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terça-feira, 12 de junho de 2012

Mia Couto (O Derradeiro Eclipse)


Justinho Salomão era ratazanado pela dúvida sem método. O homem sofria de ser marido, lhe pesavam as frias sombras da desconfiança. A mulher, Dona Acera, é linda de fazer crescer bocas, águas e noites. Devorado pelo ciúme, Justinho emagrecia a pontos de tutano. Lastimagro, carcomido, ele para se enxergar precisava procurar-se por todo o espelho. Justinho fazia comichão às pulgas. Um dia, o padre o avisou à saída da missa:

-  Seja prestável na atenção, Justinho: sua alma é como um fumo que não tem lugar onde caiba- .

Raios picassem o padre que nunca falava direito. O que o sacerdote sabia era do domínio incomum: Acera era demasiado mulher para esposa. Justinho suspeitava mais dos argumentos que dos factos. Seria a esposa mais desleal que um segredo? A resposta era sombra sem luz nem objeto. Em véspera de viagem, a suspeita do marido se agravava. Desta vez, um longo serviço de visitações o vai obrigar a geográfica ausência. Acera recebe, tristonha, a notícia:

-  Quanto tempo você me vai sozinhar?- 

Um mês. A mulher contorce o batom, abana as  mechas. Até uma lágrima lhe crocodileja a pálpebra. O marido ainda mais se aflige perante tanto inconsolo. Será verdade ou conveniência de fingimento? Quem, tão novo, guelra tão ensanguentada, pode se aguentar em guardos de fidelidade? Na véspera de partir, o marido se decidiu certificar em garantia de lealdade. Primeiro se dirigiu à Igreja e solicitou socorro do padre português. O religioso torce as mãos, reticente e, como era hábito, barateou filosofia:

-  Bem, não sei. Para cruzar as pernas é preciso que haja duas...

-  Duas quê?

-  Duas pernas, ora essa.

E prosseguiu desaguando, água em líquidos carreiros. Justinho esperava que o sacerdote o tranquilizasse. Lhe dissesse, por exemplo: vai em paz, você está bem casado, mais anelado que Saturno. Mas não, o padre ondulava a testa de suposições.

-  Não sei, não. Quem mais espreita não é o próprio sol?

-  Explique-se melhor, senhor padre.

-  Quer que seja mais claro? Me responda, então: onde o chão está mais limpo não é em casa de mortos?- 

Justinho não respondeu. Voltou costas e saiu da igreja. Ainda se afastava e a voz irada do padre se faz ouvir:

-  Já sei para onde vais, criaturazita. Vais ter com o feiticeiro! Mas verás o que os meus poderes, aliás os poderes divinos, irão fazer com esse bruxo tropical!- 

Um arrepio ainda atravessou Justinho. Mas ele não toldou passo no caminho para o feiticeiro e pediu que lhe assegurasse. Heresia bater nos ambos lados da porta? Se um mortal tem mais que um deus-pai não pode ter mais que uma crença?

-  Isso não posso. Vontade de mulher está acima dos meus poderes. Posso, sim, destinar castigo nos abusadores. 

-  E como?

-  Hei-de tratar sua casa.

E foi executado o tratamento: uma pequena cabaça à entrada da residência de madeira e zinco. Desrespeitoso que entrasse haveria de sofrer muitas consequências. O marido ainda tem acanhamento na consciência:

-  Eles... eles irão morrer?- 

O feiticeiro ri-se. O que iria suceder eram inchaços e gases, tudo inflando as entranhas do culposo intrometedor. No final dos serviços e depois de saldadas as contas, o feiticeiro hesita no momento da despedida:

-  Você, antes de mim, consultou o senhor padre? E ele o que disse de mim? 

Justinho subiu as omoplatas, fosse um assunto superior a suas competências. O feiticeiro virou costas e se afasta, enquanto comenta:

-  Esse padre ainda vai chorar como a galinha. Conhece a história da galinha que comeu o colar das missangas só para a outra galinha não usar?- 

Passaram-se dias e Justinho lá partiu. A viagem demora mais que ele pretende. Quando regressa, a mulher está à espera dele, à entrada. Vestido do gosto dele, penteada a presente, corpo todo na conveniência do marido. Até o botão cimeiro está desempregado, distraído sobre o decote. Acera, toda ela, está às ordens da saudade dele. Se engolfinham, enredando pernas nos suspiros, confundindo lábios e suores, vidas e corpos.

Cumpridos os compridos amores Justinho se estira na cama, consolado. Fecha os olhos, menino após o seio. Depois, olha para cima e é fulminado por uma visão: dois homens flutuam de encontro ao teto. Estão redondos, insuflados como balões.

-  Mulher quem é aquilo?

-  Que aquilo? 

Levanta-se em gesto de lamina e se espanta ainda mais ao reconhecer os desditosos ditos. E quem eram?  O padre e o feiticeiro. Esses mesmos a que Justinho confiara a guarda de sua esposa. Esses mesmos estavam ali pregados no teto.

-  Vocês, logo vocês?

-  Marido, está falar com quem? 

Gaguejando o marido aponta o teto. A mulher acredita que ele está em ataque de religiosidade, aspirando proximidades com o céu. Justinho insanou-se, epiléctico?

Acera ainda correu atrás do tresloucado marido. Mas o homem, de venta peluda, se eclipsou pelo escuro. Nem demorou: voltou com testemunhas. Fez introduzir uns tantos no quarto e apontou os autores do flagrante. Os outros ficaram, parvos da cara, sem nada vislumbrarem. Só Justinho via os voáveis amantes de sua mulher. E lhe explicam o padre e o feiticeiro não são possíveis ali Eles se ausentaram em breve excursão à cidade. Todos os viram partir, todos lhes acenaram à saída do machimbombo.

Os vizinhos lhe asseguram os bons comportamentos de Acera. Despedem-se, cuidando de o seguir, doente que estava o viajante. Dava até azar ter um desvairado daqueles no lugar. Mesmo o enfermeiro reformado lhe trouxe uns comprimidos de arrefecer o sangue. Justinho aceitou ficar estendido, a apurar descansos. Dava forma à cabeça, ajustava o pensamento à existência.

E todos e tanto insistiram que ele deixou de ver gente suspensa no tecto. Aos poucos se libertou das visões, manufaturas de suas ciumeiras. Noites há em que, de sobressalto, se levanta. Escuta risos. O padre e o feiticeiro se divertem à sua custa? Escuta melhor: não é gargalhada, é um pranto, um pedido de socorro. Incapazes de descer, os homens aprisionados no teto lhe pedem uma aguinha, migalha de entreteter fome e sede. Os pobres já são só ar e osso.

A voz de Acera o traz à realidade: - venha marido, se deite. Se acalme. Não quer dormir comigo? Durma em mim, então. Não me quer atravessar? Me use de travesseiro.  Isso, descanse, meu amor- . E o tempo passava, compondo semana e mais semana. Justinho não melhora. Mais e mais escuta as lamentações dos dois que agonizam dentro das suas paredes.

Até que, uma noite, ele acordou estrebuchando. Não eram já os gemidos dos moribundos mas uma estrangeira calmaria. Olhou por entre o escuro e viu Acera vagueando, o pé pedindo licença ao silêncio. O marido nem se mexeu, desejoso de decifrar a misteriosa deambulação da mulher. Então ele viu que Acera subia para um banco e, com um cordel, amarrava o padre e o feiticeiro pela cintura. E assim, atados como balões, ela os transportou para fora de casa. No quintal, Acera limpou no rosto do padre uma lágrima e beijou a face do feiticeiro. Depois, largou os cordéis e os dois insufláveis começaram a subir pelos ares, atravessando nuvens e extinguindo-se no céu e nas pupilas espantadas de Justinho Salomão.

Nessa noite, os habitantes da vila assistiram à lua se obscurecer naquilo que viria a ser um derradeiro e permanente eclipse.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Mia Couto (O Viúvo)


O arrepio nos mostra como a febre se parece com o frio. E é com arrepio que lembro o goês Jesuzinho da Graça, nascido e decrescido em Goa, ainda em tempos de Portugal. Veio com a família para Moçambique nos meados da meninice. Como aos outros goeses lhe perjuravam de caneco. Ele a si mesmo se chamava de Indo-_Português. Lusitano praticante, se desempenhou até à Independência como chefe dos serviços funerários da Câmara Municipal. Seu obscuro gabinete: a vida se poupava a ali entrar. O goês era antecamarário da Morte? Só uma graça ele se permitia. À saída do escritório, o funcionário se virava para os restantes e fatalmente repetia:

-  Ram-ram!- 

Há-de morrer nesse ramerrão, comentavam os colegas. E reprovavam com a cabeça: o caneco não mata nem diz acta. Jesuzinho Graça se ria, no desentendimento. "Ram-ram" era a despedida em concanim, língua de seus antepassados indianos.

Vivia nesse constante apagar-se de si, discreto como abraço da trepadeira. Para ele o simples existir já era abusiva indiscrição. O caneco molhava o dedo no tempo  e ia virando as páginas, com método e sem ruído. A unha do mindinho se espichara tanto, que o dedo se tornara simples acessório.

-  A unha? É para virar a papelada- , respondia ele.

Aquela unha era o - mouse-  dos nossos actuais computadores. O dito apêndice era motivo de zanga conjugal. A esposa o advertia:

-- Com essa garra você nem pense em me festejar!

Jesuzinho da Graça resistia a todos os protestos:

-  Pela unha morre o lagarto!- 

Em tudo o resto era singelo e pardo como selo fiscal. Misantrôpego, fleumaníaco, com vergonha até de pedir licenças, Jesuzinho assistiu, de coração encolhido, à turbulenta chegada da História. A Independência despontou, a bandeira da nação se cravou na alegria de muitos e nos temores do caneco. Aterrado, ele se sentou nas proletárias reuniões onde anunciaram a operação para "escangalhar o Estado". A si mesmo se perguntava a justiça se faz por mão de injustos? Impávido e longínquo, Jesuzinho atendeu à sua despromoção, à mudança de gabinete. Todavia, o Oriente se limitava à aparência. Por dentro, se assustava com os súbitos, os súditos e os ditos da Revolução.

No silêncio da repartição ele ouvia as louças do mundo se estilhaçando. Entrava em casa e o mesmo malvoroço o perseguia. Ainda lograva pestanejar um sorriso quando os discursos anunciavam: "a Vitória é Certa!". Tocava o ombro da mulher e dizia:

-- Vê como você é certificada, Vitorinha?

Se Jesuzinho era sombra, a esposa Vitória era crepúsculo dessa sombra. No terceiro aniversário da Independência, no preciso momento em que clamavam os jargões revolucionários, Vitória ficou certa para sempre. A goesa fechou nos olhos o olhar. Sob a parede do crucifixo, o funcionário a cobriu de lençol e rezas. Findava ali a única família, o único mundo de Jesuzinho da Graça. 

Nos seguintes meses, o viúvo manteve o comportamento. Jesuzinho era como a formiga que nunca descarreira? _única diferença: agora se demorava entre o ali e o acolá. E com o demorar da solidão ele foi entrando na bebida. O jovem empregado doméstico lhe perguntava a medo:

-  O senhor não tem parentesco com ninguém?- 

Jesuzinho apontava a garrafa de aguardente. Aquele era o seu parente por via do pai. Depois, se lembrava e apontava o crucifixo na parede.

-  Esse outro, ali na parede, é via da mãe.

De improvável a vida é uma goteira pingando ao avesso. Aos poucos, o goês deu sinais de maior desarranjo: as horas se perdiam dele. Funcionário do zelo, eterno cumpridor de regulamento, deixou de espremer o mata-borrão sobre os escritos de sua lavra. Saudades de um tempo em que o mundo era dócil, autenticável em 25 linhas?

Mas mesmo em suas inatitudes ele mantinha aprumo. Terças-feiras era dia de bebedeira, sua única combinação com o tempo. Ia para o bar, transitava lentamente para dentro do copo, espumava as agonias. Chegava tarde a casa, desalinhado mas sempre cuidando do fato branco. Se postava no canapé, acendia o cigarro que diria a falecida? e puxava o cinzeiro de pé alto, passando as mãos pelo ébano torneado. Trançava ainda o cabelo de Vitória? Depois, fazia estalar a unha nas unhas e chamava:

-  Piquinino: ande a desapertar a gravata .

O empregado acorria a lhe aliviar a garganta. Lhe despescoçava a camisa e entornava uns pós-de-talco sobre a camisola interior. Desfeito o nó e já ele estava disposto ao sono. Serviço do moço era ficar vigiando o descanso do patrão.

Aqueles sonos eram sobressalteados. Passava uma frestinha de tempo e o caneco gritava pela falecida. Sua mão trêmula apanhava o telefone, ligava para os céus.  Era então que estreiava a mais nobre função de Piquinino: fingir-se dela, imitar voz e suspiros da extinta.

-  Vucê qui está pagar chamada, Vitorinha. Aí, no céu, tudo sai mais barato.

O empregadinho se esforçava em aflautinar a voz, copiando os esganiços de Vitorinha. Acabadas as conversas, o empregado copiava os modos da antiga senhora e brilhantinava os cabelos do patrão, acertando a risca em diagonal no cabelo.

Todavia e à medida do tempo, o moço se foi tomando de terrores. Ele se interrogava: imitar mortos? Brincar assim com espíritos só podia trazer castigo. Foi consultar o pai, pedir vantagem de um conselho. O velhote concordou: deixe o homem, fuja disso. E foi desenrolando sabedorias: quantos lados tem a terra para o camaleão? Os mortos sabe-se lá para quem estão olhando? O outro mundo é muitíssimo infinito: não há falecido que não seja da nossa família.

E o miúdo regressou decidido a nunca mais se prestar a aparições. Terça-feira chegou e o patrão, nessa noite, não saiu a rondar os bares. Parecia abatido, doente. Ficou deitado no sofá da sala, olhando para muito nada. Chamou o empregadinho e lhe pediu que se transvestisse de Vitória. O miúdo nem respondeu. Surpreso, Jesuzinho ficou a papagaiar baixinho. E se passaram momentos. Até que o jovem serviçal percebeu que o patrão chorava. Se debruçou sobre ele e viu que ladainhava o mesmo de sempre:

-  Vitorinha!- 

O empregado ficou estático. O patrão que implorasse que ele não avançaria um pé. O caneco, afinal, estava bêbado. O hálito não deixava dúvidas. Mas como, se não lhe vira a beber? Tivesse ou não emborcado, o certo é que ele transbordava babas e suspiros. Estava nesse devaneio quando murmurou as mais estranhas palavras: queria encontrar a esposa já devidamente desunhado. Entregando o braço no colo do empregado, implorou: 

-  Me corte a unha, Piquinino!- 

No dia seguinte, encontraram o empregado, imóvel junto à poltrona do patrão. O que o moço falou foi para ninguém deitar crédito. O seguinte: mal começou a cortar o rente da unha, o patrão se desvaneceu, como fumo de incenso. E a unha está onde, pá? O miúdo debruçou-se sobre o soalho e levantou o que, por instante, pareceu ser uma desflorida pétala. Sorriu, lembrando o patrão. E exibiu a derradeira extremidade da sua humanidade.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Amosse Mucavele (Apresentação)

Nina Rizzi

Á Nina Rizzi

Ando PENSATIVO
100 MOTIVO , dissocio-me da alma do gato de que me SIRVO
comovido pelo baile das mascarás que dançam na MESA ,onde o espirito do felino dita a sentença.
movo , o PRATO,
do lado da cozinha assisto o PARTO.
da carne que coze na OFICINA, e da panela testemunho a CHACINA dos ingredientes que jazem no pranto do PRATO do dia.
pego no garfo, afio as espadas do apetite com o semblante do meu líame (amor e angústia)
retiro-me da MESA , rodopio pela CASA, caminho em direcção a capoeira do meu lobo
e de seguida
penso ao alto no CRAVO
ACTIVO o amor nos olhos da rosa antes de ficar BRAVO
ponho o meu pensamento em pé
cavo bem ao fundo o sentimento que torna VIVO
este amor que o passáro canta ainda dentro do OVO
sento debaixo da árvore
TIRO o chulé do cansaço que cobre a alvorada do homem NOVO
ATIRO os silêncios costurados na primavera dos frutos que se embebedam no vôo do corvo
aos POUCOS à COPOS alcanço os TOPOS de um sonho erguido nos TRÓPICOS
e por fim activo, de forma radiante o meu uivo nos ouvidos do Globo:
eu não sou nada , sou apenas um sonhador.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

sábado, 21 de abril de 2012

Mia Couto (A Menina sem Palavra)


(- segunda estória para a Rita- )

A menina não palavreava. Nenhuma vogal lhe saía, seus lábios se ocupavam só em sons que não somavam dois nem quatro. Era uma língua só dela, um dialeto pessoal e intransmitivel? Por muito que se aplicassem, os pais não conseguiam percepção da menina. Quando lembrava as palavras ela esquecia o pensamento. Quando construía o raciocínio perdia o idioma. Não é que fosse muda. Falava em língua que nem há nesta atual humanidade. Havia quem pensasse que ela cantasse. Que se diga, sua voz era bela de encantar. Mesmo sem entender nada as pessoas ficavam presas na entonação. E era tão tocante que havia sempre quem chorasse.

Seu pai muito lhe dedicava afeição e aflição. Uma noite lhe apertou as mãozinhas e implorou, certo que falava sozinho:

- Fala comigo, filha!-

Os olhos dele deslizaram. A menina beijou a lágrima. Gostoseou aquela água salgada e disse:

- mar- ...

O pai espantou-se de boca e orelha. Ela falara? Deu um pulo e sacudiu os ombros da filha. - _Vês, tu falas, ela fala, ela fala!- Gritava para que se ouvisse. - _Disse mar, ela disse mar- , repetia o pai pelos aposentos. Acorreram os familiares e se debruçaram sobre ela. Mas mais nenhum som entendível se anunciou.

O pai não se conformou. Pensou e repensou e elabolou um plano. Levou a filha para onde havia mar e mar depois do mar. Se havia sido a única palavra que ela articulara em toda a sua vida seria, então, no mar que se descortinaria a razão da inabilidade.

A menina chegou àquela azulação e seu peito se definhou. Sentou-se na areia, joelhos interferindo na paisagem. E lágrimas interferindo nos joelhos. O mundo que ela pretendera infinito era, afinal, pequeno? Ali ficou simulando pedra, sem som nem tom. O pai pedia que ela voltasse, era preciso regressarem, o mar subia em ameaça.

- Venha, minha filha!-

Mas a miúda estava tão imóvel que nem se dizia parada. Parecia a águia que nem sobe nem desce: simplesmente, se perde do chão. Toda a terra entra no olho da águia. E a retina da ave se converte no mais vasto céu. O pai se admirava, feito tonto: por que razão minha filha me faz recordar a águia?

- Vamos filha! Senão as ondas nos vão engolir- .

O pai rodopiava em seu redor, se culpando do estado da menina. Dançou, cantou, pulou. Tudo para a distrair. Depois, decidiu as vias do facto: meteu mãos nas axilas dela e puxou-a. Mas peso tão toneloso jamais se viu. A miúda ganhara raiz, afloração de rocha?

Desistido e cansado, se sentou ao lado dela. Quem sabe cala, quem não sabe fica calado? O mar enchia a noite de silêncios, as ondas pareciam já se enrolar no peito assustado do homem. Foi quando lhe ocorreu: sua filha só podia ser salva por uma história! E logo ali lhe inventou uma, assim:

Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como um baloa.

Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebentamundo. A lua se cintilhaçou em mil estrelinhações. O mar se encrispou, o barco se afundou, engolido num abismo. A praia se cobriu de prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário de todas as direcções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares. Olhou o horizonte e chamou:

- Pai!-

Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se aguava? E foi assim. Essa foi uma vez.

Chegado a este ponto, o pai perdeu voz e se calou. A história tinha perdido fio e meada dentro da sua cabeça. Ou seria o frio da água já cobrindo os pés dele, as pernas de sua filha? E ele, em desespero:

- Agora, é que nunca- .

A menina, nesse repente, se ergueu e avançou por dentro das ondas. O pai a seguiu, temedroso. Viu a filha apontar o mar. Então ele vislumbrou, em toda extensão do oceano, uma fenda profunda. O pai se espantou com aquela inesperada fratura, espelho fantástico da história que ele acabara de inventar. Um medo fundo lhe estranhou as entranhas. Seria naquele abismo que eles ambos se escoariam?

- Filha, venha para trás. Se atrase, filha, por favor- ...

Ao invés de recuar a menina se adentrou mais no mar. Depois, parou e passou a mão pela água. A ferida líquida se fechou, instantânea. E o mar se refez, um. A menina voltou atrás, pegou na mão do pai e o conduziu de rumo a casa. No cimo, a lua se recompunha.

- Viu, pai? Eu acabei a sua história!-

E os dois, enluarados, se extinguiram no quarto de onde nunca haviam saído.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Mia Couto (A Avezinha da Lua)


(- primeira estória para a Rita- )

Minha filha tem um adormecer custoso. Ninguém sabe os medos que o sono acorda nela. Cada noite sou chamado a pai e invento-lhe um embalo. Desse encargo me saio sempre mal. Já vou pontuando fim na história quando ela me pede mais:

- E depois?-

O que Rita quer é que o mundo inteiro seja adormecido. E ela sempre argumenta um sonho de encontro ao sono: quer ser lua. A menina quer luarejar e, os dois, faz contarmo-nos assim, eu terra, ela lua. As tradições moçambicanas ainda lhe aumentam o namoro lunar. A menina ouve, em plena verdade da rua: "- olha os cornos da lua estão para baixo: vai cair a chuva que a lua guarda na barriga- ".

Me deu, um destes dias, a ideia de lhe contar uma estorinha para fazer pousar o sonho dela. E desencorajar seus infindáveis "e depois". Lhe inventei a estória que agora vos conto.

Era uma avezinha que sonhava em seu poleirinho. Olhava o luar e fazia subir fantasias pelo céu. Seu sonho se expandia:

- Hei-de pousar lá, na lua- .

Os outros lhe chamavam à térrea realidade. Mas o passarinho devaneava, insistente: vou subir lá, mais acima que os firmamentos. Seus colegas de galho se riram: aquilo não passava de meninice. Todos sabiam: não havia voo que bastasse para vencer aquela distancia. Mas o passarinho sonhador não se compadecia. Ele queria enluarar-se. Pelo que o tudo ficava nada.

Certa noite, de lua inteira, ele se lançou nos céus, cheio de sonho. E voou, voou, voou. Perdeu conta do tempo. Em certo momento ele não sabia se subia, se tombava. Seus sentidos se enrolaram uns nos outros. Desmaiou? Ou sonhou que sonhava? Certo é que seu corpo foi sacudido pelo embute de um outro corpo.

E pousou naquela terra da lua, imensa savana pétrea. A ave contemplou aquela extensão de luz e ficou esperando a noite para adormecer. Mas noite nenhuma chegou. Na lua não faz dia nem noite. É sempre luz. E o pássaro cansado de sua vigília quis voltar à terra. Bateu as asas mas não viu seu corpo se suspender. As asas se tinham convertido em luar. Com o bico desalisou as penas. Mas penas já nem eram: agora, simples reflexos, rebrilhos de um sol coado. O pássaro lançou seu grito, esses que deflagrava antes de se erguer nos céus. Mas sua voz ficou na intenção. A ave estava emudecida. Porque na lua o céu é quase pouco. E sem céu não existe canto.

Triste, ela chorou. Mas as lágrimas não escorreram. Ficaram pedrinhas na beirada da pálpebra, cristais de prata. A avezinha estava cativa da lua, aprisionada em seu próprio sonho. Foi então que ela escutou uma voz feita de ecos. Era a própria carne da lua falando:

- Eu sonhei que tu vinhas cantar-me.

- E porquê me sonhaste?

- Porque aqui não há voz vivente.

- Eu também sonhei que haveria de pousar em ti.

- Eu sei. Agora vais cantar em luar. Eu sonhei assim e nenhum sonho é mais forte que o meu- .

É assim que ainda hoje se vê, lá na prata da lua, a pupila estrelinhada do passarinho sonhador. E nenhuma criatura, a não ser a noite, escuta o canto da avezinha enluarada. Sobre as primeiras folhas da madrugada, tombam gotas de cacimbo. São lagriminhas do pássaro que sonhou pousar na lua.

- E depois, pai?-

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Mia Couto (O Último Voo do Tucano)


Ela estava grávida, em meio de gestação. Faltavam dois meses para ela se proceder a fonte. O que fazia, nessa demora? Deitava-se de ventre para baixo e ficava ali, imóvel, quase se arriscando a coisa. Que fazia ela assim, barriga na barriga do mundo?

- Ensino o futuro menino a ser da terra, estou-lhe a dar pés de longe- .

Ela queria a viagem para seu filho. O pai sorria, por desculpa aos deuses. E ficava a coar o tempo, fazendo promessas logo-logo arrependidas: "Amanhã ou quem sabe depois?" Desentretanto, nada acontecia.

Aconteceu sim, foi numa noite farinhada de estrelas. O pai estava sentado sob a palmeira, a ver o mundo perder peso. Saboreava a carícia da preguiça dominical. Domingo não é um dia. É uma ausência de dia.

A mulher se chegou, em gesto fingido de segurar barriga. Sempre ela tivera os rins ruins. Assim, de encontro ao poente, a mulher parecia dobra de cobra, flor à espera de vaso.

- Mando, você conhece a maneira dos tucanos ninharem?

- Conheço, com certeza.

- Porque não fazemos igual como eles?-

O homem quase caiu das costas. Mas não reagiu, concordado com o silêncio. Não é só a barriga: cabeça dela também inchou, pensou. Mas segurou a palavra e com ela se acordou.

- Começamos quando?-

Nessa noite, ele contou as estrelas. A angústia lhe enxotava o sono. Fazer como os tucanos? Somos aves, agora? Como recusar, porém, sem chamar desgraças? Assim, no dia seguinte, ele deu início à loucura. Começou a fechar a casa com paus, matopes, água e areias. A casa foi ficando com mais paredes que lados. Tapadas foram as portas, fechadas as janelas. Deixou só uma pequena abertura e voltou a juntar-se à esposa.

A mulher se sentou no banquinho de mafurreira e deixou que o homem lhe cortasse os cabelos e rapasse todos pêlos do corpo. Imitavam a tucana que se depena para construir o ninho.

Depois ela se despiu, libertou-se das vestes e atirou as roupas no obscuro da casa. E se despediram, fosse tudo aquilo nem vivido, simples fantasia. A mulher entrou na escura casa e ficou de costas. O marido maticou a abertura, enconchando a casa. Mas não tapou tudo: ficou um buraco onde mal metia o braço.

Fechada a obra, ele recuou uns breves passos para contemplar a casa. Aquilo, agora, mais se parecia um imbondeiro. A grávida estava aprisionada, na inteira dependência dele. Morresse o homem e ela definharia, desnutrida, desbebida. Os seus destinos se igualavam ao dos tucanos em momento de ninhação.

Nos tempos que seguiram, o homem cumpriu seu mandato: matutinava para trazer comeres e beberes. Duas vezes ao dia ele chegava e assobiava em jeito de pássaro. Ela acenava, apenas a mão dela se arriscava à luz.

- Não tem medo que eu fique por lás, nunca mais voltado?

- Você, marido, sempre há-de voltar. Você tem doença da água: mesmo da nuvem sempre regressa- .

E assim se sucederam meses. Até que, uma vez, ela lhe disse: - não venha mais!- Ele sabia que ela estava anunciar o parto.

- Você quer que eu fique perto?

- Não, espere longe- .

Ele longe não foi. Ficou atento, próximo, caso a necessidade. Esperou um dia, dois, muitos. Nada, nem um choro a confirmar o nascimento. Até que se determinou fazer valer sua dúvida. Chamou por ela, quase a medo. Tivessem morrido mãe e filho, ao desumbigarem-se. Já ele se decidia a arrombar o esconderijo quando de dentro do escuro se vislumbrou o aceno de um pano. A mulher estava viva. Logo, acorreu ele ansioso:

- A criança?

- A criança, o quê?-

Ele não soube juntar mais pergunta. Quem mais se engasga é quem não come. A mulher, simples, disse que o menino estava que até Deus se haveria de espantar. Que ela precisava ficar ainda uns tempos assim, no choco, na quenteação do ninho para dar despacho ao crescer da vida.

Nessa primeira semana, ele ficou no quintal, em estado de nervos. É que não escutava nem chorinho, assobio de fome do menino. E se passavam semanas, lentas e oleosas.

- lhe peço, mulher. Me deixe ao menos ver o menino nosso- .

Ela então fez sair as mãos em concha pelo pequeno buraco. Só se via o enxovalhado enxoval.

- Segure aqui, mando. Cuidado- .

Ele, embevecido, aceitou o embrulho das roupas.

- Posso espreitar, ao menos?

- Não, ainda não se pode ver- .

E recolheu a dádiva, se deleitando com esse consolo. Ficou experimentando a ausência de peso daquele volume. Tão leve era o objecto que não havia força que o suportasse. O embrulho lhe tombou das mãos e se espalmilhou na areia. Foi quando, de dentro dos panos, se soltou um pássaro, muito verdadeiro. Levantou voo, desajeitoso, aos encontrões com nada.

O homem ficou a ver as asas se longeando, voadeiras. Depois, ergueu-se e se arremessou contra a parede da casa. Tombaram paus, desabaram matopes, despertaram poeiras. Agachada num canto estava a mulher, de ventre liso. Junto dela a capulana ainda guardava sangues. Areias revolvidas mostravam que ela já escavara o chão, encerrando a cerimónia. Ele se ajoelhou e acariciou a terra.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Mia Couto (Lágrimas para Irmãos Siameses)


Era uma dois irmãos siameses, nascidos um com o braço no braço do outro fundido. Se pareciam como uma folha e a seguinte. De nomes como assim: Osório e Irrisório. Cresceram os dois, um em consequência do outro. Recíprocos, simultâneos e simétricos. Ainda menininhos, o doutor avisou a mãe:

- Podemos separá-los agora, este é o momento conveniente- .

Separá-los. Porquê? Se Deus os queria carne com osso? Se davam bem, amiguíssimos, vizinhos, repartindo o tudo e o nada. Os pais, remediados, compraram um único relógio que ambos partilhavam no comum antebraço. Ao apertar a corrente do relógio, a mãe sentenciou:

- Assim, o tempo nunca lhes vai dividir- .

– O tempo, esse mesmo, foi descaiando espelhos e os siameses começaram a engrossar a vista em saia e peito. Osório, sobretudo, era mais espevitado. Irrisório era mais metido em si, olhos caseiros. Osório, às duas por muitas, se apaixonou por Marineusa. Se adonzelou com ela, esfregando-se nela até gastar o umbigo. Havia, óbvio, o problema do mano que estava ali, mesmo ao braço de semear. Osório lhe pedia que fechasse olho, tapasse ouvido, alheasse sentido. Irrisório tranquilizava:

- Sou homem correto, descanse mano.

Irrisório, por voz de promessa, sossegava o irmão. O pai, sabedor da vida, sugeriu um encontro familiar. E disse assim:

- Vão chegar mulheres e amores. Melhor é vocês separarem-se!

Mas eles negaram. Eram fiéis, como a canção: juntos para sempre. O pai manteve o mandamento. Porém, foi enfraquecendo perante a insistência dos gêmeos:

- Mas, pai, nós, assim alicateados, saímos baratos a Deus: precisamos só de um anjo da guarda.

E o outro ainda reforçava:

- Como podemos separar? Se cada um da gente só tem uma mão?

- É. Só os dois é que somos um.

Todos riram, arrumado o assunto. Antes de se retirar, o pai ainda sacudiu uma resignação:

- Vão ver, o amor junta, o amor separa.

E mais nada. Até que numa noite tempestosa Marineusa dormiu no mesmo leito dos irmãos. Irrisório se insentou, virado para a oposta parede. Fora, trovejava, chovia a rios. A arribombação escondia os gemidos dos amantes. Osório se estava combustando na escalada dos prazeres quando, repente, acreditou ver um braço alheio apalpando a traseira, da moça. Foi como relâmpago, dentro e fora dele. Visão incerteira mas que lhe rasgou o pensamento. Irrisório se aproveitava? A miúda, magoada, pranteou. Osório queria tudo a pratos limpos:

- Explique-me, Marineusa!-

Ela levantou o braço pedindo pausa. E recolheu uma lágrima na ponta do dedo. Fez sinal para que ele espreitasse a gotinha de tristeza. E Osório, maravilhado, viu surgir seu rosto na lágrima de sua amada.

- Sou eu?

- Veja, essa é prova, a verdade saída do meu coração.

Na seguinte madrugada, a moça já tinha saído, Osório ainda foi assaltado por uma tardia suspeita. Aquele braço, em meio de relâmpago? E falou para o irmão:

- Cuidado, mano! Você desce da cama e entra na cova!

- Está com ciúme, Osório?

- Ciúme, eu?

- Ou está com dores no cotovelo?

- Eu só digo: veja essa sua mão, seu mãojerico.

Acabaram brincando, amolecidos. E ficou-se sem dito nem feito. O ciúme, porem, cismava em garimpeirar o peito do irmão apaixonado.

Um dia, aproveitando o sono de Irrisório, Osório perguntou a Marineusa:

- Você, afinal: de quem gosta mais d?

Inesperadamente, a miúda desabou em choro. Falava em lágrimas. Osório se debruçava sobre o rosto dela a ver se entendia palavra. Mas nada. A namorada se inexplicava.

- Quê? Você se entrega com ele?

Ela adensou o choro. Irrisório pareceu querer despertar.

- Dorme, pá!-

Osório punha e contrapunha. Como Marineusa não desse acordo com as falas ele exigiu:

- Mostre-me uma lágrima!

Ela hesitou. O homem gritou e Marineusa ainda recusou. Mas ele ameaçou e ela acedeu, gota tremeluzindo no estremecente dedo. Osório espreitou mas virou o rosto, fulminado pela visão do irmão bailando na película da lágrima. Com voz rouca, fechou o momento:

- Você, nunca mais me compareça!

Mas ela, passadas três semanas, voltou a aparecer. Abriu a porta e ficou ali parada, olhos térreos. O coração de Osório trepidou, ansioso. A moça correu em direção a ele. Osório levantou seu único braço independente, pronto a sanar e perdoar. O amoroso volta sempre ao local do amor? Mas eis que Marineusa se enviesa e se atira no braço de Irrisório. E os dois se beijaram, as bocas emigraram deles e molharam o mundo em volta. E se trocaram em ternuras e suspiros. Osório descabia em si. Virou o rosto e ferveu sem água, vinagrada a vista, salgado o sangue.

Nessa mesma noite, os dois irmãos, sozinhos, descascavam o silêncio. Osório quebrou o frio:

- Amanhã, vou-me separar de você.

- Vai cortar o braço?

- Sim, vamos direitinhos no Hospital.

- Esse braço é mais meu, não se corta.

E discutiram. Que parte, que músculo, que osso era de cada um? Os ânimos esquentaram a pontos de pancadarias. Passados minutos, os dois acabaram cheios de hematomas, todos traupartidos. Amarrados um no outro, os irmãos não se podiam desviar, nem furtar aos socos e pontapés. E adormeceram, de cansaço, uma mão segurando a outra, por precaução.

Manhã cedo, recomeçaram a briga. Um puxava o outro para o hospital. O outro gritava que não, que nunca, que nem que ele passasse por cima do cadáver dos dois. E mais socos, pontapés. A mãe gritava pelos vizinhos, ai que meus filhos se matam, um mais o outro! pai avançou, peito arrojado:

- Deixem que eu separo-os!

Rápido, corrigiu o verbo. – _Quer dizer, separo-os parcialmente, isto é, separo aquela parte de lá. Enquanto acertava a frase, o pai se deixou ficar em debate com os múltiplos vizinhos.

No meio da balbúrdia, eis que aparece Marineusa. Fez-se um silêncio, abriu-se passagem entre a multidão. Avançou até aos gêmeos e levantou a mão solicitando um tempo. Sem que se percebesse razão, ela desatou a chorar. Recolheu as lágrimas na concha da mão e chamou os irmãos para que espreitassem. Então, eles viram um cordão de gotas líquidas, entreligadas como um colar. Eram lágrimas siamesas. E em cada gota, alternadamente, surgia o rosto de Osório e de Irrisório. Ela tomou aquele longo rosário de gotas e o enlaçou em redor dos dois manos. Beijou-os na face, levantou-se e saiu entre filas de muito espanto.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Mia Couto (A Filha da Solidão)


Na vida tudo chega de súbito. O resto, o que desperta tranquilo, é aquilo que, sem darmos conta, já tinha acontecido. Uns deixam o acontecimento emergir, sem medo. Esses são os vivos. Os outros se vão adiando. Sorte a destes últimos se vão a tempo de ressuscitar antes de morrerem.

Filha dos cantineiros portugueses, Meninita sempre foi moça comedida. Na penumbra da loja, ela atendia os negros como se fossem sombras de outros, reais viventes. A miúda se ia fazendo ao corpo -- o fruto se adoçava em polpa açucarosa. A sede se inventa é para a miragem de águas. Pois nas redondezas não viviam outros brancos, únicos a quem ela entregaria seus açúcares.

A família Pacheco se pioneirara na aridez de Shiperapera, onde mesmo os negros originários escasseavam. Por que escolhera tão longínguas paragens?

- Aqui, por trás destas altas montanhas, nem Deus me pode estreitar- ...

Fala do português para enganar perguntas. Ninguém entende por que o Pacheco se internara tanto nas dunas desérticas de Sofala, condenando a família a não conviver mais com gente de igual raça. Dona Esmeralda, a esposa, se angustiava vendo o crescer da filha. A que homem se destinaria ela, naquele afastamento da sua semelhante humanidade? Deram-lhe o nome de Meninita para a ancorar no tempo. Mas a filha se inevitalizava. Na sombra imutável do balcão, ela desfolhava uma mil vezes repetida fotonovela. Sonhava aos quadradinhos...

- Não espere consolo, filha: aqui só há pretalhada- .

A menina se consolava fechada no quarto, a revista da fotonovela entre os lençóis. Suas mãos se desprivatizavam em carícias de outro. Mas esse apagar de lume lhe trazia um novo e mais aguçado tormento. Quando, depois de suspirada e transpirada, ela se abandonava no leito, uma funda tristeza lhe pousava. Era como nascesse em si uma alma já morta. Tristeza igual só essas mães que dão à luz um menino inanimado. É justo poder-se assim visitar os paraísos e nos expulsarem? Lhe custaram tanto essas despedidas de si que passou a evitar seu próprio corpo. Vale a pena é trocar carinhos, receber as salivas do ventre de um outro. Mas outros ali não havia para a donzela Meninita.

- Acha que essa nossa filha se vai meter com um preto?-

O pai se ria, cuspindo gargalhada. O riso dele tinha razão: a casa dos Pachecos se abrangera de preconceito. Ali se dizia no singular: - o preto- . Os outros, de outra cor, se reduziam a uma palavra, soprada entre a maxila do medo e a mandíbula do desprezo. Meninita cumpria os ensinamentos da raça. Recebia os clientes, sem sequer erguer a cabeça:

- Qué quer?-

Massoco, único empregado, achava graça aos modos desdenhosos da pequena patroa. Ele era jovem como ela, carregava sacos e caixotes, conduzia a carroça dali para depois do horizonte.

As melancolias da Meninita cresciam. A revista já esfarelava, de tanto desfolhada. No dia em que fez dezoito, Meninita lançou fogo sobre si mesma. Se imolou. Mas não desses fogos comuns de combustão visível. Ardeu em invisíveis chamas, só ela sofria tais ardências. Ficou ardendo em demorada consecução. A febre lhe autorizava o delírio.

Veio a mãe, lhe abanou uma frescura. Veio o pai, lhe aplicou conselho logo seguido de ameaças. Tudo irresultou. Esse fogo se apagava era em corpo de macho, em água de duplos suores e carícias. A mãe lhe corrigia a ilusão da expectativa:

- Minha filha, não deixe o corpo lhe nascer antes do coração- .

Adoentada, a moça deixou de atender ao balcão. Substituiu-a o moço Massoco, cresceram simpatias na loja. Meninita se internou em seu quarto, emigrada da vida, exilada dos outros. Massoco, ao fim do dia, se apresentava, em solene tristeza. Chegou a pedir:

- Peço licença ir lá ver a patroinha- ...

Um dia chegou a Shiperapera uma veterinária do Ministério. Vinha inspeccionar o gado dos indígenas. Quando o casal soube da notícia decidiu ocultar a novidade da filha. Ela já andava tão alterada! O Pacheco foi à estrada, esperar a compatriota. Levou cerimónias e pastéis de peixe-seco. Acompanhou a doutora a uma casa de hóspedes que a administração em tempos construíra. Já deitados, os Pachecos trocaram as esperadas más-línguas:

- Pô, a gaja parece um homem!-

E riram-se. Dona Esmeralda se satisfazia pela visitante ser tão pouco mulher. Não fosse o marido se devanear. Numa dessas noites, Meninita sofreu de um acesso grave. O casal, em desespero, decidiu chamar a médica veterinária. O pai acorreu à casa de hóspedes e urgiu comparência à veterinária. No caminho, lhe explicou a condição da filha.

Chegados à cantina, dirigem-se em silêncio profissional para os aposentos da perturbada jovem. Em delírio, a menina confunde a veterinária com um homem. Atira-se-lhe aos braços, beijando-lhe os lábios com sofreguidão. Os pais se embaraçam e acorram a separar. A veterinária recompõe-se, ajeitando imaginários cabelos sobre a face. Meninita com sorriso sonhador parece agora ter adormecido.

Pacheco volta a acompanhar a visitante. Vão calados, todo o tempo da viagem. Na despedida, a veterinária, rompendo o silêncio, expõe o seu plano:

- Eu vou fazer de homem. Me disfarço- .

Pacheco não sabia o que dizer. A veterinária se explica: o cantineiro lhe emprestaria roupas velhas e ela se apresentaria, disfarçada de namorado caído dos céus. O português acenou maquinalmente e voltou a casa apressado em pôr a esposa a par do estranho plano. Dona Esmeralda riscou no lábio superior a curva da dúvida. Mas que se fizesse, a bem da pequena. E se benzeu.

Nas noites seguintes, a veterinária aparecia com seu disfarce. Subia ao quarto de Meninita e lá se demorava. Dona Esmeralda, na sala, chorava em surdina. Pacheco bebia, devagaroso. Passadas horas a veterinária descia, ajeitando no rosto uma inexistente madeixa.

Fosse pela qual razão, a verdade é que Meninita arrebitava. A veterinária, dias depois, se retirou, nuvem naquela estrada onde mesmo a poeira rareava. Meninita, na manhã seguinte, desceu à loja, a velha revista na mão. Sentou-se no balcão e inquiriu a sombra do outro lado:

- Qué quer?-

Massoco riu-se, abanando a cabeça. E a vida se retomou, em novelo que procura o fio. Até que um dia, Dona Esmeralda despertou o marido, sacudindo-o:

- Nossa filha está grávida, Manuel!-

Choveram insultos, improperiou-se. Os vidros das janelas se estilhaçaram, tais as raivas do Pacheco: - eu mato o cabrão da doutora!- A mulher implorou: agora, sim, era assunto de ir à vila. O marido que quebrasse seu juramento e superasse as montanhas de volta ao mundo. De noite, o casal se fez à viagem, recomendando à filha mil cuidados e outras tantas trancas. E sumiram-se no escuro.

Na janela, Meninita ainda espreitou a poeira da estrada iluminada pela lua. Subiu ao quarto, abriu a revista das velhas fotos. Vencida pelo sono se ajeitou no colchão em rodilha de lençóis. Antes de adormecer, apertou a mão negra que despontava no branco das roupas.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

domingo, 8 de abril de 2012

Mia Couto (A Menina, as Aves e o Sangue)


Aconteceu, certa vez, uma menina a quem o coração batia só de quando em enquantos. A mãe sabia que o sangue estava parado pelo roxo dos lábios, palidez nas unhas. Se o coração estancava por demasia de tempo a menina começava a esfriar e se cansava muito. A mãe, então, se afligia: rola o dedo e deixava a unha intacta. Até que o peito da filha voltava a dar sinal:

- Mãe, venha ouvir: está a bater!-

A mãe acorria, debruçando a orelha sobre o peito estreito que soletrava pulsação. E pareciam, as duas, presenciando pingo de água em pleno deserto. Depois, o sangue dela voltava a calar, resina empurrando a arrastosa vida.

Até que, certa noite, a mulher ganhou para o susto. Foi quando ela escutou os pássaros. Sentou na cama: não eram só piares, chilreiações. Eram rumores de asas, brancos drapejos de plumas. A mãe se ergueu, pé descalço pelo corredor. Foi ao quarto da menina e joelhou-se junto ao leito. Sentiu a transpiração, reconheceu o seu próprio cheiro. Quando lhe ia tocar na fronte a menina despertou:

- Mãe, que bom, me acordou! Eu estava sonhar pássaros- .

A mãe sortiu-se de medo, aconchegou o lençol como se protegesse a filha de uma maldição. Ao tocar no lençol uma pena se desprendeu e subiu, levinha, volteando pelo ar. A menina suspirou e a pluma, algodão em asa, de novo se ergueu, rodopiando por alturas do tecto. A mãe tentou apanhar a errante plumagem. Em vão, a pena saiu voando pela janela. A senhora ficou espreitando a noite, na ilusão de escutar a voz de um pássaro. Depois, retirou-se, adentrando-se na solidão do seu quarto. Dos pássaros selou-se segredo, só entre as duas.

Mas o assunto do coração suspenso foi sendo divulgado e chegaram ao subúrbio curiosos da cidade. Vieram estudiosos a solicitar o caso daquele acaso. Até médicos questionavam a mãe:

- Angina de peito ela teve?

- Sim, doutor: sempre ela foi anjinha de peito- .

Precisar de ajuda? Que não, doutor, essa menina é feita assim mesmo, levinha como ar em pulmão de ave. Mas o médico insiste, promete mundos sem fundos. Que a fenomenosa miúda podia ficar em memória da ciência. Mas a senhora mãe deveria participar. Era preciso tudo controlar: batimentos, calores, suspiros. Tarefa para mãe a tempo inteiro, se pediam obséquios.

- Se eu sei contar, doutor? Só os padre-nossos e aves que nos mandam rezar na confissão- .

Por uns dias ela ainda segurou o pulso frio da menina. Quase desejava que o peito não desse resposta. Afinal, quando o coração lhe pulsava a menina esquentava-se, a ponto de rubra febre. A filha resistia, com doçura: queria era sair, brincar.

- Desde dois dias, mãe. Desde isso que não bate- .

A senhora desistiu das medições. Que a deixassem só, ela com ela. E, de noite, os pássaros enchendo o escuro. A mãe expulsou os exteriores mirones. Fossem todos, levassem seus títulos, promessas, indagações.

Com o tempo, porém, cada vez menos o coração se fazia frequente. Quase deixou de dar sinais à vida. Até que essa imobilidade se prolongou por consecutivas demoras. A menina falecera? Não se vislumbravam sinais dessa derradeiragem. Pois ela seguia praticando vivências, brincando, sempre cansadinha, resfriorenta. Uma só diferença se contava. Já à noite a mãe não escutava os piares.

- Agora não sonha, filha?

- Ai mãe, está tão escuro no meu sonho!-

Só então a mãe arrepiou decisão e foi à cidade:

- Doutor, lhe respeito a permissão: queria saber a saúde de minha única. É seu peito... nunca mais deu sinal- .

O médico corrigiu os óculos como se entendesse retificar a própria visão. Clareou a voz, para melhor se autorizar. E disse:

- Senhora, vou dizer. a sua menina já morreu.

- Morta, a minha menina? Mas, assim...?

- Esta é sua maneira de estar morta- .

A senhora escutou, mãos juntas, na educação do colo. Anuindo com o queixo, ia esbugolhando o médico. Todo seu corpo dizia sim, mas ela, dentro do seu centro, duvidava. Pode-se morrer assim com tanta leveza, que nem se nota a retirada da vida? E o médico, lhe amparando, já na porta:

- Não se entristeça, a morte é o fim sem finalidade- .

A mãe regressou a casa e encontrou a filha entoando danças, cantarolando canções que nem existem. Se chegou a ela, tocou-lhe como se a miúda inexistisse. A sua pele não desprendia calor.

- Então, minha querida não escutou nada?-

Ela negou. A mãe percorreu o quarto, vasculhou recantos. Buscava uma pena, o sinal de um pássaro. Mas nada não encontrou. E assim, ficou sendo, então e adiante.

Cada vez mais fria, a moça brinca, se aquece na torreira do sol. Quando acorda, manhã alta, encontra flores que a mãe depositou ao pé da cama. Ao fim da tarde, as duas, mãe e filha, passeiam pela praça e os velhos descobrem a cabeça em sinal de respeito.

E o caso se vai seguindo, estória sem história. Uma única, silenciosa, sombra se instalou: de noite, a mãe deixou de dormir. Horas a fio sua cabeça anda em serviço de escutar, a ver se regressam as vozearias das aves.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

sábado, 7 de abril de 2012

Mia Couto (A Última Chuva do Prisioneiro)


(- pensando no escritor nigeriano Ken-_Saro-_Wiwa- )

Lhe entrego dinheiro, prometo, tenho dinheiro fora. Não duvide: são cifras, maquias e quantidades. Tenho e tenho. E dou-lhe tudo, totalmente. Mas me traga chuva, uma porção de chuva boa, grossa e gorda. Estou doido? Por causa de querer que chova aqui, dentro da prisão? Pode ser, pode ser loucura. Mas a loucura é a única que gosta de mim. O senhor que é um inventador de realidades, me faça esse favor. Me invente, rápido, uma urgente chuvinha.

Antigamente, valia a pena ser preso. O cantinho da prisão nem era mau, comparado com o mundo que nos cabia, lá fora. Falo sério. Maioria do que aprendi foi na prisão. Ler, escrever: foi na prisão que me letrinhei. Minha vida era uma roda-ronda entre roubo e grades. Me prendiam: era um consolo cheio de sossego. Lá fora ficava o mundo, mais suas doenças, suas nauseabundâncias.

Agora, o calabouço é um lugar definhado, de não valer as penas. Esse mundo torto já entrou na prisão. A cadeia se infernou, dá vontade só de escapar. Porque aqui dentro nos roubam mais que fora. Aqui somos roubados por polícia, roubados por ladrões. Já nem podemos estar livres na cadeia. Neste lugar nem os mortos estão seguros. Já perdi escolha, doutor: a prisão me mata, a cidade não me deixa viver. A feiura deste mundo já não tem dentro nem fora.

Lhe explico, nos tintins. Na minha língua materna nem há palavra para dizer cadeia. Não tínhamos nem ideia de cadeia. Foram os portugueses que trouxeram. Coitados, trouxeram cadeias de tão longe, até dava pena elas ficarem vazias. Eu explicava assim para minha mãe, primeiras vezes que foi preso.

- Estou a ser preso, mamã, mas é só por respeito dos mezungos.

- Respeito dos brancos?

- Sim, mãe: é que eles, coitados, tiveram tanto trabalho... é feio a gente deixar estas cadeias assim, sem ninguém- .

Minha mãe acenava, com reserva. Ela enchia o nariz de rapé, aspirava aquilo como se a narina fosse a boca da sua alma. Depois, espirrava, soltando distraídos demónios. E me avisava:

- Só eu tenho medo é do tempo...

- Que tem o tempo?

- é que o tempo namora com ele próprio. Só finge que gosta de nós...

- Não entendo, mamã.

- é que, na cadeia, 0 tempo gosta de passear com modos de prostituta. Você que pensa que ainda não Ihe deu nada mas já pagou a sua toda vida.

- Não se preocupa, mamã. Eu venho, volto e regresso- .

Ela deixava uma alegria espreitar na lágrima. Com as tais palavras eu lhe estava imitando quando ela, em minha pequeninice, me dava instrução de regresso. Mais acontecia era quando chovia. Minha mãe me acorria, me sacudia, me suspendia.

- Começou a chuva, filho, corre lá para fora!-

Era o contrário das restantes mães que chamavam seus meninos a recolher assim que tombavam as primeiras gotas. Fosse a que hora, mal chuviscava, ela me despertava, me despia e me empurrava para fora de casa. Minha mãe acreditava que a chuva é água de lavar alma. Nunca ela deve ser desperdiçada. Disso me lembro, a chuva tintilando, eu tiritando. E, em minhas mãos, as folhas do kwangula ti o, essa plantinha que nos protege dos trovões, impedindo que o peito nos rebente. Me lembro de suas encomendações:

- Vens, voltas e regressas. Ouviste?-

Nem sei quantas vezes entrei, voltei e regressei para o calabouço. Minha vida foi um ciclo de porta e tranca, céu e grade. Minha mãe morreu, durante esse entra-e-sai. Recebi notícia na prisão, no meio de um domingo. Escutávamos o relato de um futebol. Os outros se mantiveram, cativos do rádio. Só eu despeguei cabeça, levantei os olhos para o carcereiro. Pedi para sair. Não me autorizaram. Eu que fosse à capela da prisão, orasse ali por minha mãe. Mas o chefe da cadeia, sendo branco, não me podia entender. Eles se despedem dos mortos de modo diferente. Foi única vez que fugi da cadeia, foi essa. Eu queria comparecer na cerimónia de minha velha. Lá no cemitério da família ainda me pingou uma tristeza. Falei assim:

- Viu, mãe? Eu disse que voltava- ...

E pelo pé de minha vontade retornei para a prisão. Dentro e fora, já eu era conhecido de todos, presos e guardas. Sou irmão legítimo dos que não têm família. Eles sempre me dedicaram amizades, autenticadas com provas. Me traziam revistas com fotografias de mulher branca. Eu antes me divertia com uma dessas fotografias, o corpo dessa mulher me era muito manual. Mas me cansei de imaginadelas. Ultimamente o que fazia? Punha a fotografia dessa mulher em cima do armário e lhe rezava. Faz conta era Nossa Senhora dos Qualqueres. Eu ficava assim, ajoelhado, com vontade de pedir, o pedido me vinha à boca mas eu engolia como se fosse só saliva. E fiz tanto isso que me esqueceu todos os pedidos que eu queria comendar.

Vendi a revista aos pedaços, 500 cada foto, 1000 cada mama. Agora, deixei de pedir. Desisti. A única coisa que quero é chuva. Chover-me em cima de mim, molhar-me, charcoar-me.

Eu nasci na arrecadação da paisagem, num lugar bem desmapeado do mundo. Tudo em volta eram securas, poeiras e redemoinhos. Chuva era sinal dos deuses, sua escassa e rara oferta. E quando me dispunha assim, todo eu nu, todo inteiramente descalço, parecia que os divinos destinavam toda aquela água só para mim. Eu tenho essa única saudade. Que caia um muitão de chuva, até chover dentro de mim, pingar-me os tetos da cabeça, me aguar o coração e eu sentir que Deus me está lavando das poeiras que a vida me sujou. E assim diluviado, eu escute, entre o ruído das gotas nos telhados, a voz de minha mãe me farolando:

- Você vem, volta- ...

E agora que estou falando, imagine, doutor, estou já sentindo em meus braços o doce roçar das folhinhas da planta que me protege do rebentar do peito, logo hoje que é véspera de eu ser sentenciado no suspenso da corda. Como se essa corda me conduzisse para onde minha mãe me espera, sentada na berma de um chuvisco. Como se esse nó de forca fosse o meu cordão desumbilical.

Me invente uma última chuvinha, doutor...

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998
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sexta-feira, 6 de abril de 2012

Mia Couto (A Viagem da Cozinheira Lagrimosa)


Antunes Correia e Correia, sargento colonial em tempo de guerra. Se o nome era redundante, o homem estava reduzido a metades. Pisara um chão traiçoeiro e subira pelas alturas para esse lugares onde se deixa a alma e se trazem eternidades. Correia não deixou nem trouxe, incompetente até para morrer. A mina que explodira era pessoal. Mas ele, tão gordo, tão abastado de volume, necessitava de duas explosões.

- Estou morto por metade. Fui visitado apenas por meia-morte.-

Perdera a vida só num olho, um lado da cara todo desfacelado. O olho dele era faz-conta um peixe morto no aquário do seu rosto. Mas o sargento era tão apático, tão sem movimento, que não se sabia se de vidro era todo ele ou apenas o olho. Falava com impulso de apenas meia-boca. Evitava conversas, tão doloroso que era ouvir-se. Não apertava a mão a ninguém para não sentir nesse aperto o vazio de si mesmo. Deixou de sair, cismado em visitar no obscuro da casa a antecâmara do túmulo. O Correia perdera interesses na vida: ser ou não ser tanto lhe desfazia. As mulheres passavam e ele nada. E ladainhava: "- estou morto por metade- ".

Agora, reformado, sozinho, mutilado de guerra e incapacitado de paz, Antunes Correia e Correia tomava conta de suas lembranças. E se admirava do fôlego da memória. Mesmo sem o outro hemisfério não havia momento que lhe escapasse nessa caçada ao passado. - _Das duas uma: ou minha vida foi muito enorme ou ela fugiu-me toda para o lado direito da cabeça- . Para as recordações virem à tona ele inclinava o pescoço.

- Assim escorregavam directamente do coração- , dizia ele.

Felizminha era a empregada do sargento. Trabalhava para ele desde a sua chegada ao bairro militar. Nos vapores da cozinha a negra Felizminha arregaçava os olhos. Enxugava a lágrima, sempre tarde. Já a gota tombara na panela. Era certo e havido: a lágrima se adicionando nas comidas. Tanto que a cozinheira nem usava tempero nem sal. O sargento provava a comida e se perguntava porquê tão delicados sabores.

- É comida temperada a tristeza- .

Era a invariável resposta de Felizminha. A empregada suspirava: - ai, se pudesse ser outra, uma alguém- . Poupava alegrias, poucas que eram.

- Quero guardar contentamento para gastar depois, quando for mais velhinha- .

Metida a sombra, fumo, vapores. Nem sua alma ela enxergava nada, embaciada que estava por dentro. A mão tiritacteava no balcão. O recinto era escuro, ali se encerravam voláteis penumbras. A cozinha é onde se fabrica a inteira casa.

Certa noite, o patrão entrou na cozinha, arrastando seu peso. Esbarrou com a penumbra.

- Você não quer mais iluminação na porcaria desta cozinha?

- Não, eu gosto assim.-

O sargento olha para ela. A gorda Felizminha remexe a sopa, relambe a colher, acerta o sal na lágrima. O destino não lhe encomendou mais: apenas esse encontro de duas meias vidas. Correia e Correia sabe quanto deve à mulher que o serve. Logo após o acidente, ninguém entendia as suas pastosas falas. Carecia-se era de serviço de mãe para amparar aquele branco mal-amanhado, aquele resto de gente. O sargento garatunfava uns sons e ela entendia o que queria. Aos poucos o português aperfeiçoou a fala, mais apessoado. Agora ele olha para ela como se estivesse ainda em convalescença. O roçar da capulana dela amansa velhos fantasmas, a voz dela sossega os medonhos infernos saídos da boca do fogo. Milagre é haver gente em tempo de cólera e guerra.

- Você está magra, anda a apertar as carnes?

- Magra?-

Pudesse ser! A tartaruga: alguém a viu magrinha? Só os olhos lhe engordavam, barrigando de bondades. A gorda Felizminha gemia tanto ao se abaixar que parecia que a terra estava mais longe que o pé.

- Me esclareça uma coisa, Felizminha: porquê essa choração todos os dias?

- Eu só choro para dar mais sabor aos meus cozinhados.

- Ainda eu tenho razões para tristezas, mas você...

- Eu de onde vim tenho lembrança é de coqueiros, aquele marejar das folhas faz conta a gente está sempre rente ao mar. É só isso, patrão- .

A negra gorda falou enquanto rodava a tampa do rapé, ferrugentia. O patrão meteu a mão no bolso e retirou uma caixa nova. Mas ela recusou aceitar.

- Gosto de coisa velha, dessa que apodrece.

- Mas você, minha velha, sempre triste. Quer aumento no dinheiro?

- Dinheiro, meu patrão, é como lamina... corta dos dois lados. Quando contamos as notas se rasga a nossa alma. A gente paga o quê com o dinheiro? A vida nos está cobrando não o papel mas a nós, próprios. A nota quando sai já a nossa vida foi. O senhor se encosta nas lembranças. Eu me amparo na tristeza para descansar- .

A gorda cozinheira surpreendeu o patrão. Lhe atirou, a queimar-lhe a roupa:

- Tenho ideia para o senhor salvar o resto do seu tempo.

- Já só tenho metade de vida, Felizminha.

- A vida não tem metades. É sempre inteira- ...

Ela desenvolveu-se: o português que convidasse uma senhora, dessas para lhe acompanhar. O sargento ainda tinha idade combinando bem com corpo. Até há essas da vida, baratinhas, mulheres muito descartáveis.

- Mas essas são pretas e eu com pretas...

- Arranje uma branca, também há ai dessas de comprar. Estou-lhe a insistir, patrão. O senhor entrou na vida por caminho de mulher. Chame outra mulher para entrar de novo- .

Correia e Correia semi-sorriu, pensativo.

Um dia o militar saiu e andou a tarde toda fora. Chegou a casa, eufórico, se encaminhou para a cozinha. E declarou com pomposidade:

- Felizminha: esta noite ponha mais um prato- .

A alma de Felizminha se enfeitou. Esmerou na arrumação da sala, colocou uma cadeira do lado direito do sargento para que ele pudesse apreciar por inteiro a visitante. Na cozinha apurou a lágrima destinada a condimentar o repasto.

Aconteceu, porém, que não veio ninguém. O lugar na mesa permaneceu vazio. Essa e todas as outras vezes. _única mudança no cenário: o assento que competia à ausente visita passava da direita para a esquerda, esse lado em que não havia mundo para o sargento Correia.

Felizminha duvidava: essas que o patrão convidava existiam, verídicas e autênticas?

Até que, uma noite, o sargento chamou a cozinheira. Pediu-lhe que tomasse o lugar das falhadas visitadoras. Felizminha hesitou. Depois, vagarosa, deu um jeito para caber na cadeira.

- Decidi me ir embora- .

Felizminha não disse nada. Esperou o que restava para ser dito.

- E quero que você venha comigo.

- Eu, patrão? Eu não saio da minha sombra.

- Vens e vês o mundo.

- Mas ir lá fazer o quê, nessa terra...

- Ninguém te vai fazer mal, eu prometo- .

Daí em diante, ela se preparou para a viagem. Animada com a ideia de ver outros lugares? Aterrada com a ideia de habitar terra estranha, lugar de brancos? Nem rosto nem palavra da cozinheira revelavam a substancia de sua alma. O sargento provava a refeição e não encontrava mudança. Sempre o mesmo sal, sempre a mesma delicadeza de sabor. No dia acertado, o militar acotovelou a penumbra da cozinha:

- Venha, faça as malas- .

Saíram de casa e Felizminha cabisbaixou-se ante o olhar da vizinhança. Então o sargento, perante o público, deu-lhe a mão. Nem se entrecabiam bem de tão gordinhas, os dedos escondendo-se como sapinhos envergonhados.

- Vamos- , disse ele.

Ela olhou os céus, receosa por, daí a um pouco, subir em avião celestial, atravessar mundos e oceanos. Entrou na velha carrinha, mas para seu espanto Correia não tomou a direção do aeroporto. Seguiu por vielas, curvas e areias. Depois, parou num beco e perguntou:

- Para que lado fica essa terra dos coqueiros?-

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Mia Couto (O não desaparecimento de Maria Sombrinha)


Afinal, quantos lados tem o mundo
no parecer dos olhos do camaleão?


Já muita coisa foi vista neste mundo. Mas nunca se encontrou nada mais triste que caixão pequenino. Pense-se, antemanualmente, que esta estória arrisca conter morte de criança. Veremos a verdade dessa tristeza. Como diz o camaleão -- em frente para apanhar o que ficou para trás.

Deu-se o caso numa família pobre, tão pobre que nem tinha doenças. Dessas em que se morre mesmo saudável. Não sendo pois espantável que esta narração acabe em luto. Em todo o mundo, os pobres têm essa estranha mania de morrerem muito. Um do mistérios dos lares famintos é falecerem tantos parentes e a família aumentar cada vez mais. Adiante, diria o camaleonino réptil.

A família de Maria Sombrinha vivia em tais misérias, que nem queria saber de dinheiro. A moeda é o grão de areia fluindo entre os dedos? Pois, ali, nem dedos. Tudo começou com o pai de Sombrinha. Ele se sentou, uma noite, à cabeceira da mesa. Fez as rezas e olhou o tampo vazio.

– Eh pá, esta mesa está diminuir!

Os outros, em silêncio, balancearam a cabeça, em hipótese. :,

– Vocês não estão a ver? Qualquer dia não temos onde comer.

Ao se preparar para dormir, apontou o leito e chamou a mulher:

– Esta cama cada dia está mais pequena. Um dia desses não tenho onde deitar.

Debateram o assunto, timidamente, com o pai. Sugeriram que a razão pudesse ser inversa: o mundo é que estava a aumentar, encurralando a aldeiazinha. Fosse o caso dessa suposição, a aldeia estaria metida em vara de sete camisas. Mas o velho não arredou a ideia. Casmurrou contra argumento alheio, ancorado na teima dele.

Por fim, sua visão minguante aconteceu com Sombrinha. Ele via o tamanho dela se acanhar, mais e mais pequenita. E se queixava, pressentimental:

– Esta menina está-se a enxugar no poente...

Todos se riam. O pai cada vez piorava. Face ao riso, o homem se remeteu à ausência. Se transferiu para as traseiras, se anichou entre desperdício e desembrulhos. A filha ainda solicitou presença do mais velho.

– Deixe o seu pai. lá onde está, ele não está em lugar nenhum.

Valia a pena sombrear a miúda, minhocar-lhe o juízo? Mas Sombrinha não deixou de rimar com a alegria. Afinal, era ainda menos que adolescente, dada somente a brincadeiras. Sendo ainda tão menina, contudo, um certo dia ela se barrigou, carregada de outrem. Noutros termos: ela se apresentou grávida. Nove meses depois se estreava a mãe. Sem ter idade para ser filha como podia desempenhar maternidades?

A criancinha nasceu, de simples escorregão, tão minusculinha que era. A menina pesava tão nada que a mãe se esquecia dela em todo o lado. Ficava em qualquer canto sem queixa nem choro.

- Essa menina só pára quieta!, queixava-se Sombrinha. :,

Deram o nome à menininha: Maria Brisa. Que ela nem vento lembrava, simples aragem. Dona mãe ralhava, mas sem nunca fechar riso, tudo em disposições. Até que certa vez repararam em Maria Brisa. Porque a barriguinha dela crescia, parecia uma lua em estação cheia. Sombrinha ainda devaneou. Deveria ser um vazio mal digerido. Gases crescentes, arrotos tontos. Mas depois, os seios lhe incharam. E concluíram, em tremente arrepiação: a recém-nascida estava grávida! E, de facto, nem tardaram os nove meses. Maria Brisa dava à luz e Maria Sombrinha ascendia a mãe e avó quase em mesma ocasião. Sombrinha passou a tratar de igual seus rebentinhos -- a filha e a filha da filha. Uma pendendo em cada pequenino seio.

A família deu conta, então, do que o pai antes anunciara: Sombrinha, afinal das contas, sempre se confirmava regredindo. De dia para dia ela ia ficando sempre menorzita. Não havia que iludir -- as roupas iam sobrando, o leito ia crescendo. Até que ficou do mesmo tamanho da filha. Mas não se quedou por ali. Continuou definhando a pontos de competir com a neta.

Os parentes acreditaram que ela já chegara ao mínimo mas, afinal, ainda continuava a reduzir-se. Até que ficou do tamanho de uma unha negra. A mãe, as primas, as tias a procuravam, agulha em capinzal. Encontravam-na em meio de um anônimo buraco e lhe deixavam cair uma gotícula de leite.

- Não deite demais que ainda ela se afoga!

Até que, um dia, a menina se extinguiu, em outra dimensão. Sombrinha era incontemplável a vistas nuas. Choraram os familiares, sem conformidade. Como iriam ficar as duas orfãzinhas, ainda na gengivação de leite? A mãe ordenou que se fosse ao quintal e se trouxesse o esquecido pai. O velho entrou sem entender o motivo do chamamento. Mas, assim que passou a porta, ele olhou o nada e chamou, em encantado riso:

– Sombrinha, que faz você nessa poeirinha?

E depois pegou numa imperceptível luzinha e suspendeu-a no vazio dos braços.

– Venha que eu vou cuidar de si!, murmurou enquanto regressava para o quintal da casa, nas traseiras da vida.

Fonte:
Mia Couto. Contos do Nascer da Terra. Vol.1. Porto: CPAC, 1998.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Mia Couto (Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra)


Na obra Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, Mia Couto transporta-nos para um universo onde sentimos de tal forma o pulsar da África, que chegamos a sentir saudades desse continente, mesmo sem nunca ter estado lá. Este livro mostra a preocupação do autor em preservar algumas tradições moçambicanas, sem referir-se diretamente a questões políticas, mas aflorando os confrontos e conflitos de uma realidade comum a um dos países mais pobres do mundo. Tudo com uma linguagem lúdica, criativa, que não se envergonha nem mesmo de trocadilhos, capaz de fazer lembrar o falar das veredas do sertão de Guimarães Rosa.

Na obra somos levados a visitar os últimos 50 anos da história de Moçambique pela pena de um poeta que escreve em prosa. "Nenhum país é tão pequeno como o nosso. Nele só existem dois lugares: a cidade e a Ilha. A separá-los, apenas um rio. Aquelas águas, porém, afastam mais que a sua própria distância. Entre um e outro lado reside um infinito. São duas nações, mais longínquas que planetas. Somos um povo, sim, mas de duas gentes, duas almas." (pág. 18).

É uma história que se situa num período de paz, depois de 16 anos de guerra. O autor viveu, praticamente, quase metade de sua vida sob o fogo cruzado da guerra. Primeiro, de 1972 a 1975, ainda adolescente, como membro da Frelimo, a frente de libertação liderada por Samora Machel. Depois, a guerra com a Rodésia e, em seguida, a guerra civil que destruiu o sonho de uma geração que pensava ser possível criar uma nação próspera, capaz de enfrentar o futuro com dignidade.

Fruto de um tempo de sonhada paz, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra não traz a amargura que se sente em outras obras, de épocas mais duras. Enfim, sem esse viés, não se compreende este livro: Luar-do-Chão encontra-se num estado de abandono, miséria e decadência que deixa claro que o sonho de Samora Machel e seus seguidores ficou longe de se concretizar. A realidade pós-colonial é ainda pior.

No livro, o estudante universitário Mariano volta a sua terra natal para o funeral do avô. Enquanto aguarda pela cerimônia ele é testemunha de estranhas visitações na forma de pessoas e de cartas que lhe chegam do outro lado do mundo. São revelações de um universo dominado por uma espiritualidade que ele vai reaprendendo. À medida que se apercebe desse universo frágil e ameaçado, ele redescobre uma outra história para a sua própria vida e para a da sua terra.

Em Luar-do-Chão, uma misteriosa ilha de acontecimentos fantásticos, ele precisa solucionar um conflito íntimo, semelhante ao dilema da África pós-colonial. Esta Ilha vai representar para o protagonista um reencontro consigo próprio.

Manhã cedo me ergo e vou à deriva. (...) Pretendo apenas visitar o passado. Dirijo-me às encostas onde, em menino, eu pastoreava os rebanhos da família. As cabras ainda ali estão, transmalhadas. Parecem as mesmas esquecidas de morrer. Se afastam, sem pressa, dando passagem. Para elas, todo o homem deve ser pastor. Alguma razão têm. Em Luar-do-Chão não conheço quem não tenha pastoreado cabra. Ao pastoreio devo a habilidade de sonhar. Foi um pastor quem inventou o primeiro sonho. Ali, face ao nada, esperando apenas o tempo, todo o pastor entreteceu fantasias com o fio da solidão. As cabras me atiram para lembranças antigas. (pág. 190)

A pretexto do relato das extraordinárias peripécias que rodeiam o funeral do avô de Mariano, este romance traduz, de uma forma ao mesmo tempo irônica e profundamente poética, a situação de conflito vivida por uma elite ambiciosa e culturalmente distanciada da maioria rural.

Certamente, nos familiarizamos com as personagens de Mia Couto, que poderiam habitar muitas de nossas regiões, com suas rezas e segredos. No entanto, o assalto aos valores desse povoado muito diz, como já citado, sobre a própria história de Moçambique, e mais além, sobre a situação atual do homem moderno em qualquer parte do mundo, exilado de sua coletividade e de suas crenças, errante num universo onde sua existência individual carece de importância. O autor aborda o confronto entre dois universos diferentes: o capitalista e urbano construído em torno das idéias de progresso e modernidade, e o religioso e mítico dominado pelos valores ancestrais da comunidade, cuja independência se apresenta recente.

Esse encontro se expressa nas surpresas e angústias de Mariano (personagem-protagonista), que ao redescobrir a sua comunidade, conhecerá também a sua própria história. Nascido na ilha, mas habitante da cidade, o jovem é obrigado pelas circunstâncias a um novo olhar para as tradições regionais que se impõem soberanas.

Ele irá transitar nos domínios natural e sobrenatural de Luar-do-Chão, onde o sagrado impera no mais banal e cotidiano, e as histórias individuais estão profundamente ligadas aos destinos da coletividade e da ilha. As tradições, descritas com seus ritos e princípios éticos, são construídas de forma a nos dar a dimensão da estreita ligação dos homens à Nyumba-Kaya, a casa, a legítima morada, bela lembrança de uma África originária.

Mariano recebe do avô "pseudomorto" a missão de restaurar a normalidade da vida, por meio da compreensão dos dramas interiores de cada um de seus familiares e do desvendar de segredos antigos. Insere-se o espaço da profundidade psicológica precisa na caracterização dos personagens, símbolos de diversas formas de existência e luta humanas.

As simples mulheres do povoado se mostram pivôs de antigos romances, de tragédias submersas no rio, muitas destinadas a representações míticas e fantásticas, como a bela Nyembeti, que simboliza a própria ilha (ou seria o próprio país, Moçambique). Incapaz de falar e dona de hábitos estranhos à maioria, a jovem é predestinada à exclusão e ao ofício de enterrar os mortos, dada sua familiaridade com o mundo subterrâneo.

Já os homens mostram-se sensíveis diante das transformações e ameaças iminentes da ilha. Por meio deles o autor trabalha o desencanto diante da independência conquistada, da tradição que se imaginara assegurada, misturado ao temor da perda de Nyumba-Kaya, morada absoluta dos vivos e dos antepassados.

Não é à toa que o falecido avô, também Mariano, resiste em morrer. O retorno às origens, trilhado pelo neto, torna-se a verdadeira possibilidade da partida derradeira do avô, rumo a uma nova existência. A morte, nesse exemplo, requer o retorno à vida, a extração da verdade, sob conseqüência de perturbar todos os demais, pois algo deve ser dito. Algo tão importante, capaz de fazer com que a terra envergonhada se feche. Capaz de permitir que a ilha ressentida se mostre exausta e busque a verdade que oculta em seu solo.

Seu retorno é uma imposição da tradição, incumbido que fora para dirigir as cerimônias fúnebres de seu avô Dito Mariano, de quem recebera o mesmo nome e a incumbência. Neto favorito do patriarca de uma família moçambicana da terra, o estudante, ao chegar à ilha, vê-se envolvido então numa teia de intrigas e segredos familiares que imaginava já não existirem.

São intrigas que envolvem seu pai, Fulano Malta, a avó Dulcineusa, os tios Abstinêncio, Ultímio e Admiranga e sua mãe, Mariavilhosa, morta em circunstâncias nebulosas, todos nomes que fazem o leitor brasileiro lembrar de figuras do Nordeste. Marianinho logo descobre que a morte do avô – que teima em não morrer de vez – permanece envolvida por um mistério que escapa à luz da razão – como tudo nessa enigmática Luar-do-Chão, onde os mortos continuam a governar os vivos.

Portanto, o eixo temático deste romance gira em torno desta viagem empreendida pelo protagonista, e resgata, por sua vez, outros itinerários que se dão no curso de rios reais e ficcionais.

Nas águas do rio Madzimi, Mariano parte em busca das suas origens e do seu passado, empreendendo, para tanto, um denso mergulho em suas memórias de menino, evocando com elas as brincadeiras de outrora com o amigo Juca Sabão, às margens desse mesmo rio. A chegada a Luar do Chão, sua terra-natal, se dá em sincronia com a partida do avô, passageiro do "barquito desabandonado" que o conduzirá pelas "águas do tempo" à "outra margem", onde ele se juntará aos seus antepassados, cumprindo, pois, o ciclo de vida acreditado em África.

A viagem de retorno à infância de Mariano e a do avô rumo ao futuro, indicam uma sincronia, visto que este movimento para trás e para frente aponta a chegada a um lugar onde idoso e criança tornam-se pontos limítrofes do mundo visível africano e que, por sua vez, convive harmoniosamente com mundo invisível dos antepassados. A morte, primeiro substantivo nomeado no romance em questão, torna-se, portanto, "o umbigo do mundo", onde estes espaços se entrecruzam e estabelecem um ciclo vital entre si. A ilha é o último espaço de convivência entre avô, neto e família neste lado da margem e a derradeira possibilidade de restauração de uma série de elementos estruturais de que o avô depende para poder, enfim, assumir seu lugar no mundo invisível. Esta premissa nos é inicialmente apresentada na epígrafe do primeiro dos vinte e dois capítulos da obra: "Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras. Mas só há duas nações — a dos vivos e a dos mortos". A delimitação de um espaço primordial africano e a importância da consciência do homem da posição que nele ocupa revelam a preocupação constante de Mia Couto: como artesão da palavra, cabe ao poeta a função de pensar o mundo, o homem e a sociedade em sua totalidade e, com isso, fazer com que sua escritura provoque atitudes líricas mas também políticas que perpassem a beleza estética e resultem em ações que os integrem ao seu espaço e cultura.

A desagregação encontrada por Mariano em sua ilha-natal exacerba a fragmentação cultural que Mia Couto se preocupa em denunciar. Esta é claramente evidenciada através dos nomes das personagens, já que a descontrução lingüística empregada por ele denota um processo de revitalização da linguagem através da sua reinvenção, ainda que no romance em questão o autor lance mão de menos neologismos.

Pela modificação das construções e da estrutura das palavras da língua portuguesa, Mia Couto mescla elementos que resgatam a poeticidade em seu sentido lingüístico mais amplo, ressalta imaginário de seu país, preservando constantemente suas marcas culturais.

Por esta razão, o tio mais velho de Mariano, Abstinêncio abstém-se do mundo e da vida, minimizando todo o contato com o mundo externo, tomado por um mutismo que o afasta até mesmo de sua família. O terno negro e a gravata por eles envergados metaforizam um "escuro envergando escuridão" e a gravata cinza "semelha uma corda ao despendurão num poço que é seu peito escavado" por uma dor que ele não deseja claramente reconhecer, o que lhe acarreta a melancolia característica dos que se mantêm descontextualizados.

Fulano da Malta, o pretenso pai de Mariano, tem no nome toda a evidencia de indefinição e da insegurança como progenitor. O nome revela, sobretudo, sua melancolia em não reconhecer, como ex-guerrilheiro, os resultados da guerra por que lutou, o que o faz sentir-se excluído da nação e do mundo e, conseqüentemente, de sua família. O regresso de Mariano implicará, por isso, uma reaprendizagem mútua: a do pai que aprende a ser pai e a do filho que reconhece a pertinência de atos que Fulano outrora cometera e que apenas após este resgate do passado foram por ele compreendidos.

O tio Ultímio, terceiro dos três filhos, é, por sua vez, o que menos percebe a relevância da terra, da família e das tradições como elementos constituintes do homem, uma vez que, como burocrata, "se dá a exibir, alteado e sonoro, pelas ruas da capital, ocupado entre os poderes e seus corredores". A crítica à personagem se exacerba na comicidade da cena de seu automóvel importado atolado nas areias de Luar do Céu, até ali levado para impressionar futuros investidores estrangeiros ávidos por transformar a ilha em rentável investimento turístico, assim como para ressaltar as diferenças que Ultímio crê existir entre ele, sua família e os demais habitantes da localidade.

É, no entanto, outra personagem, a velha Miserinha, quem melhor descreve o quadro inicial da viagem e do cenário sombrio que permeia a ilha e seus moradores, todos metonimizados pela alegoria e vítimas, como o restante do país, da perda de identidade: "Já não vejo brancos nem pretos, tudo para mim são mulatos". O único resquício de cor associada à personagem e à ilha está no lenço de seda multicolorido usado por ela e que representa a última memória das diferentes colorações do mundo, que contrastam, no entanto, com a roupa surrada da personagem, com seu rosto vincado e, sobretudo, com suas retinas fatigadas pelo tempo, as quais vêem os homens acinzentados e marcados por um traço comum: a perda do desejo e da identidade.

Ao longo da narrativa, Mariano se depara, pois, com o insólito causado pela quase morte do avô. Em estado de latência e possível catalepsia, Dito Mariano aguarda o regresso do neto a casa para que se ajustem detalhes cruciais à sua partida. Como espaço catalisador da ação das personagens "Nyumba-Kaya" é a casa que tem seu nome composto pelas palavras que designam este vocábulo em línguas de pontos extremos do país, "para satisfazer familiares do norte e do sul". Destelhada, segundo as tradições fúnebres, para que o luto que ordena o céu se adentre por seus compartimentos, a casa é regada diariamente como uma planta para que as águas não apenas a limpem, mas também a fertilizem e preserve em suas colunas e paredes o saber primordial africano.

Quem a faz molhar é a avó Dulcineusa, doce no nome para compensar a amargura da perda de parte da mão e dos dedos corroídos pela acidez do caju colhido nos tempos coloniais. Em momentos que alternam delírio e lucidez, Dulcineusa revela conflitos do homem diante da confluência de valores sociais, culturais e religiosos que lhe foram impostos ao longo dos anos.

O percurso de Mariano é igualmente permeado por conflitos, dúvidas, descobertas e surpresas ligadas originariamente ao funeral, mas que acabam por revelar novas histórias para o protagonista e para sua terra. Lançando mão de elementos fantásticos, o "avô" comunica-se com o neto por meio de cartas que sua mão moribunda não pode escrever, as quais, por sua vez, surgem misteriosamente ao pé do neto para lhe servir de diretriz sobre cada passo a ser dado na condução das exéquias e na sua posterior liderança da família.

O retorno de Marianinho à ilha para encontrar uma nova forma de salvar a terra, que também é a sua casa, e reconstruir um mundo novo, sem abandonar as tradições, é, de certa maneira, uma parábola da África pós-colonial que precisa juntar seus destroços para seguir adiante e não ficar irremediavelmente para trás na história das nações.

O centro deste retorno é a casa de seus ancestrais na Ilha de Luar-do-Chão, o ponto de partida de sua identificação consigo mesmo dentro daquele universo aparentemente tão distante e tão diferente da cidade, lugar de sua formação, rico em recursos da modernidade, porém infértil para o sustento das tradições.

A relação estabelecida entre a casa e o tempo, declarada pelo próprio título do romance, permeia todas as vertentes da obra, todos os seus personagens e seus espaços.

Uma sucessão temporal de eventos, abrigados pela memória dos rituais da tradição africana, dentro das visões que Marianinho estabelece em suas visitas, se dá pelo contato do que lhe é natural e sobrenatural, um processo, muitas vezes, afastado dos conceitos de lógica e linearidade da verossimilhança.

Esta ruptura com a linearidade do texto, no uso sensível da prosa poética, é um grande marco da escrita de Mia Couto, apropriando-se da construção do fantástico dentro da realidade de seus personagens e da realidade do próprio leitor. O trabalho “artesanal” de seu léxico é um registro de compromisso com a representação estética do mundo. O uso explícito de criações neológicas ultrapassa o registro do que seria uma linguagem regional e oral, representando, nas mãos do escritor, a exposição de um universo contraditório presente nos países colonizados em África que buscam até hoje, após e até pela Independência, sua identidade.

O tempo e a casa selam uma união conjugal dentro do romance. O tempo, em seu caráter masculino, representa os homens da história. Sofre um processo de desmoronamento (particular à casa) para refletir toda a desconstrução dos homens desta família: suas dependências emocionais, suas ambições sempre volúveis, os desenganos vestidos pela guerra do país e desnudos por uma fome de paz interna e externa insaciável em seus corpos e espíritos.

A casa, o feminino, é habitada pelas mulheres. Precisa de defesa, mas mantém-se altiva pela junção dos vivos e dos mortos no ventre de seus corredores. As revelações que direcionam o desenvolvimento do romance são cozidas, conduzidas e muitas vezes protagonizadas pelas mulheres da família.

A morte de Dito Mariano, patriarca dos Malilanes é a morte da “casa pai” e o nascimento da “casa mãe”, responsável pelo abrigo das peças que compõem a identidade de Marianinho mediada pela tradição e pela modernidade de seus valores.

Um dos pontos fulcrais do romance é a recusa da terra em receber o corpo do semidefunto (ou semivivo?) antes do tempo oportuno. A tentativa de antecipar o enterro, liderada por Últímio, não encontra a maior resistência na família, mas sim no solo adubado pela insensatez humana que se cerra completamente na recusa de receber o corpo de Mariano. O chão arenoso em que o automóvel importado atolara resiste, agora, rígido, à pá do coveiro e faz com que seu metal se vergue ensimesmado no terreno desprovido da maciez que a umidade da água outrora lhe concedera.

Fontes:
Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, Portugal | AdeltoGonçalves, doutor em Letras (Literatura Portuguesa), Universidade de São Paulo(USP) | Prof. M. A . Robson Lacerda Dutra, Mestre em Literatura Portuguesa -Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Disponivel em Passeiweb