domingo, 16 de dezembro de 2012

Machado de Assis (Idéias sobre o Teatro– Parte 2) O Conservatório Dramático


A literatura dramática tem, como todo o povo constituído, um corpo policial, que lhe serve de censura e pena: é o conservatório. Dois são, ou devem ser, os fins desta instituição: o moral e o intelectual. Preenche o primeiro na correção das feições menos decentes das concepções dramáticas; atinge ao segundo analisando e decidindo sobre o mérito literário — dessas mesmas concepções. Com esses alvos um conservatório dramático é mais que útil, é necessário. A crítica oficial, tribunal sem apelação, garantido pelo governo, sustentado pela opinião pública, é a mais fecunda das críticas, quando pautada pela razão, e despida das estratégias surdas.

Todas as tentativas, pois, toda a idéia para nulificar uma instituição como esta, é nulificar o teatro, e tirar-lhe a feição civilizadora que porventura lhe assiste. Corresponderá à definição que aqui damos desse tribunal de censura, a instituição que temos aí chamada — Conservatório Dramático? Se não corresponde, onde está a causa desse divórcio entre a idéia e o corpo?

Dando a primeira pergunta uma negativa, vejamos onde existe essa causa. É evidente que na base, na constituição interna, na lei de organização. As atribuições do Conservatório limitam-se a apontar os pontos descarnados do corpo que a decência manda cobrir: nunca as ofensas feitas às leis do país, e à religião ... do Estado; mais nada. Assim procede o primeiro fim a que se propõe uma corporação dessa ordem; mas o segundo? nem uma concessão, nem um direito. Organizado desta maneira era inútil reunir os homens da literatura nesse tribunal; um grupo de vestais bastava.

Não sei que razão se pode alegar em defesa da organização atual do nosso Conservatório, não sei. Viciado na primitiva, não tem ainda hoje uma fórmula e um fim mais razoável com as aspirações do teatro e com o senso comum. Preenchendo o primeiro dos dois alvos a que deve atender, o Conservatório em vez de se constituir um corpo deliberativo, torna-se uma simples máquina, instrumento comum, não sem ação que traça os seus juízos sobre as linhas implacáveis de um estatuto que lhe serve de norma. 

Julgar de uma composição pelo que toca às ofensas feitas à moral, às leis e à religião, não é discutir-lhe o mérito puramente literário, no pensamento criador, na construção cênica, no desenho dos caracteres, na disposição das figuras no jogo da língua.

Na segunda hipótese há mister de conhecimentos mais amplos, e conhecimentos tais que possam legitimar uma magistratura intelectual. Na primeira, como disse, basta apenas meia dúzia de vestais e duas ou três daquelas fidalgas devotas do rei de Mafra. Estava preenchido o fim. Julgar do valor literário de uma composição, é exercer uma função civilizadora, ao mesmo tempo que praticar um
direito do espírito: e tomar um caráter menos vassalo, e de mais iniciativa e deliberação. Contudo, por vezes as inteligências do nosso Conservatório como que sacodem esse freio que lhe serve de lei, e entram no exercício desse direito que se lhe nega; não deliberam, é verdade, mas protestam. A estátua lá vai tomar vida nas mãos de Prometeu, mas a inferioridade do mármore fica assinalada com a autópsia do escopro [1].

Mas ganha a literatura, ganha a arte com essas análises da sombra? Ganha, quando muito, o arquivo. A análise das concepções, o estudo das prosódias, vão morrer, ou pelo menos dormir no pó das estantes. Não é esta a missão de um Conservatório dramático. Antes negar a inteligência que limitá-la ao estudo enfadonho das indecências, e marcar-lhe as inspirações pelos artigos de uma lei viciosa. E — note-se bem! — é esta uma questão de grande alcance. Qual é a influência de um Conservatório organizado desta forma? E que respeito pode inspirar assim ao teatro?

Trocam-se os papéis. A instituição perde o direito de juiz e desce na razão da ascendência do teatro. Façam ampliar as atribuições desse corpo; procurem dar-lhe outro caráter mais sério, outros direitos mais iniciadores; façam dessa sacristia de igreja um Tribunal de censura.

Completem, porém, toda essa mudança de forma. Qual é o resultado do anônimo? Se o Conservatório é um júri deliberativo, deve ser inteligente; e por que não há de a inteligência minguar os seus juízos? Em matéria de arte eu não conheço susceptibilidades nem interesses. Emancipem o espirito, hão de respeitar-lhe as decisões.

Será fácil uma emancipação do espírito neste caso? — É. Basta que os governos compreendam um dia esta verdade de que o teatro não é uma simples instituição de recreio, mas um corpo de iniciativa nacional e humana.

Ora, os governos que têm descido o olhar e a mão a tanta coisa fútil, não repararam ainda nesta nesga de força social, apeada de sua ação, arredada de seu caminho por caprichos mal-entendidos, que a fortuna colocou por fatalidade à sombra da lei. Criaram um Conservatório Dramático por instinto de imitação criaram uma coisa a que tiveram a delicadeza ou mau gosto de chamar teatro normal, e dormiram descansados, como se tivessem levantado uma pirâmide no Egito. Ora, todos nós sabemos o que é esse Conservatório e este teatro normal; todos nós temos assistido às a o agonias de um e aos desvario do outro; todos temos visto como essas duas instituições destinadas caminharem de acordo na rota da arte, divorciaram-se de alvo e de estrada. O Conservatório comprometeu a dignidade do seu papel, o antes o obrigaram a isso, e o teatro, acordando um dia com instinto de César, tentou conquistar todo o mundo da arte, e entreviu também que lhe cumpria começar a empresa por um tribunal de censura.

Com esta guerra civil no mundo dramático, limitadas as decisões de censura, está claro, e claro a olhos nus que a arte sofria e cor ela a massa popular, as platéias. A censura estava obrigada a suicidar-se de um direito e subscrever as frioleiras [2] mais insensatas que o teatro entendesse qualificar de composição dramática. Este estado de coisas que eu percebo, inteligência mínima como sou, será percebido também pelos governos? Não é fácil de aceitar a hipótese negativa, porquanto evidentemente não os posso considerar abaixo de mim na ótica do espírito. Concordo pois, que os governo não têm sido estranhos nesta anarquia da arte, e então uma negligência assim, depõe muito contra a consciência do poder.

Não há fugir daqui. Onde está esse projeto sobre a literatura dramática apresentado há tempos na câmara temporária? Era matéria de contrabando, e as aspirações políticas estavam ocupadas em negócios que visavam outros alvos mais sólidos ou pelo menos mais reais. Esse projeto, dando um caráter mais sério ao teatro, abria as suas portas às inteligências dramáticas por meio de um incentivo honroso. Trazia em si um princípio de vida: lá foi para o barbante do esquecimento!

É simples, e não carece de larga observação: os governos em matéria de arte e literatura olham muito de alto; não tomam o trabalho de descer à análise para dar a mão ao que o merece. Entretanto o que se pede não é uma vigilância exclusiva; ninguém pretende do poder emprego absoluto dos seus sentidos e faculdades. Nesta questão sobretudo é fácil o remédio; basta uma reforma pronta, inteiriça, radical, e o Conservatório Dramático entrará na esfera dos deveres e direitos que fazem completar o pensamento de sua criação.

Com o direito de reprovar e proibir por incapacidade intelectual, com a viseira levantada ao espírito da abolição do anônimo, o Conservatório, como disse acima, deixa de ser uma sacristia de igreja para ser um tribunal de censura. E sabem o que seria então esse tribunal? uma muralha de inteligência às irrupções intempestivas que o capricho quisesse fazer no mundo da arte, às bacanais indecentes e parvas que ofendessem a dignidade do tablado, porque infelizmente é fato líquido, há lá também uma dignidade.

O Conservatório seria isso e estaria nas linhas do seu dever e de seu direito. Mas no meio destes reparos, resta ainda um fato importante — a literatura dramática. Com uma reforma no Conservatório, parece-me claro que ganhava também a arte escrita. Não temos (ninguém será tão ingênuo que confesse esse absurdo) não temos literatura dramática, na extensão da frase; algumas estrelas não fazem uma constelação: são lembranças deixadas no tablado por distração, palavras soltas, aromas queimados, despidos de todo o caráter sacerdotal. Não podia o Conservatório tomar um encargo no sentido de fazer desenvolver o elemento dramático na literatura? As vantagens são evidentes — além de emancipar o teatro, não expunha as platéias aos barbarismos das traduções de fancaria[3] que compõem uma larga parte dos nossos repertórios.

Mas, entendam bem! inculco esse encargo ao Conservatório, mas a um Conservatório que eu imagino, que além de possuir os direitos conferidos por uma reforma, deve possuir esses direitos de capacidade conferidos pela inteligência e pelos conhecimentos. Não é ofender com isto as inteligências legítimas do atual Conservatório. Eu não nego o sol; o que nego, ou pelo menos o que condeno em consciência são as sombras que não dão luz e que mareiam a luz.

Um Conservatório ilustrado em absoluto é uma garantia para o teatro, para a platéia e para a literatura. Para fazê-lo assim basta que o poder faça descer essa reforma tão desejada.
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Nota:
[1] Escopro
Instrumento de ferro e aço com que se lavram madeiras, pedras, etc.; cinzel. 
[2] Frioleira
Tolice, parvoíce.
[3] Fancaria
Trabalho grosseiro, mal acabado; pacotilha.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

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