quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 35: Encantamento

 

Irmãos Grimm (Rolando, o bem-amado)

Era uma vez uma mulher, verdadeira bruxa, que vivia com duas moças. Uma, feia e má, a quem amava por ser sua filha; outra, formosa e boa, a quem odiava porque era sua enteada. Esta última tinha um lindo aventalzinho que enchia de inveja a sua irmã de criação, a qual um dia confessou à sua mãe que desejava possuí-lo, fosse como fosse.

- Não te preocupes, minha filha. - respondeu-lhe a velha- Tu o terás. Há muito tempo que tua irmã merece morrer. Hoje à noite, quando ela estiver dormindo, entrarei no quarto de vocês e lhe cortarei a cabeça. Trata, apenas, de te pores no lado da cama que fica junto à parede e vê se a empurras bem para a beirada.

A pobre moça estaria perdida se não tivesse escutado tudo num canto da sala. Durante o dia não a deixaram sair de casa e, na hora de deitar, a outra meteu-se na cama primeiro, ficando junto à parede. Mas, quando ela adormeceu, sua irmã, de mansinho, trocou-a de lugar. Alta noite, a velha entrou na ponta dos pés, empunhando um machado na mão direita. Com a esquerda experimentou se, de fato, havia alguém na beira da cama. Depois, segurando o machado com ambas as mãos, cortou de um golpe o pescoço da filha.

Assim que a velha se afastou, a moça ergueu-se e foi à casa do seu bem-amado, que se chamava Rolando. Bateu à porta e, logo que ele abriu, disse-lhe:

- Escuta. Temos de fugir o quanto antes. Minha madrasta quis matar-me, mas enganou-se e degolou a filha. Amanhã cedo, quando se der conta do que fez, estaremos perdidos.

- Mas aconselho-te- disse Rolando- que antes apanhes a sua varinha mágica; do contrário não poderemos salvar-nos, caso ela nos persiga.

A jovem voltou em busca da varinha. Depois, agarrou a cabeça da morta e derramou três gotas de sangue no chão: uma diante da cama, uma na cozinha e outra na escada. Feito isso, fugiu a toda pressa com seu bem-amado.

Quando amanheceu, a velha bruxa levantou-se e foi chamar a filha para para lhe dar o avental. Como ela não respondesse a seu chamado, gritou:

- Onde estás ?

- Aqui na escada, varrendo. – respondeu uma das gotas de sangue.

A velha foi até lá, mas, não vendo ninguém, tornou a chamar em voz alta:

- Onde estás?

- Na cozinha aquecendo-me! - respondeu a segunda gota de sangue.

A bruxa se dirigiu para lá e não encontrou ninguém. Perguntou de novo:

- Onde estás?

- Ora, aqui na cama dormindo! - disse a terceira gota.

A velha encaminhou-se para o quarto e se aproximou do leito. e o que foi que viu?... Sua própria filha, banhada em sangue. Ela mesma lhe cortara  a cabeça.

A feiticeira enfureceu-se e correu à janela. Como, por meio de sua artes mágicas, enxergasse muito longe, descobriu a enteada que fugia com seu noivo.

- Não adianta! - exclamou - Não me escaparão, por mais longe que estejam. Calçou suas botas de sete léguas, que a cada passo percorriam o caminho de uma hora, e saiu em sua perseguição. Em pouco tempo acercou-se dos dois.

A jovem, vendo que sua madrasta se aproximava a passos gigantescos, utilizou-se da varinha mágica e transformou seu bem- amado num lago enquanto ela se convertia em um pato que passou a nadar no centro da água. Quando a bruxa chegou à beira do lago, começou a atirar migalhas de pão à  ave, fazendo todo o possível para atraí-la. Mas esta não caiu na cilada e, ao anoitecer, a velha teve de voltar para casa como tinha vindo.

A moça e seu bem-amado Rolando recuperaram então a forma humana e seguiram adiante, caminhando toda a noite até de madrugada. Quando clareou o dia, a moça transformou-se numa linda flor, no meio de uma moita de espinhos. Ao seu bem-amado ela converteu num violinista. Pouco depois chegou a bruxa com as suas botas de sete léguas e, dirigindo ao músico, disse:

- Meu bom homem, pode me dar licença para colher aquela linda flor?

- Oh, pois não. - respondeu ele. - Enquanto isso, vou tocar um pouco.

Meteu-se a velha na moita para arrancar a flor, pois sabia muito bem quem era ela. Imediatamente o violino se pôs a tocar e a bruxa, quisesse ou não, viu-se obrigada a dançar, pois se tratava de uma ária mágica. Quanto mais depressa tocava, mais violentos saltos ela dava. Os espinhos lhe foram rasgando as vestes, deixando-a ferida e ensanguentada. Como o músico não cessasse de tocar, a feiticeira teve de continuar dançando até cair morta.

Libertados da velha, Rolando disse:

- Agora irei à casa de meu pai preparar nosso casamento.

- Então ficarei aqui, aguardando a tua volta. E, para que ninguém me reconheça, me transformarei num marco de pedra.

Rolando, porém, ao chegar em casa, caiu nos laços de uma outra mulher, que conseguiu fazê-lo esquecer sua noiva. A infeliz permaneceu muito tempo esperando por ele e, vendo que não voltava, ficou triste e transformou-se numa flor, pensando: "Um dia alguém pisará em mim."

Mas aconteceu que um pastor que andava apascentando suas ovelhas naquele campo, avistou a flor. Como a  achasse muito linda, cortou-a e guardou-a numa caixinha. Desse dia em diante começaram a acontecer coisas estranhas em casa do homem. Quando se levantava pela manhã, o trabalho todo estava feito, o quarto varrido, as mesas e bancos sem pó, o fogo aceso e as panelas cheias de água. Ao meio-dia, quando chegava em casa, encontrava a mesa posta e servido um bom almoço. O homem não podia compreender aquilo, pois jamais via alguém em sua choupana a qual, além disso, era tão pequena que ninguém poderia ocultar-se nela. Naturalmente aquilo tudo era muito agradável, mas ele acabou ficando alarmado e foi consultar uma adivinha.

- Isto é coisa de magia. - disse ela. - Levanta-te bem cedo e observa se algo se move na casa. Se avistares qualquer coisa. seja o que for , joga-lhe em seguida um pano em cima e o feitiço fica desfeito.

O pastor assim resolveu fazer. Na manhã seguinte ao despontar da aurora, viu a caixa abrir-se e dela saiu a flor. Ele saltou depressa da cama e, rapidamente lhe jogou um pano branco em cima. Pouco depois o encanto se desfez e adiante dele apareceu um a linda moça que lhe confessou haver sido a flor que até então  cuidara de sua casa. Contou-lhe a sua história e, como o pastor tivesse gostado muito dela, pediu-a em casamento. Ela, porém, respondeu que não, pois amava a Rolando e que, apesar de a ter abandonado, lhe seria fiel. Mas prometeu ao pastor que continuaria cuidando da sua casa.

Nesse meio tempo, foi se aproximando o dia do casamento de Rolando. De acordo com um velho costume, todas as moças do país foram convidadas a assistir à cerimônia e a cantar em louvor aos noivos. A jovem, ao saber disso, sentiu profunda tristeza que parecia que seu  coração já ia parar de angústia. Não quis ir à festa, mas as outras moças foram buscá-la e obrigaram-na a acompanhá-las. Chegada a sua vez de cantar, ela esquivou-se, mas afinal, já tendo todas as jovens cantando, não teve outro remédio senão fazê-lo também. Iniciou-se seu canto e, quando sua voz atingiu os ouvido de Rolando, ele ergueu-se depressa e exclamou.

Tudo o que havia esquecido reviveu em sua memória e em seu coração. Assim, a fiel jovem casou-se com o seu bem-amado Rolando e, acabados os sofrimentos, começou para ela uma vida cheia de venturas.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819.

Colar de Trovas LXXVII (UBT/ES)


01
Farol velho, não entendes
o contraste que eu te trago:
- tu, de esperanças, te acendes...
- eu, de saudades, me apago...
(Octavio Venturelli)
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02
 *Eu, de saudades, me apago*
em obscura solidão...
Companheira? É a dor que trago
preenchendo o coração.
(Márcia Jaber)
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03
*Preenchendo o coração,*
de pura e grande ternura,
nunca abandono o timão,
fujo, assim, da desventura.
(Ângela Veríssimo)
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04
*Fujo assim da desventura*
procurando o recomeço,
o seu olhar me perfura
e assim eu me desvaneço.
(Regina Rinaldi)
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05
*Assim eu me desvaneço*
das más lembranças de outrora;
pois, é certo que eu mereço
ser bem mais feliz agora.
(BessanT)
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06.
*Ser bem mais feliz agora,*
decidida, eu me proponho:
quero mudar, sem demora,
viver tempo mais risonho!
(Lucília Decarli)
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07.
*Viver tempo mais risonho,*
meu desejo mais profundo,
espero não ser só sonho
que não é levado a fundo!
(Cláudia Bergamini)
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08
*Se não é levado a fundo,*
o plano de amar, tardio,
deixa um coração fecundo
impróprio para o plantio.
(Jerson Brito)
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09
*Impróprio para o plantio,*
é o coração que não sente,
que o amor quando é vazio
não germina plenamente.
(Messias da Rocha)
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10
*Não germina plenamente,*
linda flor do bem querer,
enquanto a mágoa na mente
insiste em permanecer.
(Malu Bontorin)
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11
*Insiste em permanecer,*
esta saudade que eu tenho,
querendo te oferecer,
tudo de bom de onde venho.
(Romilton Faria)
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12
*Tudo de bom de onde venho*
eu trago em minha lembrança...
Reparto o melhor que tenho,
sou semeador de esperança.
(Edy Soares)
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13
 *Semeador de esperança,*
pelos caminhos, eu sou;
e a tristeza não me alcança
nas trilhas por onde eu vou.
(BessanT)
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14.
*Nas trilhas por onde eu vou,*
carrego paz e harmonia
e toda a esperança eu dou
para quem sente agonia.
(Ângela Verissimo)
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15
*Para quem sente agonia,*
e amarga a dor da saudade,
qualquer tempo, quem diria,
mais parece eternidade...
(Andra Valladares)
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16
*Mais parece eternidade,*
inerte, o tempo inclemente,
me consome de saudade
até te ver novamente.
(Márcia Jaber)
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17
*Até te ver novamente*
não me sentirei em paz,
o meu coração plangente
teme ser amor fugaz...
(Regina Rinaldi)
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18
*Temo ser amor fugaz,*
relembro o mal que causou;
Agora procuro a paz,
nas trilhas por onde vou.
(Malu Bontorin)
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19
*Nas trilhas por onde vou,*
seguindo de passo em passo,
meu coração encontrou,
os laços do teu abraço.
(Messias da Rocha)
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20
*Nos laços do teu abraço*
eu me sinto mais confiante
e, neste mesmo compasso,
quero seguir, doravante!
(Lucília Decarli)
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21
 *Quero seguir doravante*
com você por namorada;
minha mulher, minha amante,
minha esposa, minha amada.
(Arlindo Tadeu Hagen)
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22
*Minha esposa, minha amada*
dar-te-ei todo conforto,
enfrentando trovoada,
sempre em direção ao porto.
(Romilton Faria)
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23
*Sempre em direção ao porto*
mesmo após a tempestade.
Velas baixas, barco torto...
Eu busco a felicidade!
(Edy Soares)
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24.
*Eu busco a felicidade*
singrando o mar que tu fendes
num rasgo de claridade,
*farol velho... não entendes...*
(Márcia Jaber)

Júlia Lopes de Almeida (Folhas de uma velha carteira)

Disse-me um dia um velho amigo:

— Há certos livros de educação e de higiene que acho indispensáveis numa biblioteca de senhoras. As mulheres salvarão pelo amor o que os homens estragam por desídia.

Ponho nelas toda a minha esperança. Aos espíritos banais essas leituras parecerão fastidiosas; mas devemos crer que as mães, empenhadas pela saúde e bem estar dos filhos, achem grande interesse em folhear páginas sérias de educadores modernos. É um erro pensar que, hoje, o ensino deve ser ministrado como há cinquenta anos e entregar os nossos rapazes aos nossos colégios atrofiadores. Há tempos enviei um livro à minha filha: L'Education nouvelle, de Edmond Demoulins. Pois os meus netos já lucraram alguma coisa com a leitura da mãe. O livro é uma exposição claríssima da Escola moderna, prática, que trata de aperfeiçoar ao mesmo tempo o corpo e o espírito dos rapazes. "A escola deve desenvolver tanto na criança a amplitude da inteligência quanto a amplitude do peito."

Minha filha leu esse livro com muito carinho, e, na impossibilidade de executar em casa todo o programa do colégio, iniciou alguns dos seus exercícios com proveito, graças à instrução que recebeu... Os meus netos vivem no campo, onde têm bom teatro para os seus estudos de história natural. Um deles frequenta uma oficina de carpintaria, o outro uma de ferreiro... A mãe preside às suas leituras, livros escolhidos, na boa língua portuguesa, e ensina-lhes desenho e música. O pai dá-lhes uma hora de matemática e geografia e contrataram um professor francês para a língua francesa e um inglês para a língua inglesa, obedecendo à ordem da Escola moderna de que nunca uma língua deve ser ensinada senão pelos da sua nacionalidade. Os pequenos nadam como peixes e correm como gamos. Não têm as mãos acetinadas, está claro... Imagine um ferreiro! Um marceneiro! Por enquanto não barafustaram pelos labirintos da gramática, mas escrevem cartas muito limpas e já movem a lima e o malho com algum desembaraço...

Intercalando os estudos clássicos com trabalhos materiais e ocupações artísticas, eles vão-se tornando homens completos, tanto à vontade num salão como em uma oficina... Em uma das suas cartas diz-me a mãe:

"João e Luiz têm o andar firme e olham para toda a gente de rosto, com a cabeça alta, já demonstrando consciência de homens!"

E em outra carta:

"João está hoje trabalhando no jardim e Luiz na horta, à minha ordem. As quintas e sábados vem um homem guia-os nesse serviço, depois da hora das oficinas. Cada qual me faz mais lindas promessas; se dias se realizarem, ninguém terá nem tão lindas rosas nem tão magníficos repolhos."

Ainda noutra carta:

"João tocou hoje a sua primeira sonatina para alguns amigos ouvirem, e Luiz ofereceu ao mestre de inglês um desenho razoável. Embora eu disfarce o meu entusiasmo, eles percebem que estou contente."

Esta mãe que assim cultiva nos filhos todas as boas qualidades de corpo e de inteligência, a que deve essa satisfação? Ao seu amor? Não só ao seu amor, pelo qual os filhos nada lhe devem, porque todos os animais amam os filhos; mas a ter estudado como um homem ciências naturais e línguas vivas. Ela sabe que um dia pode transmitir, e os seus filhos são assim duplamente — suas criaturas.

Os russos, quando querem ser bons e simples, dizem coisas enternecedoras. Aqui estão palavras de um romance russo:
"Repara no cavalo, esse grande animal, e no boi, o robusto trabalhador que te alimenta: vê que fisionomias sonhadoras! Que submissão, que fina timidez! que devotamento por quem tantas vezes os castiga sem dó! É enternecedor o pensarmos que tais entes são sem pecado, porque tudo é perfeito, tudo é sem pecado, menos o homem."

Menos o homem; e para que este seja também puro quantas lágrimas de arrependimento e de contrição terá que verter! Mas para se ser perfeito não basta amar a humanidade; é preciso que o nosso olhar abranja toda a natureza e confunda na sua harmonia, com igual carinho, todos os seres que sofrem e que se submetem.

No meu bairro, às vezes tenho de encostar-me a um paredão da estrada para deixar passar uma carroçada de pedras puxada por uma ou duas juntas de bois. Eles vão cobertos de suor sob o peso da canga num esforço valente e com ar humilde, e ainda o bruto do carroceiro os espicaça com o seu pampilho! Na cara do homem não se lê senão a fúria bestial da impaciência, enquanto que os robustos trabalhadores, vergados e submissos, olham para a estrada adiante, com uma expressão de bondade sonhadora...

Caminho então para casa, pensando que realmente nós tratamos muito mal os animais. Só os vemos embaixo do trabalho pesado. Nessas lindas tardes de setembro, em que vagavam no ar pipilos de aves e penugens brancas de paineiras, porque não passaria pelas lindas estradas de Santa Tereza uma ou outra amazona em cavalo bem tratado?

Passado o instante do elétrico os folhudos galhos das árvores que se debruçam sobre as estradas nuas, só vem passar cavalos magros, lanhados de chicote, ou os fortes bois submissos e sonhadores...

Há na comédia Blanchette, de Brieux, uma frase que sintetiza, com delicadeza e exatidão, o amor ufano com que as mulheres servem a sua casa. São palavras simples, sem literatura, sempre as mais sinceras, que nascem da alma e definem com clareza uma ideia ou um sentimento.

Lembram-se? Blanchette, deslocada em casa pela educação recebida no colégio, abandonara o lar em uma rebentina, ouvindo as maldições do pai a apontar-lhe a porta da rua com a mão nodosa de vendeiro avaro. Blanchette, que se recusara a atar à cintura os atilhos do avental, para servir os fregueses do pai, volta pela segunda vez ao ninho paterno, mas agora como um cão batido, magro, morta de fome, coberta de humilhações. Tivera de servir de criada para viver. O mundo ensinara-a.

Vendo-a, a mãe acolhe-a, aquecendo-a de encontro à sua carne martirizada e submissa... O pai, teimoso, lá chega ao seu momento de ceder e ela, enfim restituída à sua casa e à sua família, exclama radiante:

— "Como é bom pôr a gente um avental em sua casa!"

E com que alegria os seus dedos ágeis amarram então na cintura os atilhos do avental! É que os aventais que as patroas lá fora lhe haviam atirado à cara tinham bem diversa significação. A independência do nosso canto, a felicidade do sacrifício feito pelo nosso lar e por os que amamos, estão bem dentro dessas palavras que direis escritas por uma mulher, tão impregnadas estão de sentimento feminino!

E aí está como um pedaço de pano incolor pode ter tão alta significação moral... O lenço desempenha na vida um papel bem variado!

Mesmo os lenços de luxo que com renda e tudo não medem mais que uns vinte e cinco centímetros, mera futilidade incapaz de descer às necessidades prosaicas, até esses têm o destino clemente de enxugar lágrimas e disfarçar ironias. Quando pertença a uma senhora, — que o do homem é obrigado a um exercício ativo — o lenço branco, de meio metro quadrado, paternalmente carinhoso nos defluxos e nas bronquites, não sai do recato da gaveta, bem guardadinho para as urgências de ocasião, dobrado em quatro entre sachês ou raízes de capim cheiroso.

No fundo da sua consciência (suponhamos que os lenços também têm disso), eles sentirão a satisfação do dever cumprido, tão apregoado pelos que o não cumprem, e esperarão que os chamem ao serviço interino de um nariz precisado do seu socorro e da sua abnegação.

Mesmo os lenços de chita, tão caricatos e nojosos, salvam-se quando, bem lavadinhos, são postos em cruz sobre o peito farto de uma camponesa bonita. Então não cheiram a tabaco; cheiram a trevo e alecrim; não têm nódoas de rapé, têm a sombra da cruz redentora ou dos bentinhos que a dona traz pendurados no pescoço; não representam a torpeza de um vício que desmoraliza o nariz, mas sim o recato que poetisa o seio.

De mais, são alegres com as suas cores turbulentas e ramagens vistosas, que despertam a ideia de campos de papoulas, onde bata o sol.

Não sei precisar se são só de minha cabeça, ou sugestão de alguma leitura fugitiva, estes reparos que por escrúpulo vão entre aspas:

"É no lenço que nós impregnamos com mais intensidade o nosso perfume favorito, a essência que faz parte da nossa individualidade e nos denuncia ao olfato dos amigos. É o lenço que seca as nossas lágrimas, que se mistura aos nossos sorrisos, que ajuda a mímica, abafa os gemidos, dissimula a careta e guarda amarguras do coração: triste pranto secreto e que ninguém adivinha. Recurso de aflições, ele, impassível e mudo, deixa que o crispemos, que o mordamos, que o estraçalhemos, nos movimentos de ódio e de despeito, quando não possamos com a palavra repelir a má intenção de um olhar ou de um gesto que ofenda! Vítima das nossas agonias, ele é então o salvador da nossa dignidade. É ainda o lenço que, compartilhando da expressão do nosso sentimento, se agita no ar numa saudação de aplauso ou na saudade de uma despedida. Quem não viu, ao menos uma vez na vida, esse aceno branco, repetindo em silêncio a palavra que já não pode ser ouvida? Onde a voz já não chega, chega ainda o adeus do lenço, batendo-se no ar como uma asa na agonia."

Imagine se a amada do poeta teria lido nunca estes versos:

Este teu lenço que eu possuo e aperto
De encontro ao peito quando durmo, creio
Que hei de um dia mandar-te, pois roubei-o
E foi meu crime em breve descoberto"

(Versos de um simples — Guimarães Passos)

Se ela o não usasse e o não tivesse deixado roubar, já naturalmente com o propósito, muito humano, de o reaver, quando "Pando, enfunado, côncavo de beijos!"

Esse trapinho, que se embebe de lágrimas que secam, de beijos que se não vêm, que fala nos apartamentos e nas aclamações, que designa para o amor de um rei a mulher preferida, que abafa os soluços, guia as pesquisas das cartomantes e das feiticeiras, dá sinais aos namorados, protege os espirros e recende aos aromas mais capitosos: que é muitas vezes cúmplice em intrigas, fingindo secar olhos enxutos e escondendo caretas que desejem parecer sorrisos, tem ainda uma missão misericordiosa: a de encobrir a face feia e fria dos cadáveres. E na hora extrema do cadafalso, vendam-se com o lenço os olhos dos supliciados, para não verem a morte!

“Você não viu algumas vezes um lenço
Avistado com morangos na mão da sua esposa?”


Quantas vezes o notara Otelo; se era dádiva sua! Pois foi com esse lencinho salpicado de morangos que o honesto Iago assanhou no seu senhor o monstro de olhos verdes, o enegrecido ciúme, que fez morrer a pálida Desdêmona.

Na ação como na intriga os lenços representam muitas vezes no teatro extraordinárias ficções! São almas que se dilaceram entre os dedos apaixonados de Margarida, ou os dentinhos terríveis de Frou-frou; são como pedacinhos de pele amada de encontro aos lábios de Romeu e quando não exaltem paixões nem enxuguem o suor da agonia, é ainda um magnífico pretexto para que a mão desocupada vá e venha, cortando a monotonia da inércia.

Quem inventou o lenço bordado e circundado de rendas foi a imperatriz Josefina, que por ter maus dentes escondia com ele continuamente a boca. Graças o essa cárie irreverente o lencinho fino tornou-se objeto de luxo e entrou na atividade dos passeios, das procissões, dos minuetos, onde ele era o sucedâneo do leque, dobrado em ponta entre os dedos carregadinhos de anéis, de benjoim e de verbena. Era talvez a parte mais expressiva da toalete, o seu complemento precioso, com o nome da dona sublinhado a rendas caras. Rendas...

Há no Brasil, em terras do norte, umas rendeiras cujos dedos conhecem segredos de fadas. Rendas de lenços, fazem-nas tão bonitas e tão finas que se nos afigura impossíveis terem sido tecidas por gente inculta, sem noção de desenho. Quando se lê o apreço que em certos países dão, e agora mais que nunca, às rendas feitas à mão, e como neles cultivam essa prenda delicada, agremiando camponesas, dando-lhes mestres, fomentando uma indústria que é ao mesmo tempo uma arte, receia a gente que as rendeiras do Norte, já velhinhas, deixem cair os bilros dos dedos engelhados, sem que outras mãos, mais lépidas, os apanhem para continuar a tarefa interrompida...

Íamos pela rua do Senador Furtado. O dia estava lindo, cheirava a murta. Subitamente começamos a ouvir gemidos, arrancados de uma grande aflição. Mais alguns metros, e vimos agachada numa soleira de portão, com o busto caído sobre os joelhos pontudos, uma negra cadavérica, que a tosse sacudia como o vento sacode um trapo. Sentindo gente, ela levantou a cabeça, revirando os olhos pálidos para o céu iluminado. A aragem brincava-lhe com um farrapo de xale, que dia franzia no peito com as mãos magríssimas e amareladas. Paramos, e a voz dela explicou entre uivos: — Foi o cock... foi carvão de cock que me matou!

As palavras, interrompidas pelas guinadas da tosse, repetiram a queixa no mesmo estribilho recriminativo: — Foi o carvão de cock que me matou!

Veio gente de dentro. Levaram-na em braços. Ouviram bem? O cock é um assassino de mulheres. Mata pelo excesso de calor que desprende. Nunca me esquecerei daquela triste queixa irremediável...

Não é raro esbarrarmos na rua com uma menina, nessa idade indecisa, como diz o mestre:

Que não é dia claro e é já alvorecer
Entre-aberto botão, entre-fechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher .

(Falenas — Machado de Assis)

E a impressão que se sente é sempre agradável, se essa criatura tem a condizer com o resto de meninice, que vai desaparecendo, e o começo da mocidade, que vem apontando, uma graça ingênua e um modo desartificioso de andar e de vestir-se.

Ah, mas quando, ela passa empapada de essências raras, de passo estudado e muito espartilhada, com meneios grosseiros e rosto empoado, vem a quem a olha um desejo absurdo de sacudir pelos ombros a mamãe inconsciente; e de lhe gritar aos ouvidos que a doce criatura que o céu lhe confiou, e cujos passos ela segue como má pastora, vai carregadinha de ridículo...

O artifício do pó de arroz é o véu benévolo para os postos de quarenta anos. A pele moça não precisa disso. A beleza das donzelas está na sua candura, na sua alegria natural, e sobretudo na sua simplicidade...

Vi em uma revista francesa o retrato de uma velhinha que aprendeu a ler depois dos setenta anos. Olhando-lhe para a cabecinha e para o rostinho todo sulcado de rugas, tive vontade de beijá-la. A história dela: Todas as manhãs costurava a septuagenária junto à janela da sua choupana, à sombra de um castanheiro que lhe dava perfumes na primavera, sombras no verão, frutos no outono e ouriços para o foguinho do inverno.

Que mais seria preciso para a vida? O alfabeto não foi feito por Deus; e para amá-lo e servi-lo bastaria adorar a natureza. Entretanto eis que depois de longos anos lhe cortam a frente da casa por um caminho novo, atalho para a vila, por onde a rapaziada de uma aldeia próxima passava para a escola. A doce velhinha, ouvindo todos os dias a tagarelice das crianças levantou os olhos da costura e voltou-os para o horizonte infinito.

Saber ler seria tão útil, que os pobres pais, cavadores sem vintém, se balançassem a mandar os filhos todos os dias à escola, com prejuízo do seu trabalho? Alguns desses pequenos já sabiam lidar nos campos, e tinham força para mover a enxada ou guiar os bois... Com que duros sacrifícios a mãe lhes compraria os sapatos e as roupas de ir ao mestre!

Esse exemplo fê-la pensar que vivera toda a sua longa vida de setenta anos, como um animal inferior, em que o pensamento mal animava a matéria. A vida teria outros intuitos mais elevados que os de servir a carne com o alimento e o agasalho?

Dos seus dedos encarquilhados e trêmulos a costura caiu, e no dia seguinte ela se incorporou ao bando das crianças, a caminho da escola. Foi uma alegria. Os pequenos não riram. Emprestou-lhe, um, uma cartilha; outro ofereceu-lhe uma tabuada; e todos se sentiram muito honrados com aquela co-discípula de rosto franzido e cabelo nevado.

No fim de três meses de uma aplicação teimosa, a velha aldeã, escrevia a sua primeira carta à neta mais velha, que vivia numa colônia francesa da África. Nas suas garatujas aconselhava ela a moça a ir à escola, para aprender a mandar-lhe notícias com a sua própria letra.

As cartas escritas pelos outros não são inteiramente nossas; nas letras como nas palavras vai alguma coisa do ente amado e ausente... De vez em quando noticiam os jornais: "... Perdeu-se uma criança... Achou-se uma criança..."

E são sustos, lágrimas, aflições! Para prevenir essas confusões bastaria atar ao pescoço dos anjinhos na medalha com seus nomes e moradas. Tal e qual como aos cãezinhos. Sim, porque as pobres crianças com as suas línguas de trapos, tão musicais e incompreensíveis, esforça-se em vão, muitas vezes por explicar a um desconhecido, que as encontra chorosas na calçada, de onde vêm ou para onde vão. Há só uma palavra nítida no meio daquele embaralhado fuso de sílabas entrecortadas de soluços: — mamãe! Querem a mamãe, cuja mão deixaram sem saber como, nem onde, nem quando, olhando tontas para a direita ou para a esquerda, sem noção do sítio, aflitas, trêmulas, sondando com olhar ávido todas as portas, erguendo os queixinhos rosados para todas as janelas.

Estas cenas, aliás frequentes, sempre enternecem, e a cada pergunta que um transeunte comovido faz, no sentido de auxiliar e bem conduzir a pobre criaturinha, ouve sempre a mesma resposta — mamãe!...

— Em que rua mora? — Mamãe!

— Para onde ia? — Mamãe!...

— Como se chama ela, a sua mãe? Mamãe, mamãe, mamãe!

Por seu lado, a mãe volve à loja de onde saiu, julgando encontrar o filhinho embasbacado diante da mesma boneca; já não o encontra, sai trêmula, — que o não pise um carro! — e, enquanto alucinada sobe para a direita, interrogando toda a gente, olhando como louca para todas as lojas e todas as esquinas, ele desce para a esquerda, engrolando termos, segurando-se a todas as saias, contemplando com avidez e susto todas as mulheres.

E nós, que nada vimos, comovemo-nos no dia seguinte ao ler nas gazetas: "... Perdeu-se uma criança..."

Um dia encontrei em uma esquina o velho Dr. Serra, que, apesar dos seus setenta anos, gosta de observar as moças que passam. Disse-me ele: “Estou convencido de que o simples movimento de levantar o vestido exige uma graça muito particular. Há senhoras que erguem a saia de um lado e vão com ela a rastros do outro, descrevendo uma linha diagonal, como se caminhassem de esguelha. Outras, não levantam coisa nenhuma, varrem as ruas com desassombro; outras, levantam demais o vestido, mostrando as saias de baixo, que só devem ter o mérito de se deixar adivinhar: outras, arrepanham as duas saias ao mesmo tempo, para mostrarem a toda gente os tacões das botinas; e é raro ver-se uma que, reunindo as pregas da saia à mesma distância da cintura, colha a fazenda sem distrações nem indiscrições, deixando apenas entrever o que se deve não mostrar.”

Eu já atinei com a arte. A mão que segura o vestido não deve estar nem muito alta, nem muito baixa, nem muito para diante, nem muito para trás; de maneira que o braço caia naturalmente e não desenhe esses feios ângulos agudos, que nos obrigam também a andar fazendo curvas. Realmente, as senhoras do meu tempo...

Pedi ao meu amigo que olhasse para outro lado e aproveitei a ocasião para fugir-lhe, não sem a preocupação de que ele se voltasse e me visse os tacões, ou a saia de esguelha...

Os homens são terríveis!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das donas e donzelas. Publicado originalmente em 1906
Disponível em Domínio Público.

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 30

 

Monsenhor Orivaldo Robles (A bolsa ou a vida)

Era um senhor idoso podre de rico, mas muquirana de não pagar cafezinho para a própria mãe. Trabalhara duro na roça até comprar uma propriedade. Daí para frente, a coisa deslanchou. Conseguiu acumular fortuna considerável. Filhas casadas há tempo, vivia agora com sua velha num confortável casarão de fazenda, cercado de todos os confortos da vida urbana.

Depois dos tantos anos de luta, começou a acusar os sintomas da idade. Com receio de ver reduzido o vultoso patrimônio, recusava-se a consultar um médico. Pouco valia a insistência da mulher e das filhas. Ele se esforçava para disfarçar qualquer sinal de dor. Se aparecia algum desconforto maior, recorria a remédios caseiros. Até que, não suportando mais os reclamos do velho corpo, foi obrigado, um dia, a pedir arrego. Acabou no consultório.

O médico lê a ficha preenchida pela secretária e pergunta: – “Então, seu Giácomo, o que é que o senhor tem”? – “Doutor, eu tenho”…, fez uma pausa; temia uma conta salgada, mas tinha também seu orgulho, tenho uma fazendinha de gado (mil e duzentos bois), de soja (dois mil hectares), tratores, colheitadeiras, uns apartamentos na cidade”… – “Acho que eu não me expliquei direito. Quero saber o que o senhor sente”. – “Ah, doutor, o que eu sinto é deixar tudo para os meus genros, três vagabundos, que não veem a hora de eu fechar os olhos para por a mão no que eu construí com uma vida inteira de sacrifício”.

Claro que é só uma anedota, mas poderia ter acontecido. Não é tão raro que genros lancem olhares gulosos para a fortuna dos sogros. Muita gente deve ter ouvido contar sobre o diálogo entre amigos: – E o velho seu sogro como vai”? “Ih, rapaz, aquilo é uma aroeira: está com uma saúde irritante”. Muitos adoram seus sogros, é verdade. Talvez em até maior número, porém, há os que não os suportam. Na maioria dos casos, a desavença passa longe do fator financeiro. Mas existem situações em que o peso do dinheiro figura no centro da questão.

Não se pode negar que a riqueza material define, às vezes de forma decisiva, a constituição de uma família. Quem já não ouviu afirmação do tipo: “Você viu que sujeito mais burro? Namorava a filha de um milionário e, sem mais nem menos, terminou com ela”. A mensagem é evidente: se a outra parte era rica, só um grande idiota deixaria escapar a chance de se ajeitar na vida. Apesar de tantos casais, por aí, infelizes por causa do dinheiro, ainda existe quem coloque a riqueza como exigência primeira de um casamento. Muitos parecem seguir à risca o jocoso ensinamento de que “ter pai pobre é destino; ter sogro pobre é burrice”.

Ninguém está defendendo o ingênuo romantismo de um amor e uma cabana. União nenhuma resiste à falta de uma razoável garantia material. Mas seria loucura dar como suficiente a segurança financeira. Muitos lares se esfarelam por carência de alicerces mais sólidos, que muita gente não entende necessários. Revela despreparo quem se satisfaz somente com beleza de corpo e bom cadastro bancário.

Que futuro haverá para jovens portadores de defeitos graves – falta de fé, de estudo, de trabalho, irresponsáveis, mentirosos, aproveitadores – ainda que belos e ricos? Será que, desde a infância dos pupilos, os pais estão atentos a isso? Se não corrigem os filhos pequenos, mais tarde poderá ser tarde demais.

Fonte:
Portal do Rigon
https://angelorigon.com.br/2012/03/17/a-bolsa-ou-a-vida/

Daniel Maurício (Leve-me) 1


A esperança
Costumava se vestir de verde.
Era reconhecida
Até no tremular
Das folhas ao vento.
Mas hoje,
Depois de muito lamento
Ela vem em doses pequenas
Disfarçada
Com vestido branquicento.
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Clandestino
Embarco neste teu sorriso,
Mesmo sabendo
Que não era pra mim.
Nele viajo
Ainda que por instantes
Embalado
Por um resto de paixão
Que ainda brinca
Tão solitária
Aqui dentro de mim.
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Com o apito do trem
Os corações
Despertavam.
Era gente que chegava
Era gente que partia
Com o apito do trem.
Com o apito do trem
Nos abraços
Desfaziam-se as saudades de uns,
Enquanto as lágrimas
Prenunciavam as saudades de outros.
Com o apito do trem
A vida pulsava
Até mesmo nas cidadezinhas mais remotas
E que hoje quase mortas
Sentem a falta
Do velho apito do trem.
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Não se mata a saudade
Impunemente.
Preso fiquei
No teu olhar.
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Nas tardes de domingo
Olho nos teus olhos
E deixo que
As minhas meninas
Brinquem
Com as meninas
Dos teus olhos
Sem me importar
De que já seja
Quase inverno.
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No desfilar dos dias
Aprendi a desbastar ideias,
A por ponto final
Em muitas frases inacabadas,
A lógica das crianças é simples
E a felicidade delas é tão plena.
Abandonei a pressa
Pois a vida passa até por uma fresta.
Melhor valorizar a pausa,
Mesmo que seja
Pra contrariar a Gramática
Ao se colocar vírgulas
Onde elas não caibam.
O amor é a definição de Deus,
O resto é coleção de "eus"
Sujeitos a ficarem perdidos no breu,
Ou quem sabe em caixas
A mofar.
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Nos meus silêncios
Adoro o falar
Das tuas mãos
Em minha pele.
Tudo fica bem!
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O "eu te amo"
Era pra ser pra sempre.
Mas na primeira "chuva"
Descobriu-se
Que tinha sido uma promessa
Escrita a giz.
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Os dias
Andavam
Pesados.
Vagarosas
Cinzas no olhar.
Mas eis
Que o menino
Que em mim
Habita
Começou
A pintar palavras
Com as sobras
De lápis de cor.
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Outono.
As folhas que caem
São lágrimas das árvores
Se despedindo.
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Quando disse
Que te queria,
Não estava a procurar
Apenas rima.
Rimar é fácil
Remar a dois, não.
E como é bom
Quando os corações
Batem no compasso
Do mesmo verso.
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Que pena!
Os seus "eus"
Eram tantos
Que o nós
Ficou num canto
E só de vez
Em quando
Em cima
Da cama.
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Ser escritor
é...
descrever
a própria dor,
dísfarçando-se
em um personagem.
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Sozinha?
Ah, se tu
Soubesses
Que era eu
Uma daquelas
Pétalas
Que desprezastes
Julgando ser um
Malmequer.
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Tem passado
Que não passa.
Um deles
É o meu amor
Por você.
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Teus beijos
São poesias escritas
Na minha pele.
E a minh'alma
Sabe todas de cor.

Fonte:
Daniel Maurício. Leve-me. Curitiba/PR: Ed. do Autor, 2021.
Enviado pelo poeta.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capitulo 12: A sombra da macieira

Alguns dias depois, dona Ana recebeu alta e retornou ao lar.

A operação foi bem executada, mas as sequelas do infarto foram grandes, e ela continuou muito debilitada.  

Isadora, inconformada em ter que entregar seu destino a um desconhecido, saiu a cavalgar. Precisava sentir o vento soprar forte no rosto, e de tempo para refletir sobre a nova realidade. Dona de um espírito livre, marcante, mal podia imaginar como seria a sua vida dali em diante. De toda forma, precisava manter-se equilibrada, pois à noite, Fábio e sua família viriam oficializar o noivado num jantar simbólico. Precisava estar preparada para o momento do sacrifício, afinal, foi com o dinheiro da sua futura nova família, que a operação de sua mãe foi paga. E, com o dinheiro da mesma família, as terras de seus pais seriam salvas.

Desejava se sentir grata por isso. Mas sua alma revolta feito vento em dias de tempestade, aterrorizava-se ao imaginar ir para a cama com aquele homem, cuja beleza poderia parecer agradável à maioria das gurias de sua idade, mas que nela não causara impacto algum. Ao contrário, havia detestado a maneira indecente com que o rapaz observou seu corpo na noite do tal jantar de “negócios”, onde, ela foi negociada.

Apesar de tudo, Isadora não estava arrependida. Sua mãe estava viva. E isso era o que importava.

Repentinamente uma imagem cortou - lhe os pensamentos:

Genuíno, também a cavalo, vinha em sua direção.

- Viestes mesmo - disse ela um tanto, surpresa.

- Sou homem de palavra, guria - respondeu o rapaz, sorrindo.

- Em qual fazenda tu trabalhas?

- Na fazenda dos Gonçalves.

- Ah, sim. São conhecidos da minha família.

- Algum problema em conversarmos?

Isadora apeou do Relâmpago. Prenderam os cavalos no tronco de uma árvore e saíram a passear. Logo em seguida alguns peões começaram os cochichos:

- Será peão novo? - disse Juca a Juliano.

- Pode ser, mas o que ele está fazendo com a patroazinha? Quem trata desses assuntos é o chefe.

- Sei lá... o patrão deve estar ocupado com a esposa convalescente.

- Estranho, Juca, a gente sabe que o patrão não é muito chegado a negros na fazenda.

- Tá aí uma verdade... Mas vamos cuidar do nosso serviço, ainda hoje tenho que encaminhar uma carga de arroz lá para a cidade - disse o capataz.

Isadora sabia das consequências em ser pega pelo pai, acompanhada de um rapaz, ainda mais no mesmo dia em que iria ficar noiva, mas sabia que o velho estava longe. E que quando saía da fazenda, demorava a voltar. E mandar Genuíno embora seria como se perder da esperança da possibilidade de um dia ser feliz e livre em suas escolhas. No centro do jardim, debaixo de um pé de macieira, onde costumava refletir e escrever poesias, acomodou -se o jovem. Dando início a uma conversa muito agradável... Livre de receios!

Isadora sentiu seu coração pulsar como nunca antes havia sentido. Estava feliz. E torcendo para que aquele momento durasse para sempre. Mas sabia que logo terminaria, e que a luz daquele dia, se tornaria treva: uma treva cheia de labirintos sem saída.

Enquanto conversavam, Isadora surpreendeu-se ao descobrir que Genuíno era órfão de pai e mãe, e que desde de piá precisava trabalhar duro para sobreviver.  Surpreendeu-se mais ainda ao perceber que tantas dificuldades não fizeram dele um homem amargo e tristonho. Ao contrário, o rapaz tinha uma mente inteligente e olhos cheios de brilho. Naquele momento ele era, sem sombra de dúvida, seu símbolo de esperança. De uma esperança bonita, dessas que normalmente só se descobre uma vez na vida. Por isso, aquela tarde não podia partir levando embora sua doce esperança. Mas iria...

As horas passavam depressa. Genuíno desabafou sua história de vida, e ela não teve coragem de dizer que a história de amor entre eles se resumiria numa única tarde moldada pelos anjos, feita de poesia. 

- Está entardecendo. Preciso voltar para casa, Genuíno.

- Quando podemos conversar novamente?

Isadora pensou numa resposta rápida. - Sei onde trabalhas. Logo te farei uma visita.

- Gostei da iniciativa - disse ele.

- Mas não te assanhes. Somos apenas amigos.

- Aceito tua amizade de bom grado - disse o rapaz entregando a ela um papel enrolado em laços de fitas vermelhas.

- É um poema? 

- Sim.

Ela agradeceu. Lentamente os dois se afastaram. E Isadora, mesmo inconformada, voltou para casa encorajada a enfrentar a batalha que se aproximava.
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continua...

Fonte:
Texto enviado pela autora

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Adega de Versos 111: Medeiros e Albuquerque (1867 – 1934)

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 91

Assobiaram e sibilaram nas altas horas os ventinhos de agosto. Vieram mansinhos, mansamente, e logo as primeiras vozes nos beirais.

O bochincho cresceu, raios rondando, vozerio nas frinchas de portas e janelas. Vozes do Além. A porteira rangendo, as vacas berrando na estrebaria. Madrugada sonora. Alarido dos ventos.
 
Amanhecer silencioso, anuviado, só os canarinhos. Harmonia opaca que foi carregando no espaço, horizontes velados, prenúncios - pré-anúncios - de chuva a caminho. A tarde chegou e com ela os primeiros pingos serenos neste agostinho bem molhado, invadindo as veredas da noite.

Ventos e chuvas são forasteiros sem fronteiras levando mensagens de toda espécie, das fagueiras às mais insolentes, em avatares dulçurosos ou tormentosos, graciosos ou em alaúza. E sempre foi assim, essa constância inconstante atravessa os anos de nossas vidas e nos põe lado a lado junto à natureza na sina de transitórios.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Aparecido Raimundo de Souza (João e Maria)

AOS QUINZE anos, o João chegava para a sua vizinha, a Maria, e mandava a pergunta. Fazia a proposta na lata, na bucha, sem titubear:

— Maria, quer se casar comigo?

A Maria (dois anos mais nova que ele), se mostrava rápida e taxativa:

— Não.

João, insistente se declarava como um menino bobo diante do primeiro amor da sua vida:    

— Eu te amo.

Maria, fria e seca, sempre que o guri voltava à carga, atirava no infeliz um balde de água fria:    

— Eu não te amo. Nunca me casaria com você. Um pobretão!...

João, entristecido sem, contudo, perder o brilho da paixão, insistia:

— Pense. Nos conhecemos desde criança. Passamos a ser vizinhos desde o momento em que as nossas famílias vieram morar aqui em Carapicuíba, mesmo bairro, nesse conjunto da Cohab e, coincidentemente, as nossas portarias bateram com seus narizes de frente e passaram a respirar o mesmo ar benfazejo...

Maria, enfezada e doida para encerrar a conversa não abria a guarda:

— E o que todo esse papo furado tem em comum?

João, sem perder o fulgor da ternura trazida no rosto, toda vez que conseguia se aproximar da graciosa, não desperdiçava as poucas migalhas da esperança. Se declarava um admirador inveterado:

— Casa comigo, minha linda. Fomos feitos um para o outro. Nossos destinos se cruzaram desde que você e eu nos vimos pela primeira vez na estação de Osasco. Você estava com seu pai, eu com minha mãe. Sinto aqui dentro do peito que você se fez prometida, desde então, para ser a mulher da minha vida.

Maria, intransigente e desdenhosa, parecia prestes a soltar fogo pelas ventas. Berrava:

— Culpa da minha mãe, que teve a maior cara de pau. Logo na semana em que mudamos para a Cohab, faltou açúcar lá em casa. A pobrezinha saiu feito uma desmiolada pedindo para os vizinhos. Com tantas espeluncas espalhadas, a coitada resolveu bater justo no miserento do seu bloco. Coincidentemente... desde aquele fatídico dia, você grudou na minha aba.

João, afoito e cheio de garbo, não desgarrava da altivez. Reiterava seus desejos não correspondidos pela desmiolada aproveitando os mínimos detalhes embutidos nos desprezos ventilados por ela:

— Prova do destino de que fomos feitos um para o outro. Nossas almas se cruzaram (além da estação), uma segunda vez, ou seja, exatamente em face daquela simples falta de açúcar. Por mais que você queria lutar contra, não terá escapatória. Você será minha, minha, entendeu? Farei de você a esposa mais linda aqui da comunidade. Como tal, você me dará um penca de filhos. E deixará de trabalhar como faxineira na fábrica de lâmpadas da Osram.

Maria fazia pouco caso e sorria em escárnio, desprestigiando as palavras que entravam por um ouvido e saiam pelos cotovelos:

— Uma ova, cara. Vai te lascar. Nem que a vaca tussa ou espirre.

João, paciente, fingia não ouvir os atrevimentos desaforados que a megera soltava, sem papas na língua e continuava a se abrir pior que mala velha num conformismo inigualável:

— Adoro esse seu lado humorístico. Nunca ouvi dizer que vaca tossisse ou espirrasse... de onde você tira essas frases saborosas e criativas para acariciar meu âmago?

O tempo passou voando. João se mudou de Carapicuíba. Maria, continuou por lá. Hoje a criatura conta vinte e cinco e João (mais velho que ela dois anos) se esbarraram, por mero acaso, na saída da missa dominical na Paróquia de São Paulo Apóstolo. A mesma localidade da Cohab, onde sempre viveram desde os primórdios da infância. João, ao reconhecer o seu amor impossível, seguiu a jovem e a alcançou montado em seu carrão, um Speedtail azul metálico da McLaren. Uma máquina de fazer inveja ao Audi R8 vermelho do Roberto Carlos. Ao vê-la, buzinou e meteu o pé no freio:  

— Maria, ei, Maria! Lembra de mim? Sou eu, o João...

Maria, ao reconhecê-lo naquele possante, perdeu momentaneamente o fôlego e, igualmente, estancou a caminhada:

— Jo... Jo... João?  - É você mesmo?

João, em resposta, saltou correndo e cheio de saudade se amoldou ao corpo escultural da moça. Falou, quase sem voz:

— Sou eu, Maria. Em carne e osso. Me formei em medicina. Comprei uma mansão em Aldeia da Serra para meus pais e, ao lado, adquiri uma outra para mim. Para nós. Ainda no correr desse mês, quero retirá-los daqui da Cohab e levá-los para uma vida mais digna e sem atropelos. Eu...

Naquele momento, Maria, em choro convulsivo, interrompeu João e mudou o rumo da prosa. Inopinadamente se enroscou como uma cadelinha no cio no pescoço do rapaz e mandou a pergunta:

—... João, meu amor... ainda quer se casar comigo?!  

Embevecida de uma paixão claramente momentânea, completou, eufórica:

— Quero ser sua esposa de verdade e lhe dar uma penca de filhos...

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Lilia Maria Machado Souza (Cristais Poéticos)


ATRIZ


Na vitrine dos dias
invento sorrisos
escondo as dores
que brotam nos olhos.

Nos risos tantos
de boa atriz
quase acredito
que sou feliz.
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BAMBU

Inda que sangre o dia
do sol ao breu
inda que dura seja
a pouquidade de palavras
vergo mas sigo de pé
a repartir o pão
recolher as roupas no varal
aguar as plantas na varanda.

Inda que sangre a carne
seque o céu da boca
riachem os olhos
calejem as mãos
vergo mas sigo de pé
cravo os dentes na dor
vou descabelando ventos
ao encontro do amanhã.
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INSCRIÇÕES

Nas paredes do ventre
na pele das veias
desenho soltas palavras
com pena e nanquim.

No labirinto
de desejos e medos
registro inacabados versos
com ponta de sabre.
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LÂMINA

O silêncio
- lâmina de aço —
corta o dia
transpassa a carne
o ventre fatia
perfura o peito
sangra a tarde.
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LEMBRANÇAS DE UM AMOR

Num lindo dia de verão
de tanta alegria sentir
meu olhar encontrou paixão
nas paisagens, sem refletir.

A voz embargada dobrou-me.
Os olhos, com lágrimas cerraram-se.
A lembrança um canto relembrou
e o coração insano, disparou.

Sentimentos afloram-se no peito.
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MARRAKECH

Em imaginação
viajo aos longes
chego a Marrakech
ruas labirintos
ogivas mesquitas
camelos tapetes
sedas lanternas
rubros pores do sol.

No coração
tantos mistérios
milagre da festa
celebração da alegria.
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POTENGI

Mais veloz do que o vento
voa o pensamento a lonjuras.

Revejo o sol poente
desaguando ouros e rubis
à margem da correnteza.

Solitário barco tange
as águas tingidas.
Violinos tocam
o fim do dia.
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PROPAGAÇÃO

No alto do penhasco
finco no chão os pés
enquanto os ventos
reviram as dobras
de minhas vestes
as rendas das anáguas
as flores nos cabelos.

Do alto do penhasco
grito teu nome
a todos os quadrantes
em estranhas línguas
enquanto os ventos
agitam-me as asas
e teu nome ecoam...
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REFLEXÃO

No sonho te procurei...
Na dor que em ti encontrei
neste mundo exultarei.
Só sei que nada sei.

Viajo buscando um rumo.
Navego sem direção,
voando sem muito prumo,
andando na contramão.

Ajudo pedindo auxílio.
Caminho com lentidão
retendo no meu esforço
o plano da evolução.

Oportunidades surgem
a cada passo nesta jornada.
Tomar decisões que urgem,
depende da caminhada.

Aprendi com as lições
de um mundo a que pertenci
e, superando emoções,
eu vim, eu vi e venci
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

TESSITURA

Dos desequilíbrios
do coração
da imaginação
como flores na primavera
em pétalas de ternura
brotavam palavras
teciam sóis nascentes
correntezas de rios
frescor dos bosques
rendas do mar nas praias
estrelas sobre os vales
voos de borboletas
cantos do passaredo...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

Lilia Maria Machado Souza nasceu em Volta Redonda/RJ, em 1954. Residente em Curitiba/PR. Graduou-se em Letras e especializou-se em literatura Brasileira e Construção de Texto. Tem contos, crônicas, poemas, artigos de análise literária registrados em publicações conjuntas, em jornais e revistas literárias ou afins; trabalhos apresentados em congressos, publicados em seus anais. Publicou os livros de poemas Agua e Luz (1998); Avesso em versos (2001); Olhares canhestros (2015); Estórias de Trevol do Nada (contos, 2018); Onze poemas (2018, edição bilíngue), Chá das cinco (2018) e Trilhas sazonais: versos liturgos (2020, em coautoria).

Membro correspondente da ATRN — Academia de Trovas do Rio Grande do Norte (Parnamirim) e do ICOP - Instituto Cultural do Oeste Potiguar (Mossoró - RN); Membro efetivo do Centro de Letras do Paraná e da UBT — União Brasileira de Trovadores/Seção Curitiba. Integrante da Academia Paranaense da Poesia, da Academia Feminina de Letras do Paraná (cadeira 33), da ASBL — Academia Sul-Brasileira de Letras, da ACCUR — Academia de Cultura de Curitiba. Participa da Confraria Literária Café & Poesia (Mossoró) e do Observatório da Cultura Paranaense.


Fonte:
Messias da Rocha (org.). Múltiplas palavras vol. III. Juiz de Fora/MG: Ed. dos Autores, 2022.
Enviado por Lucília Trindade Decarli.

Machado de Assis (Fulano)

Venha o leitor comigo assistir à abertura do testamento do meu amigo Fulano Beltrão. Conheceu-o? Era um homem de cerca de sessenta anos. Morreu ontem, dois de janeiro de 1884, às onze horas e trinta minutos da noite. Não imagina a força de ânimo que mostrou em toda a moléstia. Caiu na véspera de finados, e a princípio supúnhamos que não fosse nada; mas a doença persistiu, e ao fim de dois meses e poucos dias a morte o levou.

Eu confesso-lhe que estou curioso de ouvir o testamento. Há de conter por força algumas determinações de interesse geral e honrosas para ele. Antes de 1863 não seria assim, porque até então era um homem muito metido consigo, reservado, morando no caminho do Jardim Botânico, para onde ia de ônibus ou de mula. Tinha a mulher e o filho vivos, a filha solteira, com treze anos. Foi nesse ano que ele começou a ocupar-se com outras coisas, além da família, revelando um espírito universal e generoso. Nada posso afirmar-lhe sobre a causa disto. Creio que foi uma apologia de amigo por ocasião dele fazer quarenta anos. Fulano Beltrão leu no Jornal do Comércio, no dia cinco de março de 1864, um artigo anônimo em que se lhe diziam coisas belas e exatas: — bom pai, bom esposo, amigo e pontual, cidadão digno, alma levantada e pura. Que se lhe fizesse justiça, era muito; mas anonimamente, era raro.

— Você verá, disse Fulano Beltrão à mulher, você verá que isto é do Xavier ou do Castro; logo rasgaremos o capote.

Castro e Xavier eram dois habituados da casa, parceiros constantes do voltarete e velhos amigos do meu amigo. Costumavam dizer coisas amáveis, no dia cinco de março, mas era ao jantar, na intimidade da família, entre quatro paredes; impressos, era a primeira vez que ele se benzia com elogios. Pode ser que me engane; mas estou que o espetáculo da justiça, a prova material de que as boas qualidades e as boas ações não morrem no escuro, foi o que animou o meu amigo a dispersar-se, a aparecer, a divulgar-se, a dar à coletividade humana um pouco das virtudes com que nasceu. Considerou que milhares de pessoas estariam lendo o artigo, à mesma hora em que o lia também; imaginou que o comentavam, que interrogavam, que confirmavam, ouviu mesmo, por um fenômeno de alucinação que a ciência há de explicar, e que não é raro, ouviu distintamente algumas vozes do público. Ouviu que lhe chamavam homem de bem, cavalheiro distinto, amigo dos amigos, laborioso, honesto, todos os qualificativos que ele vira empregados em outros, e que na vida de bicho do mato em que ia, nunca presumiu que lhe fossem — tipograficamente — aplicados.

— A imprensa é uma grande invenção, disse ele à mulher.

Foi ela, D. Maria Antônia, quem rasgou o capote; o artigo era do Xavier. Declarou este que só em atenção à dona da casa confessava a autoria; e acrescentou que a manifestação não saíra completa, porque a ideia dele era que o artigo fosse dado em todos os jornais, não o tendo feito por havê-lo acabado às sete horas da noite. Não houve tempo de tirar cópias. Fulano Beltrão emendou essa falta, se falta se lhe podia chamar, mandando transcrever o artigo no Diário do Rio e no Correio Mercantil.

Quando mesmo, porém, este fato não desse causa à mudança de vida do nosso amigo, fica uma coisa de pé, a saber, que daquele ano em diante, e propriamente do mês de março, é que ele começou a aparecer mais. Era até então um casmurro, que não ia às assembleias das companhias, não votava nas eleições políticas, não frequentava teatros, nada, absolutamente nada. Já naquele mês de março, a vinte e dois ou vinte e três, presenteou a Santa Casa de Misericórdia com um bilhete da grande loteria de Espanha, e recebeu uma honrosa carta do provedor, agradecendo em nome dos pobres. Consultou a mulher e os amigos, se devia publicar a carta ou guardá-la, parecendo-lhe que não a publicar era uma desatenção. Com efeito, a carta foi dada a vinte e seis de março, em todas as folhas, fazendo uma delas comentários desenvolvidos acerca da piedade do doador. Das pessoas que leram esta notícia, muitas naturalmente ainda se lembravam do artigo do Xavier, e ligaram as duas ocorrências: "Fulano Beltrão é aquele mesmo que, etc.", primeiro alicerce da reputação de um homem.

É tarde, temos de ir ouvir o testamento, não posso estar a contar-lhe tudo. Digo-lhe sumariamente que as injustiças da rua começaram a ter nele um vingador ativo e discursivo; que as misérias, principalmente as misérias dramáticas, filhas de um incêndio ou inundação, acharam no meu amigo a iniciativa dos socorros que, em tais casos, devem ser prontos e públicos. Ninguém como ele para um desses movimentos. Assim também com as alforrias de escravos. Antes da lei de 28 de setembro de 1871, era muito comum aparecerem na Praça do Comércio crianças escravas, para cuja liberdade se pedia o favor dos negociantes. Fulano Beltrão iniciava três quartas partes das subscrições, com tal êxito, que em poucos minutos ficava o preço coberto.

A justiça que se lhe fazia, animava-o, e até lhe trazia lembranças que, sem ela, é possível que nunca lhe tivessem acudido. Não falo do baile que ele deu para celebrar a vitória de Riachuelo, porque era um baile planeado antes de chegar a notícia da batalha, e ele não fez mais do que atribuir-lhe um motivo mais alto do que a simples recreação da família, meter o retrato do almirante Barroso no meio de um troféu de armas navais e bandeiras no salão de honra, em frente ao retrato do imperador, e fazer, à ceia, alguns brindes patrióticos, como tudo consta dos jornais de 1865.

Mas aqui vai, por exemplo, um caso bem característico da influência que a justiça dos outros pode ter no nosso procedimento. Fulano Beltrão vinha um dia do Tesouro, aonde tinha ido tratar de umas décimas. Ao passar pela igreja da Lampadosa, lembrou-se que fora ali batizado; e nenhum homem tem uma recordação destas, sem remontar o curso dos anos e dos acontecimentos, deitar-se outra vez no colo materno, rir e brincar, como nunca mais se ri nem brinca. Fulano Beltrão não escapou a este efeito; atravessou o adro, entrou na igreja, tão singela, tão modesta, e para ele tão rica e linda. Ao sair, tinha uma resolução feita, que pôs por obra dentro de poucos dias: mandou de presente à Lampadosa um soberbo castiçal de prata, com duas datas, além do nome do doador — a data da doação e a do batizado. Todos os jornais deram esta notícia, e até a receberam em duplicata, porque a administração da igreja entendeu (com muita razão) que também lhe cumpria divulgá-la aos quatro ventos.

No fim de três anos, ou menos, entrara o meu amigo nas cogitações públicas; o nome dele era lembrado, mesmo quando nenhum sucesso recente vinha sugeri-lo, e não só lembrado como adjetivado. Já se lhe notava a ausência em alguns lugares. Já o iam buscar para outros. D. Maria Antônia via assim entrar-lhe no Éden a serpente bíblica, não para tentá-la, mas para tentar a Adão. Com efeito, o marido ia a tantas partes, cuidava de tantas coisas, mostrava-se tanto na Rua do Ouvidor, à porta do Bernardo, que afrouxou a convivência antiga da casa. D. Maria Antonia disse-lho. Ele concordou que era assim, mas demonstrou-lhe que não podia ser de outro modo, e, em todo caso, se mudara de costumes, não mudara de sentimentos. Tinha obrigações morais com a sociedade; ninguém se pertence exclusivamente; daí um pouco de dispersão dos seus cuidados. A verdade é que tinham vivido demasiadamente reclusos; não era justo nem bonito. Não era mesmo conveniente; a filha caminhava para a idade do matrimônio, e casa fechada cria morrinha de convento; por exemplo, um carro, por que é que não teriam um carro? D. Maria Antônia sentiu um arrepio de prazer, mas curto; protestou logo, depois de um minuto de reflexão.

— Não! Carro para quê? Não! Deixemo-nos de carro.

— Já está comprado, mentiu o marido.

Mas aqui chegamos ao juízo da provedoria. Não veio ainda ninguém; esperemos à porta. Tem pressa? São vinte minutos no máximo. Pois é verdade, comprou uma linda vitória; e, para quem, só por modéstia, andou tantos anos às costas de mula ou apertado num ônibus, não era fácil acostumar-se logo ao novo veículo. A isso atribuo eu as atitudes salientes e inclinadas com que ele andava, nas primeiras semanas, os olhos que estendia a um lado e outro, à maneira de pessoa que procura alguém ou uma casa. Afinal acostumou-se; passou a usar das atitudes reclinadas, embora sem um certo sentimento de indiferença ou despreocupação, que a mulher e a filha tinham muito bem, talvez por serem mulheres. Elas, aliás, não gostavam de sair de carro; mas ele teimava tanto que saíssem, que fossem a toda a parte, e até a parte nenhuma, que não tinham remédio senão obedecer-lhe; e, na rua, era sabido, mal vinha ao longe a ponta do vestido de duas senhoras, e na almofada um certo cocheiro, toda a gente dizia logo: — aí vem a família de Fulano Beltrão. E isto mesmo, sem que ele talvez o pensasse, tornava-o mais conhecido.

No ano de 1868 deu entrada na política. Sei do ano porque coincidiu com a queda dos liberais e a subida dos conservadores. Foi em março ou abril de 1868 que ele declarou aderir à situação, não à socapa, mas estrepitosamente. Este foi, talvez, o ponto mais fraco da vida do meu amigo. Não tinha ideias políticas; quando muito, dispunha de um desses temperamentos que substituem as ideias, e fazem crer que um homem pensa, quando simplesmente transpira. Cedeu, porém, a uma alucinação de momento. Viu-se na Câmara vibrando um aparte, ou inclinado sobre a balaustrada, em conversa com o presidente do Conselho, que sorria para ele, numa intimidade grave de governo. E aí é que a galeria, na exata acepção do termo, tinha de o contemplar. Fez tudo o que pôde para entrar na Câmara; a meio caminho caiu a situação. Voltando do atordoamento, lembrou-se de afirmar ao Itaboraí o contrário do que dissera ao Zacarias, ou antes a mesma coisa; mas perdeu a eleição, e deu de mão à política. Muito mais acertado andou, metendo-se na questão da maçonaria com os prelados. Deixara-se estar quedo, a princípio; por um lado, era maçom; por outro, queria respeitar os sentimentos religiosos da mulher. Mas o conflito tomou tais proporções que ele não podia ficar calado; entrou nele com o ardor, a expansão, a publicidade que metia em tudo; celebrou reuniões em que falou muito da liberdade de consciência e do direito que assistia ao maçom de enfiar uma opa; assinou protestos, representações, felicitações, abriu a bolsa e o coração, escancaradamente.

Morreu-lhe a mulher em 1878. Ela pediu-lhe que a enterrasse sem aparato, e ele assim o fez, porque a amava deveras e tinha a sua última vontade como um decreto do céu. Já então perdera o filho; e a filha, casada, achava-se na Europa. O meu amigo dividiu a dor com o público; e, se enterrou a mulher sem aparato, não deixou de lhe mandar esculpir na Itália um magnífico mausoléu, que esta cidade admirou exposto, na Rua do Ouvidor, durante perto de um mês. A filha ainda veio assistir à inauguração. Deixei de os ver uns quatro anos. Ultimamente surgiu a doença, que no fim de pouco mais de dois meses o levou desta para a melhor. Note que, até começar a agonia, nunca perdeu a razão nem a força d'alma. Conversava com as visitas, mandava-as relacionar, não esquecia mesmo noticiar às que chegavam, as que acabavam de sair; coisa inútil, porque uma folha amiga publicava-as todas. Na manhã do dia em que morreu ainda ouviu ler os jornais, e num deles uma pequena comunicação relativamente à sua moléstia, o que de algum modo pareceu reanimá-lo. Mas para a tarde enfraqueceu um pouco; à noite expirou.

Vejo que está aborrecido. Realmente demoram-se... Espere; creio que são eles. São; entremos. Cá está o nosso magistrado, que começa a ler o testamento. Está ouvindo? Não era preciso esta minuciosa genealogia, excedente das práticas tabeliosas; mas isto mesmo de contar a família desde o quarto avô prova o espírito exato e paciente do meu amigo. Não esquecia nada. O cerimonial do saimento é longo e complicado, mas bonito. Começa agora a lista dos legados. São todos pios; alguns industriais. Vá vendo a alma do meu amigo. Trinta contos...

Trinta contos para quê? Para servir de começo a uma subscrição pública destinada a erigir uma estátua de Pedro Álvares Cabral. "Cabral, diz ali o testamento, não pode ser olvidado dos brasileiros, foi o precursor do nosso império." Recomenda que a estátua seja de bronze, com quatro medalhões no pedestal, a saber, o retrato do bispo Coutinho, presidente da Constituinte, o de Gonzaga, chefe da conjuração mineira, e o de dois cidadãos da presente geração "notáveis por seu patriotismo e liberalidade", à escolha da comissão, que ele mesmo nomeou para levar a empresa a cabo.

Que ela se realize, não sei; falta-nos a perseverança do fundador da verba. Dado, porém, que a comissão se desempenhe da tarefa, e que este sol americano ainda veja erguer-se a estátua de Cabral, é da nossa honra que ele contemple num dos medalhões o retrato do meu finado amigo. Não lhe parece? Bem, o magistrado acabou, vamos embora.

Fonte:
Machado de Assis. Histórias sem data. Publicado originalmente em 1884.
Disponível em Domínio Público