segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Versejando 128

 

Mensagem na Garrafa – 53 -

Marcus Facciollo
São Paulo/SP

A MAIOR SOLIDÃO DO SER HUMANO

Uma pessoa pode sentir-se sozinha quando está longe de suas pessoas queridas, quando não tem (ou pensa que não tem) amigos, pessoas que a entendam, lhe deem carinho, atenção, quando termina um relacionamento afetivo, perde um ente querido... São muitas as possibilidades que trazem o sentimento de solidão.

Mas, a pior solidão que alguém pode sentir é a de não ter a si, estar distante de seu interior, de sua verdade, não saber quem é. Quando não sabemos de verdade o que somos, o que queremos, nos sentimos perdidos e sozinhos. Ora, nem nós mesmos nos conhecemos, por conseguinte, não conseguimos saber ao certo o que somos e queremos, não somos companheiros de verdade da gente. Não agimos seguindo decisões e desejos autênticos, somos levados pela opinião dos outros, pela vida ou por valores que estão dentro de nós mas que aí se instalaram vindo de fora, com nossa permissão, claro, mesmo que inconsciente, mas não representam nosso eu verdadeiro.

Alguém nesse estado pode estar rodeado de gente que a ame, dê apoio, compreensão, mas mesmo assim estará se sentindo só, muito, desesperadamente até. Uma solidão que nada que vem de fora pode aplacar de verdade se algo não for feito pela própria pessoa que se sente solitária.

É muito ruim olharmos para dentro de nós e encontrarmos ideias confusas, valores duvidosos, falta de autoconfiança criada por mensagens incorporadas vida afora e pelo não conhecimento de nossa real identidade. Se eu não sei quem sou verdadeiramente, não me conheço, não sei me ajudar, me acompanhar, me amar.

Essa profunda solidão, da ausência do eu verdadeiro, provoca imensa instabilidade e dor. Muitos distúrbios afetivos podem daí advir, como a depressão, por exemplo. Quem passa ou passou por isso sabe como é duro viver nessa condição. E às vezes nem todo o apoio externo a suaviza.

O caminho para resolver essa solidão interior é voltar-se para dentro, cada um em seu tempo, de seu jeito, às vezes procurando a orientação de alguém habilitado, e tentar resgatar seu eu autêntico, suas vontades, preceitos, qualidades e aptidões que podem estar esquecidos lá no fundo, encobertos por toneladas de elementos errôneos, pensamentos exteriores de qualidade duvidosa e mensagens negativas que se permitiu que estacionassem no íntimo do ser.

Esse trabalho de autoconhecimento e redescoberta, de resgate do eu verdadeiro, nos aproxima mais de nós mesmos, de nossa verdade. Vamos nos achando de novo, percebendo o que temos feito que está ou não de acordo com o que realmente queremos e precisamos. Esse resgate, invariavelmente, faz com que reconheçamos nossas verdadeiras qualidades, limites também (e esses concluímos se podem e devem ser superados, quando e como). Vamos limpando o interior do que não é nosso e percebendo o que de bom temos, vamos reaprendendo a nos gostar.

Assim, começamos a nos nortear novamente na existência, mais seguros, mais senhores e companheiros de nós, mais centrados, com mais autorrespeito, autovalorização. Nos amando e conhecendo mais, sabendo pelo que queremos lutar sinceramente; temos para onde olhar quando procuramos respostas e referências: dentro da gente. Somos uma grande companhia e amizade para nós mesmos, não estamos mais sós. Quando tenho a mim, sinceramente, não me sinto só nem desorientado, Posso ficar confuso às vezes, mas sei como parar, refletir e encontrar o rumo novamente.

Não me sentindo mais só, com falta de mim, posso perceber melhor a vida (e aprender melhor com a leitura que faço dela), seus acontecimentos, as pessoas a meu lado e o que têm de bom a me oferecer. Fico cada vez mais aberto e firme, melhor para viver minha relação comigo e as relações interpessoais de todos os tipos (profissionais, familiares, afetivas, etc.). Fico cada vez mais distante da solidão.
(Fonte: Portal da Psique)

Humberto de Campos (Obediência)

Mal saída do colégio, para onde entrara ainda criança, isto é, desde que o pai, o comendador Anacleto, enviuvara, foi a encantadora Maria Lúcia residir no palacete recentemente alugado pelo velho capitalista em uma das ruas menos movimentadas de Botafogo. Deslumbrada com a liberdade conquistada à força de estudo, de uma aplicação que lhe granjeara o primeiro lugar na sua turma, apenas uma coisa a desgostou: foi a recomendação que lhe fez o pai, severo e prudente:

- Olha, minha filha; esta casa é tua; governa-a como se fosses a dona. Uma coisa, apenas, eu te peço: vive isolada, sem relações de amizade, e nunca, em hipótese alguma, incomodes os vizinhos.

E beijando-lhe a testa clara. coroada por uns lindos cabelos castanhos:

- Muito juizinho, ouviu?

Duas semanas não se tinham passado sobre a libertação de Maria Lúcia, quando uma quadrilha de ladrões, vendo, uma tarde, sair as criadas, que a jovem patroa indultara naquele dia, resolveu assaltar, pulando o muro dos fundos, o palacete do comendador. Descalços, em mangas de camisa, chapéu em cima dos olhos, os miseráveis penetraram na casa e, desrespeitando a fraqueza da moça, praticaram toda a sorte de depredações, esvaziando as gavetas, arrombando os cofres de joias, carregando, enfim, com todas as coisas de valor que havia na residência do honrado capitalista.

À noite, ao abrir a porta, de regresso ao lar, o comendador teve um pressentimento triste, ao ver a casa às escuras. Abertas, porém, as lâmpadas, recuou, horrorizado, para, em seguida, precipitar-se, de compartimento em compartimento, chamando, aflito, pela menina:

- Maria Lúcia? Maria Lúcia? Onde estás, minha filha?

No último quarto da casa, esperava-o uma surpresa maior: sentada no leito, desgrenhada pálida, com as vestes em desalinho, Maria Lúcia chorava, com a cabeça nas mãos.

- Minha filha da minh'alma! - gemeu o velho, atirando-se para ela. - Que foi isso?

- Os ladrões!... - explicou a moça, num gemido.

E enxugando os olhos;

- Levaram tudo: as roupas, as joias, a louça, tudo, enfim. Depois...

- Depois?... - rugiu o velho, com os olhos esbugalhados.

- Desgraçaram-me!... - concluiu a moça, prorrompendo em soluços.

- Desgraçaram-te?... - gritou o velho, de dentes e punhos cerrados, com um rugido soturno, cavo, de fera atingida no coração.

E após um instante de silencio desesperado:

- E como foi? Amarraram-te?

- Não, senhor.

- Subjugaram-te?

- Não, senhor.

- Taparam-te a boca?

- Não, senhor.

- E por que não gritaste? - berrou o ancião, parando, de súbito, no meio do quarto.

E a moça, levantando para ele, num soluço, os lindos olhos machucados de lágrimas:

- Papai não disse que eu não incomodasse os vizinhos?

Fonte: Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. 
Disponível em Domínio Público. 

Concurso do Sarau Virtual de Poesias da AVIPAF (Poemas Vencedores)


Em 9 de dezembro de 2023, das 15 às 17:30 horas,  a Academia Virtual Internacional de Poesia, Arte e Filosofia realizou um Sarau Virtual.

Concluído o Sarau, a presidente da Avipaf, professora Sheina Leoni Handel (Sheina Lee), e a Conselheira Isabel Furini, escolheram os Melhores poemas.

1º Lugar : Isa Regina

MAGIA DO NATAL

No rastro das estrelas reluzentes
Surge um tempo de magia e luz
Nasce o Natal, em cantos fluentes
Abraços ternos, alma que seduz

No crepúsculo, a esperança floresce
Entre cânticos  risos e ternura
O mundo se veste de doce prece
Natal é paz, é amor que perdura 

Na simplicidade de gestos sinceros 
Brilha o fulgor do espírito  fraternal
Nos corações,  versos verdadeiros
Cintila a essência do amor maternal

Que a doçura desse tempo divinal
Perdure em cada gesto fraternal 
E o Natal, símbolo universal
Espalhe luz e felicidade sem igual
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

2º Lugar: Rita Delamari

ESPERANÇA 

O ano se encerrará!
Momento de reflexão...
Uma mudança afinal,
um olhar ao irmão.
Que não seja agora,
somente, neste ano final...
Mas um recomeço 
de vida em doação.
Que seja de bênçãos!
De amor nos corações,
desprendimento total
de quaisquer ilusões.
Abrir nossas mentes
para um renascer;
Aproveitar mais uma chance 
De a vida agradecer!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

3º Lugar: Sonia Maria Cardoso

DIVERSIDADE 

Na Diversidade das cores natalinas
A realidade das diferenças 
Exigência de um mundo 
Plural e mais justo onde deve
Haver luz e igualdade para todos 
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Menção Honrosa: José Feldman

NATAL DE AMANHÃ

Chegando mais um Natal,
e a fé vindo na bagagem:
Que dissipe todo o mal
e para o amor dê passagem.
Para todas as pessoas
na mesa não falte o pão,
que sejam mais que garoas
o que vem do coração.

Se, no presente irmanados,
traçaremos um futuro…
são tantos necessitados,
derrubemos este muro
que bloqueia nossas vistas,
não deixa ver o horizonte…
não sejamos egoístas,
para que o amor seja a ponte.

O respeito vem primeiro,
a amizade vem depois,
o amor é um passageiro…
um mais um é sempre dois.

Fonte: Revista Carlos Zemek
https://revistacazemek.blogspot.com/2023/12/poemas-ganhadores-do-concurso-do-sarau.html

Luigi Pirandello (A luz da outra casa)

Foi numa tarde de domingo, ao voltar de um longo passeio.

Tulio Buti alugara aquele quarto havia dois meses apenas. A dona da casa, Senhora Nini, boa velhota à antiga, e a filha, solteirona, desiludida, não o viam nunca. Ele costumava sair de casa, todos os dias, de manhã cedo, e só voltava à noite, a horas mortas. Sabiam que era funcionário do Ministério de Graça e Justiça; sabiam também que era advogado. Mais nada.

O quarto, pequeno e estreito, modestamente mobiliado, não conservava nenhum vestígio seu, como se ele, de propósito, quisesse aí permanecer ignorado, como num quarto de hotel. Uma caixa de madeira para a roupa branca; um armário para os ternos; mas nas paredes, sobre os outros móveis, nada; nem um estojo, nem um livro, nem um retrato; nada, nem nunca, sobre alguma cadeira, uma peça de roupa branca esquecida, um colete, uma gravata, nada enfim que pudesse confirmar a sua existência naquela casa.

Mãe e filha temiam que ele aí não permanecesse muito tempo. Fora tão difícil alugar aquele quarto! Vieram vê-lo muitos, mas ninguém o quis. Realmente, não era muito cômodo, nem muito alegre. Tinha só uma janela, que dava para uma ruazinha estreita, privada, e da qual não recebia luz nem ar, devido à casa fronteira, que o impedia.

Mãe e filha estudavam e preparavam atenções e cuidados para prender o inquilino tão almejado: "Faremos isto... diremos isto..." — e mais isto e mais aquilo; sobretudo a filha, Clotildinha... Quantas delicadezas, quantas finezas! Tudo, porém, desinteressadamente, sem malícia, sem segundas intenções... Mas como, se ele não aparecia nunca?

Se acaso o vissem, compreenderiam logo quanto era infundado o seu receio. Aquele quartinho triste, escuro, tapado pela casa fronteira, condizia bem com o temperamento do inquilino.

Tulio Buti andava sempre sozinho, sem mesmo os dois companheiros dos solitários mais equívocos: a bengala e o cigarro. Com as mãos enterradas nos bolsos do capote de ombros encolhidos, taciturno, dir-se-ia que incubasse o ódio mais profundo contra a vida.

Na repartição não trocava nem uma palavra com os seus colegas, os quais hesitavam entre os dois apelidos que lhe enquadrassem melhor: urso ou coruja.

Ainda ninguém o vira entrar, à tarde, num café; em compensação, muitos o tinham visto evitar, às pressas, as ruas mais frequentadas e iluminadas, para mergulhar na sombra das longas alamedas, direitas e solitárias, dos arrabaldes distantes, afastando-se dos muros, toda vez que encontrava o círculo de luz que os faróis projetam sobre a calçada.

Nem um gesto involuntário, nem mesmo a mínima contração dos músculos da face, nem um movimento dos olhos ou dos lábios traíam os pensamentos em que parecia absorto, o secreto pesar em que se fechava. Mas deste secreto pesar e dos lúgubres pensamentos que se lhe aninhavam no cérebro estava toda impregnada a sua fisionomia. A devastação, que eles deviam produzir naquela alma, estava flagrante na fixidez espasmódica dos olhos claros, agudos, na lividez do rosto desfigurado, nos precoces fios grisalhos da barba crespa e desleixada.

Tulio Buti não escrevia nem recebia cartas; não lia jornais; não parava nem se virava para ver o que quer que acontecesse pela rua e que atraísse a alheia curiosidade e, se alguma vez a chuva o colhia de improviso, continuava caminhando, no mesmo passo, como se nada tivesse acontecido.

Por que insistia em viver desse modo, era o que ninguém sabia... Nem ele mesmo, talvez. Vivia... Nem sequer suspeitava que fosse possível viver de modo diverso, ou então, que, vivendo-se diversamente, se poderia diminuir o peso da tristeza e do tédio.

Não tivera infância, não fora moço. As cenas selvagens a que assistira, no lar, desde os mais tenros anos, motivadas pela brutalidade e pela tirania feroz do pai, lhe haviam crestado no espírito todos os germes de vida.

Morta a mãe, vítima de atrozes sevícias do marido, a família se dispersara: uma irmã entrou para o convento, um irmão fugiu para a, América, ele também fugira e, errante, graças a incríveis sacrifícios, tinha conseguido alcançar a posição que hoje ocupava.

Agora, não sofria mais. Parecia que sofria, mas até o sentimento da dor se obliterara nele. Parecia que estava absorto sempre em pensamento, – engano - já nem sequer pensava. O espírito ficara-lhe como que suspenso numa espécie de atônita obscuridade, que só lhe permitia perceber um quê de amargo na garganta. À noite, passeando pelas ruas solitárias, contava, mentalmente, os lampiões, mais nada, ou olhava para a sua sombra ou escutava o som dos seus passos, ou alguma vez, parava diante dos jardins das vilas, a contemplar os ciprestes mudos e fechados como ele, mais noturnos do que a própria noite.

Naquele domingo, cansado do longo passeio pela rua Ápia antiga, e contra os seus hábitos, decidiu recolher-se. Era ainda cedo para a ceia. Ficaria esperando no quarto, que o dia acabasse de morrer.

Para as Nini, mãe e filha, foi uma surpresa bastante agradável. Clotildinha até bateu as mãos de contente. Quais dos muitos cuidados e atenções estudados e preparados, quais das muitas finezas e distinções particulares, dispensar-lhe em primeiro lugar? A mãe e a filha confabularam, e de repente, Clotildinha firmou um pé e bateu com a mão na testa. Ó, santo Deus, antes de tudo, a luz! Era preciso levar-lhe o lampião, o melhor, o que estava guardado de propósito, que tinha umas papoulas pintadas na porcelana, e era de globo esmerilhado. Acendeu-o, e foi bater discretamente à porta do inquilino. Tremia tanto, de emoção, que o globo, oscilando, batia no tubo, que ameaçava esfumaçar-se.

— Com licença? O lampião...

— Não, muito obrigado. — respondeu Buti, do outro lado. — Eu saio já.

A solteirona fez uma careta, e de olhos abaixados, como se o inquilino a estivesse vendo, insistiu:

— Tenho-o aqui... É para não deixá-lo no escuro...

Buti, porém, repetiu secamente:

— Não, muito obrigado.

Estava sentado no pequeno canapé, em frente à mesa, e escancarava os olhos na sombra que, pouco a pouco se ia adensando no quartinho, enquanto nos vidros da janela tristemente desmaiava o último reflexo do crepúsculo.

Quanto tempo esteve assim, inerte, com os olhos escancarados, sem pensar, sem perceber as trevas que já o tinham envolvido?

De repente, os seus olhos viram. Olhou em torno de si, espantado. O quarto se havia realmente iluminado, de improviso, como se um sopro misterioso o tivesse enchido de um brando lume discreto.

Que era? Que acontecera?

Isto: a luz da outra casa. Acendera-se, na casa fronteira, um lampião. Era o hálito de uma vida exterior que vinha desfazer as trevas, o vácuo, o deserto de sua existência...

Ficou, longo tempo, contemplando aquele clarão, como se fosse efeito de magia, e uma angústia intensa lhe apertou a garganta ao notar com que suave carícia ele se pousava sobre o seu leito, sobre a parede, e sobre as suas mãos pálidas abandonadas sobre a mesa. Surgiu-lhe no meio daquela angústia, a lembrança do seu lar destruído, da sua infância oprimida, de sua mãe, foi como se a luz de uma alvorada, de uma alvorada distante, expirasse na noite do seu espírito.

Ergueu-se, foi à janela e, furtivamente, por trás dos vidros, olhou para a casa fronteira, para a janela de onde lhe vinha aquele raio de luz.

Viu uma família pequena reunida em torno da mesa de jantar: três meninos, o pai, que estava sentado, e a mãe que, ainda de pé, os estava servindo e procurando — segundo o que ele deduzia dos movimentos — refrear a impaciência dos dois maiores, que brandiam a colher e se sacudiam na cadeira. O último esticava o pescoço, agitava a cabecinha loira: evidentemente, lhe haviam amarrado com muita força o guardanapo, mas se a mãe se apressasse em servir-lhe a sopa, ele não mais se queixaria daquele nó muito forte. Era isso mesmo. Com que voracidade começou a comer! Enfiava a colher inteira na boca... E o pai, através do fumo que se erguia do seu prato, ria. Agora, a mãe também se havia sentado ao lado deles, ali mesmo, em frente.... Tulio Buti tentou recuar, instintivamente, vendo que ela, ao sentar-se, erguera os olhos para a janela, mas lembrou-se de que, estando no escuro, não podia ser visto, e continuou a assistir a ceia daquela pequena família, esquecendo-se prontamente da sua.

Desse dia em diante, todas as tardes, saindo da repartição, ao invés de se dirigir para os seus habituais passeios solitários, enveredava pelo caminho da sua casa, esperava, todas as tardes, que as trevas do seu quarto se desfizessem, suavemente, sob a luz da outra casa, e aí ficava, atrás dos vidros, como um mendigo, a saborear, com angústia infinita, aquela doce e amorável intimidade, de que os outros gozavam e de que ele, em criança, numa ou noutra rara tarde de paz, gozara também, quando a mãe... a sua mãe... como aquela... e chorava.

Sim. A luz da outra casa operou este prodígio. A obscuridade atônita em que seu espírito permanecera suspenso durante tantos anos, se dissolveu sob o influxo daquela luz suave. Entretanto, Tulio Buti não pensou em todas as suposições estranhas que a sua atitude devia fazer nascer na dona da casa e na filha.

Por mais duas vezes, Clotildinha tentara oferecer-lhe o lampião. Tivesse, ao menos, acendido a vela! Não, nem isso. Porventura, sentia-se mal? 0usara perguntar-lhe Clotildinha, com voz meiga, na segunda vez que lhe fora bater à porta. Ele lhe havia respondido:

— Não! Estou bem assim...

Mas, santo Deus! Não precisava realmente de luz... Clotildinha espiava pelo buraco da fechadura e vira, maravilhada, no quarto do inquilino, a luz difusa da outra casa, exatamente da casa da família Masci, e o que é pior, vira ele, por trás dos vidros da janela preocupado em contemplar a casa da família Masci... E Clotildinha correra toda sobressaltada, a anunciar à mãe a grande descoberta:

— Ele está enamorado de Margarida! De Margarida Masci!

Poucos dias depois, uma tarde, enquanto estava a contemplar, Tulio Buti viu, com surpresa, naquela sala fronteira, onde a pequena família habitualmente — (naquela tarde faltava o pai) — se reunia ao jantar, viu entrar a velhinha, sua dona de casa e a filha, que foram acolhidas como amigas de longa data.

Num dado instante, Tulio Buti recuou, de um salto, ansioso, perturbado. A mãezinha e os três pequenos tinham erguido os olhos, na direção da sua janela. Sem dúvida, aquelas duas estavam falando dele.

E agora? Agora, talvez tudo estivesse acabado!

Na tarde seguinte, aquela mãezinha ou o marido, sabendo que no quartinho em frente havia um homem que misteriosamente os espiava na escuridão, fechariam as janelas, e assim daí por diante não lhe viria mais aquela luz de que vivia, aquela luz que era o seu gozo inocente, o seu consolo...

Mas não foi o que aconteceu.

Naquela mesma noite, assim que a luz da outra casa se apagou, e ele mergulhado na treva, depois de ter esperado ainda um pouco que a família se recolhesse, foi abrir cautelosamente a janela para renovar o ar, viu que a janela de lá estava também aberta, viu pouco depois (e, mesmo no escuro, teve um estremecimento de espanto), viu assomar àquela janela a mulher, talvez curiosa de tudo quanto lhe haviam contado dele as Nini, mãe e filha.

Aquelas duas casas muito altas, que abriam, tão perto um do outro, os olhos das suas janelas, não deixavam ver em cima a faixa clara do céu, nem embaixo a faixa escura da terra, fechada numa das extremidades por um portão, não deixavam penetrar jamais nem um raio de sol, nem um raio de lua.

Ela, portanto, não podia ter assomado à janela senão por causa dele e, naturalmente, porque percebera que ele também se achava debruçado na sua janela apagada.

Na escuridão, mal se podiam distinguir. Ele, porém, sabia desde algum tempo que ela era formosa; já lhe conhecia todo o encanto dos seus movimentos, os lampejos dos seus olhos pretos, os sorrisos dos seus lábios vermelhos...

Antes de tudo, porém, naquela primeira vez, devido à surpresa que o revolvia todo e lhe tolhia a respiração, num frêmito de inquietude, ele teve pena; foi preciso fazer um esforço violento sobre si mesmo para não recuar, para esperar que ela se retirasse antes dele.

Aquele sonho de paz, de amor, de suave e doce intimidade, que ele imaginara reinar sobre aquela pequena família e de que ele também, por reflexo, tinha até gozado, se desmanchava todo, se aquela mulher às escondidas, no escuro, vinha à janela por causa de um estranho... Mas este estranho não era ele? E antes de se retirar, antes de fechar a vidraça, ela lhe sussurrou:

— Boa-noite!

Que coisas haviam fantasiado a seu respeito as duas mulheres que o hospedavam, e que excitaram e acenderam tanto a curiosidade daquela mulher? Que atração estranha, poderosa, operava sobre ela o mistério daquela sua vida enclausurada, se desde a primeira vez ela, deixando de lado os seus filhinhos, viera a ele, como que para fazer-lhe companhia?

Sim, um em frente ao outro, ainda que ambos tivessem evitado olhar-se e tivessem quase fingido, reciprocamente, que estavam à janela sem nenhuma intenção, ambos  sim, ambos — ele estava certo disso — tinham vibrado pelo mesmo frêmito de expectativa, ignorada, espantados da atração que, tão de perto, os envolvia no escuro.

Quando, muito tarde, ele fechou a janela, teve a certeza de que na tarde seguinte, depois de apagada a luz, ela voltaria por causa dele. E foi de fato assim.

Daí por diante, Tulio Buti não esperou mais no seu quarto a luz da outra casa; ao contrário esperou com impaciência que a luz se apagasse.

A paixão do amor, ainda não experimentada, irrompeu, devoradora, tremenda, no coração daquele homem que estivera por tantos anos fora da vida, e investiu, absorveu, arrastou, como num turbilhão, aquela mulher.

No mesmo dia em que ele se retirou do quartinho da casa das Nini, explodiu como uma bomba a notícia de que a senhora do terceiro andar, ao lado, a Masci, tinha abandonado o marido e os três filhos.

Ficou vazio o quartinho que hospedara, durante quase quatro meses, ao Buti; ficou apagada, por algumas semanas, a sala da frente, onde a pequena família costumava reunir-se à hora do jantar.

Depois, acendeu-se de novo a luz sobre aquela mesa triste em torno da qual um pai apalermado pela desgraça contemplava os rostos espantados de três crianças, que não ousavam volver os olhos para a porta, por onde a mãe costumava entrar todas as noites, com a sopeira fumegante.

Aquela luz reacendida sobre a mesa triste tornou, então, a clarear suavemente o quartinho fronteiro, vazio.

Lembraram-se dela, alguns meses após a sua cruel loucura, Tulio Buti e a amante?

Uma noite as Nini, espantadas, viram aparecer diante delas, desfigurado e convulso, o seu estranho inquilino, que queria o quarto, se ainda estivesse desalugado!

Não, não para si, não para morar! Mas poder ficar aí, todas as tardes, uma hora apenas, às escondidas! Ah, por piedade, por piedade daquela pobre mãe que desejava rever, de longe, sem ser vista, os seus filhinhos! Tomariam todas as precauções necessárias, se fosse preciso, se mascarariam, aproveitariam todas as tardes o momento em que não houvesse ninguém pelas escadas; ele pagaria o dobro, o triplo pelo aluguel, só para aquele minuto breve...

— Não. As Nini não quiseram consentir. Apenas enquanto o quartinho estivesse desalugado, consentiram que algumas vezes, muito raras...— Oh, mas pelo amor de Deus! Com a condição de que ninguém os descobrisse!... Algumas raras vezes...

Na tarde seguinte, eles vieram, como dois ladrões. Entraram, quase cambaleando, no quartinho às escuras, e esperaram, e esperaram que ele alvorecesse de novo sob a luz da outra casa.

Dessa luz deviam viver eles, assim, de longe.

E a luz apareceu!

Tulio Buti, a princípio, não pôde suportá-la. Como lhe pareceu gelada agora, ríspida, cruel, espectral, criminosa! Ela, porém, com os soluços que lhe borbulhavam na garganta, teve sede daquela luz, bebeu-a de um hausto, precipitou-se para os vidros da janela, apertando o lenço contra a boca. Os seus filhinhos... os seus filhinhos... os seus filhinhos estavam lá... à mesa, inocentes...

Ele correu a ampará-la nos braços, e ambos ficaram ali, estreitamente unidos, como que pregados, espiando.

Fonte: Luigi Pirandello. A luz da outra casa: novelas escolhidas. Publicado em 1932. 
Disponível em Domínio Público 

Como Escrever Ficção Científica – parte 3

III – Criando personagens memoráveis

1) Dê defeitos ao protagonista

Embora os protagonistas sejam “quase perfeitos”, isso é ruim para a caracterização e a identificação dos leitores. Pode ser que o personagem principal faça tudo para salvar a própria vida, mesmo que tenha que matar alguém ou pareça egoísta. 

Pense em defeitos comuns e escolha alguns para ele.

Por exemplo: o defeito do Super-Homem é que ele faz tudo para salvar o mundo, menos matar. Quando ele se encontra em situações em que é forçado a fazer algo dramático do tipo, o leitor fica roendo as unhas de ansiedade e curiosidade.

2) Dê algumas qualidades ao antagonista

Assim como o herói não pode ser de todo bom, o vilão não deve ser totalmente mau. 

Esse tipo de antagonista não é interessante e nem chama a atenção. Dê uma qualidade a ele, como fazer o necessário para salvar o próprio filho, para que o leitor tenha empatia e se identifique com o que está acontecendo.

Por exemplo: HAL, de 2001: Uma Odisseia no Espaço, acredita que a tripulação humana está colocando a missão em risco e decide matar todos.

Lembre-se de que o vilão geralmente é o herói da própria história. Se o vilão é um monstro, ele não precisa de uma qualidade; contudo, ainda seria interessante pensar em uma. 

Por exemplo: imagine que ele quer cuidar dos filhos, em vez de caçar as presas por diversão.

3) Dê trejeitos típicos aos personagens. 

Esses trejeitos são ações que os personagens realizam que parecem estranhas de início, mas que têm um propósito que facilita a compreensão do leitor. Por exemplo: talvez o protagonista fique mexendo na sua arma o tempo todo porque está apreensivo ou porque está perdido no passado. Mesmo que você não explique isso com toda as letras, essas ações deixam o universo mais verossímil.

Se o personagem tem um trejeito muito peculiar, como ter que despejar água na própria cabeça para ficar hidratado, você pode explicar tudo ao leitor para ele não ficar perplexo.

4) Dê objetivos e motivações compreensíveis aos personagens. 

As motivações dos personagens são a força motriz por trás da história e aproximam o leitor da trama. Pense nos objetivos deles e no que eles fazem para alcançá-los. Imagine também como eles agiriam em determinada situação de forma realista.

Por exemplo: um personagem pode ser motivado a viajar pelo universo para encontrar a cura para uma doença rara no seu planeta.

5) Escreva as histórias dos personagens para entender melhor quem eles são. 

Você não precisa incluir essas histórias em todo texto, mas elas ajudam a dar mais profundidade aos personagens. Anote o nome, a idade, de onde eles vêm, como foi a infância deles e o que eles viveram de importante em alguns parágrafos.

Pense na aparência física dos personagens, ainda mais se eles são alienígenas ou estranhos para o público geral.
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continua…

Fonte: Wikihow

domingo, 10 de dezembro de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 33

 

Mensagem na Garrafa – 52 –


Veronica Shoffstall
(Estados Unidos)

UM DIA VOCÊ APRENDE

Depois de algum tempo, você aprende a diferença, a sutil diferença, entre dar a mão e acorrentar uma alma. E você aprende que amar não significa apoiar-se, e que companhia nem sempre significa segurança. E começa a aprender que beijos não são contratos e presentes não são promessas. E começa a aceitar suas derrotas com a cabeça erguida e olhos adiante, com a graça de um adulto e não com a tristeza de uma criança.

E aprende a construir todas as suas estradas no hoje, porque o terreno do amanhã é incerto demais para os planos, e o futuro tem o costume de cair em meio ao vão. Depois de um tempo você aprende que o sol queima se ficar exposto por muito tempo. E aprende que não importa o quanto você se importe, algumas pessoas simplesmente não se importam... E aceita que não importa quão boa seja uma pessoa, ela vai feri-lo de vez em quando e você precisa perdoá-la, por isso. Aprende que falar pode aliviar dores emocionais.

Descobre que se levam anos para se construir confiança e apenas segundos para destruí-la, e que você pode fazer coisas em um instante das quais se arrependerá pelo resto da vida. Aprende que verdadeiras amizades continuam a crescer mesmo a longas distâncias. E o que importa não é o que você tem na vida, mas quem você tem na vida. E que bons amigos são a família que nos permitiram escolher. Aprende que não temos que mudar de amigos se compreendemos que os amigos mudam, percebe que seu melhor amigo e você podem fazer qualquer coisa, ou nada, e terem bons momentos juntos.

Descobre que as pessoas com quem você mais se importa na vida são tomadas de você muito depressa, por isso sempre devemos deixar as pessoas que amamos com palavras amorosas, pode ser a última vez que as vejamos. Aprende que as circunstâncias e os ambientes têm influência sobre nós, mas nós somos responsáveis por nós mesmos. Começa a aprender que não se deve comparar com os outros, mas com o melhor que pode ser. Descobre que se leva muito tempo para se tornar a pessoa que quer ser, e que o tempo é curto. Aprende que não importa onde já chegou, mas onde está indo, mas se você não sabe para onde está indo, qualquer lugar serve. Aprende que, ou você controla seus atos ou eles o controlarão, e que ser flexível não significa ser fraco ou não ter personalidade, pois não importa quão delicada e frágil seja uma situação, sempre existem dois lados.

Aprende que heróis são pessoas que fizeram o que era necessário fazer, enfrentando as consequências. Aprende que paciência requer muita prática. Descobre que algumas vezes a pessoa que você espera que o chute quando você cai é uma das poucas que o ajudam a levantar-se.

Aprende que maturidade tem mais a ver com os tipos de experiência que se teve e o que você aprendeu com elas do que com quantos aniversários você celebrou. Aprende que há mais dos seus pais em você do que você supunha. Aprende que nunca se deve dizer a uma criança que sonhos são bobagens, poucas coisas são tão humilhantes e seria uma tragédia se ela acreditasse nisso.

Aprende que quando está com raiva tem o direito de estar com raiva, mas isso não te dá o direito de ser cruel. Descobre que só porque alguém não o ama do jeito que você quer que ame, não significa que esse alguém não o ama, com tudo o que pode, pois existem pessoas que nos amam, mas simplesmente não sabem como demonstrar ou viver isso.
Aprende que nem sempre é suficiente ser perdoado por alguém, algumas vezes você tem que aprender a perdoar-se a si mesmo. Aprende que com a mesma severidade com que julga, você será em algum momento condenado. Aprende que não importa em quantos pedaços seu coração foi partido, o mundo não para para que você o conserte. Aprende que o tempo não é algo que possa voltar para trás.

Portanto... plante seu jardim e decore sua alma, ao invés de esperar que alguém lhe traga flores. E você aprende que realmente pode suportar... que realmente é forte, e que pode ir muito mais longe, depois de pensar que não se pode mais. E que realmente a vida tem valor, e que você tem valor diante da vida.
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Nota: Trecho adaptado do poema escrito por Veronica Shoffstall em seu livro de formatura, sendo conhecido como "Comes the Dawn" ou "After a While". A versão original foi registrada em 1971. Aparece erroneamente atribuído a William Shakespeare.

Lêdo Ivo (A resposta)

Seu nome era Serafim Costa. Mas nome de quem, ou de que? Na cidade pequena , decerto a sua figura deveria ter se cruzado, muitas vezes, com a do menino fardado, de camisa branca e curtas calças azuis extraídas das velhas casimiras paternas. Ele, o comerciante abastado, talvez comendador, não conhecia o garoto. E este jamais poderia ligar o nome à pessoa. Assim, Serafim Costa era apenas um nome — a belíssima sonoridade de um estilhaço de mitologia, uma flor aérea que, em vez de pétalas, possuía sílabas.

Ele morava no Farol, exatamente onde o bonde fazia a última curva. Os muros brancos, que cercavam o quarteirão, semi-escondiam a casa, também branca, além do jardim que aparecia entre as grades, e em cujos canteiros florejavam espessuras e certas musguentas flores amarelas, e um imenso besouro zoava. A casa era um palacete de dois andares, crivado de sacadas e cegas janelas, e que parecia desabitada. Possivelmente essa incorrigível falsária, a Memória, a pintou, sem tirar-te nem guardar-te, com a sua branca tinta adúltera, substituindo a verdade nativa, feita de alvacentos pintalgados de azul, por alguma caprichosa arquitetura rococó. De qualquer modo, de outro lado do muro reto, sem dúvida encimado por afiados cacos de garrafas para impedir o salto dos ladrões, a gente via as copas das mangueiras, cajueiros, palmeiras e outras árvores sob as quais alguns cães esperavam, impacientes, que a rotina bocejante do dia se esfarelasse para que eles pudessem latir, na noite raiada de estrelas, como que lembrando a Serafim Costa — que interromperia por meio minuto o seu sono tranquilo e patriarcal — as suas presenças vigilantes.

— Aqui mora Serafim Costa, devia ter-me dito meu pai, num daqueles crepúsculos em que, de bonde, voltávamos para casa; ele com a sua velha pasta que inexplicavelmente não o acompanhou ao túmulo (o que talvez não o fizesse ser de pronto reconhecido no Paraíso), e nós ainda guardando nos ouvidos o bulício vesperal do instante em que, aberta a porta do grupo escolar, as crianças escoavam para a praça e se perdiam nas escurentas ruas tortuosas.

O palacete branco vulgava riqueza, luxo, secreto esplendor. Além das portas fechadas, das presumíveis estatuetas de mármore, do aroma das dálias, do fino palor dos azulejos, das mudas venezianas, havia decerto um universo de opulência, que a nossa fantasia de meninos pobres mal podia imaginar. A tarde obscurecia; o portão fechado validava-se como o brasão de uma existência que, terminados os diálogos inevitáveis de seu ofício de grande comerciante sempre atarefado e vigilante, suspendia qualquer tráfico com as mesquinharias diurnas, igual a um navio que, após todo o baixo ritual da estiva, readquire a sua dignidade perdida sulcando o mar sem amarras.

Era o palácio de Serafim Costa. E o nome, a magia desse nome que ocupou toda a minha infância, e era o preâmbulo mágico das encantações, demorava-se em mim, solfejando-se no ar eternamente perfumado pelo Oceano. 

Meu pai, então guarda-livros de um armazém de tecidos, conhecia Serafim Costa, e nos mostrava a sua residência. "Aqui mora Serafim Costa." Não nos nomeava uma forma definida de casa (sobrado, bangalô, palacete); e certo aquela moradia, uma das mais luxuosas da pequena cidade, refugia às denominações irreversíveis. Ignoro se Serafim Costa era alagoano ou um dos muitos imigrantes portugueses que, estabelecidos em Maceió, enriqueceram em tecidos ou em secos e molhados e terminaram comendadores — mas em seu palacete, na exuberância do jardim equatorial, no chão assombrado de árvores enlanguescidas pelo mormaço, havia algo que era a fusão improfundável dos mais faustosos elementos nativos com uma substância remota e avoengueira, como que a reprodução de antiga planta deixada do outro lado do mar e tacitamente reconstruída pela poupança e ambição do imigrante afortunado. 

Por isso, meu pai dizia aqui, querendo assim significar tudo o que era o império de Serafim Costa: as grades do jardim, os sinuosos canteiros colmeados de folhas e flores, os calangros e insetos, a água espatifada de uma fonte, os familiares que não apareciam às janelas, talvez para não confundir a visão de todos os que, como eu, o imaginavam reinando solitário em sua mansão, sem quinhoar ostensivamente com ninguém o resultado, de sua vida vitoriosa, feita de zelo e siso.

Embora eu não tivesse conhecido Serafim Costa, tornou-se-me familiar aos olhos um dos empregados de seu armazém. Era um velho corcunda, de fiapos brancos na cabeça calva, e devoto. Alguns anos depois, quando já tínhamos deixado de morar no sítio e passáramos a habitar numa rua do centro da cidade, estávamos todos, no sótão, assistindo à passagem de uma procissão que enchia a monotonia da tarde de domingo. Súbito, identifiquei na multidão o corcunda velho e devoto, e exclamei:

— Olhe o Serafim Costa!

A exclamação fez espécie a meu pai, que se virou para mim, surpreendido com a notícia. Seu ar era mais do que de dúvida — decerto eu dissera uma heresia, que reclamava pronta corrigenda ou a aura de uma prova irretocável. Com o dedo, apontei o velho corcunda que, de casimira preta na tarde de sol fugidiço, vencia, na aglomeração, os. paralelepípedos da rua. Meu pai reconheceu o empregado de Serafim Costa e exclamou, de bom rosto:

— Não é o Serafim Costa. — e achou engraçado que eu confundisse o empregado humilde e devoto com o poderoso e mitológico patrão.

E assim ele ficou sendo, para mim, sempre e eternamente, um nome, inatingível figura do ar. Muitas vezes, passeando sozinho pelo sítio ou junto ao mar lampejante, eu repetia esse nome, despetalava-o na brisa como se ele fosse um malmequer, juntava de novo as pétalas das sílabas que cantavam mesmo momentaneamente esquartejadas. Serafim Costa! dizia eu bem alto para que os costados dos navios pudessem devolver-me, em forma de eco, essa primeira lição de poesia, essa infindável soletração do absoluto.

Muitos anos depois, desintegrada a infância, e já envolto numa névoa de estrangeiro, voltei à curva do bonde. Era ali que morava Serafim Costa — o portão fechado era sinal de que ele estava lá dentro, movendo-se possivelmente entre frutas maduras, gatos sonolentos e bojudas porcelanas azuis. Trinta anos se tinham passado desde os dias em que o bonde, na volta da escola, nos fazia ver a misteriosa morada, o universo branco e verde estriado de agudas grades negras e manchas róseas. O invisível Serafim Costa já deveria estar morando, e de há muito, em outra alvacenta morada... Mas parei diante do portão cerrado, espiei o jardim silencioso, os vasos de azulejos, as escadarias de mármore, as altas janelas que pareciam soteias (terraços). E chamei: Serafim Costa!

Chamei a quem, a que? E ocorreu o milagre. O nome ficou suspenso no jardim onde se ocultava uma cobra papa-ovo, depois voou pelos ares, como um pássaro; chocou-se contra os costados dos cargueiros que, no destempo hirto, desembarcavam em Maceió os caixotes das mercadorias encomendadas, do outro lado do Oceano, pelo valimento comercial de Serafim Costa; e, metamorfoseado em eco, voltou de novo aos meus ouvidos, já agora na soberba hierarquia de um nome que não precisa mais de figura ou de anedota; e se tornou para sempre algo sonoro e puro, deslumbrante e enxuto.

E, assim, obtive a resposta.

Fonte: revista "Ficção" nº 06, Rio de Janeiro, junho/1976, pág. 46.

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa – 9 -


Antero de Quental
Ponta Delgada/Portugal, 1842 – 1891

INTIMIDADE

Quando, sorrindo, vais passando, e toda
Essa gente te mira cobiçosa,
És bela - e se te não comparo à rosa,
É que a rosa, bem vês, passou de moda...

Anda-me às vezes a cabeça à roda,
Atrás de ti também, flor caprichosa!
Nem pode haver, na multidão ruidosa,
Coisa mais linda, mais absurda e doida.

Mas é na intimidade e no segredo,
Quando tu coras e sorris a medo,
Que me apraz ver-te e que te adoro, flor!

E não te quero nunca tanto (ouve isto)
Como quando por ti, por mim, por Cristo,
Juras - mentindo - que me tens amor…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Camilo Pessanha
Coimbra, 1867 – 1926, Macau

CAMINHO I

Tenho sonhos cruéis; n'alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...

Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...

Porque a dor, esta falta d'harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d'agora,

Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Fernando Pessoa
Lisboa, 1888 – 1935

AH UM SONETO!!!

Meu coração é um almirante louco
que abandonou a profissão do mar
e que a vai relembrando pouco a pouco
em casa a passear, a passear...

No movimento (eu mesmo me desloco
nesta cadeira, só de o imaginar)
o mar abandonado fica em foco
nos músculos cansados de parar.

Há saudades nas pernas e nos braços.
Há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.

Mas - esta é boa! - era do coração
que eu falava... e onde diabo estou eu agora
com almirante em vez de sensação?…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Pero de Andrade Caminha
Porto, 1520 – 1589, Vila Viçosa

Soneto I

De Amor escrevo, de Amor falo e canto;
E se minha voz fosse igual ao que amo,
Esperara eu sentir na que em vão chamo
Piedade, e na gente dor e espanto.

Mas não há pena, ou língua, ou voz, ou canto
Que mostre o amor por que eu tudo desamo,
Nem o vivo fogo em que me sempre inflamo,
Nem de meus olhos o contínuo pranto.

Assim me vou morrendo, sem ser crida
A causa por que em vão mouro contente,
Nem sei se isto que passo é vida ou morte.

Mas inda da que eu amo fosse ouvida
E crida minha voz, e da vã gente
Nunca entendida fosse minha sorte!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Sá de Miranda
Coimbra, 1481 – 1558, Amares

SONETO

Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho,
e vejo o que não vi nunca, nem cri
que houvesse cá, recolhe-se a alma a si
e vou tresvariando, como em sonho.

Isto passado, quando me desponho,
e me quero afirmar se foi assí,
pasmado e duvidoso do que vi,
m'espanto às vezes, outras m'avergonho.

Que, tornando ante vós, senhora, tal,
Quando me era mister tanta outra ajuda,
de que me valerei, se alma não val'*?

Esperando por ela que me acuda,
e não me acode, e está cuidando em al**,
afronta o coração, a língua é muda.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
* val’: vale
** al: algo, outra coisa
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Vasco Mouzinho de Quevedo
Setúbal, 1570 – 1650

SONETO XXV

Do bravo mar onde às voltas ando
Ora temendo as ondas, ora o vento,
Na esperança maior de salvamento,
A minha barca vai à costa dando.

Pus os olhos na costa, imaginando
Achar remanso de perigo isento,
Vendo, porém, frustrado o pensamento,
Louvo o mar já demais seguro e brando.

Ai fementido amor, amor tirano,
Que onde minha esperança tinha posta
Me trouxeste a fazer naufrágio amargo.

Porém ainda comigo foste humano,
Que mais quero perder-me dando à costa,
Que andar com mil temores em mar largo.