Mostrando postagens com marcador Portugal. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Portugal. Mostrar todas as postagens

sábado, 29 de dezembro de 2018

Teixeira de Pascoaes (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol. 9) I


DEDICATÓRIA

- Este pequeno livro é para ti,
Minha irmã. Hás de lê-lo com amor,
Pois nele encontrarás o que sofri
E uma sombra talvez da tua dor.
E nele, embora em nevoa, encontrarás
A Imagem de teu Filho...
                        Ó minha irmã,
Sei que és a campa viva onde ele jaz;
Sei que este livro é cinza, poeira vã
Que eu espalho em redor da tua cruz...
Mas ante a negra dor que me tortura,
Quis vingar-me da Morte, e ergui à luz,
Cantando, este meu cálix de amargura.

MÃE DOLOROSA

Vi-o doente, ouvi os seus gemidos;
Sinto a memória negra, ao recordá-lo!
A Mãe baixava os olhos doloridos
Sobre o Filho. E era a Dor a contemplá-lo!

Depois, nesses instantes esquecidos,
Ou lhe falava ou punha-se a beijá-lo...
Mas, retomando, súbito, os sentidos,
Estremecia toda em grande abalo!

Fugia de ao pé dele sufocada,
A sua escura trança desgrenhada,
Os seus olhos abertos de terror!

E então, num desespero, a Mãe chorava,
E, por entre gemidos, só gritava:
Amor! amor! amor! amor! amor!

JUNTO DELE

Que terrível tragédia ver a gente,
No seu exíguo e doloroso leito,
Uma criança morta, um Inocente,
Um pequenino Amor inda perfeito!

Oh que mimosa palidez tremente
A do gélido rosto contrafeito!
As mãozinhas de cera, docemente,
Ó dor, ó dor, cruzadas sobre o peito!

Ó Deus cruel que matas as Crianças!
Auroras para o nosso coração,
Alegrias, alívios, esperanças!

Não sei quem és; eu não te entendo, Deus!
E penso, com terror, na escuridão
Desse teu Reino trágico dos Céus...

NAS TREVAS

Como estou só no mundo! Como tudo
É lagrima e silencio!

Ó tristeza das Coisas, quando é noite
Na terra e em nosso espirito!... Tristeza
Que se anuncia em vultos de arvoredos,
Em rochas diluídas na penumbra
E soluços de vento perpassando
Na tenebrosa lividez do céu...

Ó tristeza das Coisas! Noite morta!
Pavor! Desolação! Escura noite!
Fantástica Paisagem,
Desde o soturno espaço à fria terra
Toda vestida em sombra de amargura!

Erma noite fechada! Nem um leve
Riso vago de estrela se adivinha...
Somente as grossas lagrimas da chuva
Escorrem pela face do Silencio...

Piedade, noite negra! Não me beijes
Com esses lábios mortos de Fantasma!

Ó Sol, vem alumiar a minha dor
Que, perdida na sombra, se dilata
E mais profundamente se enraiza
Nesta carne a sangrar que é a minha alma!

Ilumina-te, ó Noite! Ó Vento, cala-te!
Negras nuvens do sul, limpe os olhos,
Desanuvie a brônzea face morta!

Oh, mas que noite amarga, toda cheia
Do teu Fantasma angélico e divino;
Espirito que, um dia, em minha irmã,
Tomou corpo infantil, figura de Anjo...
E para que, meu Deus? Para partir,
Com seis anos apenas, no primeiro
Riso da vida, em lagrimas, levando
Toda a luz de esperança que floria
Este ermo, este remoto em que divago...

Como estou só no mundo! Como é triste
A solidão que faz a tua Ausência,
E o terrível e trágico silêncio
Da tua alegre Voz emudecida!

Ó noite, ó noite triste! Ó minha alma!
Tu, que o viste e beijaste tantas vezes,
Tu, que sentiste bem o que ele tinha
De angelica Criança sobre humana,
Não vês as próprias coisas como sofrem,
E como as grandes arvores agitam
As ramagens de lagrimas e sombras?

Repara bem na lúgubre tristeza
Da nossa velha casa abandonada
Da divina Presença da Criança!

Ah, como as portas gemem e os beirais
Têm soluços de vento...

Lá fora, no terreiro onde brincavas,
A noite escura chora...

                        Ó minha alma,
Embebe-te na dor das Coisas ermas;
Chora também, consome-te, soluça,
Junto á Mãe dolorosa, de joelhos...

OLHAR ETERNO

Aquele olhar tão triste,
Onde ia, feito em lagrima, o que eu sou,
Isto é, tudo o que existe,
No instante em que pousou,
Relâmpago do Além,
Sobre ti, meu querido e pobre Anjinho,
Já deitado na cama e tão doentinho,
Cercado da aflição de tua Mãe;
Esse olhar fez-se eterno,
Em meus olhos ficou: é luz do inferno
Que tudo me alumia...

Parece a luz do dia!

Fonte:
Teixeira de Pascoaes. Elegias. 1912.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Contos Tradicionais Portugueses (Maria Mantela)



Na igreja matriz de Chaves existiu, em tempos, uma lápide, no colateral direito, com o seguinte epitáfio: 
«Aqui jaz Maria Mantela 
Com sete filhos ao redor dela».

Diz a lenda que rememora Maria Mantela que certa vez, era ela ainda menina, criticou severamente uma pobre que lhe pediu esmola, levando ao colo dois gêmeos. Anos mais tarde Maria Mantela casou e, passado tempo, engravidou.

Iniciado o trabalho do parto, quando a parteira lhe disse, depois de ter nascido o primeiro filho, que se esforçasse para sair o segundo, e o terceiro, e o quarto, e por aí fora até ao sétimo, a mulher ficou louca de vergonha.

Assim que recuperou o ânimo, pagou muito bem à parteira para que escondesse o fato de ter tido sete filhos gêmeos e entregou os recém-nascidos à serva que assistira aos nascimentos para que os deitasse ao rio. A criada, cheia de pena dos meninos, meteu-os num cesto e pôs-se a caminho do rio para cumprir o que lhe tinha sido ordenado. Não replicou ante a desumanidade do seu mandado porque bem sabia que isso só lhe podia valer aborrecimentos. Além de que a ama, no estado de espírito em que se encontrava, não lhe daria ouvidos, sendo provável até que lhe desse o mesmo fim que aos meninos.

Perto das Caldas de Chaves, assim entregue a estes pensamentos e com a asa do cabaz enfiada no braço, a serva encontrou o marido da sua senhora Maria Mantela, o qual lhe perguntou o que levava no cesto. Apanhada de surpresa, a pobre rapariga, depois de titubear umas palavras incompreensíveis, acabou por achar a solução:

- São cachorrinhos que eu vou deitar ao rio, senhor.

O amo, ou por curiosidade ou por já desconfiar de qualquer coisa, levantou a cobertura e percebeu. Pegou no cesto, pô-lo sobre o cavalo e disse à rapariga que fosse dizer à ama que estava cumprida a ordem.

Dali partiu com os filhos em busca de amas que os criassem. Deixou cada um em sua aldeia e durante muito tempo Maria Mantela não desconfiou que os meninos estavam vivos e se iam criando e educando.

Diz a lenda, ao mesmo tempo que especifica os nomes das igrejas, que estes sete meninos foram ordenados padres e viveram a sua vida em sete aldeias circunvizinhas de Chaves. E Maria Mantela viveu o resto da sua vida grata ao marido por ter aceite aqueles sete filhos de um só parto. E tanto os amou que exigiu descansar juntamente com os sete, no seu leito de eternidade:

«Aqui jaz Maria Mantela 
Com sete filhos ao redor dela.»

Poderá parecer estranho ao nosso entendimento de homens do século XX o problema posto nesta lenda em que se fala de gêmeos que por serem devem morrer. Creio não errar ao dizer que o problema se funda em antigas crenças segundo as quais as mulheres honestas só podiam, e deviam, ter um filho de cada vez do seu marido. O fato de lhes nascer mais do que um filho no mesmo parto deveria pressupor desonestidade no seu comportamento e consequente desonra do marido.

Fonte:
Lendas Portuguesas da Terra e do Mar, Fernanda Frazão, disponível em Estúdio Raposa

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Júlio Brandão (Lenda de Natal)

Certo homem, já velho, viu chegar o Natal, e pôs-se a pensar na melancolia, no desamparo da sua vida. Dos filhos, uns tinham-lhe morrido, outros tinham-no abandonado... Estava só no mundo, com os pés para a cova, e cheio de desilusões, de ingratidões e de pobreza. Entretanto não havia ambições vis nem rancores no seu coração. Tinha saudades. Por esse lento caminho da vida, hoje ermo de afetos, algumas consolações tivera a sua alma.

Recordava-se, às vezes com os olhos orvalhados, postos no horizonte esfumado do dia triste. Agora era um farrapo, que tinham de levar os redemoinhos da morte. À noite (era a nostálgica noite de Consoada) sentiu duas longas lágrimas a molharem-lhe o rosto. Ele mesmo foi fazer um caldo para a ceia. Os piornos ardiam na lareira do casebre esburacado. O velho encolheu-se ao lume, com os olhos fixos na labareda avermelhada.

Todos estavam, àquela hora, nos lares amorosos. Ele lembrava-se do riso das crianças, desse amoroso e cândido florir de venturas; avivava-se-lhe o passado, claro e benéfico, cuja árvore do Natal era cheia de estrelas, cantada de esperanças, e agora, há quantos anos, um negro e frio cipreste! Para ali estava, sem uma fala amiga, sem um rosto amado, ouvindo a ventania nos soutos (bosques). E pensava que era como esses troncos velhos e partidos, por cima dos quais o enxurro (enxurrada) espumava, e onde nunca mais nasceria flor, ou cantaria ave...

Fez um exame de consciência: fora bom, fora simples. A mulher morrera-lhe ainda na flor da vida; a filha fugira-lhe para a mãe, quando estava noiva. Antes assim, pensava. A filha era uma santa, e o mundo era ruim... Mais tarde, já trôpego, dois filhos roubaram-no, e nunca mais apareceram. Como ele se lembrava! Fora numa noite como aquela, negra e ventosa. Os dois, quando ele dormia, arrombaram-lhe a arca, e levaram-lhe a meia dúzia de peças que tinha guardadas no escaninho, para algum ano sáfaro (improdutivo, agreste), de mais negra fome. Afinal tudo era para os filhos, dizia consigo; os filhos lho levaram... Mas nem roupa lhe deixaram, no Inverno impiedoso, para o cobrir. Tinham sido perversos, os filhos que ele tanto amara! Depois começou de entrevar; os braços não podiam; e onde o trabalho míngua, vai crescendo a miséria. Ficou com uma horta, donde comia o caldo, onde colhia uma cesta de fruta. Pouco lhe bastava, afinal. O compadre, a quem ele tanto ajudara, por quem tantos sacrifícios fizera, fora para o Brasil. Por lá acabara, certamente...

Estava escorraçado como um cão, pobre como Job. Apesar disso, na consciência não se apagara a claridade que sempre lha iluminara. Ela era semelhante a um suave rio bucólico, cuja transparência deixa ver na areia loira a sombra de um cardume prateado. Ele sentia-se bem naquela miséria, naquele abandono — com essa leveza e essa graça dos que olhando para a vida inteira não têm nunca a desviar os olhos de uma torpeza ou de uma mentira.

Curvado sobre as brasas crepitantes, o velho lançou os olhos para o banco chamuscado, que lhe ficava em frente. E de repente ficou estático. O queixo  tremia-lhe fortemente. Santo Deus! Que via ele?! Era inacreditável! A filha e a mulher, a fiarem nas suas rocas, com um sorriso tão suave, uma serenidade tão bela! Jesus, Jesus, eram elas! Que alegria a sua! O velho estremeceu, o coração bateu-lhe como quando era jovem, balbuciou:

— Ó Maria, ó Luísa, vocês vieram?!

Elas sorriram-se mais docemente, sempre a fiar nas suas rocas. E o velho, com os olhos pregados nelas, sentia as pálpebras umedecidas de uma felicidade sobre humana.

— Ó Maria, ó Luísa!...

Assim correram alguns instantes celestes. Ele olhava-as embevecido. Elas resplandeciam, como envoltas num vago luar. Nunca as vira tão lindas, com mais lindo sorriso. E como não falavam, o velho calou-se também num êxtase.

Elas continuavam a sorrir, continuavam a fiar. O vento, fora, soprava rijo nos sobros, assobiava. A noite ia passando a uivar, feia e longa; mas as horas voavam para aquele velho embelezado nas visões. As duas já tinham espiado as rocas. A porta ouviram-se três pancadas.

Truz, truz, truz!

— Quem me procura?! — tartamudeou o velho, como despertando de um sonho imenso.

Truz, truz, truz!

Arrastou-se trôpego, abriu a porta. As duas tinham desaparecido. Na treva espessa e lúgubre, distinguiu a figura doutro velho de grandes barbas, com uma sacola ao ombro.

— Sou eu, compadre, sou eu!

— Será possível! Que felicidade!

E abraçaram-se, num antigo e comovente abraço. O viandante pousou a sacola, sacudiu a neve do capote, e foi-se esquentar ao lume.

— Hás de vir gelado, Manuel!

Vinha, na verdade. Tinha andado muito, a noite estava má, nevava. Mas há quantos anos ele tinha querido vir passar ali o Natal! E contou, ao estalar das raízes secas no lume, naquela paz religiosa e bíblica, a sua crua sorte. 

Os velhos sentaram-se um em frente do outro. Enquanto o caminheiro espalmava as mãos sobre o braseiro, ia narrando a sua vida dura, por terras longínquas e ásperas, à busca de fortuna. Trabalhara muito, sofrera muito. E sempre, através de tormentos, a saudade do seu velho amigo lhe aparecia... A vida tinha-lhe ensinado muitas coisas; mas sobretudo que a felicidade está dentro de nós, vive conosco, e que todo aquele que semeia o bem, há de colher o bem...

O outro escutava-o silencioso, com a vista úmida.

— Acredita que toda a minha pena, compadre, era não poder abraçar-te!

— E eu julgava que tu, por tão longe, nunca mais te lembrarias...

— Pode lá esquecer quem é santo, compadre!

E contou que na volta, mar alto, começou, em pleno dia, a escurecer o céu. A marujada adivinhara a tormenta. Amainaram as velas, fecharam escotilhas, preveniram tudo. Minutos depois o vento rugia, o mar bramia. O navio dançava nos abismos revoltos, fulgentes de relâmpagos. Andaram perdidos, com o leme despedaçado, na água brava. Tiveram fome e sede — e a tempestade a jogar com eles, como com um grão de areia. Nos lábios das crianças, das mulheres, de todos, abrira a flor divina de uma oração. E a dele pedia a Deus que o deixasse vir à sua terra, para ver ainda o seu velho companheiro sem arrimo.

— E Deus ouviu-me. Aqui estou.

O velho atiçou o braseiro, deitou mais lenha ao fogo. O viajante ergueu-se, abriu a sacola, e foi tirando, para cima da masseira velha e carunchosa, os víveres que trazia, as ameixas, as passas, uma garrafa de vinho loiro.

— Não me esqueci da ceia, compadre.

— Assim vejo, Manuel. Deus te pague!

E cearam, como tantos anos antes, quando na aldeia havia alegria e fartura. Foram conversando, pela noite dentro, com a alma abrindo numa inflorescência misteriosa. Depois o viandante perguntou por todos, por tudo. E vieram as tristezas, as recordações pungentes: os filhos maus, a filha amada, a mulher morta!...

De novo o velho olhou para o banco da lareira, e manteve-se estático, com os olhos iluminados.

— Que tens, compadre?

— Olha, estão ali!

— Ah!... — disse o outro, sem surpresa, olhando em torno.

— Também vieram, Manuel, também vieram!...

De feito, o velho lá via de novo as duas, sorrindo-lhe angelicamente, cheias de graça. Uma trança de lírios luminosos tocava-as, o mesmo luar de há pouco as envolvia, como se emergissem, pálidas, de um grande sonho místico.

— A Maria, a Luísa, tão lindas!... — balbuciou o velho. 

O viandante respondeu simplesmente:

— Os que se amam nunca nos abandonam. Estão dentro de nós, vivem conosco.

O velho nem comia, enlevado nas aparições suaves. Via os cabelos loiros da filha, o seu ar virgem e esbelto; a mulher, como no dia em que partira, com os fundos olhos tristes, a boca airosa, onde jamais houvera o veneno da mentira.

— Vê tu que de mais longe vieram elas fazer-te companhia; não fui eu só, compadre.

A cara do viandante estava aureolada agora de uma irradiação magnética. Seguiu-se um diálogo de velhos que padeceram, que nobremente souberam amar, e que em certa hora suprema dizem, num murmúrio de almas, as suas confissões. Parábolas que lembram o mar, lembram estrelas... Belas e tristes como sepulcros, onde puseram flores, à lua cheia. É a lenda dos homens — sombras vagas, que uma luz vaga para sempre desfaz...

— Agora, compadre, vamos descansar. Venho quebrado de fadiga. Dormiremos juntos.

— Pois sim, eu não tenho outra enxerga (colchão).

As visões tinham fugido. E os dois adormeceram, noite alta, quando um galo cantava, como arauto da luz.
* * *

Mas de madrugada, quando pelas frestas entrava um fulgor dourado, o velho perguntou:

— Onde estás, compadre?

Ninguém respondeu. Uma grande paz enchia a casa. O velho procurou com os olhos, sentou-se na cama. Ninguém! Apenas na enxerga e no travesseiro de estopa ficara resplandecendo docemente a figura do compadre, como se fosse um brilho de nebulosas...

O velho ergueu-se, rezou de mãos postas. O dia de festa alvoreceu sem nuvens. Um sol pálido e terno enchia toda a terra de ouro. Da horta emperolada de orvalho reluzente, o velho veio ainda contemplar longamente a concha azul do céu misterioso e plácido...

Fonte:
Vários Autores. Contos de Natal Portugueses

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

D. João da Câmara (O Presépio)


Havia quase um ano que estava na loja, mercearia num bairro escuro, em que mal entrava de esguelha, como espreitando a medo, um raio de sol, entre as casarias muito altas da rua tortuosa.

Com doze anos, que saudades tinha da aldeia, da família, dos antigos companheiros de escola, dos cães amigos que ladravam de noite a vigiar a casa!

Tudo lá tão longe! Ah! Se ele soubesse!...

Pois nem uma lágrima lhe viera anuviar o último adeus, quando a diligência dera volta na estrada e ele vira sumirem-se os choupos da ribeira e o lenço que mão saudosa sacudia no alto da cabeça. É que o deslumbrava a ideia de Lisboa, de que tantas maravilhas grandes lhe contavam. Ainda agora partia, e já se via de volta na aldeia, de relógio e cadeia de ouro, a falar de alto, a puxar o bigode, a dar enchente, como o Januário, que lhe arranjara o lugar.

Com o seu examezinho de instrução primária, marçano* de uma tenda... Não, que os pais não o queriam para cavador. Tinham sido consultados o mestre-escola, o prior, o senhor Freitas, lavrador muito importante que arrastava tudo nas eleições, o Custódio, velhote de muito bom conselho, e todos se tinham mostrado de acordo: não havia como Lisboa para fazer um homem. Era ver o Januário que tinha casado com a viúva do patrão. A loja era de um cunhado dele, bom homem, áspero mas bom homem. Os olhos baixos do Manuelzito, fitos no chão, viam no tijolo resplandecer auréolas, que giravam como o fogo de vistas pelas festas.

Ah estava, havia quase um ano; e no desvão da escada, onde às dez horas o mandavam deitar, a morrer de calor no Verão, no Inverno a morrer de frio, punha-se a rever os campos e a casa deixados sem as lágrimas, que lhe corriam agora em grossos fios pelas faces.

Os primeiros dias tinham passado muito lentos. A conselho do Januário, um biscoito ou outro da mão papuda e oleosa do merceeiro tinham-no ajudado na tarefa. Assim é que ele havia de ser homem, um dia. Mas o patrão mostrava maior pressa. Pai, mãe e mestre-escola nunca lhe tinham batido. Atreveu-se uma vez a declará-lo. Foi pior. 

Chegou o Verão. As festas de São João e São Pedro aumentaram-lhe a tristeza. Reviu nesses dias mais intensamente a alegria da aldeia, os bailes à noite em volta da fogueira, a ida à fonte pela manhã, o sino a tocar à missa, e ele a pensar que, quando fosse crescido, havia de ter uma namorada por quem queimasse uma alcachofra, a quem cantasse umas quadras falando de estrelas e de flores.

A bulha nas ruas, nessas noites, não o deixara dormir. Cada bomba era uma pancada no coração. Um sol-e-dó que passou tocando arrancou-lhe lágrimas de imensa saudade.

Pelos Santos, com a melancolia do tempo, ainda foi pior. Depois veio o Inverno, começaram os dias de chuva. O mau tempo irritava o patrão, porque lhe afugentava fregueses. Na loja, com recantos muito negros, acendiam-se muito cedo os candeeiros, e o Manuelzito tinha pena da sombra em que se acolhia com maior amor. Pasmava os olhos, fugia com o pensamento para muito longe.

— Acorda, moleque! — gritava-lhe o patrão.

Estava a chegar o Natal. Que lindo era o Natal lá na aldeia! Andavam na rua a abrir um cano; quase ninguém ali passava; os passeios eram cheios de lama. O patrão andava furioso. Então o pequeno teve uma ideia.
* * *

Lembrou-se de fazer muito misteriosamente um presépio. O segredo em que havia de trabalhar mais o animava na tarefa. Todos os dias, muito a medo, enquanto o patrão almoçava ou saía da loja algum instante, vinha à porta, se não havia freguês a servir, espreitava, corria, apanhava um nadinha de barro nas escavações do cano. Escondia-o, e debaixo do balcão, quase às apalpadelas, ia fazendo as figurinhas. Assim modelou o menino Jesus, que deitou num berço de caixa de fósforos, Nossa Senhora de mãos postas, São José de grandes barbas, os três Reis Magos a cavalo, e os pastores, um a tocar gaita de foles, outro com um cordeirinho às costas, e uma mulher com uma bilha. Não se pareceriam lá muito; mas ele deu provas de que sabia puxar pela imaginação. Sempre lhe faltava alguma coisa. Havia problemas difíceis de resolver. 

Um dia, engraxando as botas do patrão, lembrou-se de engraxar um dos reis, e pôs-lhe depois umas bolinhas brancas, de papel a fingir os olhos. Aos anjos fez asas com as penas de uma galinha que depenou para um jantar de festa que não comeu. Moeu vidro para fingir as águas do rio, e no papel de embrulho recortou um moinho que só havia de armar à última hora. Levou nisso parte de Novembro e Dezembro todo, até ao Natal. Escondia os materiais debaixo da enxerga e, de vez em quando, revia-se na obra.

O que mais o encantava era o menino Jesus, com a cabeça do tamanho de um grão de milho, com buraquinhos a fingirem olhos, ouvidos, nariz e boca. Tinha mãos com cinco dedos riscados a canivete e dois pezinhos que ele achava um encanto. Com tiras de papel azul havia de fazer o céu e, como o não tinha dourado onde recortasse a estrela, fez em papel branco uma meia Lua; vinha quase a dar na mesma

Aquele mês passou correndo.

Era a véspera do Natal. As dez e meia, o patrão mandou-o deitar e saiu. Que alegria estar só! Não lhe deixavam luz; mas que importava? Às escuras armaria o presépio. E logo começou. Enrolou o moinho, pôs-lhe as velas; esticou o papel azul que fingia o céu e pregou nele com um alfinete a meia Lua; espalhou o vidro moído, num S em volta das palhas; dispôs as figurinhas, suspendeu os anjos. Depois fez uma carreira de fósforos de cera, que todos se tinham de acender ao mesmo tempo, num deslumbramento, quando desse meia noite.

Deram onze e três quartos. Ajoelhou. Batia-lhe o coração, que lhe parecia que deviam de ser milagrosas as figurinhas, que delas lhe viria algum bem, consolação da sua vida triste. Que seria quando ele iluminasse o desvão da escada e os santinhos se pusessem todos a luzir quase tanto como os verdadeiros? Rezava-lhes... Rezava-lhes... Àquela hora, lá na aldeia, tocavam os sinos alegres e iam ranchos contentes a caminho da igreja. Lá dentro reluzia o trono, e o sacristão muito atarefado ia, vinha...

Meia noite!

Acendeu os fósforos e ficou embasbacado! Nunca assim vira coisa tão perfeita. Os anjos voavam deveras, os cavalos dos reis galopavam, o rio corria, as velas giravam no moinho e os pontinhos do Menino Jesus sorriam-lhe no rosto a São José e a Nossa Senhora!

Pôs-se a cantar, como lá na aldeia:

Andava nessas campinas,
Esta noite, um querubim.

Tão enlevado cantava, que nem ouviu o patrão abrir a porta, entrar na loja, chegar ao desvão. Acordou-o do êxtase um pontapé.

— Isso... Agora larga-me fogo à escada!... Varre-me já esse lixo!

E ele, a chorar, levantou-se, foi buscar a vassoura.

O bruto continuava aos pontapés.

— Vá?... Vá!

Mas quando se deitou, encontrou na enxerga uma figurinha. Apalpou-a, conheceu-a logo: era a do Menino Jesus. Beijou-a muito. Pior vida levara do que ele... Sentiu de repente um dó muito grande do patrão, que não vira nada, nem que era tão bonito aquele Menino, com um olhar tão meigo nos seus olhinhos picados.
____________________
Nota:
* Marçano: aprendiz de caixeiro, esp. de loja de gêneros alimentícios; 
por extensão: novato em qualquer ocupação; principiante.

Fonte:
Vários Autores. Contos de Natal Portugueses

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Conto Tradicional do Algarve/Portugal (As Três Nuvens)


Era uma vez um lavrador muito rico e tinha três filhos: dois, os mais velhos, eram muito estimados pelos seus pais e andavam ricamente vestidos; o mais novo era desprezado. 

 Tinha o lavrador uma rica propriedade, onde aparecia um medo. 

 Caseiro que lá se deixava dormir numa noite era encontrado morto no dia seguinte. Vendo o pai que a propriedade estava muito estragada, porque os vizinhos metiam nela os seus gados, resolveu mandar o filho mais novo guardá-la. Aceitou o mancebo a incumbência, pois era muito bom e obediente, mas pediu ao pai que mandasse no dia seguinte buscar o seu cadáver para não permanecer por muito tempo insepulto. 

 Despediu-se do pai e dos irmãos e foi para o seu desterro, levando consigo uma cítara, seu instrumento favorito. 

 O prédio onde o caseiro costumava dormir ficava no centro da propriedade. O rapaz chegou ali e tirou do prédio uma cama que colocou sobre um parque, de bonita vista, através do prédio. Logo que escureceu foi deitar-se, entretendo-se muito tempo a tocar o seu instrumento. Alta noite adormeceu. Tinha pegado no sono, sentiu-se afogado sob um grande peso; sentou-se na cama, pegou na cítara e disse em voz alta: 

 – Que peso é o que sinto? Olhem que parto a cabeça seja a quem  for. 

 E pôs-se a fazer um grande sarilho com a cítara, como se fora um alfange. 

 Então ouviu o mancebo uma voz: 

 – Não me mates, dizia a voz, porque te faço bem. Eu sou a nuvem negra, e, quando tiveres necessidade de alguma coisa, chama por mim. 

 No dia seguinte ergueu-se ele da cama e dirigiu-se para casa, onde era esperado por quatro homens com uma tumba para o levar ao cemitério. 

 – Podem retirar-se: ainda não foi desta, disse o mancebo. 

 Na noite seguinte repetiu-se a mesma cena com a diferença da resposta: 

 – Não me mates: eu sou a nuvem parda e, quando queiras alguma coisa, chama por mim. 

 Na terceira noite, e depois da mesma cena das noites antecedentes, ouviu: 

 – Não me mates: sou a nuvem branca. Sempre que te seja preciso, chama por mim. Eu e as minhas irmãs estávamos aqui encantadas, foste tu que nos desencantaste com os maviosos sons do teu instrumento. 

 E a nuvem branca desapareceu como tinham desaparecido as outras. 

 Conservou-se o mancebo por algum tempo na propriedade, sendo raríssimas vezes visitado pelo pai e isso no mero intuito de examinar como o filho a administrava. 

 Um dia teve saudades da família e foi visitá-la. Logo que entrou na casa paterna viu muitos alfaiates ocupados em talhar e fazer riquíssimos fatos de homem; soube então que o rei mandara anunciar que casaria com a princesa o cavalheiro que se saísse vitorioso de três torneios a seguir. 

 Entretida a família nos arranjos dos dois irmãos, que aspiravam à mão da princesa, nenhum caso fizeram do irmão mais novo. Este demorou-se pouco tempo em casa dos seus e retirou-se para a propriedade. 

 Nessa noite pensou que ele poderia entrar nos torneios, e quando foram marcados os dias para as lutas já tinha formada a tenção de lá se apresentar. 

 Na manhã do dia do primeiro torneio disse o mancebo: – Valha-me a nuvem preta. 

 Apareceu logo uma nuvem e dela saiu uma jovem. – O que me queres? perguntou. 

 – Entrar no torneio e sair vencedor. 

 A jovem ergueu uma pequena vara, proferiu algumas palavras, e apareceu um cavalo negro, trazendo pequena mala, onde vinham riquíssimas vestes e armas de cavaleiro da mesma cor do cavalo. 

 O mancebo vestiu-se, empunhou as armas, montou no cavalo e entrou no torneio, saindo vencedor. Logo que saiu da cidade desapareceram o cavalo, as vestes e as armas. 

 No dia seguinte disse: 

 – Valha-me a nuvem parda. 

 Apareceu outra nuvem, de onde saiu uma Jovem que perguntou ao mancebo o que queria. 

 – Entrar no torneio e sair vencedor. 

 E sucedeu como no dia antecedente. Quando ele entrou na praça percebeu que a princesa o atendia com especial agrado. Ainda outra vez saiu vencedor, retirando-se logo para fora da cidade e desaparecendo o cavalo, as vestes e as armas. 

 No terceiro dia invocou a nuvem branca e entrou no torneio montado em cavalo branco e com armas brancas bordadas a ouro. Ficou vencedor, e então viu-se cercado das pessoas da corte que o convidaram a ir à presença do rei. O mancebo foi. 

 Na presença do rei e da princesa, tirou a viseira. E o rei e a princesa agradaram-se do jovem e logo foi ali resolvido o seu casamento. 

 Os dois irmãos do mancebo conservavam-se a certa distância e, quando viram que estava resolvido o casamento com o seu irmão, tiveram grande desespero. Um deles lançou-se da janela à rua, morrendo despedaçado, o outro atravessou-se no próprio alfange. 

 Houve grandes festas no palácio e em todo o reino por ocasião daquele casamento. 

Fonte:
Xavier Ataíde de Oliveira. Contos tradicionais do Algarve. edição Vega. Disponível no Estudio Raposa. 

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Luís Vaz de Camões (Sonetos Comentados)


001

Enquanto quis Fortuna que tivesse
esperança de algum contentamento,
o gosto de um suave pensamento
me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
minha escritura a algum juízo isento,
escureceu-me o engenho co tormento,
para que seus enganos não dissesse.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
a diversas vontades! Quando lerdes
num breve livro casos tão diversos,

verdades puras são, e não defeitos...
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
tereis o entendimento de meus versos!
________________________

Camões fala da matéria prima de sua poesia - o Amor - e alerta que, para ser entendido, é necessário que se partilhe o mesmo sentimento
_____________________________________________

002

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando se com vê la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assi negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida;

começa de servir outros sete anos,
dizendo:-Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida.
__________________________

Soneto narrativo de influência petrarquiana. O amor de Jacó por Raquel transcende a tudo e simboliza a fidelidade e a constância, fazendo com que o pastor viva para e pelo amor, embora a possibilidade de concretiza-lo seja remota. O amor é idealizado, perfeito. Inspirado no personagem bíblico do Gênesis.
_________________________________________

003

Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar me, e novas esquivanças;
que não pode tirar me as esperanças,
que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que n'alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei porquê.
__________________________

Mudanças são contínuas. O interessante neste soneto é o jogo de imagens sucessivas que em si mesmas expressam a movimentação dos acontecimentos,
pontos de reflexão do autor. Percebe-se que o ritmo vai acompanhando a estrutura do soneto até o final inesperado, quando é revelada uma mudança da própria mudança.
___________________________________________

004

Tanto de meu estado me acho incerto,
que em vivo ardor tremendo estou de frio;
sem causa, juntamente choro e rio,
o mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto, um desconcerto;
da alma um fogo me sai, da vista um rio;
agora espero, agora desconfio,
agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando,
num'hora acho mil anos, e é de jeito
que em mil anos não posso achar ü'hora.

Se me pergunta alguém porque assi ando,
respondo que não sei; porém suspeito
que só porque vos vi, minha Senhora.
_________________________

Soneto em que Camões compõe o retrato feminino ideal. Pouco descritivo, no sentido físico, encerra aspectos psicológicos do ente amado - "morrer de olhos", "riso brando", "despejo quieto"... A força paradoxal dessa mulher aparentemente tão revoltada e frágil por aprisioná-lo.
_______________________________________

005

Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
_____________________________
Inspirado em Petrarca, de quem toma o último trecho, estes versos trazem um dos temas mais trabalhados por Camões: a importância do engenho e da arte para cantar plenamente as diferentes faces do amor, materializado na beleza inatingível ("de vosso gesto / A composição alta e milagrosa") da mulher que o desprezara.
___________________________________________

006

Doces águas e claras do Mondego,
doce repouso de minha lembrança,
onde a comprida e pérfida esperança
longo tempo após si me trouxe cego;

de vós me aparto; mas, porém, não nego
que inda a memória longa, que me alcança,
me não deixa de vós fazer mudança,
mas quanto mais me alongo, mais me achego.

Bem pudera Fortuna este instrumento
d'alma levar por terra nova e estranha,
oferecido ao mar remoto e vento;

mas alma, que de cá vos acompanha,
nas asas do ligeiro pensamento,
para vós, águas, voa, e em vós se banha.
_______________________________

Soneto descritivo em que o poeta oscila entre o ato de ser a natureza e o de ser visto por ela. Neste jogo, existe a troca de sensações que vão de benfazeja alegria, oferecida pela natureza ao poeta, a profunda amargura, causada pelo "mal" (saudade do amor perdido) que o entristece.
___________________________________________

Fonte:
Luís de Camões. Lírica de Camões: melhores poesias. Notas de Célia A. N. Passoni.  
2.ed. São Paulo: Núcleo, 1997.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Anthero de Quental (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol. 8) II



A FADA NEGRA

Uma velha de olhar mudo e frio,
De olhos sem cor, de lábios glaciais,
Tomou-me nos seus braços sepulcrais.
Tomou-me sobre o seio ermo e vazio.

E beijou-me em silêncio, longamente,
Longamente me uniu à face fria...
Oh! como a minha alma se estorcia
Sob os seus beijos, dolorosamente!

Onde os lábios pousou, a carne logo
Mirrou-se e encaneceu-se-me o cabelo,
Meus ossos confrangeram-se. O gelo
Do seu bafo secava mais que o fogo.

Com seu olhar sem cor, que me fitava,
A Fada negra me coalhou o sangue.
Dentro em meu coração inerte e exangue
Um silencio de morte se engolfava.

E volvendo em redor olhos absortos,
O mundo pareceu-me uma visão,
Um grande mar de névoa, de ilusão,
E a luz do sol como um luar de mortos...

Como o espectro dum mundo já defunto,
Um farrapo de mundo, nevoento,
Ruína aérea que sacode o vento,
Sem cor, sem consistência, sem conjunto...

E quanto adora quem adora o mundo,
Brilho e ventura, esperar, sorrir,
Eu vi tudo oscilar, pender, cair,
Inerte e já da cor dum moribundo.

Dentro em meu coração, nesse momento,
Fez-se um buraco enorme – e nesse abismo
Senti ruir não sei que cataclismo,
Como um universal desabamento...

Razão! Velha de olhar agudo e cru
E de hálito mortal mais do que a peste!
Pelo beijo de gelo que me deste,
Fada negra, bendita sejas tu!

Bendita sejas tu pela agonia
E o luto funeral daquela hora
Em que eu vi baquear quanto se adora,
Vi de que noite é feita a luz do dia!

Pelo pranto e as torturas benfazejas
Do desengano... pela paz austera
Dum morto coração, que nada espera,
Nem deseja também... bendita sejas!

IGNOTO DEO

Que beleza mortal se te assemelha,
Ó sonhada visão desta alma ardente,
Que refletes em mim teu brilho ingente,
Lá como sobre o mar o sol se espelha?

O mundo é grande – e esta ânsia me aconselha
A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,
Pelo mundo procuro um Deus clemente,
Mas a ara só lhe encontro... nua e velha...

Não é mortal o que eu em ti adoro.
Que és tu aqui? olhar de piedade,
Gota de mel em taça de venenos...

Pura essência das lagrimas que choro
E sonho dos meus sonhos! se és verdade,
Descobre-te, visão, ao céu ao menos!

LAMENTO

Um diluvio de luz cai da montanha:
Eis o dia! eis o sol! O esposo amado!
Onde ha por toda a terra um só cuidado
Que não dissipe a luz que o mundo banha?

Flor a custo medrada em erma penha,
Revolto mar ou golfo congelado,
Aonde ha ser de Deus tão olvidado
Para quem paz e alivio o céu não tenha?

Deus é Pai! Pai de toda a criatura:
E a todo o ser o seu amor assiste:
De seus filhos o mal sempre é lembrado...

Ah! se Deus a seus filhos dá ventura
Nesta hora santa... e eu só posso ser triste...
Serei filho, mas filho abandonado!

A M.C. (I)

Pôs-te Deus sobre a fronte a mão piedosa:
O que fala o poeta e o soldado
Volveu a ti o olhar, de amor velado,
E disse-te: «Vai, filha, sê formosa!»

E tu, descendo na onda harmoniosa,
Pousaste neste solo angustiado,
Estrela envolta num clarão sagrado,
Do teu límpido olhar na luz radiosa...

Mas eu... posso eu acaso merecer-te?
Deu-te o Senhor, mulher! O que é vedado,
Anjo! Deu-te o Senhor um mundo á parte.

E a mim, a quem deu olhos para ver-te,
Sem poder mais... a mim o que me ha dado?
Voz, que te cante, e uma alma para amar-te!

A SANTOS VALENTE

Estreita é do prazer na vida a taça:
Largo, como o oceano é largo e fundo,
E como ele em venturas infecundo,
O cálix amargoso da desgraça.

E contudo nossa alma, quando passa
incerta peregrina, pelo mundo,
Prazer só pede à vida, amor fecundo,
É com essa esperança que se abraça.

É lei de Deus este aspirar imenso...
E contudo a ilusão impôs à vida.
E manda buscar luz e dá-nos treva!

Ah! se Deus acendeu um foco intenso
De amor e dor em nós, na ardente lida,
Porque a miragem cria... ou porque a leva?

TORMENTO DO IDEAL

Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,

Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre:
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cor, bem como a nuvem que erra
Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.

Pedindo à forma, em vão, a ideia pura,
Tropeço, em sombras, na matéria dura.
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o batismo dos poetas,
E assentado entre as formas incompletas
Para sempre fiquei pálido e triste.

ASPIRAÇÃO

Meus dias vão correndo vagarosos
Sem prazer e sem dor, e até parece
Que o foco interior já desfalece
E vacila com raios duvidosos.

É bela a vida e os anos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor falece...
Mas, se a beleza aqui nos aparece,
Logo outra lembra de mais puros gozos.

Minh'alma, ó Deus! a outros céus aspira:
Se um momento a prendeu mortal beleza,
É pela eterna pátria que suspira...

Porém do pressentir dá-me a certeza.
Dá-ma! e sereno, embora a dor me fira,
Eu sempre bendirei esta tristeza!

A FLORIDO TELLES

Se comparo poder ou ouro ou fama,
Venturas que em si têm oculto o dano,
Com aquele outro afeto soberano,
Que amor se diz e é luz de pura chama,

Vejo que são bem como arteira dama,
Que sob honesto riso esconde o engano,
E o que as segue, como homem leviano
Que por um vão prazer deixa quem ama.

Nasce do orgulho aquele estéril gozo
E a gloria dele é cousa fraudulenta,
Como quem na vaidade tem a palma:

Tem na paixão seu brilho mais formoso
E das paixões também some-o a tormenta...
Mas a glória do amor... essa vem d'alma!

SALMO

Esperemos em Deus! Ele ha tomado
Em suas mãos a massa inerte e fria
Da matéria impotente e, num só dia,
Luz, movimento, ação, tudo lhe ha dado.

Ele, ao mais pobre de alma, ha tributado
Desvelo e amor: ele conduz á via
Segura quem lhe foge e se extravia,
Quem pela noite andava desgarrado.

E a mim, que aspiro a ele, a mim, que o amo,
Que anseio por mais vida e maior brilho.
Há de negar-me o termo deste anseio?

Buscou quem o não quis; e a mim, que o chamo,
Há de fugir-me, como a ingrato filho?
Ó Deus, meu Pai e abrigo! Espero!... eu creio!

A M.C. (II)

No Céu, se existe um céu para quem chora.
Céu, para as magoas de quem sofre tanto...
Se é lá do amor o foco, puro e santo,
Chama que brilha, mas que não devora...

No céu, se uma alma nesse espaço mora.
Que a prece escuta e encharca o nosso pranto...
Se há Pai, que estenda sobre nós o manto
Do amor piedoso... que eu não sinto agora...

No céu, ó virgem! Findarão meus males:
Hei de lá renascer, eu que pareço
Aqui ter só nascido para dores.

Ali, ó lírio dos celestes vales!
Tendo seu fim, terão o seu começo.
Para não mais findar, nossos amores.

A JOÃO DE DEUS

Se é lei, que rege o escuro pensamento,
Ser vã toda a pesquisa da verdade,
Em vez da luz achar a escuridade,
Ser uma queda nova cada invento;

É lei também, embora cru tormento,
Buscar, sempre buscar a claridade,
E só ter como certa realidade
O que nos mostra claro o entendimento.

O que há de a alma escolher, em tanto engano?
Se uma hora crê de fé, logo duvida:
Se procura, só acha... o desatino!

Só Deus pode acudir em tanto dano:
Esperemos a luz duma outra vida,
Seja a terra degredo, o céu destino.

Fonte:
Anthero de Quental. Sonetos Completos.