A saudade, envelhecida,
virou apenas lembrança
não dói mais como ferida,
pois já perdeu a esperança…

Na quietude da noite
onde até o silêncio dorme,
a saudade, qual açoite,
retalha o sonho disforme.

Nos meus momentos de insônia,
minha saudade acalanto
e ela, sem cerimônia,
repousa sobre meu pranto.

Pra espantar felicidade,
a maldade tanto fez
que se vestiu de saudade
pra machucar outra vez.

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DESTINO
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A vida que tenho agora
é apenas resultado
de escolhas de outrora,
de opções do passado...

Dizem que eu tive sorte,
que o destino me sorriu,
ao escolher o meu norte
todo caminho se abriu.

O que chamam de destino,
boa, má sorte ou maré
eu apenas denomino
fruto de trabalho e fé.

Sei que fiz o meu destino,
palmo a palmo, linha a linha,
nada veio repentino
nem tive fada madrinha...

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PAZ
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A paz nem sempre é perfeita,
esconde-se em descaminhos,
entre dores, fica à espreita,
como rosa entre os espinhos.

Paz: muitas vezes usada
para gerar tanta guerra,
palavra tão desgastada,
não a vemos cá na Terra.

Pedir paz é tão vulgar,
lugar comum, um clichê;
melhor mesmo é desejar
que a paz habite em você...

Viver na Paz do Senhor,
nos dizia a tia Sila,
só mesmo com muito amor
e com fé que não vacila.

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ESTAÇÕES DO ANO
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Bom seria cada dia
viver como a primavera,
trazendo luz e alegria,
pois o verão nos espera..

Na primavera me aninho,
sou colibri, beija-flor,
sou menina-passarinho
buscando por teu amor...

Gosto de verão “caliente”,
sol daqueles de rachar,
que aquece a alma da gente
e nos convida a amar.

Verão agora é assim
chove, chove, sem parar.
Essa água não tem fim,
parece o céu a chorar...

Às vezes penso que o outono
por vir depois do verão
é uma estação de sono,
de invernos que chegarão...

O  verão com sol brilhando
e um azul no céu sem fim;
no fundo está preparando
o outono que existe em mim...

Não gosto de tempo frio
nem daquele céu cinzento.
O inverno, eu avalio,
é um velho rabugento...
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Henriette Effenberger nasceu em Bragança Paulista-SP. Romancista, contista, memorialista, poeta, escreve também literatura infantil. Publicou, em 2002, em coautoria com Maria Dulce N. K. Louro, seu romance de estreia, A Ilha dos Anjos. Outros livros publicados: A aventuras do Superagora (infantil); SSAAM – 80 anos de acordes em harmonia; Aeroclube de Bragança Paulista – uma trajetória nas asas do tempo; Liga do Pico, Futebol e Pinga e Sindicato do Comércio de Bragança Paulista – 70 anos; Linhas tortas, em 2008, composto por contos premiados em concursos literários nacionais e internacionais, com apresentação de Ignácio Loyola Brandão, e Vida de Sabiá – o que sabiam os sabiás além de assobiar, vencedor do Prêmio João de Barro de Literatura Infantil, editado em 2009, pela Fundação Cultural de Belo Horizonte. Em 2017, organizou a coletânea de contos: Horas partidas e a coletânea de contos e crônicas do Movimento Mulherio das Letras.

Machado de Assis (Vidros quebrados)


— Homem, cá para mim isto de casamentos são coisas talhadas no céu. É o que diz o povo, e diz bem. Não há acordo nem conveniência nem nada que faça um casamento, quando Deus não quer...

— Um casamento bom - emendou um dos interlocutores.

— Bom ou mau - insistiu o orador - Desde que é casamento é obra de Deus. Tenho em mim mesmo a prova. Se querem, conto-lhes... Ainda é cedo para o voltarete. Eu estou abarrotado...

Venâncio é o nome deste cavalheiro. Está abarrotado, porque ele e três amigos acabavam de jantar. As senhoras foram para a sala conversar do casamento de uma vizinha, moça teimosa como trinta diabos, que recusou todos os noivos que o pai lhe deu, e acabou desposando um namorado de cinco anos, escriturário no Tesouro. Foi à sobremesa que este negócio começou a ser objeto de palestra. Terminado o jantar, a companhia bifurcou-se; elas foram para a sala, eles para um gabinete, onde os esperava o voltarete habitual. Aí o Venâncio enunciou o princípio da origem divina dos matrimônios, princípio que o Leal, sócio da firma Leal & Cunha, corrigiu e limitou aos matrimônios bons. Os maus, segundo ele explicou daí a pouco, eram obra do diabo.

— Vou dar-lhes a prova, continuou o Venâncio, desabotoando o colete e encostando o braço no peitoril da janela que abria para o jardim. Foi no tempo da Campestre... Ah! os bailes da Campestre! Tinha eu então vinte e dois anos. Namorei-me ali de uma moça de vinte, linda como o sol, filha da viúva Faria. A própria viúva, apesar dos cinquenta feitos, ainda mostrava o que tinha sido. Vocês podem imaginar se me atirei ou não ao namoro...

— Com a mãe?

— Adeus! Se dizem tolices, calo-me. Atirei-me à filha; começamos o namoro logo na primeira noite; continuamos, correspondemo-nos; enfim, estávamos ali, estávamos apaixonados, em menos de quatro meses. Escrevi-lhe pedindo licença para falar à mãe; e, com efeito, dirigi uma carta à viúva, expondo os meus sentimentos, e dizendo que seria uma grande honra, se me admitisse na família. Respondeu-me oito dias depois que Cecília não podia casar tão cedo, mas que, ainda podendo, ela tinha outros projetos, e por isso sentia muito, e pedia-me desculpas. Imaginem como fiquei! Moço ainda, sangue na guelra, e demais apaixonado, quis ir à casa da viúva, fazer uma estardalhaço, arrancar a moça, e fugir com ela. Afinal, sosseguei e escrevi à Cecília perguntando se consentia que a tirasse por justiça. Cecília respondeu-me que era bom ver primeiro se a mãe voltava atrás; não queria dar-lhe desgostos, mas jurava-me pela luz que a estava alumiando, que seria minha e só minha...

Fiquei contente com a carta, e continuamos a correspondência. A viúva, certa da paixão da filha, fez o diabo. Começou por não ir mais à Campestre; trancou as janelas, não ia a parte nenhuma; mas nós escrevíamos um ao outro, e isso bastava. No fim de algum tempo, arranjei meio de vê-la, à noite, no quintal da casa. Pulava o muro de uma chácara vizinha, ajudado por uma boa preta da casa. A primeira coisa que a preta fazia era prender o cachorro; depois, dava-me o sinal, e ficava de vigia. Uma noite, porém, o cachorro soltou-se e veio a mim. A viúva acordou com o barulho, foi à janela dos fundos, e viu-me saltar o muro, fugindo. Supôs naturalmente que era um ladrão; mas no dia seguinte, começou a desconfiar do caso, meteu a escrava em confissão, e o demônio da negra pôs tudo em pratos limpos. A viúva partiu para a filha:

— Cabeça de vento! peste! Isto são coisas que se façam? Foi isto que te ensinei? Deixa estar; tu me pagas, tão duro como osso! Peste! peste!

A preta apanhou uma sova que não lhes digo nada: ficou em sangue. Que a tal mulherzinha era das arábias! Mandou chamar o irmão, que morava na Tijuca, um José Soares, que era então comandante do 6º batalhão da Guarda Nacional; mandou-o chamar, contou-lhe tudo, e pediu-lhe conselho. O irmão respondeu que o melhor era casar Cecília sem demora; mas a viúva observou que, antes de aparecer noivo, tinha medo que eu fizesse alguma, e por isso tencionava retirá-la de casa, e mandá-la para o convento da Ajuda; dava-se com as madres principais...

Três dias depois, Cecília foi convidada pela mãe a aprontar-se, porque iam passar duas semanas na Tijuca. Ela acreditou, e mandou-me dizer tudo pela mesma preta, a quem eu jurei que daria a liberdade, se chegasse a casar com a sinhá-moça. Vestiu-se, pôs a roupa necessária no baú, e entraram no carro que as esperava. Mal se passaram cinco minutos, a mãe revelou tudo à filha; não ia levá-la para a Tijuca, mas para o convento, de onde sairia quando fosse tempo de casar. Cecília ficou desesperada. Chorou de raiva, bateu o pé, gritou, quebrou os vidros do carro, fez uma algazarra de mil diabos. Era um escândalo nas ruas por onde o carro ia passando. A mãe já lhe pedia pelo amor de Deus que sossegasse; mas era inútil. Cecília bradava, jurava que era asneira arranjar noivos e conventos; e ameaçava a mãe, dava socos em si mesma... Podem imaginar o que seria.

Quando soube disto não fiquei menos desesperado. Mas, refletindo bem compreendi que a situação era melhor; Cecília não teria mais contemplação com a mãe, e eu podia tirá-la por justiça. Compreendi também que era negócio que não podia esfriar. Obtive o consentimento dela, e tratei dos papéis. Falei primeiro ao Desembargador João Regadas, pessoa muito de bem, e que me conhecia desde pequeno. Combinamos que a moça seria depositada na casa dele. Cecília era agora a mais apressada; tinha medo que a mãe a fosse buscar, com um noivo de encomenda; andava aterrada, pensava em mordaças, cordas... Queria sair quanto antes.

Tudo correu bem. Vocês não imaginam o furor da viúva, quando as freiras lhe mandaram dizer que Cecília tinha sido tirada por justiça. Correu à casa do desembargador, exigiu a filha, por bem ou por mal; era sua, ninguém tinha o direito de lhe botar a mão. A mulher do desembargador foi que a recebeu, e não sabia que dizer; o marido não estava em casa. Felizmente, chegaram os filhos, o Alberto, casado de dois meses, e o Jaime, viúvo, ambos advogados, que lhe fizeram ver a realidade das coisas; disseram-lhe que era tempo perdido, e que o melhor era consentir no casamento, e não armar escândalo. Fizeram-me boas ausências; tanto eles como a mãe afirmaram-lhe que eu, se não tinha posição nem família, era um rapaz sério e de futuro. Cecília foi chamada à sala, e não fraquejou: declarou que, ainda que o céu lhe caísse em cima, não cedia nada. A mãe saiu como uma cobra.

Marcamos o dia do casamento. Meu pai, que estava então em Santos, deu-me por carta o seu consentimento, mas acrescentou que, antes de casar, fosse vê-lo; podia ser até que ele viesse comigo. Fui a Santos. Meu pai era um bom velho, muito amigo dos filhos, e muito sisudo também. No dia seguinte ao da minha chegada, fez-me um longo interrogatório acerca da família da noiva. Depois confessou que desaprovava o meu procedimento.

— Andaste mal, Venâncio; nunca se deve desgostar uma mãe...

— Mas se ela não queria?

— Havia de querer, se fosses com bons modos e alguns empenhos. Devias falar a pessoa de tua amizade e da amizade da família. Esse mesmo desembargador podia fazer muito. O que acontece é que vais casar contra a vontade da tua sogra, separas a mãe da filha, e ensinaste a tua mulher a desobedecer. Enfim, Deus te faça feliz. Ela é bonita?

— Muito bonita.

— Tanto melhor.

Pedi-lhe que viesse comigo, para assistir ao casamento. Relutou, mas acabou cedendo; impôs só a condição de esperar um mês. Escrevi para a Corte, e esperei as quatro mais longas semanas da minha vida. Afinal chegou o dia, mas veio um desastre, que me atrapalhou tudo. Minha mãe deu uma queda, e feriu-se gravemente; sobreveio erisipela, febre, mais um mês de demora, e que demora! Não morreu, felizmente; logo que pôde viemos todos juntos para a Corte, e hospedamo-nos no Hotel Pharoux; por sinal que assistiram, no mesmo dia, que era o 25 de março, à parada das tropas no Largo do Paço.

Eu é que não me pude ter, corri a ver Cecília. Estava doente, recolhida ao quarto; foi a mulher do desembargador que me recebeu, mas tão fria que desconfiei. Voltei no dia seguinte, e a recepção foi ainda mais gelada. No terceiro dia, não pude mais e perguntei se Cecília teria feito as pazes com a mãe, e queria desfazer o casamento. Mastigou e não respondeu nada. De volta ao hotel, escrevi uma longa carta a Cecília; depois, rasguei-a, e escrevi outra, seca, mas suplicante, que me dissesse se deveras estava doente, ou se não queria mais casar. Responderam-me vocês? Assim me respondeu ela.

— Tinha feito as pazes com a mãe?

— Qual! Ia casar com o filho viúvo do desembargador, o tal que morava com o pai. Digam-me, se não é mesmo obra talhada no céu?

— Mas as lágrimas, os vidros quebrados?...

— Os vidros quebrados ficaram quebrados. Ela é que casou com o filho do depositário, daí a seis semanas... Realmente, se os casamentos não fossem talhados no céu, como se explicaria que uma moça, de casamento pronto, vendo pela primeira vez outro sujeito, casasse com ele, assim de pé para mão? É o que lhes digo. São coisas arranjadas por Deus. Mal comparado, é como no voltarete: eu tinha licença em paus, mas o filho do desembargador, que tinha outra em copas, preferiu e levou o bolo.

— É boa! Vamos à espadilha.

Fonte:
Machado de Assis. Contos avulsos. Publicado originalmente na Gazeta Literária, 15 out 1883.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Album de Trovas) - 14

 

Caldeirão Poético LIV


Cláudio de Cápua
São Paulo/SP, 1945 – 2021, Santos/SP

MOCIDADE


Lindo tempo o do sonho e da vontade!
Sem palavra, sequer, que bem o exprima,
o pensamento a erguer-se bem acima
da montanha da vida em claridade!

Tempo feliz da nossa mocidade
que a luz do amor e da ilusão sublima,
quando tudo nos prende e nos anima
ao fio e à teia da felicidade!

Não há quem não conheça, e, conhecendo,
não dê tudo de si para que nunca
deste tempo de paz vá se esquecendo.

Mágoas? Feliz de quem puder vencê-las,
e ver que a mão de alguém seus passos junca
de pérolas, de rosas e de estrelas!
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Colbert Rangel Coelho
Pitangui/MG, 1925 - 1975, Rio de Janeiro/RJ

O LUAR DE MINHA TERRA


Neste luar de minha terra vejo
matizes de saudade pelo espaço,
na evocação do meu primeiro beijo,
na timidez do meu primeiro abraço.

Este luar desperta meu desejo
e volto à juventude; e, passo a passo,
eis-me à beira do cais, no rumorejo
de um passado feliz que eu mesmo traço.

À tua espera, minha grande ausente,
pelo facho de luz que vem da serra,
vejo que surges como antigamente.

E, quando surges, neste mesmo cais,
revivem no luar de minha terra
noites distantes que não voltam mais.
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Colombina
(Adelaide Schloenbach Blumenschein)
São Paulo/SP, 1882 – 1963

ESSE AMOR...


Há um abismo entre nós. E apesar dessa falta
de ventura e de paz, nosso amor continua...
Cada dia é maior, é mais forte e mais alta
e imperiosa a paixão que em nosso sangue estua.

Longe de ti, meu ser emocionado exalta
em rimas de ouro e sol — cada carícia tua!
E em meu verso, integral, canta, fulge, ressalta
o infinito de amor que o teu nome insinua...

Não me podes amar como eu quisera. É certo.
Mas não existem leis, nem certidões, nem peias,
quando os teus olhos beijo e as tuas mãos aperto.

Tardas... Mas, quando vens, eu sinto que me queres,
que pela minha voz, pelo meu beijo anseias,
e sou a mais feliz de todas as mulheres!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Elton Carvalho
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1994

LAVRADOR

Nem bem surgiu o rubro da alvorada,
nem bem a noite se aquietou no monte,
já vai o lavrador levando a enxada
e se perde nos longes do horizonte.

E, após uma exaustiva caminhada,
antes mesmo, sequer, que o sol desponte,
rega a terra querida e abençoada
o suor que lhe escorre pela fronte!

Os que tratam da terra todo o dia
e fazem do trabalho uma alegria
têm a chama divina dos heróis.

Há centelhas de luz nos seus destinos:
lavradores são deuses pequeninos
que, da terra e do nada, criam sóis!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Jacinto de Campos
Canavieiras/BA, 1900 – ????, Rio de Janeiro/RJ

AS DUAS PALMEIRAS


Quando passo, buscando a humana lida,
a alma repleta de ilusões tão várias,
junto à velha choupana carcomida,
vejo duas palmeiras solitárias...

Uma a reverdecer... a outra caída,
num desmancho de palmas funerárias...
E, ao som da harpa do vento, a que tem vida,
saudosa plange salmodias e árias...

Ó tu, que me olvidaste no caminho,
meu coração deixando como um ninho
vazio e triste ao vento balouçando,

a saudade me diz, como em segredo,
que és a palmeira que morreu bem cedo
e eu sou aquela que ficou chorando...

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Mia Couto (O amante do comandante)


Vou contar vos o que se passou há muito tempo no sítio que antepassou este nosso lugarzito. Certa uma vez chegou à nossa aldeia um barco carregado de marinheiros portugueses. O navio não se afeiçoou à praia. Ficou ao largo, escondido nesse longe onde nascem os cacimbos. Os visitantes ficaram lá fechados, sabe se lá que fazendo. Até que, dias passados, do grande barco saiu uma pequena canoa que se aproximou da costa. Nela vinham três portugueses, enroupados e barbalhudos. Com eles havia a mais um preto, como nós. Não era da nossa gente mas falava nossa língua. Esse tipo escuro desceu e acenou um chamamento:

— Quero falar com as humanas pessoas daqui — disse ele.

E deu a seguinte mensagem: que o comandante do navio carecia de um homem urgente e imediato. Que serviço esse homem deveria executar? Serviço de amor, respondeu o tal preto que acompanhava os brancos.

— De amor?

– Sim, de amor carnudo, quer dizer, trabalho de rasga panos, espreme corpo, afaga suspiro. O povo tentou endireitar entendimento: que esse comandante necessitava era de mulher, dessas bastante cheias de polpa e sumo.

— Não, ele precisa é um homem.

— Um homem?

— Sim, um homem. Preferência, um que fale uma porçãozita de português.

— Mas, desculpa: um homem?

Porém, a delegação visitante já rumava de volta ao barco. Ficou se nessa dúvida: seria lapso do tradutor? Entregava se um masculino ou uma feminina? O caso era de séria maka. Das duas: ou era lapso do língua e mandassem um homem masculino isso seria motivo de castigo por parte dos portugueses ou, se o intérprete falara direito e então mandassem uma mulher polpuda, esperar se ia igual zanga. Não se queria ofensa com os brancos. E reuniram se os mais velhos, a acertar verbo com intenção. No final se consensou: o pedido tinha o sexo certo.

— Pediram macho, entregamos macho.

Haveria, sim, que lhe dar o devido e inadiável andamento. Não se queria desobediência com os tugas.

— Mas mandamos qual homem?

Os aldeões perguntavam-se. Até que um dos mais velhos opinou:

— Já sei, mandamos Josinda.

Mas sendo ela fêmea, já parideira e tudo...

Mulher, sim, mas tão pouco feminina que, às primeiras vistas, passava por homem. Sendo que estranha, masculosa e grosseira. Não fosse ela ter tido filhos nem se daria por ela ser, realmente, fêmea.

O mais velho autor da proposta sustentou a ideia. Josinda vinha mesmo a calhar, dourando sobre azul: ela era meio termo, carne e peixe, ambivolátil. Ainda por mais, ela falava a língua dos brancos.

— Nós mandamos Josinda com outro nome, raspamos os cabelos, vestimos lhe de homem. Pelos sins, pelos nãos.

Saiu um miúdo a correr com mandato de comparecimento da mulher quase homem. Encontrou a moça sereiando pelas praias, à procura do príncipe viúvo.

— Josinda, venha nas pressas: estás ser precisada com os brancos.

— Espera que vou puxar lustro nos meus panos.

— Nada disso, você vem assim mesmo, dessa forma.

— Mas assim com roupas de meu pai, pareço mesmo ele.

— Por isso mesmo. A propósito, você vai dizer que se chama Jezequiel.

— Jezequiel? Porquê Jezequiel, nome de macho tão feio?

— Os portugueses gostam muito desse nome.

Josinda se apresentou aos mais velhos. Eles ordenaram muito conselho, tudo em segredo, boca na orelha. Lhe sugeriram o fingimento dos modos, engrossar de maneiras. Por fim, ela se aprontou e se dirigiu ao barquinho dos portugueses. Falou com o marinheiro que vinha buscar a encomenda:

— Lhe gosto de ver nessa farda, luzidinha, o senhor soldado.

— Sou alferes.

— Desculpa, pensava que fosse militar. Me enganei, quem não se engana? O único que não tropeça é o pássaro que avoa no céu.

E lá foram, engolidos pela noite. Os velhos ficaram toda a noite acordados, receosos das novidades. De madrugada, entre o cacimbo, se vislumbrou o barco dos soldados.

— Então, como foi?

Josinda estava de pé dentro do barco, embrulhada nos panos, só os olhos espreitavam. Mas esses mesmos olhos se repletavam de água: a mulher chorava, coisa que nunca lhe fora vista na vida. E assim, em pranto, ela se afundou silenciosa na escuridão. Os velhos, assustados, se despediram dos portugueses, sublinhando nos respeitos.

Mais tarde, se fez a delegação junto à porta de Josinda. A curiosidade fervia: o que teria feito chorar a mulher? Bateram. Mas ela obstinou um silêncio.

Na noite seguinte, viu se aproximar um barco com soldados. O povo, receoso, em cachos, na praia:

— Vem nos matar a todos!

Mas os portugueses não puxaram de violência. Perguntaram por Josinda.

— O nosso comandante precisa outra vez desse Jezequiel.

E uns jovens foram mandados, súbitos, na demanda da desejada mulher. Chegaram a casa dela, explicaram as exigências. Mas Josinda negou, sacudindo a cabeça:

— Digam que não me encontraram.

— Mas os portugueses...

— Deixem-me.

A voz dela era um não, redondo, incontornável. Insistiram, ameaçaram, imploraram. Nada. Os jovens regressaram à praia, de mentira improvisada. Que desde manhã que ninguém punha as vistas no dito e cujo Jezequiel. Os soldados deixaram promessa: um prêmio caso o descobrissem. E a embarcação fez se de regresso ao navio, acabrunhada como um luto.

Na manhã seguinte, vieram dois barcos: os militares desembarcaram e se espalharam a vasculhar casas e matas. As gentes se contraíam, temerosas. Deram com a casa de Josinda mas estava vazia. Não sobrara rastro nem sequer vizinhança dela. Ao fim da tarde, terminaram as buscas e os soldados se remeteram ao grande navio. Ficou um português, encarregado de obter informação sobre esse mencionado amante do comandante. Começou por modos bravios. Que matava, incendiava, violava. Depois, se adoçou em promessa:

— Eu dou dinheiro a quem disser. Dou todo o dinheiro que quiserem.

— Todo!?

— É que vocês nem imaginam como sofre o nosso comandante. Nunca o vimos assim.

Era madrugada quando se viu desembarcar, despenhado e despenteado, o lusitano comandante. Saltou ainda em água, avançou para terra firme, aos berros tresdoidados. Indagava por Jezequiel, rondava em círculos, todo ele fora das órbitas. Depois, tombou em si, debaixo dos próprios ombros, esgotado. Ficou assim, nebulado e rócheo, durante longos momentos. À sua volta, os soldados aguardavam, indecisos. Passou-se um dia inteiro, sem água a ir nem a vir. Até que o militarão deu ordem: eles que regressassem ao barco, levantassem âncora e partissem.

— E o nosso comandante?

— Eu fico.

E ficou. Primeiro, junto às maresias. Depois, partiu pela savana à procura de seu amante de uma noite só. A última coisa que fez ao abandonar a praia foi empunhar um pequeno pauzinho e gatafunhar a areia. Ninguém ali sabia decifrar aqueles desenhos.

Mas um soldado português que ainda regressou à praia admirou-se de ver escrito no chão: Josinda.

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 18

 1º. lugar na Categoria Soneto do  11º Concurso da Academia Madureirense de Letras – 2022

Silmar Böhrer (Croniquinha) 62


Nas horas serenas das manhãs surgem as ideias bem-vindas, benditas, benfazejas, com odores e sabores de pão quente vindo do forno em brasa. E as saboreamos, e as degustamos, e as disseminamos. Mas muitas vezes acordo com o monjolo dos pensares batendo e batendo, gastando águas do pensamento - letrinhas e palavras ficam ali no reservatório sem se encontrarem, fazendo aquele redemoinho que leva a nada - - falta adubo, estrume ou inspiração ?

Pois esta alternância de pensar e escrever - ideias opíparas, ideias vazias - faz parte da história da escrita, da história dos saberes, da história da vida. Os condimentos estão sempre à espera do prato principal para darem a este o gostinho do substantivo e do adjetivo ao alimento-texto que o leitor vai degustar.

Mas (sempre o "mas") quantas vezes os temperos sobressaem deixando o prato principal em segundo plano. Que não se perca o básico, que é o objetivo primeiro dos escreveres.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Giuseppe Paolo Dell'Orso - Feldman (Viagem ao Mundo Fantástico da Babilônia)


Onde? Filme? No Brasil? Onde fica? O que tem de fantástico?

Mas, que você, caro leitor, ficou curioso, com certeza ficou e, apesar de livros como o Guia dos Curiosos ou o Mundo Curioso da Natureza, sempre vem à mente aquilo que nossos pais, os pais deles, os pais dos pais, e assim por diante, diziam: “Meu filho! A curiosidade matou o gato!”.

Fique tranquilo! Após esta leitura, ninguém morrerá, nem de raiva – pelo menos, eu acho.

Nossa história de passa em uma cidade do interior de São Paulo.

Não! Ela não se chama Babilônia!

O nome dela é Piracicaba.

Todo mundo lembra da música “O Rio Piracicaba...” e assim por diante. Se não lembra, não fique chateado, eu também não lembro.

Mas, vamos diminuir a nossa esfera localizacional (“êta” palavra chique, que deixa qualquer um mais perdido do que cego em tiroteio), e vamos para a Rua Boa Morte.

Gente! Os piracicabanos que me perdoem, mas um nome deste é assustador. Eu é que não vou passar nesta rua, sozinho, à meia-noite. Dá o que pensar um nome assim.

Quando você entra na rua deveria haver uma Agencia de Plano Assistencial Boa Morte, com direito a escolha de terreno e advogado para efetuar o testamento. Percorrendo a rua, no meio dela, uma casa funerária e ao final, um cemitério.

- Ô, cumpadi. Pronde ocê vai?

- Prá  Boa Morte.

- Pêsames, finado.

Vamos lá! Pensa um pouco! Um nome destes! Cruz Credo!!!!!

Será que o Bairro se chama Pé na Cova?

Bom! Deixemos estas elocubrações de lado e que sendo boa a morte, resolvi aproveitar a boa vida e fui a um restaurante me fartar no pecado da gula (esta é uma Boa Morte: Comendo bem).

O restaurante chamado Babilônia. Não sei não. Talvez Sodoma e Gomorra casasse mais com o nome da rua. Mas, Babilônia dá um ar de paraíso na Boa Morte.

Entremos neste Éden de delícias, que é comandado pelo César italiano de nome Andrea.

Mas, para não pensarem que eu estou fazendo propaganda do dono que é o Andrea, nascido na Itália (uma duvida fica de repente: Babilônia é colônia italiana?), não vou chama-lo de Andrea, usarei um nome fictício que faz jus aos nomes italianos de seus antepassados. Portanto, Andrea, passa a ser chamado de Toshio Nakama. Portanto, Babilônia é comandada pelo valoroso carcamano Toshio Nakama, que veio da Itália, não recordo bem, mas acho que nas costas de uma tartaruga.

Imagino que seja, pois demorou tantos anos para chegar aqui no Brasil.

Ecco! Tutto bona gente!

Enfim, após a saudação habitual pro-forme: “Ave, Toshio. Os que vão morrer te saúdam”, o banquete estava servido. Uma mesa enorme com iguarias finas dos mais profundos rincões das Itália: feijão, linguiça, palmito, tutu, lazanha. Resumindo, uma salada russa.

Como o leitor pode perceber, nosso amigo Toshio Corleone não discrimina nações.

Mas, o que torna este restaurante fantástico, o que faz viajarmos na Babilônia de nossos sonhos é o molho que é servido por um indivíduo que é uma mistura de Corcunda de Notre Dame com o ator Jean Reno, isto é, é de dar pena, parece uma trombada de dois trem-bala. Este molho, se chama Righetti.

E o bacana de tudo é que quando as pessoas vão lá, vão para comer o Righetti.

- Porque você vai tanto no Babilônia?

- Adoro comer o Righetti.

Vão lá! O Righetti é fantástico!

Concomitantemente (êta palavra linda, e enooooooooooooooorme. Não sei bem o que significa, mas que é bacanona é!), depois que todos comem o Righetti, Toshio Nakama percorre as mesas observando a todos e animando com o seu bom-humor. Afinal por lá tudo é bom. Bom apetite, bom humor, boa morte...ahhhh! A Boa Morte outra vez!

Todos que saem de lá se sentem transportados aos Jardins da Babilônia, um paraíso perdido, ainda mais porque comeram o famoso Righetti.

Finalmente, para não encerrar sem uma boa mensagem a quem suportou esta crônica até agora, não recordo onde li, mas vamos lá:

“O discípulo veio ao mestre Zen, lamentando-se, em plena fossa:

- É curta a vida! É curta a vida!

O mestre Zen, porém aproveitando as mesmas palavras, com variante na pontuação, solucionou:

- É curta a vida, é? Curta a vida!”
------------------------

Observação: O Restaurante Babilônia onde Toshio Nakama me aguarda todos os dias com um machado na mão (não sei porquê), fica na Rua Boa Morte, 1262, em Piracicaba. Não esqueçam de dizer que querem comer o Righetti.

(outubro 2009)

Ruy Barata (Pará Poético)

Foto do poeta do Acervo da Família

ARTE POÉTICA


Ah o ofício,
as contorções da espera,
entre a noite e a madrugada!
O litúrgico olhar abre cortinas,
o anjo adormeceu,
dança arbitrária
a minha barba de duzentos anos.
Quem poderá restituir-me intacto ao mistério
com o perfume de rosa não tocada?
Quem senão tu,
cântaro e fonte,
abrigo,
terra e pátria onde se esconde
a negra cicatriz que o peito ostenta?
Eis porque espero
(entre a noite e a madrugada)
para que salves
ou lances no infortúnio
o litúrgico olhar que em nova busca
apodrece sob o sol do desespero.
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FOI ASSIM

Foi assim,
como um resto de sol no mar,
como os lenços da préamar,
nós chegamos ao fim.

Foi assim,
quando a flor ao luar se deu,
quando o mundo era quase meu,
tu te foste de mim.

“Volta, meu bem”, murmurei.
“Volta, meu bem”, repeti.
“Não há canção nos teus olhos,
nem amanhã nesse adeus!”

Horas, dias, meses se passando
e, nesse passar, uma ilusão guardei:
ver-te novamente na varanda,
a voz sumida e quase em pranto,
a murmurar “meu bem, voltei”.

Hoje essa ilusão se fez em nada
e a te beijar outra mulher eu vi,
Vi no seu olhar envenenado
o mesmo olhar do meu passado
e soube então que te perdi.
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BRAÇOS DE SEDA

Ontem,
quando a morte passou
carregando meu corpo,
não sei se para o céu,
ou qualquer outro porto,
onde houvesse lugar
para um filho de Ogum,
eu vi que havia luz e madrugada
e um solo de canção desesperada,
nos olhos da mulher que não me amou.

Ontem,
quando a morte passou,
lá no bar onde bebo,
e como linda Inês,
posta em sossego,
em seus braços de seda me tomou,
senti que a vida inteira me fluía
e que a triste canção que eu perseguia
jazia na mulher que não me amou.
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ANJO DOS ABISMOS

Quero chegar diante de ti
não como o vulto familiar que doura o teu sossego,
não como a imagem do sonho
que se perde na bruma,
mas como o fantasma de dentro de ti mesmo.
Quero chegar diante de ti,
e olharás minha longa cabeleira,
minhas faces esvoaçantes,
meus olhos incolores
e adivinharás que atravessei
os limites do eterno.
Ó esta noite todas as luzes estarão veladas pelo sono,
todos os silêncios serão devorados
pela eternidade,
todas as chagas ressurgirão das dores,
todos os olhos estarão desmesuradamente abertos
mas não poderemos sentir
a Sua presença
porque então passamos à pátria das essências.
Esta noite chegarei diante de ti,
nossas almas se confundirão na grande viagem,
nossos olhos se alongarão ao paraíso dos símbolos
onde nasce o grande mar das almas moribundas.
Chegarei sobre a tranquilidade dos teus cânticos
e te assombrarás com este vulto notívago de morto
que se suspende milagrosamente além dos tempos
e que conduz as asas multicores
no derradeiro voo das espécies.
Ó sim sou eu por sobre as nebulosas,
fantasma que povoa quatro mundos,
imagem perdida e mais tarde encontrada
no limitado céu da poesia.
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HELENA

Da tristeza e da alegria
Somente Helena sabia,
Sabia porque sabia
do bordel à Eucaristia.
Sabia porque sabia
que a noite clareia o dia.

De tantas e tontas coisas
Sabia Helena sabia.
Regando seus muitos sonhos
penteando a maresia
lavando léguas de lodo
no limbo da poesia.

E assim costurava o caos
com a linha da fantasia
a nossa Helena dos bares
aquela que mais sabia
que sabendo se lembrava
e lembrando se esquecia.


Filemon Martins (Tragédia no Jordão)

Poucas pessoas conhecem e alguns moradores da região não se lembram desta história. Nem sempre com um final feliz, como gostaríamos. Essa é uma delas. Mas o pesquisador deve registrá-las, sob pena de alguns fatos se perderem no tempo.

Não deixar que isso aconteça é a missão de quem escreve.

O rapaz viveu boa parte de sua vida na cidade de Jordão. Não se casou, mas ali trabalhava na lavoura plantando e colhendo milho, feijão, mandioca, além de frutas como mamão, romã, mangas de várias espécies, limão, laranjas, melancia, abóboras e outros legumes.

Com o passar dos anos o José foi acometido por uma doença mental, de tal forma que ele já não suportava conviver na cidade. Não queria mais contato com seres humanos. A família, mais conhecida como os "Bruarcas", então, começou a buscar uma solução para driblar a situação delicada que o destino lhe impôs.

É que a população da pequena cidade quando se referia ao moço, chamavam-no de "Zé doido", o que causava mais constrangimento à família.

Construíram, então, uma casinha na roça, propriedade da família, onde o moço poderia morar e trabalhar na lavoura, sem a importunação de curiosos e pessoas de má índole. Assim, o rapaz foi morar afastado da cidade e do contato com pessoas para ele estranhas. Só alguns familiares o visitavam para levar-lhe comida e limpar a casa, eventualmente.

Mais de trinta anos se passaram e a vida do moço, agora já idoso, continuava naquela rotina. Ele não via, nem conversava com ninguém, a não ser alguns familiares que cuidavam dele dentro do possível. Enquanto isso, a cidadezinha saiu da escuridão total e passou a ter luz elétrica das 19h às 21hl0min no máximo. É que essa luz era gerada por motores elétricos. Aliás, é bom lembrar que todas as cidades da região tinham esse tipo de iluminação. Por volta de 21h5min havia o primeiro sinal.

A luz piscava e os moradores já se preparavam acendendo os candeeiros para iluminar as casas. 21hl0min a luz apagava literalmente e a escuridão nas ruas era total.

Quem saía às ruas depois desse horário, usava obrigatoriamente uma lanterna. Era um festival de luzes indo e vindo pelas ruas e praças da cidade, como se fossem vaga-lumes a iluminar a escuridão da noite, A mais próxima Usina Hidrelétrica era de Paulo Afonso. A Usina Hidrelétrica de Sobradinho foi construída muito tempo depois, quando a região do Sertão foi finalmente contemplada. No mês de junho tradicionalmente de festas no calendário católico, 13 de junho - Santo Antonio, 24- São João e 29 - São Pedro, alguns rapazes decidiram entre si, por brincadeira, trazer o "Zé doido" para rever a cidade e de alguma forma participar dos festejos que se realizavam na cidade.

Assim se fez e o Zé estava extasiado com o crescimento da cidade, quando entrou a noite e as luzes se acenderam, foi aquela aclamação do povo. Enquanto isso, o Zé andava pra lá e pra cá pelas ruas da cidade, e acabou se distanciando do grupo, no momento em que as luzes se apagaram. Sobreveio a escuridão e o Zé perdido, desnorteado, pervagava pelas ruas sem saber para onde ir. Corria e andava de um lado para outro, já adentrando roças, pulando cercas, atravessando pastos e acabou se dirigindo, sem saber, para os lados de uma cacimba com alguma profundidade, anexa à Lagoa, ainda hoje existente, e ao pular mais uma cerca caiu naquela cacimba funda, onde se afogou, sem que ninguém o visse e pudesse salvá-lo. O que era brincadeira tornou-se sério e o Zé ficou desaparecido naquela noite. O corpo só foi encontrado no outro dia, quando o pessoal descobriu rastros e se deslocou para o local da cacimba, onde o corpo estava boiando. Seu sepultamento ocorreu no cemitério local.

Assim terminou a vida do "Zé doido", aqui na terra, por culpa talvez de uma brincadeira que acabou mal, como tantas outras que conhecemos ao longo da vida...

Fonte:
Filemon Martins. Caminhos do Jordão da Bahia. SP: RG Editores, 2022.
Livro enviado pelo autor.