sexta-feira, 7 de julho de 2023

Baú de Trovas LXVI


No trinado de um chorinho,
fala a música por mim...
da sacada, o seu lencinho
ela acena e diz que... sim!
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR
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Quanta harmonia esquecida
no mundo sem coração
que deixa a infância perdida
nas ruas da solidão.
ADELIR MACHADO
São Gonçao/RJ, 1928 - 2003, Niterói/RJ
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Tarde demais recomeças!
Pois sobrevivo risonho,
ao dilúvio de promessas
onde afogaste o meu sonho...
ALBA CHRISTINA CAMPOS NETTO
São Paulo/SP
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Eu só conquistei da vida,
por mais que forçasse os braços,
uma fronte embranquecida
e um coração em pedaços.
AMÁLIA MAX
Ponta Grossa/PR, 1929 – 2014
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Por ser da lista, o primeiro,
jamais entendi por que,
conquistei o mundo inteiro,
mas não conquistei você...
ANALICE FEITOZA DE LIMA
Bom Conselho/PE, 1938 – 2012, São Paulo/SP
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Não quero glória, dinheiro,
nem mil conquistas sem fim...
Troco os "nãos" do mundo inteiro
pela graça do teu sim!
ARLINDO TADEU HAGEN
Juiz de Fora/MG
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Não há ninguém que resista
aos caprichos da mulher
que, quando cisma, conquista
até mesmo o que não quer!
ARMINDO DOS SANTOS TEODÓSIO
Brumadinho/MG
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Cada dia mais tristonho
carrego o peso das eras,
vendo afogar-se meu sonho
num dilúvio de quimeras!
CLARINDO BATISTA DE ARAÚJO
Jardim do Piranhas/RN, 1929 – 2010, Natal/RN
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Alguém me disse: - Desista
de sonhar, de ter anseios!
É que eu vivo da conquista
dos meus próprios devaneios!
DELCY RODRIGUES CANALLES
Porto Alegre/RS
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O calor dos teus abraços
e o fulgor do teu olhar
são conquistas que os meus braços
têm vontade de alcançar.
DÉSPINA ATHANÁSIA PERUSSO
São Jerônimo da Serra/PR
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Samba, morena... e rebola
à frente da bateria,
porque a harmonia da Escola
se espelha em tua harmonia!...
EDMAR JAPIASSÚ MAIA
Nova Friburgo/RJ
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Batalha infinda e silente
é o da terra em seu labor:
na conquista da semente
gera o fruto, a sombra e a flor!
ELIANA DAGMAR
Amparo/SP
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Tropeiro da mocidade
galopando a solidão,
foste conquista, e és saudade
que deixa rastro em meu chão...
ELIAS PESCADOR
São Paulo/SP
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Quase um dilúvio parece,
a forte chuva lá fora,
unida ao pranto que desce
nesta saudade que chora!
ERCY MARIA MARQUES DE FARIA
Bauru/SP
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Não que eu seja pessimista
mas causa um certo desgosto
ir de conquista em conquista
traçando o nada em meu rosto!...
EUGÊNIA MARIA RODRIGUES
Rio Novo/MG
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Lograi, pretensos astutos,
louros da conquista inglória,
porque a derrota dos justos
tem o sabor da vitória!
HELOÍSA ZANCONATO PINTO
Juiz de Fora/MG
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O céu, o ar e o luar,
a mata, animais e flores...
E o homem quer acabar
essa harmonia de cores!...
HERMOCLYDES SIQUEIRA FRANCO
Niterói/RJ, 1929 – 2012, Rio de Janeiro/RJ
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Dentro da noite, um chorinho
cai do silêncio, em cascata...
É o soar de um cavaquinho
dando tons à serenata!
HÉRON PATRÍCIO
Ouro Fino/MG, 1931 – 2018, Pouso Alegre/MG
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Quem pela força conquista,
não conquista de verdade;
não há força que resista
à força da liberdade!!!
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP
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Sonhando horizontes novos,
pela harmonia que irmana,
vislumbro a paz entre os povos
à luz da harmonia humana!
JOÃO FREIRE FILHO
Rio de Janeiro/RJ, 1941 – 2012
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A gente, às vezes, a exorta
mas raramente a procura...
E a Harmonia é a grande porta
por onde passa a Ventura!
JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO
Vila Nova de Famalicão/Portugal, 1922 – 2004, Rio de Janeiro/RJ    
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Se em meu rumo há sombra adiante,
em vez de parar, tristonho,
prossigo perseverante
na conquista do meu sonho!
JOSÉ TAVARES DE LIMA
Juiz de Fora/MG
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Das conquistas festejadas
nas searas dos amores,
restam fotos desbotadas,
penas, saudades e dores!...
LACY JOSÉ RAYMUNDI
Garibaldi/RS
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Nos meus sonhos apostei
e ao jogar alto e arriscado,
muito pouco eu conquistei
e a vida cobrou dobrado!...
MARILÚCIA REZENDE
São Paulo/SP
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Podem chamar-me os ateus
de tolo ou mesmo demente,
mas harmonia, só Deus
põe dentro da alma da gente...
MILTON NUNES LOUREIRO
Campos/RJ, 1923 – 2011, Niterói/RJ
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Pedido sério e profundo
vosso humilde servo faz:
- Derramai, Deus, sobre o mundo
dilúvio de Amor e Paz!
REINALDO AGUIAR
Natal/RN, 1921 – 2010
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Daquele amor proibido
eu guardo, da mocidade,
um lenço amarelecido
e um dilúvio... de saudade!
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP
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Eu sempre lutei sentindo,
nesta arena em que se vive,
a mão de Deus dirigindo
cada conquista que eu tive.
VANDA FAGUNDES QUEIROZ
Curitiba/PR
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Com passadas inseguras,
no final das caminhadas,
vou carpindo as desventuras
das conquistas fracassadas!
VASQUES FILHO
Teresina/PI, 1921 – 1992, Fortaleza/CE
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Vestindo de fantasia
a nudez pura dos tons,
os artesãos de harmonia
colocam alma nos sons.
WALDIR NEVES
Rio de Janeiro/RJ, 1924 – 2007
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Ao luar, que me arrebata,
sem você, se ouço um chorinho,
a saudade que maltrata
me faz chorar de mansinho.
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG
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Tem-se às vezes na batalha
uma vitória aparente,
pela conquista que espalha
derrota dentro da gente.
WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ
Curitiba/PR
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Como incansável titã
numa batalha sem fim,
eu parto toda manhã
para a conquista de mim.
WALTER FRANCINI
São Paulo/SP, 1926 – 1996
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Conquista é jogo de azar
e, no amor, jogo pesado;
querendo te conquistar,
eu é que fui conquistado!
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP
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Jaqueline Machado (Pessoa Feliz, Mundo Contente)

O planeta Terra não é um lugar de paz. Todavia, a turbulência existente nele, não é por causa do mundo em si, mas por causa da humanidade que, não se sabe o porquê, vive em constante rebeldia.

O homem já nasce rico, com as belezas e farturas da natureza a seus pés, ainda assim, independente da idade que possui, nunca deixa de ser um adolescente rebelde.

Eis que a Grande Mãe, ao guardar a espécie humana em seu Ventre Sagrado e a nutri–la em seus seios fartos, vem lamentando a criação humana, que é bela, porém, ingrata.

Os conflitos mundiais, sempre existiram, mas de período em período, a situação se agrava.

O ser humano pode escolher viver nos moldes da paz, do amor e da justiça, no entanto, nossa espécie vem demonstrando contrariedade a toda e qualquer ordem pacifista.

A polaridade se instalou. Tem gente pra todo lado criando inimizade para defender homens do cenário político que pouco estão se importando com seus apoiadores: estão preocupados, sim, em defender na ponta da língua, a cartilha de “O PRÍNCIPE, escrita por Maquiavel.

Em meio a tantas verdades sem consistências, as pessoas se perderam de si. E ainda temos a questão das redes sociais que se tornaram depósito de lixo. Repletas de posts com teores de cobranças, críticas, sermões, humor sombrio, deboche, agressividades e, de fundo, estantes com porta-retratos exibindo a vida perfeita. A coerência sobre as verdades parece ter entrado em surto, pois os sintomas da infelicidade são evidentes.

A toxicidade é imensa... E temo por piores resultados, extraídos de todo esse veneno, ora velado, ora exposto de cara limpa para aqueles que querem e também aos que não querem encarar a feiura dos fatos. Redes sociais são ótimas, mas para fazer amizades, divulgar mensagens de bons sentimentos, imagens da vida real, na intenção de promover o bem, a internet torna-se um veículo abençoado. Mas quando usada para promover o mal, vira bagunça, terra de ninguém.

Em pensar que nada disso se faz necessário ao nosso viver, fico a me perguntar: por que em vez da luz, se escolhe a treva? No lugar do amor, se optou pelo ódio?

Não seria bem mais simples e belo, viver pacificamente, sob a égide do verdadeiro amor fraterno?

No momento se fala muito em Cristo, mas poucos praticam os preceitos do Cristo pacificador.

- E por falar no Mestre, foi Ele quem pediu: “Amai uns aos outros como eu vos amei”. No entanto, o que se vê é um tentando destruir o outro a todo instante.

Penso que é chegada a hora de fazer as pazes com a vida. Como? Buscando autoconhecimento, buscando entender a grandeza das coisas simples, buscando marcar encontros com a felicidade. Porque quem é feliz, não compete, não julga, não destrói. Pessoa feliz, mundo CONTENTE!

Fonte:
Texto enviado pela autora

Aparecido Raimundo de Souza (Zona de impacto)

O MENINO ENGRAXAVA sapatos no centro da cidade, e, naquele momento, cruzava a ponte voltando para casa com a sua caixinha debaixo do braço. De repente, seus olhos argutos e muito vivos avistaram a peça que descia, rio abaixo, ao sabor do vento morno da tarde ensolarada. Como um doido danou a correr gritando para o pessoal que bebia cerveja na birosca do Waldemar, em torno de um outro grupinho que tocava cavaco, surdo, reco-reco e pandeiro:

— O sofá, o sofá, venham ver, o sofá!...

A rapaziada se pôs de pé e acorreu para onde o moleque apontava o precioso achado.

Em pouco tempo, uma multidão incontável de moradores da Favela do Elefante, ao ouvir os berros e perceber o corre – corre, engrossou a massa dos curiosos. Era assim: qualquer novidade mudava o quadro daquelas famílias pacatas e humildes. Num abrir e fechar de olhos, o cotidiano saia do marasmo e explodia para uma espécie de alvoroço inusitado. A miséria se escondia num canto, e, em seu lugar, nascia o momento mágico do irreal e do ilógico. Saídos de ruelas e becos os mais diversos, homens de bicicleta e sem camisa, mulheres com crianças no colo e agarradas às barras de seus vestidos imundos, paravam os afazeres.

Os comerciantes cerravam as portas de suas vendas e lojinhas para se juntarem à raia miúda que, em polvorosa, se acotovelava em fila tripla, espalhada por toda a extensão ribeirinha com a finalidade de bisbilhotar o que o rio trazia em seu leito. Misturado em meio a tubos de óleo, pedaços de sacolas, sacos plásticos, latas de cerveja e refrigerante, garrafas descartáveis, restos de acampamentos e piqueniques, lá vinha, boiando, meio capenga, o enorme sofá vermelho de courvin. Nessa altura, alguém lembrou de chamar o Rubião Mathias, líder comunitário que, junto com um vereador local e um representante do prefeito, faziam um trabalho voluntário exatamente no sentido de conscientizar os cidadãos da periferia a não jogarem dejetos no velho rio, que às vezes, dava a impressão de estar morrendo em lenta agonia.

A bem da verdade, não estava. Quando chovia por muitas horas, a favela virava um inferno. Se o temporal perdurasse por muitas horas, as águas subiam acima do nível normal, atravessavam o asfalto, engarrafavam o trânsito, invadiam os barracos e muitas vezes deixavam famílias inteiras ao desabrigo. Afora o desespero de perderem o pouco que possuíam, a tragédia, nessas ocasiões, não vinha sozinha. Trazia, consigo, a desgraça e a incerteza de um amanhã cheio de dores. A maioria das cabeças-de-porcos que ocupava praticamente todo o terreno no qual se fundava o vilarejo dos casebres, fora construída com caixas de papelão envoltas em plásticos e cobertas, a depois, com folhas de zinco.  

Muitas vezes essas construções precárias não resistiam ao temporal, e, em consequência, vinham abaixo e, com elas, à desoladora infelicidade de radicados aparecerem mortos – vez que, na hora do furdunço (tentando resgatar um aparelho de teve, roupas de cama e até comida), não atinavam com o bom senso de largarem tudo e escaparem em tempo de salvar a própria pele. Mas, nesse dia, não havia chovido. O cotidiano transcorrera calmo e sossegado. O rio apresentava um curso coberto por uma película oleosa, onde uma variedade de micro-organismos perigosos proliferava à céu aberto. Sem contar nos cinco milhões de metros cúbicos de sedimentos, dejetos e efluentes de esgotos industriais e domésticos, bem ainda coliformes fecais e descargas de outros afluentes que terminavam se juntando a ele, a rotina seguia a sua prossecução normal.  

Não tivesse, igualmente, o pestinha dado o alarme, a favela findaria o resto da tarde em clima de total imperturbabilidade:

— O Sofá, o sofá. Venham ver!...         

O que teria de tão extraordinário e estupefaciente naquele cacareco mal-ajambrado, para movimentar uma centena de desocupados e vadios em torno de sua presença? Por que a favela, em peso, se levantou num salto gigantesco para lhe colocar os olhos em cima? Não se constituía, o agastado trambolho, apenas num velho móvel vermelho à base de fibras sintéticas de polímero à imitação dos couros? Que estranho mistério o envolvia? As respostas se ocultavam condensadas num fato acontecido algumas semanas atrás. Um traficante conhecido como “Chiquinho Fumaça” havia sido preso junto com seu bando num arrastão que a polícia fizera, sem aviso, em sua brejada.

Os representantes da lei, contudo, não encontraram nada do que procuravam, ou seja, pinos de cocaína, pedras de craque e maconha. O “Chiquinho” comandava uma boca de fumo da pesada, no coração da favela, mas, na hora do “pega pra capar”, não havia nada que o incriminasse. O sujeito parecia ter trato com a “Coisa Ruim.” Algumas horas antes de ser levado para a carceragem, como que adivinhando e antevendo os acontecimentos, operou um processo rápido e rasteiro de “engravidamento” no divã, ou seja, acondicionou tudo que se relacionava ao seu comércio ilegal, numa espécie de fundo falso e bem camuflado.

Contratou um carroceiro de fora da favela e transportou o “material”, incluindo dinheiro, joias e uma vultuosa quantia de dólares para a casa de uma de suas amantes que morava numa outra “paraisópolis”, não muito distante, também, por coincidência, à beira do mesmo rio e, cujo endereço até o próprio diabo desconhecia. O interessante, nessa história, é que a moça que recebeu o sofá sabia que o companheiro vivia às margens da lei, contudo, não atinava com o segredo valioso que ele escondia dentro de si.  Na segunda noite, contudo, o inesperado veio à baila. O “Chiquinho” apareceu enforcado misteriosamente em sua cela. Sua morte foi comentada em todos os jornais e programas de televisão.

A amante, logo que soube dos fatos, e, temerosa de se ver envolvida com a Federal, resolveu ir embora da cidade. Fez as malas e, antes de abandonar, de vez, o barraco, achou por bem “dispensar” o sofá, atirando o seu esqueleto às águas correntes do rio. Quando a notícia da morte de “Chiquinho” se espalhou pelas malhas do Elefante, muita gente, na calada da noite, resolveu tomar posse dos bens do falecido. Todos sabiam que o camarada tinha culpa no cartório.  Só não entenderam como os cachorrinhos da lei não o flagraram com a boca na botija.  Em meio a tanto disse-disse, a vizinhança e os próprios colegas de infortúnio, por unanimidade, concluíram que o espertalhão havia “enxertado”, de alguma forma, a estrutura interna do velho sofá vermelho e sumido com ele, sabe Deus, para onde.

A prova disso, é que os bobocas da lei ficaram de mãos abanando, a ver navios. Depois de alguns dias, caso passado, outros investigadores retornaram à favela a fazerem perguntas. Claro, que uma cáfila de gente lembrou do carroceiro e da carroça fretada. Claro que uma manada de bocós chegou a ver, realmente, o sofá vermelho saindo, numa boa, tranquilo, sem atropelos. Porém, nesses lugares, ainda impera a lei severa do silêncio. Conclusão: mesmo que algum idiota tivesse visto ou presenciado qualquer tipo de manobra estranha, faria, com certeza, vistas grossas, ou colocaria um zíper na língua para não ser assassinado e amanhecer com a fuça cheia de formigas.

Entretanto, na tarde daquele dia, o porra do menino voltava da cidade onde trabalhava engraxando sapatos. De repente, no meio da ponte, seus olhos argutos e muito vivos avistaram a peça que descia, rio abaixo, ao gostoso do vento morno da tarde ensolarada. Sem conter as travas da língua, se abriu em alardeios tonitruantes que ecoaram por toda a geografia do sofrido complexo da área “slum”:

— O sofá. Venham ver. O sofá do Chiquinho está vindo ali, venham, venham depressa...

Tanta gente se fez ao rio, como moscas ao mel, urubus à carniça, pombos à migalhas de algumas guloseimas, que, em menos de cinco minutos, a velha bugiganga, como por encanto, desapareceu.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

quinta-feira, 6 de julho de 2023

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 30

 

Concurso de Trovas Memorial “Cláudio de Cápua” (breve)


O Blog Singrando Horizontes, comemorando 16 anos de existência, com quase 18 mil publicações e cerca de 3 milhões de leitores, fará realizar o Concurso de Trovas homenageando o trovador falecido em Santos/SP, Cláudio de Cápua.

Breve será publicado o regulamento neste blog, parceria com academias e associações. Serão enviados emails aos cerca de 400 trovadores cadastrados no blog, e divulgado nas redes sociais, academias e sites/blogs outros.

Cláudio de Cápua, aviador, jornalista profissional. Especialista em jornalismo cultural, nas áreas de Artes Plásticas e Literatura, com publicações em diversos veículos de Comunicação da Pauliceia e Litoral paulista. Lato Sensu em História da Arte (Universidade Mackenzie), graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Santos. Nasceu em 8 de março de 1945, São Paulo/SP. Iniciou na TV Tupi em um grupo que adapta obras literárias para novelas, na década de 70. Produtor e diretor de jornalismo especializado (arte, cultura e lazer) na TV Gazeta, entre 1978 e 1980. Editou a Revista Santos Arte e Cultura, da qual foi editor e articulista. Biógrafo, prosador e poeta, foi um dos fundadores da “União Brasileira de Trovadores”, Seção de São Paulo e, desde 1980, parte do quadro associativo da Seção de Santos. Conquistou vários prêmios em Concursos de Trovas em território nacional. Cláudio de Cápua, que era casado com Carolina Ramos, faleceu em Santos/SP, onde se radicou definitivamente, a 5 de dezembro de 2021, aos 76 anos.

J. Feldman
Editor do Blog e Organizador do Concurso

George Abrão (Voltar no tempo)

Quantas vezes você deve ter pensado ou mesmo ouvido dos amigos a frase:

- Ah! Como seria bom voltar no tempo!

Voltar a ser criança! Voltar a sentir o carinho e a proteção dos pais; a fazer as primeiras amizades; a conhecer e se apaixonar pela primeira professora; a aprender as primeiras letras; a brincar nas ruas, correr descalço, sem camisa, sentindo a brisa no rosto.

Como seria bom voltar a ouvir a voz de sua mãe: - Filho, acorde, está na hora de ir para a escola; a sentir o afeto do seu pai levando-o pela mão; a conviver com seus irmãos; a passear na casa dos seus avós; a saborear os docinhos que a vovó fazia; a brincar com seu brinquedo preferido.

Voltar a ser adolescente, fazer parte do grupo de amigos; ir ao cinema; participar de passeios; nadar nos rios; ser convidado para as festinhas; dançar pela primeira vez; conquistar a primeira namorada; roubar o primeiro beijo; sentir-se um “quase adulto”.

E sentir a angústia da primeira saída de para estudar fora; o medo do desconhecido; o conhecimento de novos locais e novas pessoas; aprender a “se virar” sem a presença da mãe protetora; a alegria da volta para casa nos fins de semana; o reencontro com os velhos amigos; e a abertura de novos horizontes.

E depois, sentir a emoção do primeiro emprego; dos erros e acertos; de comprar a primeira roupa com recursos próprios e mais tarde o primeiro carro; do primeiro olhar para aquela que seu coração elegeu; das doces juras de amor e das pequenas rusgas; da saudade permanente dela nos momentos que estão separados; do sublime momento de seu casamento; das viagens e dos passeios a dois e das escolhas dos lugares; do encantamento de amar e sentir-se amado e do coroamento da felicidade com o nascimento do primeiro filho de sentir-se um “homem de verdade”!

E fazer tudo diferente com a experiência de hoje, ou fazer tudo igual, só reviver, pois se você pudesse voltar, talvez nada fosse como antes.

Só não podemos nos lamentar pelo que já não temos mais, pois as coisas boas que passaram merecem ser rememoradas sempre, e as ruins, olvidadas.

Devemos procurar ser felizes com o que temos e com o que somos, e só sentir saudades saudáveis do que já tivemos e do que já fomos, pois a vida é um eterno seguir em frente, não há retorno.

Fonte:
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.
Enviado pelo autor.

Artur de Azevedo (Contos em versos) Não, Senhor!


Santinha, filha de um negociante
Que passava por ter muito dinheiro,
Bebia os ares pelo mais chibante,
Pelo mais prazenteiro
Dos rapagões daquele tempo, embora
O pai a destinasse a ser senhora
Do Souza, um seu colega, já maduro,
Que lhe asseguraria bom futuro.

O namorado (aí está o que o perdia!)
À classe comercial não pertencia:
Era empregado público; não tinha
Simpatia nem crédito na praça.

Entretanto, Santinha
Nunca supôs que fosse uma desgraça,
Um prenúncio funesto
A oposição paterna, e assim dizia:
— Ele gosta de mim, eu gosto dele...
Que nos importa o resto?
Um para o outro a sorte nos impele:
Separar-nos só pode a cova fria!

Ria-se o pai, dizendo:
— Isso agora é poesia;
Mas deixem-na comigo: eu cá me entendo.

Depois do almoço, um dia,
Ele na sala se fechou co’a filha,
Para tirar-lhe aquele bigorrilha
Da cabeça. A pequena,
Impassível, serena,
Lhe disse com franqueza
Que ninguém neste mundo apagaria
Aquela chama no seu peito acesa.
— Isso agora é poesia —
Repete o pai teimoso,
E, sentando-a nos joelhos.
Melífluo, carinhoso,
Abre a torneira aos paternais conselhos,
Aponta-lhe o futuro que a espera,
Conforme o noivo que escolher: de um lado,
Com o pobre do empregado,
A pobreza pudera! —
O desconforto, o desespero, a miséria!
— Sim, a fome, menina!
Estas coisas chamemos pelo nome!
A fome, — fome atroz! fome canina!...
E, do outro lado, com o negociante,
Que futuro brilhante!
Não faltarás a um baile, irás ao teatro;
Visitarás o Rio de Janeiro;
Poderás percorrer o mundo inteiro,
E ver o diabo a quatro!

Mas a firme Santinha
Não se deixava convencer: não tinha
Ambições, nem sonhava tal grandeza;
Preferia a pobreza,
Ao lado de um marido a quem amasse,
A todo o Potosi com que a comprasse
Outro qualquer marido.

O velho, enfurecido,
Brada: — Isto agora já não é poesia.
Mas grosso desaforo!
Se não acaba esse infeliz namoro,
Vou deitar energia!

— Então papai não acha coisa infame
Que eu me case com um tipo a quem não ame?
— Infame é namorares um velhaco
Sem dar ao pai o mínimo cavaco!
Ou casas-te com o Souza ou te afianço
Que a maldição te lanço!

Santinha, que era muito inteligente,
Continuava a série dos protestos;
Mas o irritado velho, intransigente,
Soltando gritos e fazendo gestos,
Nada mais quis ouvir naquele dia;
Mas na manhã seguinte foi chama-la
Ao quarto (a pobre moça ainda dormia!)
E pela mão levou-a para a sala.

Ficou muito espantado
Ao ver que a filha, ao invés do que previra
À noite houvesse muito bem pensado.
Pareceu-lhe mentira
Encontrar tão serena
E tão tranquila a moça,
Como se a grande cena
Da véspera lhe não fizesse mossa.

— Então? estás na tua? —
— Papai, de mim disponha:
Dê-me, alugue-me ou venda-me: sou sua.
Por tudo estou, solícita e risonha;
Confesso, todavia,
Que por meu gosto não serei esposa
Do seu amigo Souza:
Mentir não posso!

— Cala-te, pateta!
Isso agora é poesia...
A fortuna, verás, será completa!
Aprontou-se depressa a papelada,
E a casa mobiliada
Em quinze dias foi. Veio de França
Riquíssimo enxoval, conforme a usança,
O qual esteve exposto
E toda a gente achou de muito gosto.

Mostrava-se Santinha
A tudo indiferente, e o moço honrado
Que o seu afeto conquistado tinha,
Também não se mostrou contrariado;
Era o mesmo que dantes: expansivo,
Discreto, espirituoso, alegre e vivo.

Chegou a noite, enfim, do casamento
Que era na igreja do Recolhimento,
Igrejinha modesta
Expressamente ornada para a festa
Pelo Joaquim Sirgueiro,
Que foi naquelas artes o primeiro.

O templo estava cheio
Quer de curiosos, quer de convidados.
Que mistura! no meio
De graves figurões encasacados
E damas de vestidos decotados,
Abrindo enormes leques,
Negros sebentos, sórdidos moleques!

A noiva estava pálida e tremente,
Mas linda. Realmente
Era pena que flor tão melindrosa
Fosse colhida por um brutamontes,
Que na vida outros vagos horizontes
Não via além da Praça...
Na igreja se ouviria o som de uma asa
De inseto, quando o padre bem disposto,
À noiva perguntou: — É por seu gosto
E por livre vontade que se casa?

Imaginem que escândalo! A menina,
Com voz firme, sonora, cristalina,
Respondeu: — Não, senhor! Um murmúrio
Corre por toda a igreja, e um calafrio
Pelo corpo do Souza,
Que o turvo olhar do chão erguer não ousa!

A pergunta repete o sacerdote;
Logo o silêncio se restabelece.
Para que toda a gente escute e note:
— Não-se-nhor! — Estremece

O velho, e tosse pra que se não ouça
A resposta da moça.
— Não, senhor! Não,senhor! Mil vezes clamo:
Por gosto não me caso,
Mas obrigada por meu pai; não amo
O senhor Souza, mas de amor me abraso
Por este! — E aponta para o namorado
Que pouco a pouco tinha se chegado.

Não é possível descrever o resto
Depois desse protesto.
Falavam todos a um só tempo! A igreja
Desabar parecia!
O padre corre para a sacristia...
A moça pede ao moço que a proteja...
— Isto agora é poesia!
Diz o atônito pai, querendo contê-la.
Todas as convidadas
Sufocam gargalhadas...
O noivo, maldizendo a sua estrela,
Sai para a rua: a sanha
Da torpe molecagem o acompanha,
E uma vaia o persegue,
Até que ele num carro entrar consegue.

Santinha está casada e bem casada;
O marido dispensa-lhe carinhos:
Vê sempre nela a mesma namorada.
Já tem uma ninhada
De filhos, e o avô — quem o diria?
Morre pelos netinhos,
E diz, quando a mira-los se extasia:
— Isto agora é poesia!

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Artur de Azevedo. Contos em verso (contos maranhenses). Publicado originalmente em 1909.
Português atualizado por J.Feldman

Humberto de Campos (Revelação)

"
A recordação de um primeiro beijo de homem, mesmo quando recebido contragosto, transforma-se no espírito da mulher virgem em desejo tenaz, absorvente, imperioso de o repetir, de renovar a sensação daquele delicioso pecado. - COLETTE WILLY"
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Com os olhos vermelhos de chorar, e com tremores de susto por todo o corpo delicado, a loura Mariazinha penetrou no gabinete do pai, em cujos braços se atirou, desatando em soluços. Trazido um copo d'água, e serenados os seus nervos exaltados, ainda pelo terror, a moça contou, a custo, com o rosto nas mãos, o caso inominável.

- Eu vinha, - soluçava, entrecortando as palavras - eu vinha da aula de música, sozinha, com a pasta debaixo do braço, quando, ali, na rua Paissandú, perto da praia, um sujeito se aproximou de mim, pelas costas e, pondo o braço no meu pescoço, curvou-me para trás, e...

- E... - interrompeu o pai, com a agonia no coração.

E a moça, terminando, com dificuldade:

- Deu-me um beijo na boca, e correu, no rumo da praia!

O caso havia sido realmente assim, mas o comendador insistiu na explicação:

- E tu não o conheces?

- Não, senhor. É um rapaz alto, de roupa clara, chapéu de palha, que eu não sei quem é. Se, porém, o encontrar, eu o reconhecerei.

Intimamente aborrecido com aquela aventura da filha, o comendador deliberou punir o atrevido, prometendo à menina, entre carícias afetuosas:

- Deixa estar, sossega. Esse patife há de ser castigado. De agora em diante eu passarei a acompanhar-te e, onde o encontrares, eu quero que me o apontes.

E, entre dentes:

- Patife!

Passada a primeira emoção, em que o seu pudor de criatura ingênua, de botão desabrochando para a vida, se patenteara com toda a violência da pureza sem simulações, começou o instinto feminino a tomar o seu lugar no espírito da moça, entre cogitações que a alarmavam. Aquele beijo, roubado por um desconhecido, revoltara-a, indignara-a, enchera-a de ódio, na ocasião. À medida, porém, que o tempo se passava, parecia-lhe que aquela carícia brutal aflorava, de novo, na sua boca, numa fome angustiosa de repetição. Debalde, passando a mãozinha pelos lábios, ela procurava escorraçar, afastar, dissipar aquela lembrança. Esta voltava, entretanto, persistente, continua, teimosa, e de modo tal que ela própria já buscava conservá-la no pensamento, como se conserva uma flor encantada, cuja árvore se viu morrer no caminho.

No dia seguinte, após uma noite de angústias deliciosas, em que se casavam, substituindo-se, o pudor e o desejo, foi com desprazer, e com um susto mal definido, que a mocinha ouviu, recompondo com coquetaria os finos cabelos de ouro sob o lindo chapéu de palha de Itália, o convite paterno:

- Mariazinha, estás pronta?

- Já vou, papai! - respondeu a moça, de dentro, dando os últimos retoques na "toilette", diante do toucador.

Durante uma semana o comendador acompanhou a filha, acima e abaixo, da cidade até o palacete, e do palacete à cidade, sem que ela descobrisse o seu insolente desrespeitador. E se o velho capitalista sofria com essas caminhadas, com essas idas e vindas fatigantes, mais padecia ainda a menina, cujos olhos se foram cercando de um halo escuro, denunciador evidente das penosas noites de insônia.

Uma tarde, enfim, ao sair com o pai, a um passeio na praia, Mariazinha tomou um susto que a fez parar, branca, de cera, no gramado por onde ia: diante dela, em um grupo de rapazes, estava, de pé, o estroina, que lhe acordara a alma adormecida na inocência, furtando-lhe na árvore virgem dos lábios o fruto venenoso daquele ósculo! Voltando a si, a moça, como num delírio, não se conteve:

- É aquele, papai! – gritou, batendo as mãos geladas pela emoção.

E, atirando-se ao pescoço do rapaz, cobriu-o doidamente, furiosamente, desesperadamente, de beijos...

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
Disponível em Domínio Público.

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 27

 

Monsenhor Orivaldo Robles (Sentado na calçada)

Não estava de canudo e canequinha nem fazia bolinha de sabão, como cantava a melodia de Orlandivo, que os mais jovens por certo nunca ouviram. Mas estava sentado na calçada. Encostado na parede do restaurante. Não atrapalhava os que iam passando. Ninguém lhe dava atenção. Era como se não existisse. Nem ele se preocupava com os transeuntes. Sua atenção concentrava-se em coisa mais importante. Muito mais importante. Só tinha olhos para a marmita, que alguma alma caridosa lhe comprara. Ou o próprio restaurante, condoído da situação, tinha providenciado para atender o seu pedido. Era hora de almoço. Não é difícil sentir piedade de quem pede o que comer. Desde crianças aprendemos que a ninguém jamais se nega um prato de comida. Dinheiro não, porque nunca se sabe no que vai ser gasto. Ainda mais hoje, tempo de crack, essa droga assassina.

O homem comia com apetite de fazer gosto. A caminho de outro restaurante por quilo onde, vez por outra, eu almoço, não contive o impulso de descobrir o que continha a marmita. Olhei justamente na hora em que ele trincava um bife. Suculento e imenso bife. Uma beleza. Não entendo nada de carne bovina, mas seria coxão mole ou patinho. Alcatra, quem sabe. Não carne de terceira, cheia de pelanca e nervo. Devia ser o melhor bife que o restaurante servia. Uma dádiva dos céus para a sua fome de semanas. Fazia-o sentir-se o ganhador único de megassena acumulada.

No coração de manteiga derretida a cena me despertou uma inusitada alegria. Minha atenção se concentrou no bife. Mas um rápido olhar bastou para descobrir ingredientes variados, que revelavam uma comida, além de farta, também de qualidade. Sabe-se lá desde quando o homem não saboreava repasto igual. Rendi graças pelo anônimo samaritano, que não cuidou de economia na hora de compor a marmita. Ofereceu-a generosa, cheia até às bordas.

Na volta, cruzei de novo com ele. Ocupava agora o meio da calçada. Desgrenhado, em andrajos, imundo. Um pobre cão magro fazia-lhe companhia. Na certa, com ele partilhara a lauta refeição. Vi-o ainda longe. Tirei da carteira um dinheiro, certo de que seria pedido. Mas ele passou por mim aprumado como um lorde. Era como se sentia depois do feliz repasto. Tinha saboreado um almoço da nobreza. Como agora se rebaixar a pedir trocados? Outros não sei, mas aquele, para mim, será um homem cheio de dignidade. Estende a mão se e quando está faminto.

Pensei: como é bom não sentir fome. Nunca nos detemos a considerar a ventura que é ter comida na mesa. Todos os dias. Não escutar o ronco de um estômago que dói de vazio. Pior: contemplar os filhos que imploram por comida, quando não se tem um naco de pão duro para atendê-los. Nós o máximo que já sentimos foi apetite. Nunca sequer chegamos perto do que é fome de verdade.

Algumas guloseimas recusou-nos nossa infância de meninos pobres; comida, jamais. Recordo meus dez anos em Jales e a atração que despertavam as balas Dea brilhando envoltas no seu papel dourado. O tubo azul recheado com uma dúzia de rodelas de chocolate da marca Gardano. Delícias impossíveis, de sabor apenas imaginado, que contemplávamos pelo vidro do balcão do bar, na Avenida Alagoas. Hoje até poderíamos comprá-las. Já não se acham à venda em nenhum balcão.

Dor de doer o estômago nunca sofremos. E não lembramos de agradecer.
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Fernando Pessoa (Caravelas da Poesia) LVII


Tornar-te-ás só quem tu sempre foste.
O que os deuses te dão, dão no começo.
De uma só vez o Fado
Te dá o fado, que é um.
A pouco chega pois o esforço posto
na medida da tua força nata -
a pouco, se não foste
para mais concebido.

Contenta-te com seres quem não podes
Deixar de ser. Ainda te fica o vasto
Céu pra cobrir-te, e a terra,
Verde ou seca a seu tempo.

O fausto repúdio, porque o compram.
O amor porque acontece.
Comigo fico, talvez não contente.
Porém nato e sem erro.

Eu não procuro o bem que me negaram.
As flores dos jardins herdadas de outros.
Como hão de mais que perfumar de longe
Meu desejo de tê-las?

Não quero a fama, que comigo a têm
Eróstrato e o pretor
Ser olhado de todos - que se eu fosse
Só belo, me olhariam.
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Tudo que sinto, tudo quanto penso,
sem que eu o queira se me converteu
numa vasta planície, um vago extenso
onde há só nada sob o nulo céu.

Não existo senão para saber
que não existo, e, como a recordar,
vejo boiar a inércia do meu ser
no meu ser sem inércia, inútil mar.

Sargaço fluído de uma hora incerta,
quem me dará que o tenha por visão?
Nada, nem o que tolda a descoberta
como o saber que existe o coração.
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Uma maior solidão
Lentamente se aproxima
Do meu triste coração.

Enevoa-se-me o ser
Como um olhar a cegar,
A cegar, a escurecer.

Jaz-me sem nexo, ou fim...
Tanto nada quis de nada,
Que hoje nada o quer de mim.
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UMA SÓ LUZ sombreia o cais.
Há um som de barco que vai indo.
Horror! Não nos vemos mais!
A maresia vem subindo.

E o cheiro prateado a mar morto
Cerra a atmosfera de pensar
Até tomar-se este como porto
E este cais a bruxulear

Um apeadeiro universal
Onde cada um 'spera isolado
Ao ruído - mar ou pinheiral? -
O expresso inútil atrasado.

E no desdobre da memória
O viajante indefinido
Ouve contar-se só a história
Do cais morto do barco ido.
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Um dia baço mas não frio...
Um dia como
Se não tivesse paciência pra ser dia,
E só num assomo,
Num ímpeto vazio
De dever, mas com ironia,
Se desse luz a um dia enfim
Igual a mim,
Ou então
Ao meu coração,
Um coração vazio,
Não de emoção
Mas de buscar, enfim -
Um coração baço mas não frio.
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Universal lamento
Aflora no teu ser.
Só tem de ti a voz e o momento
Que o fez em tua voz aparecer.
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Vaga saudade, tanto
Dóis como a outra que é
A saudade de quanto
Existiu aqui ao pé.

Tu, que és do que nunca houve,
Punges como o passado
A que existir não aprouve.
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Vai alta a nuvem que passa,
Branca, desfaz-se a passar,
Até que parece no ar
Sombra branca que esvoaça.

Assim no pensamento
Alta vai a intuição,
Mas desfaz-se em sonho vão
Ou em vago sentimento.

E se quero recordar
O que foi nuvem ou sentido
Só vejo alma ou céu despido
Do que se desfez no ar.
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Disponível em Domínio Público.

Nilto Maciel (Gaio e a Solidão)

Na casa havia um papagaio. Gritava o dia todo. Insultava seres e coisas. Para alegria de todos.

Sua própria alegria, porém, ia silenciando, pouco a pouco. Se ainda gargalhava, imitando o dono da casa, o fazia por puro hábito. Quase sempre triste em sua prisão, vivia a cochilar, fei­to um velho doente. Sem a menor vontade de conversar.

A família se reuniu para diagnosticar o mal do pobre Gaio. Doenças aéreas, moléstias aladas, enfermidades penosas vieram à baila. E nada encontraram para causa real da tão drástica mu­dança no comportamento do animal. Não, só um especialista em papagaio saberia definir a desgraça da pequena ave.

– Eu sei! – gritou Jeová, do alto de sua caçulice.

Dona Sara quis rir, mas fez cara feia. Seu José tentou mudar de assunto. A filharada, porém, achou sensato o juízo de Jeová. Sim, Gaio precisava de uma companheira.
***

Autorizados, os meninos vasculharam as redondezas do sítio, à cata de uma papagaia. Em vão. Ali, não havia disso. O próprio Gaio viera de muito longe. Trouxeram-no ciganos ou mascates. Seu José comprou-o, por uma bagatela, a um desconhecido que passava diante da porta. Puxava um burro repleto de mercadorias. Talvez roubadas.

– Era um cigano, pai? – quis saber Jeová.

– Não lembro mais. Talvez o cigano tenha me vendido um chapéu de feltro. Ou um cavalo velho.

Os filhos maiores foram mais longe. Vararam serras e sertões, buscaram as mais famosas e distantes feiras. E nada de papagaias.
***

A dolorosa melancolia de Gaio levou José e Sara a falar em novos filhos. Ela sorriu. Por acaso ele não sabia o significado de menopausa? Pois desde o nascimento de Jeová cessara nela o poder de procriar. Mais fácil terem netos.

E a ideia chegou aos ouvidos dos filhos. Sim, alguns já andavam na idade de casar. Onde, porém, encontrar moças e rapazes? Ora, nos sítios vizinhos. No de Seu Machado, por exemplo, vivia uma dezena de belas moças e fortes rapazes.
                                                                       ***

Num domingo, a caravana chefiada por José invadiu a casa de Machado. Alegria de ambos os lados pelo reencontro. Havia tempos não se viam todos juntos. Como andavam crescidos os meni­nos! Que belas moças! Que bonitos rapazes!

– Jeová, então, está um homenzinho.

– E o papagaio?

 Houve princípio de choro em alguns olhos. Coitadinho de Gaio! Talvez não durasse mais uma semana.

– Faz tanto tempo! – observou José.

Os meninos já corriam para lá e para cá. As moças e os rapazes trocavam olhares e palavras tímidas.

– Por pouco não comprei o bichinho. – ponderou Machado.

– Não me lembro mais de nada! – lamentou-se José.

Na verdade, o papagaio fora vendido a Jeremias por ciganos ou mascates. Depois, aconteceu uma desgraça e o velho caiu na miséria. Perdeu quase tudo na enchente do rio. E se viu obrigado a vender até o papagaio.

Por acaso Machado e José chegaram juntos à casinha do pobre Jeremias. Exclusivamente para comprar o papagaio. Por insistência dos filhos.

E aconteceu uma espécie de leilão.

– Ofereci uma galinha e você uma cabra.

E o velho cresceu os olhos.

– Ofereci uma vaca e você uma casa.

Lá fora os meninos brincavam, sem nenhuma preocupação com o passado. A um lado, os rapazes e as moças pareciam mais animados. Sara e a dona da casa falavam de namoros e casamentos.

– Precisamos unir mais nossas famílias. – considerou José.

– Sim, meus filhos gostam muito dos seus. – completou Machado.

Mais algumas horas de brincadeiras e conversas, e ninguém falou mais no papagaio.

Ao se despedirem, alguns acordos estavam selados. Mais visitas de uns aos outros e autorização para fulano namorar sicrana ou sicrano para namorar beltrana.

Havia olhos e lábios para todos os gostos.
Fonte:
Nilto Maciel. Itinerário: contos. Fortaleza, CE: Ed. do Autor, 1974.
Enviado pelo autor.

Concurso de Trovas de Taubaté (Prazo: 30 de setembro de 2023)

TEMAS:

ÃMBITO NACIONAL / INTERNACIONAL

(Trovadores do Brasil e do mundo, exceto Estado de São Paulo):
Veteranos e Novos Trovadores

FUTURO (lírica/filosófica)
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ÃMBITO ESTADUAL (Trovadores do Estado de São Paulo, exceto Taubaté):

PASSADO (lírica/filosófica)
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ÃMBITO MUNICIPAL (Trovadores de Taubaté):

SONHO (lírica/filosófica)
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TODOS TROVADORES (independente de âmbito e categoria):

PRESENTE (Humorística)
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TROVADORES MESTRES:

BOMBEIRO (lírica/filosófica)

DEVOTO (Humorística)
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- Máximo de 02 trovas por participante para todas as categorias;

- Valem palavras derivadas, cognatas e mesmo somente a ideia do tema contida na trova; a trova deve ser inédita, escrita em língua portuguesa e de autoria própria;

- MODO DE ENVIO:

- É obrigatório que o Novo Trovador indique essa condição (no corpo do e-mail);

- Por e-mail:

Fiel Depositário - Raul Filho  

ubttaubateconc@gmail.com

- Ao enviar por e-mail: No campo Assunto colocar: Concurso de Trovas de Taubaté 2022;
- No corpo do e-mail são dados obrigatórios: o tema a que concorre, a trova, a condição junto a UBT Nacional caso seja Novo Trovador e a identificação (nome, cidade/estado/país, telefone/whatsApp e e-mail);

- As trovas recebidas no Âmbito Nacional/Internacional, serão julgadas separadamente por categorias (Veterano e Novo Trovador).

- Os trovadores Mestres (título outorgado pela UBT Taubaté desde 2015) serão comunicados individualmente;

- Para conhecimento acerca dos critérios para a obtenção do Título de Mestre da Trova, bem como aqueles que atualmente compõe o Quadro de Trovadores Mestres (L/F ou H), a UBT Taubaté estará a disposição para esclarecimentos e dirimir eventuais dúvidas, bem como compromete-se em enviar o relatório completo a todos que se inscreverem no concurso;

- As decisões da Comissão Julgadora serão soberanas e irrecorríveis;

- Casos avulsos serão resolvidos pela Comissão Organizadora.
Fonte:
Enviado por Solange Colombara

domingo, 2 de julho de 2023

Izo Goldman (Buquê de Trovas) – 4 –

 

Marques de Carvalho (Historia incongruente)

Ao dr. Franklin Tavora


I
Desde alguns dias andava triste, apreensivo e taciturno o coronel Fonseca.

A paisagem alegre que cercava a fazenda já não tinha o poder de evocar-lhe aos lábios aquele seu antigo sorriso prazenteiro, com que todas as manhãs saudava o nascer do sol, da janela do seu vasto quarto.

As pessoas da casa andavam escrutando o motivo daquela transição súbita no ânimo do velho. As conversas à meia-voz no copiar, à hora da sesta não traziam nenhum resultado elucidativo daquelas tristezas sem causa aparente. Todas as interrogações, que os olhares apresentavam, iam embotar-se na fria reserva do ancião, que persistia num silencio desanimador.

E não havia razão para andar assim tristonho o coronel Fonseca: a fazenda progredia, graças ao magnífico tempo que, havia dois anos, reinava, o gado engordava e todos os vaqueiros viviam contentes, com disposição para o trabalho.

O Thiago, filho único do coronel, não reparara ainda naquelas concentrações do pai. Vivia todo entregue a uma paixão tão ardente como sincera, para ligar atenção a qualquer coisa que se passasse em outra parte que não fosse no próprio coração.

E a Venância, a formosa donzela que todos os dias obrigava-o a ir à vila próxima, bem merecia aquela dedicação egoística, porém desculpável.

Filha de um velho fazendeiro, era ela de uma bondade proverbial e de uma honradez reconhecida, sem precedentes de mácula. Trabalhadora, vivia a cuidar dos irmãozinhos mais novos que ela, a fazer-lhes a roupa, a paparica-los, a rodeá-los de cuidados, interessando-se muito pelo bem-estar físico de todos aqueles pequeninos seres a ela confiados pela mãe, na ocasião de morrer.

Entretanto, quem pudesse perscrutar a alma do coronel, veria com pasmo que era justamente o amor do filho a origem das suas tristezas.

É certo: Fonseca sentia grande contrariedade em ver que o Thiago de dia para dia mais se ligava de amizade à Venância da vila, como à rapariga chamavam os da fazenda. E quem se aproximasse da maca do coronel, quando ele dormia os seus curtos sonos noturnos, poderia muitas vezes ouvi-lo pronunciar estas palavras: — "É impossível semelhante casamento!"

II
Uma tarde, quando o coronel Fonseca, encerrado no quarto, escrevia ao seu correspondente da capital, apareceu-lhe Thiago, dizendo-lhe que necessitava falar-lhe com urgência.

O velho estremeceu, prevendo talvez que o filho ia acercar-se de um assunto ao qual ele fugia há muito tempo.

Foi fazendo um violento esforço sobre si mesmo que murmurou:

— Fala quando quiseres.

Thiago sentou-se na beira da rede e guardou silêncio por momentos.

O velho Fonseca olhava para ele com as pálpebras escancaradas em uma expressão de curiosidade e pavor. Tremia ligeiramente, com os nervos todos irritados.

— O diabo da gota quer visitar-me! – pensou.

No entanto, Thiago enxugava o pescoço com o lenço e começava em seguida:

— Meu pai, o negócio a respeito de que venho falar-lhe é importante de mais, para que eu estrague tempo e palavras em rodeios desnecessários. Vou ser breve, mesmo porque estou morto por saber qual será a resposta de meu pai. Desejo casar-me.

Conteve o coronel um gesto de indignação e disse, mostrando indiferença.

— Pois casa-te, rapaz. Eu não me oponho.... Contanto que seja a moça escolhida merecedora de ser tua mulher....

— Oh! Se tal é a condição que apresenta, posso afiançar-lhe que brevemente me casarei. Boa e séria, meiga e honesta, trabalhadora e cheia de dedicação, creio que poucas moças como ela encontrei no Pará durante os seis anos que lá estive a estudar no seminário e no Liceu.

— Felicito-te, por isso, disse ainda o coronel, sentindo fortes dores nas fontes, com o coração acelerado, porém a afetar tranquilidade. — Mas então quem é a rapariga?

Thiago sorriu indizivelmente, — com uma beatifica expressão de intensíssima felicidade no semblante, e exclamou:

— É a Venância da vila, a minha querida Venância!

O velho ergueu-se impelido pela comoção. Supondo tal ação um meio de que o pai servia-se para testemunhar-lhe a sua aquiescência, Thiago ergueu-se também e correu a abraça-lo.

Mas o velho, fazendo um lento sinal com o braço estendido, paralisou-lhe a vivacidade do movimento e murmurou, tremendo todo:

— Atende-me, Thiago, meu filho! Há muitos anos que sei de teus amores com a Venância. Grandes motivos, que talvez conhecerás um dia, impediam-me de favorecer a esses amores, assim como inibiam-me de opor-me a eles desassombradamente. Fingi ignorar tudo, na esperança de que os anos lançassem o tédio sobre as vossas almas cativas uma da outra por aquilo que eu pensava ser o entusiasmo pela novidade. Com imensa dor verifiquei o meu engano, porquanto foste fiel à tua palavra, do mesmo modo por que Venância o foi à sua. Isto seria uma grande felicidade, se não fosse uma enorme desgraça. Quer dizer, seria um apreciável penhor da tua ventura por vir, se o objeto da tua paixão fosse qualquer outra mulher, que não a Venância..... Olha, Thiago, sem procurares inquirir qual o verdadeiro e imperioso motivo que assim me força a magoar-te o coração, esquece essa rapariga, deixa de visita-la, ausenta-te de Marajó, vai para a capital, ou para o Rio de Janeiro, ou para qualquer cidade longínqua, onde julgues ser-te fácil achares uma mulher a quem possas oferecer a mão....

— Mas porquê, meu pai? – interrogou Thiago assombrado, com o coração opresso debaixo de uma tristeza incálculavel, sentindo que as palavras do pai minavam-lhe o edifício da felicidade por tantos anos construído com um profundo amor expurgado de malícia.

— Porque assim é necessário. — redarguiu o velho, numa veemência de gesto e de entonação.

— Pois fique sabendo que, se não explicar satisfatoriamente a causa de semelhante oposição, só tomarei as suas palavras como originárias duma razão que a idade torna vacilante e digna de piedade! — bradou Thiago já fora de si, ferido nessa grande porção de egoísmo que todo o homem tem consigo.

— Ingrato. - murmurou o velho, deixando-se cair sentado e chorando copiosamente. — Pois assiste à morte do teu coração, visto assim o desejares: ouve-me!

Pela janela aberta, via-se o vastíssimo campo do lado oeste da fazenda, coberto de uma vegetação uniforme de capim crestado pelo sol. Vitelos saltavam às cabriolas e grandes bois mansos, muito gordos e vagarosos, pastavam tranquilamente os fios de curto capim seco, abanando as longas caudas num compassado movimento automático. Ao longe, um touro preto, perfilado e sério, olhava para a linha escura do horizonte, entretido em lamber as ventas lustrosas de ranho com a flexível língua cor de cinza de charuto. Um cheiro almiscarado de erva seca e de excremento de boi subia até ao quarto. Vaqueiros zangarreavam numas flautas campestres, muito rudimentares, feitas de talos de mamãozeiro. Urros melancólicos de vacas chamando pelas crias casavam-se com essas fáceis melodias bucólicas, vibravam pelo espaço em propagações suaves que, dilatando-se cada vez mais, perdiam-se no ar como um suspiro flébil (
plagente) de extrema ternura. E da linha do horizonte, que recortava-se muito distante sobre o azul escuro do céu, levantava-se vagarosamente a noite, majestosa e tranquila em sua imponência sedutora.

O velho enxugou as lágrimas e começou a falar.

III
“ — Como sabes, tinhas dois dias quando tua santa mãe nos faltou. Até agora não sei como possível me foi resistir a essa desgraça, que eu a princípio reputei capaz de tirar-me a existência. Três anos passei encerrado neste quarto, sem visitar as nossas fazendas, sem receber ninguém, apenas gozando em tuas inocentes carícias um pálido reflexo daqueles grandes afagos que a tua idolatrada mãe fazia-me constantemente. Passados esses três anos, compreendi que o teu futuro exigia-me impusesse silêncio à minha dor, e cuidasse de nossos bens, para dar-te uma boa educação e, depois da minha morte, fazer-te herdeiro de uma riqueza suficiente a tua manutenção. Saí, pois, do quarto, pedindo mentalmente à alma de tua mãe tomasse este sacrifício como feito por amor de ti e, por consequência, por amor dela. Negócios meus exigiam que eu fizesse frequentes viagens à vila, onde, há vinte e três anos, isto é, quando tinhas cinco, encontrei-me com uma senhora amazonense, mulher de um velho amigo meu, fazendeiro em Chaves e morador da vila. Essa senhora era o retrato vivo de tua mãe. Por um fenômeno de impressionismo, — sem o querer, sem o sentir — fui-me enlevando das graças dela, até chegar ao ponto de pensar que tua boa mãe tornara à vida e volvera a amar-me como antes!

“Quando eu ia à vila, hospedava-me em casa desse antigo companheiro. Tal convivência maior aumento deu ao meu amor, que transformou-se em grande paixão, toda entusiasmos e veemência. As fazendas de Chaves faziam com que o marido dela se ausentasse muitas vezes da vila, deixando-me ao lado da mulher que.... poupa-me a vergonha de comunicar-te que... - titubeou o coronel, muito triste, com os olhos marejados de lágrimas, a arfar do peito e a contrair o rosto numa visível agonia causada pelos remorsos.

— Enfim, — disse com energia e, desta feita, dando expansão ao pranto — o resultado dessa criminosa, dessa infame e baixa paixão, foi o nascimento de uma menina, que o meu velho amigo ingenuamente supôs ser sua filha....

— E essa menina é... Ve..nân..cia? — inquiriu Thiago com os olhos arregalados, os cabelos crispados, as mãos fechadas fortemente, sentindo fraquejar-lhe o espírito ao embate de tamanha comoção.

— Sim, Thiago, sim, é Venância, fruto da minha infâmia, a filha do crime, a filha de um amigo traidor e de uma esposa miserável que não soube resistir à minha tentação! É Venância, a mulher com quem te queres unir pelo.... casa...mento! É tua irmã, insensato!...

E caiu redondamente para trás, agitado nas convulsões da gota, da sua moléstia habitual, ao mesmo tempo que o filho rolava sobre a rede da maca, fulminado pela morte, que providencialmente o livrou de uma vida que daí em diante só poderia ser de tormentos e angústias indizíveis.
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Nota
Foi publicada n’A Arena essa narração, em 1887: ainda existia o infortunado homem de letras a quem tive a honra de dedicar o meu trabalho e do qual recebi, por esse motivo, lisonjeira carta muito afetuosa e benevolente.


Fonte:
Disponível em Domínio Público
João Marques de Carvalho. Contos Paraenses. PA: Pinto Barbosa e C., 1889..
Atualização do português por J. Feldman

Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XXIV


ANTES QUE A NOITE CHEGUE...


Quando o sol se debruça no horizonte
deixando a tarde bela e mais fagueira,
antes que a lua, pelo céu, desponte,
a saudade se achega e faz trincheira.

Ao longe, em tom avermelhado, o monte
transmite uma quietude verdadeira,
trazendo ao coração o som da fonte
que canta, docemente, em corredeira.

Assim, vou recordando os tempos idos,
sonhos fagueiros, lindos e vividos,
que a memória jamais vai esquecer...

E, antes que chegue ao fim dessa jornada,
terei, por certo, em minha caminhada
muitos versos de amor para escrever.
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AO SOM DO NOSSO AMOR

Vou caminhando pelo mundo afora
e lembrando dos tempos já vividos.
Quantos sonhos de amor, mas vejo agora
que muitos sonhos foram destruídos.

Por que devo chorar? A nova aurora
traz a luz de outros sonhos coloridos
e me dizem que o sonho de quem ora
é mais bonito em todos os sentidos...

As árvores já secas e esquecidas
ressurgem verdejantes na floresta,
tornando-se mais belas e floridas...

Também minha poesia é uma seresta
que se renova quase às escondidas
ao som do nosso amor, que vive em festa!
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CURVA DO CAMINHO

Eis-me chegando à curva do caminho,
onde vejo os escombros do passado:
a casa em que nasci, cresci, malgrado
o quarto de dormir em desalinho.

Não me faltou, porém, muito carinho
vivendo no Sertão injustiçado,
onde o "mandante" sempre desalmado
faz o povo sofrer, no Pelourinho...

No entanto, a vida é bela e deslumbrante,
mesmo que a estrada se apresente escura
sempre brilha uma luz ao viajante...

...E quando eu me tornar uma saudade,
minha alma esquecerá a desventura
para cantar, em verso, a Eternidade!
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OLAVO BILAC
                 
Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac,
estrela de primeira, um verso alexandrino.
Perfeito no soneto, o vate foi destaque
e primou pela forma, ourives diamantino.

Como parnasiano revelou-se um craque
com seu verbo fluente e forte foi divino.
Palestrou, escreveu, amou e sem sotaque
“ora (direis) ouvir estrelas,” seu destino.

Orador, literato e um grande sonetista,
foi também pensador,  ardente jornalista,
gigante na palavra, um poeta de escol.

“Última Flor do Lácio” o vate da Esperança,
amante do Saber, da Pátria e da Criança,
por isso és fulgurante como a luz do Sol!
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UM DOMINGO DE SOL

Domingo. Estou só, não há ninguém,
só caneta, papel e inspiração,
a saudade já chega a Itanhaém*
e agita, sem querer, meu coração.

Quero escrever um verso. Sou refém
deste sonho de amor, desta ilusão
de acreditar que o ser humano tem
poder para mudar esta opressão.

Quisera transformar este planeta
usando o livro e até minha caneta,
e partilhar a sensação do amor.

Talvez, agindo assim nosso futuro
possa ser mais feliz e mais seguro
neste Universo belo, encantador!

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.
Enviado pelo autor.

Clarisse Cristal (As valquírias)

Não sou uma pessoa apegada ao passado e também não gosto de começar os meus textos e falas com as palavras que eu escrevo neste relato. Mas aqui estou eu mirando um terreno vazio, mais um passo à frente na corrida da especulação imobiliárias.

Só posso lembrar, rememorar no meu palácio das memórias o que tinha ali antes, uma casa simples de madeira, coisa brega mesmo casa de madeira branca na beira mar. Congelada no tempo, tinha uma senhora de cabelos brancos, muito idosa que ficava na janela e às vezes no portão falando em um dialeto que eu não entendia.

  Pois bem, a minha história se cruza com a história da Gioconda, vamos chamá-la pois Macabéa e Margaridas já estão por aí faz tempo, foi destes trabalhos escolares estúpidos. Pois bem, mais uma vez, ter que entrevistar moradores antigos da minha cidade, cidade de veraneio amorfa, na verdade uma colônia de pescadores artesanais não a muito tempo.

Mais uma vez, eu legítima cidadão das nuvens, fiz o que qualquer pessoa normal faria, fui buscar informações com o porteiro do meu prédio. Depois das telefonistas e frequentadoras de qualquer salão de beleza, todo mundo sabe que porteiros são os que melhores sabem e comentam das vidas alheias. Já ia me esquecendo dos ascensoristas de elevadores, mas deixa pra lá.

Foi ter com Roberval, chamamos eles assim, foi ter com Roberval um papo sobre a mulher idosa e a nossa vizinha. Roberval com seu uniforme impecável e sandálias de couro nordestina, que estava lendo um jornal. Pois os porteiros de prédios residenciais, quando não estão no hall de entrada ou estão escutando música brega em um pequeno rádio a pilha barato ou estão lendo um jornal.  

Pois bem, Roberval que estava sempre lendo jornais e revista, levantou os olhos para me atender. Engraçado que nunca tinha escutado uma só palavra da boca, nada para além de bons dias e boas noites, com aquele sotaque agudo nordestino.

   Roberval se abaixou para trás do balcão e sacou de um arquivo, eram recortes de jornais e revistas. O cretino tinha um pequeno arquivo da Gioconda, foi difícil tirar o arquivo das mãos dele, nem dinheiro ele aceitou, foi bom ele não ter aceitado, pois não tinha dinheiro. Saí dali do hall, segurando firme nas minhas mãos de criança, o arquivo de Roberval, o clipeiro, saí dali quase correndo.

O clipping do porteiro era de primeira, trabalho de profissional, o sujeito só pode ser um jornalista de profissão, expatriado da terra seca por algum coronel interiorano qualquer. Mas deixamos o porteiro de lado e vamos nos ater na Gioconda

Típica filha e neta de imigrantes, expatriados exilados pela fome ou pela guerra. Gente que sai da terra mãe forçosamente e não consegue se desligar de onde veio para uma terra estranha para nunca mais voltar. Lá estava a senhora idosa e mais velha nascida e criada na velha colônia de pescadores, vivenciou de longe as guerras e distúrbios políticos e econômicos. A mulher sobreviveu a urbanização e elitização da cidade com uma bravura ímpar. E lá estava ela ora bem vestida, ora trajando roupas simples em fotografias, ganhando prêmios de prefeitos e do parlamento local e dando entrevistas, dando entrevistas para rádios e tvs.

Pois bem, o que colhi foi que era uma típica mulher empobrecida e sofrida, filha e neta de europeus do mediterrâneo do sul da Europa. Gente ligada ao mar, pescadores, piratas e marinheiros e toda a malta de gente litorânea ao sul da velha Europa. Parole era a dialeto que dominava, era a última de uma grande família, que ou morreu ou emigrou para outras paragens.

Fui para a internet, fui buscar as entrevistas em áudios e vídeos, com a voz firme e lúcida a atração turística da cidade, os turistas gostavam de tirar fotografias dela quando estava na janela. E ela falando o dialeto estranho, na frente da casa para turistas variados, que comovidos, sorriam e choravam diante da mulher.

Triste? Não sei, só sei que fui ver o terreno onde era a casa dela, e tinha algo a mais, o entre linhas, entre textos falados e escritos. Tinha algo errado ali, tinha e tem algo a mais, sempre tem algo ou alguém nas entrelinhas. Fui buscar, fui procurar.

Parti para a lateralidade, comecei no óbvio, no café colonial perto de casa, onde as fofocas rolam soltas, onde a Gioconda faz suas compras do dia a dia. Onde a dona, vamos chamá-la de Maria, simples assim, ela sabe de todos os babados, do que rola na cidade. E não foi difícil arrancar preciosas informações da mulher de ascendência portuguesa, bastou perguntar se era verdade que ela ainda tinha seu uniforme do movimento integralista bem guardado e bem passado.

E era verdade, com brilho nos olhos ela me falou com muito orgulho que conheceu o Plínio Salgado em sua breve e tumultuada passagem pela região e a confraternização entre nazistas e integralistas no hotel Muller. Estavam festejando a partida do então filho do Herr Muller para front de guerra, o jovem promissor aviador Carl Muller, vamos chamá-lo assim. O jovem com a patente de tenente aviador da Luftwaffe fora convocado para lutar nos céus europeus, para defender a grande pátria ariana.

  Mas o que tem a ver e haver esta digressão com a Gioconda? A nossa Gioconda que vivia tranquila na então pacata vila de pescadores! A inauguração, na verdade reforma do hall do hotel Muller, vamos chamá-lo assim. Vários quadros foram expostos ali, de vários artistas teutos-italos-latinos. Segundo a afável portuguesa de quatro costado, dona da casa colonial, ela me confidenciou entre pedaços de pedaços de bolos e xícaras de café, ou chávena de café como a dona da casa colonial gosta de falar.

As Valquírias, tendo como modelo central, a nossa jovem Gioconda de longos cabelos alourados e de olhos azuis, ela foi contratada como modelo para os vários artistas para expressar a bela ideal do nazifascismo. E eu pedi provas, na verdade eu exigi provas e é claro e a dona Maria estalou os dedos e chamou um secretário, chamou com o olhar. Um jovem negro, de pele bem escura, a dona do café falou em francês com o seu funcionário, que desapareceu. Ele voltou com clipping bem robusto e ela mandou em francês que o submisso empregado abrisse o arquivo e mostrasse para mim.

E lá estava ela em meios a ensaios, posando para artistas variados, em cenas de bastidores, tomando café com os pintores, músicos, escritores, atores, dramaturgos e fotógrafos, servindo-se de vinhos, champanhes, cafés, fumando charutos e cigarros. A dona Maria não deixou que eu tocasse no precioso arquivo. E arrebatou:  — Ora pois, é pouco miúda? Vá ao hotel, a exposição é permanente! E quem sabe podemos te convidar para o nosso evento anual. — Disse isso e lentamente levou a chávena de café até os lábios.

Saí dali correndo, fui até o hotel, que não era muito longe dali, ver mesmo a exposição permanente As Valquírias. No pequeno e aconchegante hotel a beira mar, logo percebi que lá todos os funcionários eram negros e negras. Vi também homossexuais também trabalhando no local. Quem me atendeu foi um solicito jovem teuto, um subgerente muito bem vestido, eu me apresentei como estudante do ensino fundamental que estava fazendo uma pesquisa escolar.

O jovem falou em alemão para um funcionário com trajetos afeminado, ele me conduziu até uma parte do hall. E lá estava o envelhecido Carl Muller, com seu charuto entre a mão esquerda e um copo de uísque na outra, dando atenção a um pequeno grupo. Estavam falando em alemão, logo vi que eram jornalistas estrangeiros, falavam baixo e olhavam os retratos expostos. Eram várias versões da Gioconda, na verdade tinham um quadro que evocava uma heroína amazona, outra no meio da mata brasileira em meio a antas, capivaras e aves. Outras ela nórdica, eram quatro formando um círculo, uma enorme fotografia em preto e branco mostrando os seios com uma lira nas mãos. Outra em um coreto segurando uma corneta como se fosse um arauto anunciando a nova ordem. Bati umas boas fotografias de todas as obras, quando o dono do hotel me notou, sorriu, acenou com a cabeça. O jovem subgerente tocou no meu ombro e fez menção para que eu me retirasse. Perguntei se poderia olhar os arquivos do hotel, solícito o subagente me deu alguns livros. Dois de fotografias do hotel, um contando da construção do hotel, até a última grande reforma, outro das festas e eventos que ali ocorreram, outro de uma grande reportagem contando sobre o dia a dia do hotel, com depoimentos de funcionários, donos e frequentadores do hotel. E por último uma biografia romanceada dos donos do hotel.

Todos com um enorme vazio, As valquírias, nada, coisa alguma. Agora caminhando para o fim. Estou olhando do alto do meu apartamento para o terreno vazio, com máquinas pesadas terraplanando o lugar a especulação imobiliária seja tragando o pesado em vista de lucros altos futuros. Lembrando de quando entreguei o meu trabalho na escola, a diretora chamou os meus pais para uma conversa franca. A Gioconda descansa em paz em um simples jazigo discreto no cemitério local.       

Fonte:
Enviado por Samuel da Costa.