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domingo, 20 de março de 2022

Sílvio Romero (O Caboclo namorado)


(Folclore do Sergipe)


HAVIA UMA MOÇA CASADA muito bonita. Por sua porta passava sempre um caboclo e numa ocasião virou-se para ela e disse-lhe: “Adeus, meu cravo.” A moça fez que não ouviu e calou-se.

No outro dia o caboclo passou e tornou a dizer a mesma coisa. A moça, não podendo mais chegar à janela, porque todas as vezes que o caboclo passava, dizia-lhe: “Adeus, meu cravo”, queixou-se ao marido. 
 
Este disse-lhe: “Não te importes, e quando ele te disser ‘adeus, meu cravo’, tu responde-lhe ‘adeus, minha rosa’, e deixa o resto por minha conta.”

No dia seguinte o caboclo passou e repetiu: “Adeus, meu cravo.” 
 
Ela virou-se para ele e respondeu: “Adeus, minha rosa.” 
 
O caboclo saiu rindo-se de contente e no outro dia já não disse “Adeus, meu cravo”, e sim perguntou à moça se ela dava licença a ele ir à casa dela à noite.

A senhora ficou incomodadíssima e não deu-lhe resposta. Chegando o marido, ela participou-lhe o ocorrido, ao que ele respondeu: “Amanhã dize-lhe que eu fiz uma viagem e que tu dás licença para ele vir conversar contigo à noite.”

Quando o caboclo passou dirigiu à moça a mesma pergunta, esta respondeu-lhe tudo quanto o marido tinha lhe dito. À noite chegou o caboclo, indo muito cheiroso e bem vestido. Já o marido da moça tinha munido dois criados, cada qual com um chicote de couro cru, e mandado deitar debaixo da cama grande porção de cansanção*.

O caboclo logo que foi chegando disse à moça que queria ir para o quarto e que ela apagasse a luz que o estava incomodando. Depois tirou toda a roupa com que estava vestido e deitou-se dizendo que estava com muito sono. Nisto o marido da moça fingiu ter chegado da viagem e esta disse ao caboclo que se escondesse debaixo da cama. O moço entrou e deitou-se, alegando que vinha muito cansado.

De espaço a espaço ele ouvia como que uma espécie de grunhido sair debaixo da cama. Passado um bom pedaço e o rapaz ouvindo sempre a mesma coisa, perguntou:

“Quem está aí?”

Responde-lhe o caboclo: “Sou eu, cachorro.”

Diz o moço: “Oh, e cachorro fala?”

Replica-lhe o caboclo: “Falo eu.”

Aí o moço levantou-se e com uma luz na mão olhou para debaixo da cama e viu o caboclo no meio dos cansanções, inchado como uma pipa e todo se coçando. O moço chamou os criados que já estavam preparados e ordenou: “Empurrem-lhe o chicote”.

O caboclo depois de ter levado uma tunda, saiu que mal acertava o caminho de casa. Levou muito tempo se tratando da grande surra que levou.

Depois de muito tempo e quando já estava bom, passou de novo o caboclo pela porta da moça, mas muito desconfiado e de cabeça baixa.

Esta para bulir com ele disse-lhe: “Adeus, meu cravo.”

Ele virou-se para ela e respondeu muito zangado: “Adeus, seu diabo!”
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* Cansanção = planta comum no Nordeste, cuja principal característica é o fato de provocarem, assim como a urtiga, a sensação de queimadura ao toque com a pele. Ao contrário da urtiga, porém, seu efeito urticante e vesiculante (causador de bolhas) é maior e mais agudo, bastando para tanto o simples contato com seus pelos, ao pé dos quais há uma cápsula com o líquido agressivo.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Coleção Acervo Brasileiro vol. 3.  Jundiaí/SP: Cadernos do Mundo Inteiro, 2018. Publicado originalmente em 1954.
Livro enviado por Sammis Reachers.

quinta-feira, 3 de março de 2022

Carolina Ramos (Folclore de Santos) O Fantasma do Museu de Pesca

Sim, dizem que há um fantasma no Instituto de Pesca de Santos, lá na Ponta da Praia.

Um fantasma que, vez ou outra, arrasta correntes por entre os peixes taxidermizados* que enriquecem o Museu, lá pelas proximidades do esqueleto da grande baleia que, por sua vez, ocupa quase uma sala inteira dele. Um fantasma bonzinho, afável com as crianças e que protege o acervo do referido Museu.

Quem nos poderia dizer algo mais sobre este assunto seria Mestre Nelsinho Dreux, que partiu deixando saudades "taxidermizadas" em cada canto. Mercê dos seus conhecimentos e dedicação à taxidermia aplicada ao estudo e resguardo da fauna marítima. Mestre Nelsinho fez escola e suas peças ainda enfeitam os salões do Instituto de Pesca, como também o Mini-Museu Marinho, do IHG* de Santos, iniciado, no ano 2000, pela autora destas linhas.

Teriam parado por aqui os informes sobre este assunto se não fossem introduzidos outros três nomes capazes de jogar mais luz sobre ele: – Dr. Acácio Ribeiro Gomes Tomás, oceanógrafo, mestre e doutor em Ciências e Ecologia - Pesquisador Científico do Instituto de Pesca; Antônio Carlos Simões, jornalista, ex-diretor do Museu de Pesca 1979/1997, e Gizelda Palubinskas, ex-funcionária administrativa do referido Instituto.

Com o "palco", agora devidamente iluminado, tendo por foco o "Capitão Padilha," também chamado Fantasma (Protetor) do Instituto de Pesca de Santos, este personagem lendário vem à cena credenciado pelas vozes que deram base ao que aqui vai descrito, embora sujeito a outras versões, como geralmente acontece com qualquer lenda.

- Comecemos pelo testemunho de Dona Gizelda, a beirar os setenta, e que foi, por muitos anos, Secretária do Instituto de Pesca de Santos.

Ante a pergunta: - É verdade que há um fantasma no Instituto de Pesca? - deu-nos ela, por telefone, o testemunho de alguns sustos por ela mesma vivenciados.

Um deles: - " Certa noite, cerca das 19h, encerrado o expediente e sem que, além de mim, houvesse mais alguém no prédio", confessa Dona Gizelda ter ouvido, perfeitamente, na ante-sala onde ela estava, tensa e assustada: - “uma porta abrir-se e fechar-se logo em seguida, num dos aposentos próximos”. - O que, evidentemente, foi logo atribuído à presença do "Capitão fantasma".

- "De outra feita” - continua Dona Gizelda - "após uma "vernissage" (evento, àquele tempo, comum, lá no Instituto), quando o público já deixara o prédio, eu subi as escadas que me levariam ao andar superior para apagar as luzes no intuito de evitar desperdícios". Ao retomar pela mesma escada, um novo susto; – "senti que alguém descia os degraus... juntamente comigo” - e a comprovada simpatia de Dona Gizelda não omite o acontecido: – "Assustada, agarrei-me ao corrimão, dizendo, num alerta ao fantasma: - "Capitão, por favor!... Saiba que eu estou cuidando da sua casa!..." - como quem diz: - Não tenho medo... mas... "fique longe, por favor!!"

O clima fica mais intenso quando a simpática narradora conta que o senhor José, antigo funcionário do Instituto, jamais chegava ao andar de cima porque "na última vez em que lá estivera, ouvira o som de correntes sendo arrastadas pelo chão!"

E o derradeiro relato de Dona Giselda; - "Certo dia, findo o expediente, ao ser fechada a porta de saída do Instituto, ouvimos passos de alguém descendo as escadas, ruído que desaparecia quando a porta era reaberta... e voltava a ser ouvido, quando a mesma era novamente fechada”.

Uma vez ventilada a "presença" do Fantasma do Capitão Padilha no Instituto de Pesca de Santos, o que ganha certo aroma de realidade nas palavras de Dona Gizelda, vamos ligeiramente à história desse personagem que justifica a lenda, ouvindo o que dizem Dr. Acácio Ribeiro Gomes Tomás, Oceanógrafo, mestre doutor em Ciências, e o jornalista Antônio Carlos Simões, ambos profundamente ligados ao Instituto - o primeiro, como Pesquisador Científico, desde 1997 e o segundo, ex-diretor do Museu de Pesca de Santos, de 1987 a 1997.

Os depoimentos se entrelaçam:

- Tudo pode ter começado com a suposta "morte de um diretor da então Escola de Pesca, quando tinha fins de formação profissional, há quase 100 anos - o que não é comprovado".

A má conservação do prédio, acusada pelo ranger das tábuas do assoalho e pelo ruído das desgastadas dobradiças das portas e janelas, teria sido importante coadjuvante para o desenvolvimento da lenda através dos tempos, como, também, os antecedentes do atual Museu - antiga fortaleza que defendia o estuário, exposta ao ataque dos corsários, e que, "em tempos muito anteriores, teria sido um sítio de enterros dos indígenas, justificando a presença do sambaqui, que infelizmente não existe mais," tudo a favorecer para que ganhasse corpo a aura fantasmagórica que envolveu esse Museu santista, colaborando, talvez, para o seu tombamento e futuro restauro - o que eliminou de vez os ruídos suspeitos.

Mas... a tal ponto expandiu-se esta lenda, no passado, que, segundo relato de antigos alunos internos, eles mesmos "sequer ousavam abrir a porta, à noite, para irem ao banheiro, por conta do medo do "Capitão Padilha, o famoso fantasma" - que por lá perambulava, embora reconhecessem não ter ele feito, jamais, qualquer mal a alguém!

E quem seria, afinal, o Capitão Padilha? - Tão somente: – "Uma figura imaginária, que surgiu tendo por base a figura real do Capitão-tenente Garcez Palha, referendado pela Marinha Brasileira", e, também, ligado ao prédio em questão, cuja construção ele supervisionou, quando a Escola de Aprendizes de Marinheiros do Estado de São Paulo, que, ao ser extinta, veio a ser transformada na "Escola de Pesca", geradora do atual Museu - como explicam as vozes que seguem a guiar este relato.

O nome de Garcez Palha, ao virar lenda, acabou por ser carinhosamente trocado pelos funcionários do Instituto de Pesca, que lhe deram o apelido de Capitão Padilha.

Em fase mais recente, 2001, foi inaugurado, no Museu de Pesca, o chamado "Quarto do Capitão Padilha". Projeto que integra a Ala Lúdica Petrobrás, e é de autoria de um grupo de alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Católica de Santos. Este "Quarto do Capitão" dá acesso a relatos fantasiosos de funcionários e demais curiosidades relativas ao "fantasma guardião" - sendo um atrativo a mais para os visitantes.

No tal quarto, as crianças são recebidas com carinho e têm acesso a um cenário preparado especialmente para elas, onde ouvem relatos alusivos, e descobrem "móveis e também objetos pertencentes ao "Capitão", tais como cartas de navegação, diário de bordo, antigos utensílios de uso pessoal, etc." assim como histórias de grandes navegadores e das aventuras marítimas de Marco Polo, Cristóvão Colombo, Fernando de Magalhães, Amyr Klink, etc."

Um gato, ex-morador daquele prédio, lembra os trabalhos de taxidermia de Nelsinho Dreux. É ele o atual guardião do quarto do "Capitão Padilha" - o já famoso Fantasma do Instituto de Pesca de Santos.

Fala-se que o Teatro Coliseu santista, ao lado esquerdo da Catedral, tem também o seu fantasma - ou seja, um homem, que, quando aparece, o que é bastante raro, perambula por entre os bastidores.
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Notas:
IHG = Instituto Histórico e Geográfico
Taxidermia = antigo processo de encher de palha animal morto a fim de conservar-lhe as características, empalhar.
 
Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.
Livro enviado pela autora.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Sílvio Romero (Contos Populares do Sergipe) Dona Labismina

Uma vez havia uma rainha, casada já há muito tempo, que nunca tinha tido filhos, e tinha muita vontade de ter, tanto que uma vez disse: “Permitia Deus que seja uma cobra!...”

Passados uns tempos, apareceu grávida, e quando deu à luz foi uma menina com uma cobrinha enrolada no pescoço. Toda a família ficou muito desgostosa; mas não se podia tirar a cobrinha do pescoço da criança. Foram crescendo ambas juntamente, e a menina tomou muita amizade pela cobrinha. Quando já mocinha, costumava ir passear à beira do mar, e lá a cobra a deixava e fugia para as ondas, mas a princesinha punha-se a chorar até que a cobra voltava, se enrolava outra vez no seu pescoço e iam ambas para palácio, onde ninguém sabia disso.

Assim foram indo até que um dia a cobra entrou no mar e não voltou mais, porém disse à irmã que, quando se visse em perigo, chamasse por ela. A cobra tinha o nome de Labismina e a princesa o de Maria.

Passados anos, caiu doente a rainha, e morreu; mas na hora de morrer tirou do dedo uma joia e deu ao rei, dizendo: “Quando tiveres de casar outra vez, deve ser com uma princesa em que esta joia der sem ficar nem frouxa, nem apertada”.

Depois de algum tempo, o rei quis se casar e mandou experimentar a joia nos dedos das princesas de todos os reinos, e não encontrou nenhuma em que o anel coubesse pela forma que lhe tinha recomendado a rainha. Só faltava a princesa Maria, sua filha; o rei chamou-a e botou a joia no seu dedo, e ficou muito boa. Então ele disse à filha que queria se casar com ela; e, como palavra de rei não volta atrás, a moça ficou muito desgostosa e vivia chorando.

Foi ter com Labismina na praia do mar, gritou por ela, e a cobra veio. Maria contou-lhe o caso, e a cobra respondeu: “Não tenha medo; diga ao rei que só casa com ele se ele lhe der um vestido da cor do campo com todas as suas flores.”

Assim fez a princesa, e o rei ficou muito aborrecido, mas disse que iria procurar. Levou nisto muito tempo, até que afinal conseguiu.

Aí a princesa tornou a ficar muito triste, e foi ter com a irmã, que lhe disse: “Diga que só casa com ele se lhe der um vestido da cor do mar com todos os seus peixes.”

A princesa assim fez, e o rei ainda mais aborrecido ficou. Levou muito tempo a procurar até que arranjou.

A moça foi ter outra vez com a Dona Labismina, que lhe disse: “Diga que só casa se ele lhe der um vestido da cor do céu com todas as suas estrelas.”

Ela assim disse ao pai, que ficou desesperado; mas prometeu arranjar. Levou nisto ainda
mais tempo do que das duas outras vezes, até que conseguiu.

A princesa, quando o pai lhe deu o último vestido, viu-se perdida e correu para o mar, onde embarcou num navio que Dona Labismina tinha preparado, durante o tempo que o rei andou arranjando os vestidos. Labismina recomendou à irmã que seguisse naquele navio, e saltasse no reino onde ele parasse, que nessa terra ela encontraria casamento com um príncipe, e que, na hora de casar, chamasse por ela três vezes, que ela se desencantaria numa princesa também.

Maria seguiu. No reino em que o navio parou ela saltou em terra. Não tendo de que viver, foi pedir um emprego à rainha, que a encarregou de guardar e criar as galinhas do rei. Passados tempos, houve três dias de festa na cidade. Todos de palácio iam à festa, e a criadeira de galinhas ficava. Mas logo no primeiro dia, depois que todos saíram, ela se penteou, vestiu o seu vestido de cor do campo com todas as suas flores e pediu a Labismina uma bela carruagem e foi também à festa.

Todos ficaram muito espantados de ver moça tão bonita e rica, e ninguém sabia quem era. O príncipe, filho do rei, ficou logo muito apaixonado por ela. Antes de acabar-se a festa, a moça partiu e meteu-se na sua roupinha velha, e foi cuidar das galinhas.

O príncipe, quando chegou a palácio, disse à rainha: “Viu, minha mãe, que moça bonita apareceu hoje na festa? Quem me dera casar com ela! Só parecia a criadeira de galinhas.”

— “Não digas isto, meu filho! Aquela pobre tinha roupa tão fina e rica? Vai ver como ela está lá embaixo porca e esmolambada.”

O príncipe foi onde estava a criada e lhe disse: “Ó criadeira de galinhas, eu hoje vi na festa uma moça que só se parecia contigo. . . ”

— “Oxente, príncipe, meu senhor, quer mangar comigo. . . Quem sou eu?”

No outro dia, nova festa, e a criadeira de galinhas foi às escondidas com o seu vestido de cor de mar com todos os seus peixes, e numa carruagem ainda mais rica. Ainda mais apaixonado ficou o príncipe sem saber de quem. No terceiro dia a mesma coisa, e a criadeira de galinhas levou o vestido cor de céu com todas as suas estrelas.

O príncipe ficou tão entusiasmado que foi se pôr ao pé dela e lhe atirou no colo uma joia que ela guardou. Chegando a palácio, o príncipe caiu doente de paixão e foi para cama. Não queria tomar nem um caldo; a rainha rogava a todas as pessoas para lhe levarem algum caldo, para ver se ele aceitava, e era mesmo que nada. Afinal só faltava a criadeira de galinhas, e a rainha mandou-a chamar para levar o caldo ao príncipe.

Ela respondeu:

“Ora dá-se! Rainha, minha senhora, quer caçoar comigo? Quem sou eu para o príncipe, meu senhor, aceitar um caldo da minha mão? O que eu posso fazer é preparar um caldo para mandar a ele.”

A rainha concordou, e a criada preparou o caldo, e botou dentro da xícara a joia que o príncipe lhe tinha dado na igreja. Quando ele meteu a colher e viu a joia, pulou da cama contente e dizendo que estava bom, e queria se casar com aquela moça que servia de criadeira de galinhas.

Mandaram-na chamar, e, quando ela veio, já foi pronta, como quando ia à festa. Houve muita alegria e muito banquete, e a princesa Maria se casou com o príncipe; mas se esqueceu de chamar pelo nome de Labismina, que não se desencantou, e, por isso, ainda hoje o mar dá urros e se enfurece às vezes.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos Populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Contos e Lendas do Brasil (Origem do Rio Amazonas)

Carolina Ramos
O Rio mar


I
Jassyendy* prateava a natureza!
Jassy* era feliz, serena e amada
pelo formoso Cuara*, na certeza
de tudo ter... sem desejar mais nada!

O amor, pujante e livre, na largueza
do azul crescia, em força imensurada,
com esplendor intenso e tal grandeza,
que a Onipotência estava preocupada:

- Não fosse logo essa paixão contida,
em pouco a morte extinguiria a Terra!
Secariam os rios... sem mais vida

e secaria, assim... todo o Universo!
- Sol e Lua... Tupã* separa! E encerra,
com seu poder, aquele amor adverso!

II
A sentença é implacável - sem poesia!
Separação - é a fórmula sensata;
- Cuarassy*, sendo o Sol - brilha de dia!
- Jacy a Lua - à noite, a luz desata!

Tupã, o poderoso, decidia!
E Curussá*, num brilho que arrebata,
a cruz de estrelas no amplo céu abria,
marcando para sempre a triste data!

A alternar-se no azul, em desalento,
não se encontram jamais o Sol e a Lua!
Ao ver Jassy, tão pálida, em tormento,

Cuarassy, em protesto, ostenta um halo
de dor e de saudade... E o adeus flutua
em cada triste ocaso... A torturá-lo!

III
Em vão as súplicas! Também baldados
os apelos dos astros que se uniram
aos pés de Tupãssy*!... Desalentados,
Jassy e Cuarassy de amor deliraml...

Lágrimas, em roldão, pelos costados
e planícies rolaram!... Não se ouviram
na Amazônia os lamentos dos copados
seringais que, engolidos, sucumbiram!

E o pranto de Jassy, protesto insano,
em caudal impetuoso e avassalante,
foi arrojar-se aos braços do oceano!

E a rugir, a gemer e a espumejar,
do manancial de um coração amante,
nascia, então, grandioso - o Rio Mar!
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* Vocabulário
Jassyendy = Luar    
Cuara = Sol
Jassy = Lua    
Tupã = Deus
Cuarassy = Sol de verão
Curussá = Cruzeiro do Sul
Tupãssy - mãe de deus

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Lenda da Origem do Amazonas
por Marcos Pessoa


Há muitos anos, em plena selva amazônica, existiam dois noivos que sonhavam em se casar. Ela, sublime e brilhante, vestia-se de prata e seu nome era Lua. Ele, respeitável e irradiante, vestia-se de ouro e seu nome era Sol.

Lua era a dona da noite, enquanto Sol era o dono do dia. Entre esse amor, porém, existia um obstáculo impossível de ser superado: Se eles se casassem o mundo se acabaria. Isso porque o amor ardente e incandescente do Sol queimaria toda a terra, enquanto o choro desesperado de dor e sofrimento da Lua afogaria toda a Terra.

Logo, embora fosse um casal apaixonado, como eles poderiam se casar? A Lua apagaria o fogo? O Sol faria toda a água evaporar? Dilema esse que impediu que eles se casassem e foi o motivo lamentável que os fizeram se separar. Os noivos entraram em desespero, e no desespero da saudade sem fim, a Lua chorou durante todo um dia e uma noite. Suas lágrimas escorreram por morros sem fim até chegar ao mar. O mar, porém, ao ver tanta água embraveceu-se. Ele não queria aceitar tanta água.

A sofrida Lua não conseguia misturar suas lágrimas às águas bravas do mar. Foi quando algo estranho aconteceu. As águas escavaram um imenso vale e serras se levantaram ao longo do caminho. De forma misteriosa e assustadora um imensurável rio apareceu. Isso mesmo, as lágrimas da Lua formaram um enorme percurso e preencheu esse espaço dando origem ao rio Amazonas, o rio-mar da Amazônia.

E foi assim, deste amor impossível entre a Lua e o Sol, que nasceu o rio Amazonas, considerado o maior rio do planeta, tanto em volume de água como em extensão.
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Outra Versão da Lenda

Segundo a lenda Maué da primeira água e origem do rio Amazonas, Icuamã, Ocumató e Onhiamuaçabê* eram irmãos. Um dia, Icuamã deu uma festa e convidou todos os bichos.

Os índios-peixe, Jeju e Mantrinchão, ficaram na porta conversando. O filho de Icuamã, ficou curioso e aproximou-se para ouvir o que eles diziam. Falavam erradamente. O indiozinho começou a corrigi-los e eles, de raiva, fizeram tal feitiçaria que ele morreu.

Icuamã jurou a si mesmo que vingaria a morte do filho. Levou-o até uma clareira, no meio da floresta; depositou-o no chão, dividiu-o pela metade e enterrou os pedaços. Alguns dias depois, brotaram plantinhas; de um pedaço nasceu o timbó-urucuócuhup, o falso timbó; do outro, nasceu o timbó-ocuhén, o verdadeiro.

Perto da casa de Ocumató, morava Sucuri-Tenon, cujo filho, o Sucuri-Pacu, estava proibido pelo pai de ir ver seus tios feiticeiros, Jeju e Traíra. Mas o menino ouviu dizer que Jeju tinha inventado a primeira água e foi à casa deles. A tia lhe mostrou uma pequena poça. O menino achou muito pequeno. A tia, zangada, fez feitiçaria e ele, meio tonto, voltou para casa.

Sucuri-Tenon logo adivinhou o que havia acontecido. “É feitiçaria! Quem o enfeitiçou tem o remédio. Vai buscá-lo.” O curumim obedeceu. Retornou a casa dos tios.

Nesse tempo, o Jeju regressou, bebeu um pouco de água da poça e cuspiu-a em uma cuia. Daí a pouco, apareceu o indiozinho; queixava-se de dor de cabeça. Jeju deu-lhe a água da cuia. Quando ele terminou de tomá-la, sua barriga doía muito e começava a estufar. Implorou ao tio que passasse o maracá de pajé (chocalho) sobre sua barriga, para aliviar a dor. Jeju atendeu. Passou o maracá 1, 2, 3 vezes. E a barriga explodiu. Dela, verteu água que foi crescendo, encheu a casa, saiu pelo terreiro, sempre subindo.

Jeju correu. Ao ver a água pela primeira vez, os índios-pássaros voaram sobre ela, desceram nos galhos da margem e ficaram a olhar. O sapo não esperou e foi para o fundo, cantando de satisfação. É por isso que ele tem, ainda hoje, a voz rouca.

Chamado por Jeju, o Sucuri-Tenon veio saber o que havia. O feiticeiro pediu-lhe que fosse andando na frente, abrindo caminho para a água. “Mas não olhe para trás!” advertiu-o. O Sucuri não deu importância e prosseguiu. Tanto olhou para trás que os rios ficaram com o curso todo sinuoso.

Atraídos pelo rio, os índios-peixe mergulharam. A notícia espalhou-se e Icuamã descobriu que foram os índios-peixe que mataram seu filho. Com Ocumató e muitos índios, organizou um mutirão. Pegaram timbó e entraram no rio, batendo a planta na água. Envenenados, os peixes vieram à tona mortos.

O índio-onça e a mulher não gostaram daquilo. Também mergulharam. Imediatamente, o timbó perdeu a força. Icuamã, com raiva, agarrou os dois e matou-os. Arrancou seus olhos e enterrou-os. Deles nasceram as castanheiras.

Assim surgiu o rio Amazonas, cujo volume de água é superior ao de todos os outros rios do mundo e, é um sistema sinuoso de canais, na maior parte de seu curso através da floresta. Aí vive o Sucuri-Tenon que, de tanto dar voltas, terminou virando cobra.
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* Onhiamuaçabê – o guaraná é fruto brotado dos olhos do filho dessa índia

“AMAZONAS: LENDA OU REALIDADE?”
Por Patrícia Pereira


O nome Amazonas, que batiza o maior Estado do Brasil e um dos maiores rios do mundo, tem sua origem em uma lenda grega que veio parar em terras brasileiras. Quando expedicionários europeus, liderados pelo espanhol Francisco Orellana, chegaram à região que hoje pertence à Amazônia, em 12 de fevereiro de 1542, encontraram um grupo de índias guerreiras. Segundo os relatos, elas lutavam nuas e viviam em tribos isoladas, sem homens. Eram chamadas pelos índios de icamiabas. Por seus costumes, elas lembravam as lendárias amazonas da mitologia grega, que viviam na Ásia Menor, e logo foi feita a associação entre elas.

As icamiabas eram mulheres altas, musculosas, de pele clara, cabelos compridos e negros, como descreveu o frei espanhol Gaspar de Carvajal, que fazia parte da expedição de Orellana. Ele disse tê-las visto às margens do rio Nhamundá, na divisa dos Estados do Pará e do Amazonas. As índias não permitiam a presença de homens na tribo e, para afastá-los, lutavam com arcos e flechas. Diz a lenda que, para se tornarem exímias arqueiras, arrancavam o seio direito. “A versão mais aceita era que elas atavam o seio direito com uma faixa, parecendo assim que não tinham um dos seios”, diz a historiadora e especialista em folclore Rosane Volpatto.

A palavra icamiaba significa “a que não tem seio”, segundo o estudioso João Barbosa Rodrigues. Essa versão encontra respaldo na lenda grega que dizia que as amazonas queimavam o peito das meninas ainda crianças para que não atrapalhasse o lançamento da flecha. “Essa história não tem nada a ver com nossas icamiabas. Sem seio são as amazonas asiáticas, não as brasileiras”, afirma o indigenista João Américo Peret. Para Rosane, “é pouco provável que as índias inutilizassem um seio porque amavam como mulheres, defendiam-se como guerreiras e multiplicavam-se como mães”.

AMULETO DA SORTE


Embora não tivessem maridos, as icamiabas tinham filhos. Segundo a lenda, uma vez ao ano, em noites de lua cheia, elas realizavam uma cerimônia sagrada para a deusa Yaci, a mãe-lua, no lago Yaci Uarua (Espelho da Lua). Convidavam os índios guacaris, que habitavam os arredores e, nesse dia, tinham relações sexuais com eles sob a bênção da mãe-lua. Após o ritual amoroso, mergulhavam no lago e buscavam no fundo um barro com o qual moldavam um amuleto chamado muiraquitã.

Há várias versões sobre como era feito esse amuleto. Todas, porém, envolvem as icamiabas e o lago Espelho da Lua. Uma das lendas diz que eles eram feitos a partir de uma substância verde pastosa que deveria ser modelada dentro da água do lago. Ao serem colocados em contato com o ar, tornavam-se mais duros que um diamante. Tal barro verde era encontrado também no rio Tapajós, com o qual os índios faziam, debaixo da água, pássaros, rãs e outras figuras. Já os índios uaboí contam que os amuletos eram animais vivos e, para apanhá-los, as índias feriam-se. Ao deixar cair uma gota de sangue sobre o bicho desejado, ele morria e era petrificado.

O amuleto era oferecido pelas amazonas aos homens com os quais haviam mantido relações sexuais ou, segundo outras versões, somente àqueles com quem elas tivessem gerado filhas. Dizem que o amuleto trazia sorte e protegia de doenças. O muiraquitã mais comum tem o formato de sapo e é esverdeado, mas esses amuletos também eram talhados nas formas de peixes, tartarugas e felinos. O amuleto produzido pelas guerreiras amazonas é citado em Macunaíma, um clássico modernista de Mário de Andrade, publicado em 1928. O herói sem caráter passa quase toda a história percorrendo o Brasil à procura de um muiraquitã que perdeu depois de ganhá-lo de sua eterna paixão, uma índia icamiaba.

Segundo contam os índios em sua tradição oral, as filhas das icamiabas, nascidas do encontro anual com os homens de outras tribos, escolhidos dentre os mais vigorosos e belos, eram criadas pelas mães e instruídas no manejo das armas. Quanto aos filhos, eram dados no ano seguinte para que seus pais os criassem. “Aqui entramos novamente num labirinto de miscelâneas entre as amazonas pertencentes às velhas tradições helênicas e as amazonas americanas, pois eram as primeiras que sacrificavam seus filhos homens”, diz a historiadora Rosane.

ICAMIABAS HOJE

O indigenista Peret, que convive com índios há mais de 50 anos, afirma que as mulheres guerreiras existiram e ainda existem na Amazônia. A última notícia que teve delas foi em 1967. Naquela época, ele estava determinado a encontrá-las e, depois de seguir pistas dadas por vários índios, chegou a um missionário alemão na região próxima ao rio Juruena, entre os Estados do Mato Grosso e do Amazonas. “Ele disse que os índios dali eram fregueses das icamiabas”, conta Peret.

“O missionário chamou um deles, que nem falava português, me apresentou e pediu que me contasse sobre as mulheres guerreiras”, lembra o indigenista. “Esse índio foi prisioneiro delas por uma semana. Ele disse que eram cerca de 30, que o alimentavam e, de vez em quando, tinham relação sexual. Durou até que ele não dava mais no couro e as índias o deixaram fugir”, afirma Peret.

Esse índio concordou em levá-lo até as proximidades da aldeia onde teria ficado preso – tinha medo de ser de novo refém. No caminho, passou por sua tribo e o cacique também disse ter sido prisioneiro no ano anterior. Só concordaram em chegar até o local porque viram que as pegadas deixadas pelas icamiabas eram antigas, de mais ou menos um ano. Nas três casas de palha, Peret encontrou arcos, flechas, tacapes (espécie de porrete) e muitos colares. Algumas peças ele doou ao Museu do Índio, outras estão em seu acervo pessoal.

Apesar de nunca ter ficado cara a cara com uma icamiaba, o indigenista já participou de cerimônias indígenas feitas por algumas tribos como forma de relembrar os hábitos das mulheres guerreiras. “Os kayapós têm um ritual chamado mebiök. Uma vez por ano, durante uma semana, as mulheres ocupam a casa sagrada de reunião dos homens. Elas são donas da aldeia nesse período. Provocam os índios, atiram pedras, gritam o nome deles. Os homens ficam em casa, preparam a comida e cuidam dos filhos. É um momento em que as índias querem mostrar que, se os homens não forem leais, fraternos, amigos, se não as respeitarem, vão embora da aldeia, vão voltar a viver sozinhas na floresta como as mulheres guerreiras”, diz Peret.

Outras tribos fazem cerimônias parecidas. Rosane conta sobre as mulheres xinguanas, que celebram o yamarikumã, o ritual das amazonas. “É a rebelião coletiva contra o desprezo e a humilhação de permanecerem como simples espectadoras, assistindo a demonstrações que consideram machistas. Reagindo, as índias fazem o moitará (o comércio de troca intertribal), batem nos maridos, apropriam-se dos seus artesanatos e das flautas sagradas, cantam, dançam, lutam o huka-huka e promovem uma festa tão grande e vigorosa como qualquer outra masculina. Essa é a forma de demonstrarem que a qualquer momento podem repetir o episódio das amazonas guerreiras e viver isoladamente”, diz a historiadora.

Se as guerreiras amazonas são só uma lenda ou se já existiram de fato, não se sabe.

AS AMAZONAS DA MITOLOGIA GREGA REPUDIAVAM O CASAMENTO

A lenda das guerreiras amazonas já era contada na Antiguidade. Elas aparecem, por exemplo, na história de Hércules.

Na mitologia grega, a rainha das amazonas era Hipólita. Ela recebeu do pai, Ares, um cinturão mágico. O nono dos 12 trabalhos de Hércules foi obter justamente esse cinturão. Hércules lutou com Hipólita e matou-a para pegar o cinturão.

A historiadora e estudiosa de folclore Rosane Volpatto explica que as amazonas, segundo relatos de Homero, viviam em comunidades nos templos espalhados pela Ásia Menor em uma época em que ainda vigorava o regime matriarcal. O romano Justino, baseado em fontes gregas, refere-se a “uma nação de amazonas, que, tendo perdido seus maridos na guerra, recusavam-se à escravidão do casamento”.

A princípio, lutavam somente para defender suas terras. Embora repudiassem o matrimônio, não deixavam, uma vez ou outra, de ter relações sexuais com os vizinhos. As crianças nascidas dessas relações, quando meninas, eram educadas nas artes bélicas e na equitação. Porém, antes do início do processo educacional, as amazonas lhes queimavam o peito direito para não causar obstáculo algum ao lançamento da flecha. Já os meninos eram mortos ao nascer.

“Alguns desses aspectos foram encontrados bem vivos nas índias icamiabas da Amazônia, embora elas tenham surgido de forma bem diversa das lendárias guerreiras descritas na Grécia antiga”, diz Rosane. “Provavelmente, foram essas semelhanças que levaram Francisco de Orellana e o Frei Gaspar de Carvajal a denominá-las amazonas quando as viram às margens do rio Nhamundá.”

Fontes:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021. Livro enviado pela autora.

https://super.abril.com.br/historia/amazonas-lenda-ou-realidade/. Revista Supeinteressante. 2006 por  Patrícia Pereira.

Lendas Indígenas. SP: Aquarela, 1962.

https://noamazonaseassim.com/lenda-da-origem-do-rio-amazonas/. Lenda por Marcos Pessoa. 2013.