quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Alvaro de Campos (Nota Preliminar)

Um poema é a projeção de uma idéia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão-somente o meio de que a idéia se serve para se reduzir a palavras.

Não vejo, entre a poesia e a prosa, a diferença fundamental, peculiar da própria disposição da mente, que Campos estabelece. Desde que se usa de palavras, usa-se de um instrumento ao mesmo tempo emotivo e intelectual.

A palavra contém uma idéia e uma emoção. Por isso não há prosa, nem a mais rigidamente científica, que não ressume qualquer suco emotivo.
Por isso não há exclamação, nem a mais abstratamente emotiva, que não implique, ao menos, o esboço de uma idéia.

Poderá alegar-se, por exemplo, que a exclamação pura - "Ah ", digamos — não contém elemento algum intelectual. Mas não existe um "ah ", assim escrito isoladamente, sem relação com qualquer coisa de anterior. Ou consideramos o "ah " como falado e no tom da voz vai o sentimento que o anima, e portanto a idéia ligada à definição desse sentimento; ou o "ah " responde a qualquer frase, ou por ela se forma, e manifesta uma idéia que essa frase provocou.

Em tudo que se diz — poesia ou prosa — há idéia e emoção. A poesia difere da prosa apenas em que escolhe um novo meio exterior, além da palavra, para projetar a idéia em palavras através da emoção. Esse meio é o ritmo, a rima, a estrofe; ou todas, ou duas, ou uma só. Porém meno que uma só não creio que possa ser.

A idéia, ao servir-se da emoção para se exprimir em palavras, contorna e define essa emoção, e o ritmo, ou a rima, ou a estrofe, são a projeção desse contorno, a afirmação da idéia através de uma emoção, que, se a idéia a não contornasse, se extravasaria e perderia a própria capacidade de expressão.

É o que, em meu entender, sucede nos poemas de Campos. São um extravasar de emoção. A idéia serve a emoção, não a domina. E o homem — poeta ou não poeta — em quem a emoção domina a inteligência recua a feição do seu ser a estádios anteriores da evolução, em que as faculdades de inibição dormiam ainda no embrião da mente. Não pode ser que arte, que é um produto da cultura, ou seja do desenvolvimento supremo da consciência que o homem tem de si mesmo, seja tanto mais superior, quanto maior for a sua semelhança com as manifestações mentais que distinguem os estados inferiores da evolução cerebral.

A poesia é superior à prosa porque exprime, não um grau superior de emoção, mas, por contra, um grau superior do domínio dela, a subordinação do tumulto em que a emoção naturalmente se exprimiria (como verdadeiramente diz Campos) ao ritmo, à rima, à estrofe.

Como o estado mental, em que a poesia se forma, é, deveras, mais emotivo que aquele em que naturalmente se forma a prosa, há mister que ao estado poético se aplique uma disciplina mais dura que aquela [que] se emprega no estado prosaico da mente. E esses artifícios — o ritmo, a rima, a estrofe — são instrumentos de tal disciplina.

No sentido em que Campos diz que são artifícios o ritmo, a rima e a estrofe, se pode dizer que são artifícios: a vontade que corrige defeitos, a ordem que policia sociedades, a civilização que reduz os egoísmos à forma sociável.

Na prosa mais propriamente prosa — a prosa científica ou filosófica —, a que exprime diretamente idéias e só idéias, não há mister de grande disciplina, pois na própria circunstância de ser só de idéias vai disciplina bastante. Na prosa mais largamente emotiva, como a que distingue a oratória, ou tem feição descritiva, há que atender mais ao ritmo, à disposição, à organização das idéias, pois essas são ali em menor número, nem formam o fundamento da matéria. Na prosa amplamente emotiva — aquela cujos sentimentos poderiam com igual facilidade ser expostos em poesia — há que atender mais que nunca à disposição da matéria, e ao ritmo que acompanhe a exposição. Esse ritmo não é definido, como o é no verso, porque a prosa não é verso. O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é escrever prosa ritmada com pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rítmicos, e esses pontos de pausa maior, determina-os ele pelos fins dos versos. Campos é um grande prosador, um prosador com uma grande ciência do ritmo; mas o ritmo de que tem ciência, é o ritmo da prosa, e a prosa de que se serve é aquela em que se introduziu, além dos vulgares sinais de pontuação, uma pausa maior e especial, que Campos, como os seus pares anteriores e semelhantes, determinou representar graficamente pela linha quebrada no fim, pela linha disposta como o que se chama um verso. Se Campos, em vez de fazer tal, inventasse um sinal novo de pontuação — digamos o traço vertical ( ) — para determinar esta ordem de pausa, ficando nós sabendo que ali se pausava com o mesmo gênero de pausa com que se pausa no fim de um verso, não faria obra diferente, nem estabeleceria a confusão que estabeleceu.

A disciplina é natural ou artificial, espontânea ou refletida. O que distingue a arte clássica, propriamente dita, a dos gregos e até dos romanos, da arte pseudoclássica, como a dos franceses em seus séculos de fixação, é que a disciplina de uma está nas mesmas emoções, com uma harmonia natural da alma, que naturalmente repele o excessivo, ainda ao senti-lo; e a disciplina da outra está em uma deliberação da mente de não se deixar sentir para cima de certo nível. A arte pseudoclássica é fria porque é uma regra; a clássica tem emoção porque é uma harmonia.

Quase se conclui do que diz Campos, de que o poeta vulgar sente espontaneamente com a largueza que naturalmente projetaria em versos como os que ele escreve; e depois, refletindo, sujeita essa emoção a cortes e retoques e outras mutilações ou alterações, em obediência a uma regra exterior. Nenhum homem foi alguma vez poeta assim. A disciplina do ritmo é aprendida até fícar sendo uma parte da alma: o verso que a emoção produz nasce já subordinado a essa disciplina. Uma emoção naturalmente harmônica é uma emoção naturalmente ordenada; uma emoção naturalmente ordenada é uma emoção naturalmente traduzida num ritmo ordenado, pois a emoção dá o ritmo e a ordem que há nela, a ordem que no ritmo há.

Na palavra, a inteligência dá a frase, a emoção o ritmo. Quando o pensamento do poeta é alto, isto é, formado de uma idéia que produz uma emoção, esse pensamento, já de si harmônico pela junção equilibrada de idéia e emoção, e pela nobreza de ambas, transmite esse equilíbrio de emoção e de sentimento à frase e ao ritmo, e assim, como disse, a frase, súdita do pensamento que a define, busca-o, e o ritmo, escravo da emoção que esse pensamento agregou a si, o serve.


Fonte:
http://www.secrel.com.br/jpoesia/facam14.html

Álvaro de Campos (Poesias)

A Casa Branca Nau Preta

Estou reclinado na poltrona, é tarde, o Verão apagou-se...
Nem sonho, nem cismo, um torpor alastra em meu cérebro...
Não existe manhã para o meu torpor nesta hora...
Ontem foi um mau sonho que alguém teve por mim...
Há uma interrupção lateral na minha consciência...
Continuam encostadas as portas da janela desta tarde
Apesar de as janelas estarem abertas de par em par...
Sigo sem atenção as minhas sensações sem nexo,
E a personalidade que tenho está entre o corpo e a alma...

Quem dera que houvesse
Um terceiro estado pra alma, se ela tiver só dois...
Um quarto estado pra alma, se são três os que ela tem...
A impossibilidade de tudo quanto eu nem chego a sonhar
Dói-me por detrás das costas da minha consciência de sentir...

As naus seguiram,
Seguiram viagem não sei em que dia escondido,
E a rota que devem seguir estava escrita nos ritmos,
Os ritmos perdidos das canções mortas do marinheiro de sonho...

Árvores paradas da quinta, vistas através da janela,
Árvores estranhas a mim a um ponto inconcebível à consciência de as estar vendo,
Árvores iguais todas a não serem mais que eu vê-las,
Não poder eu fazer qualquer coisa gênero haver árvores que deixasse de doer,
Não poder eu coexistir para o lado de lá com estar-vos vendo do lado de cá.
E poder levantar-me desta poltrona deixando os sonhos no chão...

Que sonhos? ... Eu não sei se sonhei ... Que naus partiram, para onde?
Tive essa impressão sem nexo porque no quadro fronteira
Naus partem — naus não, barcos, mas as naus estão em mim,
E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida...

Quem pôs as formas das árvores dentro da existência das árvores?
Quem deu frondoso a arvoredos, e me deixou por verdecer?

Onde tenho o meu pensamento que me dói estar sem ele,
Sentir sem auxílio de poder para quando quiser, e o mar alto
E a última viagem, sempre para lá, das naus a subir...

Não há, substância de pensamento na matéria de alma com que penso ...
Há só janelas abertas de par em par encostadas por causa do calor que já não faz,
E o quintal cheio de luz sem luz agora ainda-agora, e eu.

Na vidraça aberta, fronteira ao ângulo com que o meu olhar a colhe
A casa branca distante onde mora... Fecho o olhar...
E os meus olhos fitos na casa branca sem a ver
São outros olhos vendo sem estar fitos nela a nau que se afasta.
E eu, parado, mole, adormecido,
Tenho o mar embalando-me e sofro...

Aos próprios palácios distantes a nau que penso não leva.
As escadas dando sobre o mar inatingível ela não alberga.
Aos jardins maravilhosos nas ilhas inexplícitas não deixa.
Tudo perde o sentido com que o abrigo em meu pórtico
E o mar entra por os meus olhos o pórtico cessando.

Caia a noite, não caia a noite, que importa a candeia
Por acender nas casas que não vejo na encosta e eu lá?

Úmida sombra nos sons do tanque noturna sem lua, as rãs rangem,
Coaxar tarde no vale, porque tudo é vale onde o som dói.

Milagre do aparecimento da Senhora das Angústias aos loucos,
Maravilha do enegrecimento do punhal tirado para os atos,
Os olhos fechados, a cabeça pendida contra a coluna certa,
E o mundo para além dos vitrais paisagem sem ruínas...

A casa branca nau preta...
Felicidade na Austrália...

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A Frescura

Ah a frescura na face de não cumprir um dever!
Faltar é positivamente estar no campo!
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!
Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros,
Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,
Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que'eu saberia que não vinha.
Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.
Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.
E tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,
Deliberadamente à mesma hora...
Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.
É tão engraçada esta parte assistente da vida!
Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto,
Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.

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A Praça

A praça da Figueira de manhã,
Quando o dia é de sol (como acontece
Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,
Embora seja uma memória vã.
Há tanta coisa mais interessante
Que aquele lugar lógico e plebeu,
Mas amo aquilo, mesmo aqui ... Sei eu
Por que o amo? Não importa. Adiante ...

Isto de sensações só vale a pena
Se a gente se não põe a olhar para elas.
Nenhuma delas em mim serena...

De resto, nada em mim é certo e está
De acordo comigo próprio. As horas belas
São as dos outros ou as que não há.

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Acaso

No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.
A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar,
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Por que todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loira?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal ...

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.

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Acordar

Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar da Rua do Ouro,
Acordar do Rocio, às portas dos cafés,
Acordar
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme,
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.

Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.

Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne,
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom,
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,
Seja

A mulher que chora baixinho
Entre o ruído da multidão em vivas...
O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito,
Cheio de individualidade para quem repara...
O arcanjo isolado, escultura numa catedral,
Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã,
Tudo isto tende para o mesmo centro,
Busca encontrar-se e fundir-se
Na minha alma.

Eu adoro todas as coisas
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.
Tenho pela vida um interesse ávido
Que busca compreendê-la sentindo-a muito.
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas,
Para aumentar com isso a minha personalidade.

Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio
E a minha ambição era trazer o universo ao colo
Como uma criança a quem a ama beija.
Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras,
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo
Do que as que vi ou verei.
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.

Dá-me lírios, lírios
E rosas também.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também,
Crisântemos, dálias,
Violetas, e os girassóis
Acima de todas as flores...

Deita-me as mancheias,
Por cima da alma,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Meu coração chora
Na sombra dos parques,
Não tem quem o console
Verdadeiramente,
Exceto a própria sombra dos parques
Entrando-me na alma,
Através do pranto.
Dá-me rosas, rosas,
E llrios também...

Minha dor é velha
Como um frasco de essência cheio de pó.
Minha dor é inútil
Como uma gaiola numa terra onde não há aves,
E minha dor é silenciosa e triste
Como a parte da praia onde o mar não chega.
Chego às janelas
Dos palác ios arruinados
E cismo de dentro para fora
Para me consolar do presente.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Mas por mais rosas e lírios que me dês,
Eu nunca acharei que a vida é bastante.
Faltar-me-á sempre qualquer coisa,
Sobrar-me-á sempre de que desejar,
Como um palco deserto.

Por isso, não te importes com o que eu penso,
E muito embora o que eu te peça
Te pareça que não quer dizer nada,
Minha pobre criança tísica,
Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também..

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Fonte:
Álvaro de Campos. Obra poética disponível em http://www.secrel.com.br/jpoesia/facam.html

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Clarice Lispector (1920 - 1977)

CONTEXTUALIZAÇÃO

O fim da 2ª Grande Guerra trazia consigo duras e importantes lições: o homem, na sua insanidade, era capaz de por em risco a sobrevivência do planeta; em nome da crença na superioridade de uma “raça”, um povo podia ser aniquilado; a busca da paz poderia justificar o uso de bombas com poder de destruição inimaginável. Como evitar que esses erros se repetissem? O que fazer para remediar tantas injustiças? Era preciso que a humanidade assumisse a responsabilidade pela condução de problemas que dizem respeito a todos os seres humanos. Os problemas não podiam mais ser tratados isoladamente, em seus contextos nacionais. Preocupados em construir uma paz duradoura, mediada por gente de todas as Nações, foi criada a ONU (Organização das Nações Unidas). Mais tarde, discutia-se a Declaração dos Direitos do Homem, a criação do Estado de Israel. Tudo parecia caminhar bem, mas a disputa pelo poder entre as nações e suas ideologias dividiria o mundo em dois blocos: a democracia e o capitalismo selvagem dos americanos contra o autoritarismo socialista da União Soviética. Era a chamada Guerra Fria.

No Brasil, a queda da ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas, criava grandes expectativas de redemocratização. Os partidos são legalizados, sem exceção, e convoca-se eleição geral. Mas a sociedade ainda não estava madura para considerar as reais necessidades do povo antes dos privilégios de uma minoria. Voltam os tempos de perseguições políticas, ilegalidades, exílios.

A literatura manifestaria, também, significativas mudanças, retrocedendo em seus processos, em alguns casos, e avançando rumo às vanguardas artísticas em outros casos. Na prosa, o regionalismo pitoresco seria banido pela ficção inquietante de Guimarães Rosa. Clarice Lispector, não menos intrigante, rumaria em direção a uma literatura intimista, de sondagem psicológica, introspectiva.

Na poesia, um rigor crítico mais apurado, a busca de soluções mais dinâmicas daria origem à poesia de João Cabral de Melo Neto, onde se vê rigor formal, riqueza expressiva, visão clara dos problemas do homem na sociedade.

É a chamada 3ª Geração Modernista.

BIOGRAFIA CRONOLÓGICA

1920 - Clarice Lispector nasce em Tchetchelnik, na Ucrânia, no dia 10 de dezembro, tendo recebido o nome de Haia Lispector, terceira filha de Pinkouss e de Mania Lispector. Seu nascimento ocorre durante a viagem de emigração da família em direção à América.

1922 - Seu pai consegue, em Bucareste, um passaporte para toda a família no consulado da Rússia. Era fevereiro quando foram para a Alemanha e, no porto de Hamburgo, embarcam no navio "Cuyaba" com destino ao Brasil. Chegam a Maceió em março desse ano, sendo recebidos por Zaina, irmã de Mania, e seu marido e primo José Rabin, que viabilizara a entrada da biografada e de sua família no Brasil mediante uma "carta de chamada". Por iniciativa de seu pai, à exceção de Tania — irmã, todos mudam de nome: o pai passa a se chamar Pedro; Mania, Marieta; Leia — irmã, Elisa; e Haia, em Clarice. Pedro passa a trabalhar com Rabin, já um próspero comerciante.

1925 - A família muda-se para Recife, Pernambuco, onde Pedro pretende construir uma nova vida. A doença de sua mãe, Marieta, que ficou paralítica, faz com que sua irmã Elisa se dedique a cuidar de todos e da casa.

1928 - Passa a freqüentar o Grupo Escolar João Barbalho, naquela cidade, onde aprende a ler. Durante sua infância a família passou por sérias crises financeiras.

1930 - Morre a mãe de Clarice no dia 21 de setembro. Nessa época, com nove anos, matricula-se no Collegio Hebreo-Idisch-Brasileiro, onde termina o terceiro ano primário. Estuda piano, hebraico e iídiche. Uma ida ao teatro a inspira e ela escreve "Pobre menina rica", peça em três atos, cujos originais foram perdidos. Seu pai resolve adotar a nacionalidade brasileira.

1931 - Inscreve-se para o exame de admissão no Ginásio Pernambucano. Já escrevia suas historinhas, todas recusadas pelo Diário de Pernambuco, que àquela época dedicava uma página às composições infantis. Isso se devia ao fato de que, ao contrário das outras crianças, as histórias de Clarice não tinham enredo e fatos — apenas sensações. Convive com inúmeros primos e primas.

1932 - É aprovada no exame de admissão e, junto com sua irmã Tania e sua prima Bertha, ingressa no tradicional Ginásio Pernambucano, fundado em 1825. Passa a visitar a livraria do pai de uma amiga. Lê "Reinações de Narizinho", de Monteiro Lobato, que pegou emprestado, já que não podia comprá-lo.

1933 - Seu pai prospera e mudam-se para casa própria, no mesmo bairro.

1934 - Pedro, pai de Clarice, em Dezembro desse ano, decide transferir-se para a cidade do Rio de Janeiro.

1935 - Viaja para o Rio, em companhia de sua irmã Tania e de seu pai, na terceira classe do vapor inglês "Highland Monarch". Vão morar numa casa alugada perto do Campo de São Cristóvão. Ainda nesse ano, mudam-se para uma casa na Tijuca, na rua Mariz e Barros. No colégio Sílvio Leite, na mesma rua de sua casa, cursa o quarta série ginasial. Lê romances adocicados, próprios para sua idade.

1936 - Termina o curso ginasial. Inicia-se na leitura de livros de autores nacionais e estrangeiros mais conhecidos, alugados em uma biblioteca de seu bairro. Conhece os trabalhos de Rachel de Queiroz, Machado de Assis, Eça de Queiroz, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Dostoiévski e Júlio Diniz.

1937 - Matricula-se no curso complementar (dois últimos anos do curso secundário) visando o ingresso na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro.

1938 - Transfere-se para o curso complementar do colégio Andrews, na praia de Botafogo. Às voltas com dificuldades financeiras, dá aulas particulares de português e matemática. A relação professor/aluno seria um dos temas preferidos e recorrentes em toda a sua obra — desde o primeiro romance: Perto do Coração Selvagem. Ao mesmo tempo, aprende datilografia e faz inglês na Cultura Inglesa.

1939 - Inicia seus estudos na Faculdade Nacional de Direito. Faz traduções de textos científicos para revistas em um laboratório onde trabalha como secretária. Trabalha, também como secretária, em um escritório de advocacia.

1940 - Seu conto, Triunfo, é publicado em 25 de maio no semanário "Pan", de Tasso da Silveira. Em outubro desse ano, é publicado na revista "Vamos Ler!", editada por Raymundo Magalhães Júnior, o conto Eu e Jimmy. Esses trabalhos não fazem parte de nenhuma de suas coletâneas. Após a morte de seu pai, no dia 26 de agosto, a escritora — talvez motivada por esse acontecimento — escreve diversos contos: A fuga, História interrompida e O delírio. Esses contos serão publicados postumamente em A bela e a fera, de 1979. Passa a morar com a irmã Tania, já casada, no bairro do Catete. Consegue um emprego de tradutora no temido Departamento de Imprensa e Propaganda - DIP, dirigido por Lourival Fontes. Como não havia vaga para esse trabalho, Clarice ganha o lugar de redatora e repórter da Agência Nacional. Inicia-se, ai, sua carreira de jornalista. No novo emprego, convive com Antonio Callado, Francisco de Assis Barbosa, José Condé e, também, com Lúcio Cardoso, por quem nutre durante tempos uma paixão não correspondida: o escritor era homossexual. Com seu primeiro salário, entra numa livraria e compra "Bliss - Felicidade", de Katherine Mansfield, com tradução de Erico Verissimo, pois sentiu afinidade com a escritora neozelandesa.

1941 - Em 19 de janeiro, publica a reportagem "Onde se ensinará a ser feliz", no jornal "Diário do Povo", de Campinas (SP), sobra a inauguração de um lar para meninas carentes realizada pela primeira-dama Darcy Vargas. Além de textos jornalísticos, continua a publicar textos literários. Cursando o terceiro ano de direito, colabora com a revista dos estudantes de sua faculdade, "A Época", com os artigos Observações sobre o fundamento do direito de punir e Deve a mulher trabalhar? Passa a freqüentar o bar "Recreio", na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro, ponto de encontro de autores como Lúcio Cardoso, Vinicius de Moraes, Rachel de Queiroz, Otávio de Faria, e muitos mais.

1942 - Começa a namorar com Maury Gurgel Valente, seu colega de faculdade. Com 22 anos de idade, recebe seu primeiro registro profissional, como redatora do jornal "A Noite". Lê Drummond, Cecília Meireles, Fernando Pessoa e Manuel Bandeira. Realiza cursos de antropologia brasileira e psicologia, na Casa do Estudante do Brasil. Nesse ano, escreve seu primeiro romance, Perto do coração selvagem.

1943 - Casa-se com o colega de faculdade Maury Gurgel Valente e termina o curso de Direito. Seu marido, por concurso, ingressa na carreira diplomática.

1944 - Muda-se para Belém do Pará (PA), acompanhando seu marido. Fica por lá apenas seis meses. Seu livro recebe críticas favoráveis de Guilherme Figueiredo, Breno Accioly, Dinah Silveira de Queiroz, Lauro Escorel, Lúcio Cardoso, Antonio Cândido e Ledo Ivo, entre outros. Álvaro Lins publica resenha com reparos ao livro mesmo antes de sua publicação, baseado na leitura dos originais. Qualifica o livro de "experiência incompleta". Há os que pretendem não compreender o romance, os que procuram influências — de Virgínia Wolf e James Joyce, quando ela nem os tinha lido — e ainda os que invocam o temperamento feminino. Nas palavras de Lauro Escorel, as características do romance revelam uma "personalidade de romancista verdadeiramente excepcional, pelos seus recursos técnicos e pela força da sua natureza inteligente e sensível." O casal volta ao Rio e, em 13/07/44, muda-se para Nápoles, em plena Segunda Guerra Mundial, onde o marido da escritora vai trabalhar. Já na saída do Brasil, Clarice mostra-se dividida entre a obrigação de acompanhar o marido e ter de deixar a família e os amigos. Quando chega à Itália, depois de um mês de viagem, escreve: "Na verdade não sei escrever cartas sobre viagens, na verdade nem mesmo sei viajar." Termina seu segundo romance, O lustre. Recebe o prêmio Graça Aranha com Perto do coração selvagem, considerado o melhor romance de 1943. Conhece Rubem Braga, então correspondente de guerra do jornal "Diário Carioca".

1945 - Dá assistência a brasileiros feridos na guerra, trabalhando em hospital americano. O pintor italiano Giorgio De Chirico pinta-lhe um retrato. Viaja pela Europa e conhece o poeta Giuseppe Ungaretti. O lustre é publicado no Brasil pela Livraria Agir Editora.

1946 - Após o lançamento do livro, Clarice vem ao Brasil como correio diplomático do Ministério das Relações Exteriores, aqui ficando por quase três meses. Nessa época, apresentado por Rubem Braga, conhece Fernando Sabino que a introduz a Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e, posteriormente, a Hélio Pellegrino. De volta à Europa, vai morar com a família em Berna, Suíça, para onde seu marido havia sido designado como segundo-secretário. Sua correspondência com amigos brasileiros a mantinha a par das novidades, em especial as trocadas com Fernando Sabino. A troca de cartas com o escritor, quase que diariamente, duraria até janeiro de 1969. A convite, passam as festas de fim de ano com Bluma e Samuel Wainer, em Paris.

1947 - Em carta às irmãs, em janeiro de 47, de Paris, Clarice expõe seu estado de inadaptação:"Tenho visto pessoas demais, falado demais, dito mentiras, tenho sido muito gentil. Quem está se divertindo é uma mulher que eu detesto, uma mulher que não é a irmã de vocês. É qualquer uma." Em carta a Lúcio Cardoso, que havia lhe enviado seu livro "Anfiteatro", demonstra sua admiração pelas personagens femininas da obra.

1948 - Clarice fica grávida de seu primeiro filho. Para ela, a vida em Berna é de miséria existencial. A Cidade Sitiada, após três anos de trabalho, fica pronto. Terminado o último capítulo, dá à luz. Nasce então um complemento ao método de trabalho. Ela escreve com a máquina no colo, para cuidar do filho. Na crônica "Lembrança de uma fonte, de uma cidade", Clarice afirma que, em Berna, sua vida foi salva por causa do nascimento do filho Pedro, ocorrido em 10/09/1948, e por ter escrito um dos livros "menos gostados" (a editora Agir recusara a publicação).

1949 - Clarice volta ao Rio. Seu marido é removido para a Secretaria de Estado, no Rio de Janeiro. A cidade sitiada é publicado pela editora "A Noite". O livro não obtém grande repercussão entre o público e a crítica.

1950 - Escrevendo contos e convivendo com os amigos (Sabino, Otto, Lúcio e Paulo M. Campos), vê chegar a hora de partir: seguindo os passos de seu marido, retorna à Europa, onde mora por seis meses na cidade de Torquay, Inglaterra. Sofre um aborto espontâneo em Londres. É atendida pelo vice-cônsul na capital inglesa, João Cabral de Melo Neto.

1951 - A escritora retorna ao Rio de Janeiro, em março. Publica uma seleta com seis contos na coleção "Cadernos de cultura", editada pelo Ministério da Educação e Saúde. Falece sua grande amiga Bluma, ex-esposa de Samuel Wainer.

1952 - Cola grau na faculdade de direito, depois de muitos adiamentos. Volta a trabalhar em jornais, no período de maio a outubro, assinando a página "Entre Mulheres", no jornal "Comício", sob o pseudônimo de "Tereza Quadros". Atendeu a um pedido do amigo Rubem Braga, um dos fundadores do jornal. Nesse setembro, já grávida, embarca para a capital americana onde permanecerá por oito anos. Clarice inicia o esboço do romance A veia no pulso, que viria a ser A Maçã no Escuro, livro publicado em 1961.

1953 - Em 10 de fevereiro, nasce Paulo, seu segundo filho. Ela continua a escrever A Maçã no Escuro, em meio a conflitos domésticos e interiores. Mãe, Clarice Lispector divide seu tempo entre os filhos, A Maçã no Escuro, os contos de Laços de Família e a literatura infantil. Nos Estados Unidos, Clarice conhece o renomado escritor Erico Veríssimo e sua esposa Mafalda, dos quais torna-se grande amiga. O escritor gaúcho e sua esposa são escolhidos para padrinhos de Paulo. Não tem sucesso seu projeto de escrever uma crônica semanal para a revista "Manchete". Tem a agradável notícia de que seu romance Perto do coração selvagem seria traduzido para o francês.

1954 - É lançada a primeira edição francesa de Perto do coração selvagem, pela Editora Plon, com capa de Henri Matisse, após inúmeras reclamações da escritora sobre erros na tradução. Em julho, com os filhos, viaja para o Brasil, aqui ficando até setembro. De volta aos Estados Unidos, interrompe a elaboração de A maçã no escuro e se dedica, por cinco meses, a escrever seis contos encomendados por Simeão Leal.

1955 - Retorna a escrever o novo romance e contos. Sabino, que leu os seis contos feitos sob encomenda, os acho "obras de arte".

1956 - Termina de escrever A Maçã no Escuro (até então com o titulo de A veia no pulso). Érico Veríssimo e família retornam ao Brasil, não sem antes aceitarem serem os padrinhos de Pedro e Paulo. Entre os escritores, inicia-se uma vasta correspondência. A escritora e filhos vêm passar as férias no Brasil e Clarice aproveita para tentar a publicação de seu novo romance e os novos contos. Apesar de todo o empenho de Fernando Sabino e Rubem Braga, os livros não são editados. A escritora dá sinais de sua indisposição para com o tipo de vida que leva.

1957 - Rompe unilateralmente o contrato com Simeão Leal e autoriza Sabino e Braga a encaminharem seus contos — nessa altura em número de quinze — para serem publicados no "Suplemento Cultural" do jornal "O Estado de São Paulo". Seu casamento vive momentos de tensão.

1958 - Conhece e se torna amiga da pintora Maria Bonomi. É convidada a colaborar com a revista "Senhor", prevista para ser lançada no início do ano seguinte. Erico Verissimo escreve informando estar autorizado a editar seu romance e, também, seus contos pela Editora Globo, de Porto Alegre. 1.000 exemplares — dos mais de 1.700 remanescentes — de "Près du coeur sauvage" são incinerados, por falta de espaço de armazenamento. O casamento de Clarice dá sinais de seu final.

1959 - Separa-se do marido e, em julho, regressa ao Brasil com seus filhos. Seu livro continua inédito. A escritora resolve comprar o apartamento onde está residindo, no bairro do Leme, e, para isso, busca aumentar seus ganhos. Sob o pseudônimo de "Helen Palmer", inicia, em agosto, uma coluna no jornal "Correio da Manhã", intitulada "Correio feminino — Feira de utilidades".

1960 - Publica, finalmente, Laços de Família, seu primeiro livro de contos, pela editora Francisco Alves. Começa a assinar a coluna "Só para Mulheres", como "ghost-writer" da atriz Ilka Soares, no "Diário da Noite", a convite do jornalista Alberto Dines. Assina, com a Francisco Alves, novo contrato para a publicação de A maçã no escuro. Torna-se amiga da escritora Nélida Piñon.

1961 - Publica o romance A maçã no escuro. Recebe o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, por Laços de família

1962 - Passa a assinar a coluna "Children's Corner", da seção "Sr. & Cia.", onde publica contos e crônicas. Visita, com os filhos, seu ex-marido que se encontra na Polônia. Recebe o prêmio Carmen Dolores Barbosa (oferecido pela senhora paulistana de mesmo nome), por A maçã no escuro, considerado o melhor livro do ano.

1963 - A convite, profere no XI Congresso Bienal do Instituto Internacional de Literatura Ibero-Americana, realizado em Austin - Texas, conferência sobre o tema "Literatura de vanguarda no Brasil. Conhece Gregory Rabassa, mais tarde tradutor para o inglês de A maçã no escuro. A paixão segundo G. H. é escrito em poucos meses, sendo entregue à Editora do Autor, de Sabino e Braga, para publicação. Compra um apartamento em construção no bairro do Leme.

1964 - Publica o livro de contos A legião estrangeira e o romance A Paixão Segundo G. H., ambos pela Editora do Autor. Em dezembro, o juiz profere a sentença que poria fim ao processo de separação de Clarice e Maury.

1965 - Em maio, muda-se para o apartamento comprados em 1963. Sua obra passa a ser vista com outros olhos — pela crítica e pelo público leitor — após A paixão segundo G. H. Resultado de uma seleta de trechos de seus livros, adaptados por Fauzi Arap, é encenada no Teatro Maison de France o espetáculo Perto do coração selvagem, com José Wilker, Glauce Rocha e outros. Dedica-se à educação dos filhos e com a saúde de Pedro, que apresenta um quadro de esquizofrenia, exigindo cuidados especiais. Apesar de traduzida para diversos idiomas e da republicação de diversos livros, a situação financeira de Clarice é muito difícil.

1966 - Na madrugada de 14 de setembro a escritora dorme com um cigarro aceso , provocando um incêndio. Seu quarto ficou totalmente destruído. Com inúmeras queimaduras pelo corpo, passou três dias sob o risco de morte — e dois meses hospitalizada. Quase tem sua mão direita — a mais afetada — amputada pelos médicos. O acidente mudaria em definitivo a vida de Clarice.

1967 - As inúmeras e profundas cicatrizes fazem com que a escritora caia em depressão, apesar de todo o apoio recebido de seus amigos. Não foi só um ano de acontecimentos ruins. Começa a publicar em agosto — a convite de Dines — crônicas no "Jornal do Brasil", trabalho que mantém por seis anos. Lança o livro infantil O mistério do coelho pensante, pela José Álvaro Editor. Em dezembro, passa a integrar o Conselho Consultivo do Instituto Nacional do Livro.

1968 - Em maio, o livro O mistério do coelho pensante é agraciado com a "Ordem do Calunga", concedido pela Campanha Nacional da Criança. Entrevista personalidades para a revista "Manchete" na seção "Diálogos possíveis com Clarice Lispector". Participa da manifestação contra a ditadura militar, em junho, chamada "Passeata dos 100 mil". Morrem seus amigos e escritores Lúcio Cardoso e Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta). É nomeada assistente de administração do Estado. Profere palestras na Universidade Federal de Minas Gerais e na Livraria do Estudante, em Belo Horizonte. Publica A mulher que matou os peixes, outro livro infantil, ilustrado por Carlos Scliar.

1969 - Publica seu "hino ao amor": Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, pela Editora Sabiá. O romance ganha o prêmio "Golfinho de Ouro", do Museu da Imagem e do Som. Viaja à Bahia onde entrevista para a "Manchete" o escritor Jorge Amado e os artistas Mário Cravo e Genaro. Em 14/08 é aposentada pelo INPS - Instituto Nacional de Previdência Social. Seu filho Paulo, mora nos Estados Unidos desde janeiro, num programa de intercâmbio cultural. Seu irmão Pedro, em tratamento psiquiátrico, esteve internado por um mês, em junho.

1970 - Começa a escrever um novo romance, com o título provisório de Atrás do pensamento: monólogo com a vida. Mais adiante, é chamado Objeto gritante. Foi lançado com o título definitivo de Água viva. Conhece Olga Borelli, de que se tornaria grande amiga.

1971 - Publica a coletânea de contos Felicidade clandestina, volume que inclui O ovo e a galinha, escrito sob o impacto da morte do bandido Mineirinho, assassinado pela polícia com treze tiros, no Rio de Janeiro. Há, também, um conjunto de escritos em que rememora a infância em Recife. Encarrega o professor Alexandre Severino da tradução, para o inglês, de Atrás do pensamento: monólogo com a vida. Dez de seus contos já publicados constam de "Elenco de cronistas modernos", lançado pela Editora Sabiá.

1972 - Retoma a revisão de Atrás do pensamento, com o qual não estava satisfeita. Faz inúmeras alterações no texto e passa a chamá-lo Objeto gritante. Repensando o romance, procura distrair-se. Durante um mês posa para o pintor Carlos Scliar, em Cabo Frio (RJ).

1973 - Publica o romance Água viva, após três anos de elaboração, pela Editora Artenova, que lançaria também, nesse ano, A imitação da rosa, quinze contos já publicados anteriormente em outras coletâneas. Alberto Dines, em carta à escritora, diz sobre Água viva: "[...] É menos um livro-carta e, muito mais, um livro música. Acho que você escreveu uma sinfonia". Viaja à Europa com a amiga Olga Borelli. Clarice deixa de colaborar com o "Jornal do Brasil", face à demissão de Alberto Dines, no mês de dezembro.

1974 - Para manter seu nível de renda, aumenta sua atividade como tradutora. Verte, entre outros, "O retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde, adaptado para o público juvenil, pela Ediouro. Publica, pela José Olympio Editora, outro livro infantil, A vida íntima de Laura e dois livros de contos, pela Artenova: A via crucis do corpo e Onde estivestes de noite. Uma curiosidade: a primeira edição de Onde estivestes de noite foi recolhida porque foi colocado, erroneamente, um ponto de interrogação no título. Seu cão, Ulisses, lhe morde o rosto, fazendo com que se submeta a cirurgia plástica reparadora reparadora realizada por seu amigo Dr. Ivo Pitanguy. Lê, em Brasília (DF), a convite da Fundação Cultural do Distrito Federal, a conferência "Literatura de vanguarda no Brasil", que já apresentara no Texas. Participa, em Cali — Colômbia, do IV Congresso da Nova Narrativa Hispano-americana. Seu filho, Paulo, vai morar sozinho, em um apartamento próximo ao da escritora. Pedro vai morar com o pai, em Montevidéu — Uruguai.

1975 - Tendo como companheira de viagem a amiga Olga Borelli, participa do I Congresso Mundial de Bruxaria, em Bogotá, Colômbia. No dia de sua apresentação sente-se indisposta e pede a alguém que leia o conto O ovo e a galinha, não apresentando a fala sobre a magia que havia preparado para a introdução da leitura. Muito embora minimizada, essa participação tem muito a ver com as palavras ditas por Otto Lara Resende, conhecido escritor, em um bate-papo com José Castello: "Você deve tomar cuidado com Clarice. Não se trata de literatura, mas de bruxaria." Otto se baseava em estudos feitos por Claire Varin, professora de literatura canadense que escreveu dois livros sobre a biografada. Segundo ela, só é possível ler Clarice tomando seu lugar — sendo Clarice. "Não há outro caminho", ela garante. Para corroborar sua tese, Claire cita um trecho da crônica A descoberta do mundo, onde a escritora diz: "O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor, é o escritor." Traduz romances, como "Luzes acesas", de Bella Chagall, "A rendeira", de Pascal Lainé, e livros policiais de Agatha Christie. Ao longo da década, faz adaptações de obras de Julio Verne, Edgar Allan Poe, Walter Scott e Jack London e Ibsen. Lança Visão do esplendor, com trabalhos já publicados na coluna "Children's Corner", da revista "Senhor" e também no "Jornal do Brasil". Publica De corpo inteiro, com algumas entrevistas que fizera anteriormente para revistas cariocas. É muito elogiada quando visita Belo Horizonte, fato que a deixa contrariada. Passa a dedicar-se à pintura. Morre, dia 28 de novembro, seu grande amigo e compadre Erico Verissimo. Reúne trabalhos de Andréa Azulay num volume artesanal ilustrado por Sérgio Mata, intitulado "Meus primeiros contos". Andréa tinha, então, dez anos de idade.

1976 - Seu filho Paulo casa-se com Ilana Kauffmann. Participa, em Buenos Aires, Argentina, da Segunda Exposición — Feria Internacional del Autor al Lector, onde recebe muitas homenagens. É agraciada, em abril, com o prêmio concedido pela Fundação Cultural do Distrito Federal, pelo conjunto de sua obra. Grava depoimento no Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro, em outubro, conduzido por Affonso Romano de Sant'Anna, Marina Colasanti e por João Salgueiro, diretor do MIS. Em maio, corre o boato de que a escritora não mais receberia jornalistas. José Castello, biógrafo e escritor, nessa época trabalhando no jornal "O Globo", mesmo assim telefona e consegue marcar um encontro. Após muitas idas e vindas é recebido. Trava então o seguinte diálogo com Clarice:

J.C. "— Por que você escreve?
C.L. "— Vou lhe responder com outra pergunta: — Por que você bebe água?"
J.C. "— Por que bebo água? Porque tenho sede."
C.L. "— Quer dizer que você bebe água para não morrer. Pois eu também: escrevo para me manter viva."

Enquanto escreve A hora da estrela com a a ajuda da amiga Olga, toma notas para o novo romance, Um sopro de vida. Revê Recife e visita parentes. Em dezembro, "Fatos e Fotos Gente", revista do grupo "Manchete", publica entrevista feita com a artista Elke Maravilha, a primeira de uma série que se estenderia até outubro de 1977.

1977 - A revista "Fatos e Fotos Gente" publica, em janeiro, entrevista feita pela escritora com Mário Soares, primeiro-ministro de Portugal. O jornal "Última Hora" passa a publicar, a partir de fevereiro, semanalmente, as suas crônicas. Ainda nesse mês, é entrevistada pelo jornalista Júlio Lerner para o programa "Panorama Especial", TV Cultura de São Paulo, com o compromisso de só ser transmitida após a sua morte. Escreve um livro para crianças, que seria publicado em 1978, sob o título Quase de verdade. Escreve, ainda, doze histórias infantis para o calendário de 1978 da fábrica de brinquedos "Estrela", intitulado Como nasceram as estrelas. Vai à França e retorna inesperadamente. Publica A hora da estrela, pela José Olympio, com introdução — "O grito do silêncio" — de Eduardo Portella. Esse livro seria adaptado para o cinema, em 1985, por Suzana Amaral. A editora Ática lança nova edição de A legião estrangeira, com prefácio de Affonso Romano de Sant'Anna. Clarice morre, no Rio, no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes do seu 57° aniversário vitimada por uma súbita obstrução intestinal, de origem desconhecida que, depois, veio-se a saber, ter sido motivada por um adenocarcinoma de ovário irreversível. O enterro aconteceu no Cemitério Comunal Israelita, no bairro do Caju, no dia 11. Vai ao ar, pela TV Cultura, no dia 28/12, a entrevista gravada em fevereiro desse ano.

1978 - Três livros póstumos são publicados: o romance Um sopro de vida — Pulsações, pela Nova Fronteira, a partir de fragmentos em parte reunidos por Olga Borelli; o de crônicas Para não esquecer, e o infantil, Quase de verdade, em volume autônomo, pela Ática. Para não esquecer é composto de crônicas que haviam sido publicadas na segunda parte do livro A legião estrangeira, em 1964, que compunham a seção "Fundo de Gaveta" do citado livro. A hora da estrela é agraciada com o prêmio Jabuti de "Melhor Romance". A paixão sendo G. H. é publicada na França, com tradução de Claude Farny.

1979 - É publicado A bela e a fera, pela Nova Fronteira, contendo contos publicados esparsamente em jornais e revistas. Estréia, no teatro Ruth Escobar, em São Paulo, Um sopro de vida, baseado em livro de mesmo nome, com adaptação de Marilena Ansaldi e direção de José Possi Neto.
1981 - "Clarice Lispector — Esboço para um retrato", de Olga Borelli, é lançado pela Nova Fronteira.

1984 - Reunindo a quase totalidade de crônicas publicadas no Jornal do Brasil, no período de 1967 a 1973, é lançado "A descoberta do mundo", organização de Paulo Gurgel Valente, filho da autora. A Éditions des Femmes, da França, lança, em sua coleção "La Bibliotèque des voix", fita cassete com trechos de La passion selon G. H., lidos pela atríz Anouk Aimée.

1985 - A hora da estrela recebe dois prêmios na 36ª edição do Festival de Berlim: da Confederação Internacional de Cineclubes — Cicae, e da Organização Católica Internacional do Cinema e do Audiovisual — Ocic. O longa-metragem de mesmo nome, dirigido por Suzana Amaral, com roteiro de Alfredo Oros também é premiado: Marcélia Cartaxo recebe o Urso de Prata de "Melhor Atriz".
Características

Junto com Guimarães Rosa, Clarice Lispector representa o melhor da ficção pós-45. Em sua obra, ela aceita a provocação que o mundo ao redor faz à sua sensibilidade e procura recriá-lo partindo de suas próprias emoções, da sua própria capacidade de interpretação. Ao escrever, ela pretende buscar o sentido da vida, penetrar no mistério que cerca o homem. Para isso, ela é obrigada a levar nossa língua a domínios pouco explorados, transformando-a num instrumento real do espírito. Seu texto assume um ritmo de procura, de penetração, amoldando-se às necessidades de uma expressão tensa e sugestiva. O espaço e o tempo cronológico têm pouca importância, o que vale é o espaço interior e a duração interior do tempo.

Curiosidades

Os 10 anos da morte da escritora são lembrados com diversas homenagens em sua memória. É aberto ao público o conjunto de documentos que viria a constituir o Arquivo Clarice Lispector do Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB, no Rio de Janeiro, constituído de documentos doados por Paulo Gurgel Valente.

Em 1990, a Francisco Alves Editora inicia a reedição da obra da escritora. A paixão segundo G. H. é encenada na capital francesa, no teatro Gérard Philippe, em montagem de Alain Neddam. Diane E. Marting, em 1993, publica "Clarice Lispector. A Bio-Bibliography", pela Westport: Greenwood Press, nos Estados Unidos. Em 1996, é lançada a antologia "Os melhores contos de Clarice Lispector", pela editora Global.

Estréia no Rio de Janeiro "Clarice — Coração selvagem", adaptado e dirigido por Maria Lúcia Lima, com Aracy Balabanian, em 1998.

No ano seguinte, "Que mistérios tem Clarice", adaptado por Luiz Arthur Nunes e Mário Piragibe estréia no teatro N. E. X. T.

Fernando Sabino, em 2001, organiza e publica, pela Record, "Cartas perto do coração", contendo correspondência que manteve com a escritora de 1946 a 1969.

A editora Rocco lança, em 2002, "Correspondências — Clarice Lispector", antologia de cartas de e para a escritora, seleção de Teresa Montero.

No aniversário de Clarice, 10/12/2002, a Embaixada do Brasil na Ucrânia e a Prefeitura de Tchetchelnik se associam em homenagem à memória da escritora, inaugurando uma placa com dados biográficos gravados em russo e em português, que é afixada na entrada da sede da administração municipal.

Em 2004, os manuscritos de A hora da estrela e parte dos livros que pertenciam à biblioteca pessoal de Clarice Lispector são confiadas por Paulo Gurgel Valente à guarda do Instituto Moreira Salles, que lança, em dezembro, edição especial dos "Cadernos de Literatura Brasileira", dedicada à vida e à obra da autora.

Em artigo publicado no jornal "The New York Times", no dia 11/03/2005, a escritora foi descrita como o equivalente de Kafka na literatura latino-americana. A afirmação foi feita por Gregory Rabassa, tradutor para o inglês de Jorge Amado, Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e de Clarice. No dia 13/01, foi discutido o viés judaico na obra da autora no Centro de História Judaica em Nova York.

Clarice traduziu para língua portuguesa falada no Brasil, em 1976, o livro Entrevista com o Vampiro, da autora estadunidense Anne Rice.

A primeira edição de Onde estivestes de noite foi recolhida porque foi colocado, erroneamente, um ponto de interrogação no título.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Clarice_Lispector
LISPECTOR, Clarice. Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
MONTEIRO, Tereza. http://www.claricelispector.com.br/
NOGUEIRA JR., Arnaldo. Clarice Lispector. Disponível em http://www.releituras.com/clispector_bio.asp
SANTOS, Eberth. MOURA, Josana de. Literatura e Filosofia (Palavra em Ação). 2.ed. Uberlândia: Ed. Claranto, 2004

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

O Que é Poetrix?

Nota Pessoal
Estava eu me dirigindo para São Paulo. Como são 12 horas de viagem desde minha cidade, teria muito tempo para ler. Além dos básicos (jornal e revista veja), alguns livros. O primeiro que me veio a mão foi Minimal, o qual me foi enviado por seu autor Goulart Gomes. Já havia observado superficialmente o conteúdo, naquelas famosas folheadas que se dá em um livro, e a primeira impressão que me passou que eram haikais. Tranquilamente, refastelado numa poltrona de ônibus de viagem (12 horas de viagem - ninguém merece!), comecei a ler este livro. E, de "cabo a rabo" o devorei (sem tempero mesmo). Por isso, faço primeiro uma introdução do Poetrix, para depois passar uma postagem com algumas (senão o Goulart vai querer que eu pague os direitos autorais) que está no livro que me chamaram a atenção.

POETRIX
(JOSÉ DE SOUSA XAVIER)

Para se entender o poetrix, é necessário saber um pouco sobre Goulart Gomes. Ele nasceu em Salvador, Bahia, em 1/5/1965. É graduado em Administração de Empresas e pós-graduado em Literatura Brasileira (UCSAL). Criador da linguagem poética POETRIX e um dos fundadores do Grupo Cultural PÓRTICO. Na homepage: http://www.goulartgomes.tk, apresenta os principais trechos de seus dez livros publicados. Obteve mais de 60 prêmios literários em concursos de poesia, prosa e festivais de música, destacando-se duas Menções pela Academia Carioca de Letras e União Brasileira de Escritores (RJ, 2000 e 2001) e o Primeiro Lugar no Prêmio Escribas de Poesia (SP, 2002). Integrou dezenas de antologias no Brasil, Cuba, Espanha, USA, Itália e Coréia do Sul e, ainda, trabalhos divulgados no México, Portugal e França. Tem cinco e-books com milhares de cópias distribuídas gratuitamente (downloads).

Durante a III Feira Internacional do Livro da Bahia, em 1999, Goulart formulou as bases de uma nova linguagem poética, com publicação do Manifesto Poetrix, no seu livro TRIX – POEMETOS TROPI-KAIS. O Movimento se propõe a ser internacional e já possui adeptos em vários países. Trata-se de um poema contemporâneo, em terceto, de temática livre, com título, ritmo e um máximo de trinta sílabas, que possui figuras de linguagem, de pensamento, tropos ou teor satírico. O neologismo foi criado a partir de POE, poesias e TRIX, três. Teve como precursores o epigrama (composição poética, breve e satírica, que expressa, de forma incisiva, um pensamento ou um conceito malicioso – segundo Houaiss), o poema-minuto e o hai-kai ( nas pessoas de Guilherme de Almeida, Paulo Leminsky e Millor).

Há quem diga que Leminsky já escrevia poetrix, conforme escreve Alice Ruiz em sua mensagem a Goulart: “•Oi, Goulart, tenho lido animadamente os poetrix que chegam na minha caixa de correio e acho fantástico esse desenvolvimento paralelo do filho rebelde do haikai. Só não entrei ainda, embora possa recolher vários poetrix nos meus livros anteriores e mesmo em alguns inéditos, vou fazer isso e postar pra turma, estou em dívida, só lendo o que chega, é que falta tempo no meu dia. Quanto ao Paulo, sim, é claro que, como eu, ele fez vários poetrix, pena que ainda sem terem sido batizados por você. Sucesso e um beijo carinhoso da Alice. (Dez/2000)”

O haikai (em português: haicai) é uma palavra japonesa usada pela primeira vez pelo poeta japonês Matsuo Basho para definir as estrofes, exceto a primeira, do renga (outro poema japonês). Ele chamou a primeira de hokku. O renga é um poema composto de várias estrofes, sendo a primeira com três versos (5/7/5). O hokku logo ganhou independência, e o poeta Masaoka Shiki lhe deu o nome de haiku pela junção das duas palavras concebidas por Basho.

O poetrix, embora inicialmente proposto como evidente alternativa ao haicai, apresenta características próprias que o faz diferente. O Manifesto Poetrix, inicialmente, foi concebido da seguinte forma:

1. No POETRIX, o título é desejável, mas não exigível. Ele exerceria uma função de complementaridade ao texto, definindo-o ou sendo por ele definido.

2. Não existe rigor quanto ao número de sílabas, métrica ou rimas no POETRIX, mas o uso do ritmo e da similaridade sonora das palavras, sim.

3. O uso de metáforas e outras figuras de linguagem são uma constante no POETRIX, assim como a criação de neologismos.

4. A interação autor/leitor deve ser provocada através da subliminaridade do POETRIX.

5. O POETRIX é necessariamente uma arte minimalista, ou seja, ele procura transmitir a mais completa mensagem com o menor número de palavras.

6. O POETRIX considera Passado, Presente e Futuro como uma só dimensão: TEMPO, podendo ser utilizado indistintamente.

7. No POETRIX o observador (autor), as personagens e o fato observado podem interagir, criando condições suprarreais ou ilógicas ("non sense").

Posteriormente sofreu mudanças, como: exigência do título e ter um máximo de trinta sílabas. No plural a palavra poetrix não se altera, e os praticantes do estilo são chamados de poetrixtas. A partir deste estilo de poesia, no largo intercâmbio praticado pelos autores no grupo virtual POETRIX ( no site http://br.groups.yahoo.com), foram criadas outras variações, e chamadas de “Formas Múltiplas do Poetrix”. As quais temos: duplix, triplix, multiplix (criações coletivas criadas por dois ou mais poetrix, conforme indica as palavras), clonix ( gerado a partir de outro já existente), graftix (ilustrado), concretix ( poetrix concreto) e cirandas ( séries de poetrix temáticos).

Inicialmente, o Movimento Internacional de Poetrix (o MIP) era composto por coordenadores de vários estados do Brasil e de Portugal, Venezuela, Espanha, EUA, Itália, e Colômbia. Atualmente, a pessoa do coordenador inexiste. O MIP constitui-se numa organização responsável pela difusão do poetrix. É responsável pelo site POETRIX – www.poetrix.org - reconhecido pela UNESCO. Vários autores trocam diariamente informações e poetrix no grupo POETRIX, já citado e do qual faço parte.

Sabemos que existem muitos tercetos que se enquadrariam perfeitamente na descrição do poetrix. Por isso, quero terminar com as palavras da escritora e poetisa Leila Miccolis no seu “Curso de Carpintaria Poética – o fazer poético”: “Há muita gente que classifica meus tercetos como Poetrix e eu contesto: não, não são poetrix até porque, na década de 70, o poetrix ainda não havia nascido. Sendo posterior, não posso ter escrito algo que não tinha se constituído como tal. Na atualidade, posso até vir a escrever um Poetrix, é proposta muito interessante, embora ainda não o tenha feito. Com isso, quero dizer que, não é porque se escreve um terceto com no máximo 32 sílabas (observação minha: 30 no caso como preconiza o MIP) que, obrigatoriamente, estamos escrevendo um Poetrix ou entrando para o Movimento. É o autor quem classifica o gênero de seu texto poético, assim como escolhe o gênero de história que vai contar em um filme, por exemplo – comédia romântica, drama social, mistério psicológico, etc. Um drama pode ser parecido com um mistério psicológico, e é o escritor quem, definindo o tipo de gênero adotado, tentará ser o mais convincente dentro do estilo escolhido. De qualquer forma, penso que o leitor, conhecendo um pouco das técnicas da carpintaria poética, acabará percebendo, por ele mesmo, se a intenção do poeta foi escrever um haicai, um poetrix, um terceto clássico, um moderno, ou um poema-minuto.”

Fonte: http://www.movimentopoetrix.com/

Poetrix - uma linguagem para o novo milênio

Autores: Edison Veiga Junior, Marina Torres, Sarah Maldonado Porchia, Rodrigo Gomes Lobo

PARTE I

1. Sobre a vanguarda

"A arte apresenta novas faces. Fala línguas
novas. Cria vozes diferentes e novos gestos.
Está farta de sempre falar a língua de ontem,
do passado." (HESSE, 1971:143)


A palavra vanguarda, de origem francesa, significa "tudo aquilo que precede, anuncia, prepara". Essa atitude abrange toda a atividade humana, encerrando o seu ímpeto, sua ânsia de invenção, de modificação da realidade, o impulso vital de enriquecer e aperfeiçoar seus instrumentos de inteligência e de ação.

"Falar de vanguarda é falar do novo, do que se cria; é falar do que se pesquisa, do que se procura acrescentar ao mundo ou à experiência do homem." (AVILA, 1969:59)

A poesia já é, intrinsecamente, considerada uma atitude inovadora. Isso se dá pelo fato de que é nesse gênero que a língua é testada em seu limite. O poeta apura e concretiza todas as potencialidades e possibilidades expressivas do idioma; cabe à ele a função de caminhar à frente, experimentando, inventando e adicionando formas e estruturas novas à linguagem.

Sempre houve poetas de vanguarda. São homens que tomam para si o papel de conduzir a sua arte para a renovação quando as formas em uso se tornam estanques. Sem eles, a arte ficaria estagnada.

A poesia, aliás a arte em geral, deve ser capaz de exprimir o mundo em evolução, o devir muitas vezes ilógico que nos rodeia, as inquietações de espírito e as transformações materiais.

No entanto, se a vanguarda é o posicionamento do artista perante o fenômeno estético, pode-se dizer que o Brasil ficou muito tempo sem saber o que é isso.

"Conformado por limitações de ordem econômica e social, (...) não passou, durante quatro séculos, de mero diluidor de uma cultura transplantada, quase sempre servida ao gosto duvidoso e ao interesse imediatista de pequenos grupos, que ao lado do controle da agricultura e do comércio, controlavam a vida pública." (AVILA, 1969:61)

É só a partir do Simbolismo que o poeta brasileiro inicia um processo de amadurecimento, culminando com a revolução de valores que foi o Modernismo, no qual a consciência poética consolidou-se como expressão criadora do homem. Os manifestos da época assumem postura tipicamente vanguardista.

Entretanto, à primeira vista, o poema de vanguarda é encarado como absurdo e exótico, por ferir o senso comum estabelecido. Somente após um esforço de atenção é que acaba se convencendo que o mesmo atende às imposições contemporâneas de síntese e concisão, aproveitando os recursos técnicos do atual processo comunicativo. Assim sendo, a poesia de vanguarda propõe, concomitantemente, uma abertura semântica atrelada a novas estruturas e soluções verbais, sempre de acordo com o contexto em que se vive.

Portanto, vanguarda não é a aventura inconseqüente que a muitos parece ser. É um fato real, um fato novo e vivo, sem o qual não se empreenderia a atividade literária.

2. Breve histórico do Movimento Internacional Poetrix (MIP)

O poetrix surgiu em 1999, com a publicação do livro "Trix - Poemetos Tropi-Kais", do baiano Goulart Gomes. Na verdade, esse tipo de terceto foi inspirado na arte milenar japonesa do hai-kai (daí a alusão "tropi-kais") e incorporou características brasileiras, tais como: sensualidade, interação autor/leitor, uso de figuras de linguagem, entre outras.

Por ser uma arte minimalista, é adequada à Internet, seja pela rapidez com que flui pela rede, seja pelo dinamismo exigido pela vida moderna. Isso, somado ao fato de que é através de um grupo de discussão on-line que são traçadas as metas e debatidas as tendências do MIP, rendeu ao poetrix o apelido de "poeminha da Internet".

O movimento já tem adeptos em várias partes do mundo. Atualmente está organizado em coordenadorias: há um responsável em cada região brasileira e diversos espalhados em outros países, entre os quais Colômbia, Venezuela, Argentina, Chile, Uruguai, Estados Unidos, México, Espanha, Portugal e Cuba.

O poetrix representa a vanguarda poética e é reconhecido pela Unesco, além de ter menções especiais outorgadas pela Academia Carioca de Letras e União Brasileira dos Escritores.

O grande desafio dos poetrixtas é, através de um projeto de divulgação, ultrapassar as barreiras da Internet, para que o MIP seja conhecido também fora da rede.

PARTE II

1. As teorias literárias e o poetrix

Pretendemos expor aqui alguns aspectos teóricos presentes em praticamente todos os poemas analisados a seguir, a fim de evitar a repetição exaustiva dos conceitos.

Para o escritor norte-americano Edgar Allan Poe, um texto deve ser feito para uma leitura rápida, "de uma assentada". "Um poema, só o é quando emociona, intensamente, elevando a alma; e todas as emoções intensas, por uma necessidade psíquica, são breves". (POE, 1945:63). A preocupação com a originalidade, uma constante nos poetrixtas, também é citada por Poe. Ele alerta, inclusive, acerca da necessidade de provocar a curiosidade do leitor, interatividade esta amplamente explorada pelo poetrix.

Pode-se destacar o caráter minimalista do poetrix, enquadrando-o no pensamento de Anatol Rosenfeld, que afirma como uma das características fundamentais das obras modernas a focalização ampliada, microscópica. O poetrix é como um flash, ou seja, mostra os fatos universais em uma expressão pontual e sucinta. Outra hipótese proposta pelo autor é a da arte sendo influenciada pela realidade, pela "precariedade da situação num mundo caótico, em rápida transformação, abalado por (...) imensos movimentos coletivos, espantosos progressos técnicos". (ROSENFELD, 1969:84). Sendo assim, o poetrix pode ser um representante de uma nova arte, fruto de uma "época com todos os valores em transição e por isso incoerentes, uma realidade que deixou de ser 'um mundo explicado', exige adaptações estéticas capazes de incorporar o estado de fluxo e insegurança dentro da própria estrutura da obra". (ROSENFELD, 1969:84)

Além disso, outro ponto que nos remete à obra de Rosenfeld é o fato de que no MIP, passado, presente e futuro são uma só dimensão: Tempo, podendo ser usado indistintamente. Nas palavras do autor: "na estrutura [da narrativa], os níveis temporais passam a confundir-se, sem demarcação nítida entre passado, presente e futuro". (ROSENFELD, 1969:81)

Quanto às propostas teóricas de Italo Calvino, julgamos desnecessário esmiuçá-las, já que Goulart Gomes o faz de forma clara e coerente em seu artigo "Poetrix: uma proposta para o novo milênio", anexado ao trabalho.

2. Interpretação de alguns poetrix

MORTE
(Regina Benitez)
manhã, tarde, noite
passou o dia, a vida
foice

Fica visível a retomada do valor árcade carpe diem. Aqui, a fugacidade da vida manifesta-se na progressão temporal dos versos: "manhã, tarde, noite / passou o dia...".

A palavra "foice" possui vários sentidos agregados. Pode-se entendê-la como a junção do verbo foi com o pronome se, reforçando o tema da vida efêmera. É possível também depreender a foice como objeto de trabalho, significando a impossibilidade do trabalhador desfrutar dos prazeres da vida, diante de sua alienação, sua necessidade de trabalhar para ganhar sustento. Em última análise, foice pode ser entendida como o símbolo da morte, finalizando o poema com a idéia de que a morte é progressiva: morre-se um pouco a cada dia e não há como fugir disso.

Em relação às propostas de Calvino, o poetrix "Morte" apresenta leveza, pois apesar de tratar de um tema denso e relativamente carregado, o poeta abstrai-lhe seu pesadume e opacidade, abordando-o de maneira sutil, com certo grau de luminosidade e rarefeita consistência, contrapondo-se com a idéia que temos do obscuro e inevitável destino de todos; rapidez, por ser caracterizado pela economia verbal; exatidão, pela escolha da palavra foice, que sintetiza precisamente o pensamento do eu-lírico e por fim visibilidade e multiplicidade, expressas também na imagem da foice, que dá vazão a várias interpretações.

A oposição semântica estabelecida é facilmente reconhecida no par vida vs. morte, passando por um estágio intermediário de não-morte, que é justamente sua latência no cotidiano. É a morte a cada dia. A idéia de que cada dia a mais que se vive é um dia a menos que se tem de vida.

BRAILE
(Gilson Luiz Siqueira)
cego de amor
leio-te
com a ponta dos dedos

O poema apresenta forte dose de erotismo e estabelece uma analogia entre o braile (forma de leitura dos cegos, por meio do tato) e a necessidade do contato físico entre os amantes. A expressão "cego de amor" complementa o sentido do título.

A sutileza com que é tratada a sensualidade nesse poema explicita seu caráter de leveza. Além disso, a visibilidade é perceptível na figura do cego. Sua exatidão manifesta-se na escolha das palavras certas para dar determinado significado. A possibilidade de fazer várias interpretações do tema abordado caracteriza sua multiplicidade.

Existe uma oposição entre não-conhecimento vs. conhecimento: por estar "cego de amor" (não perceber os defeitos da pessoa amada), o amante não consegue "ver" sua parceira, portanto estão em disjunção. O sujeito só se torna eufórico diante do objeto (pessoa amada) a partir do tato, daí a alusão ao braile. A análise tátil pode ser muito mais minuciosa do que a visual.

ASSALARIADO
(Goulart Gomes)
vende a vida inteira
pelo pão de cada dia
a liberdade bóia, fria

O poetrix, por suas características abrangentes, também pode abordar temas de forte cunho social, denunciando as mazelas da realidade, a exemplo do poema acima: um retrato que expõe as agruras da forma de trabalho capitalista.

O embate presente nos versos se expressa na estrutura não-liberdade vs. liberdade. O trabalhador é tratado como mercadoria, torna-se um produto, "vende a vida inteira", coisifica-se, aliena-se de sua condição humana. O assalariado perde sua individualidade, vira somente mais uma força de trabalho, mescla-se a uma categoria abstrata sem perspectiva de futuro a longo prazo, em que o importante é conseguir ganhar o "pão de cada dia".

A leveza com que um tema tão chocante, tão marcadamente pesado é tratado, é explícita na figura da liberdade morta, cadavérica, fria, boiando, o que porém não prejudica a mensagem engajada do texto. Além disso, pode se fazer leituras diversificadas, como no trecho "... bóia, fria" em que transparece a alusão aos trabalhadores bóias-frias.

INUNDAÇÃO
(José Sergival)
Enquanto a chuva não chega,
os olhos do torrão marejam
com os versos do poeta.

A princípio, esses versos parecem transcrever a emoção que a arte do poeta pode causar nos sertanejos. O título "Inundação" pode ser uma alusão ao sofrimento dos flagelados pela seca do nordeste (inundação decorrente de suas lágrimas). Do verso "os olhos do torrão marejam" é possível depreender que, enquanto não há chuva para fertilizar o solo árido, a cultura ("... os versos do poeta") é uma espécie de "adubo" para sua terra, bem como um conforto para o seu povo humilde e castigado.

Há uma oposição entre o tema da aridez do sertão nordestino e a virtual inundação desencadeada pelos versos do poeta (carência vs. abundância), que reforça a idéia que o contexto difícil em que vivem os sertanejos não os impedem de produzir uma cultura que emocione.

A beleza do poetrix reside na sua multiplicidade de interpretações, que só foi efetivada pela visibilidade da palavra "torrão". Além disso, há algo de muito sutil no tratamento dado a um assunto tão preocupante para a sociedade brasileira. A leveza do poema manifesta-se na maneira suave como tal problema é tratado.

CONSEQÜÊNCIA
(Jurandir Argolo)
na barriga
o vazio cria calo
a fome gera presídio

A rapidez e a força do silogismo final "a fome gera presídio" é de uma clareza, de uma evidência incontestável. É pungente a intenção de alertar que o estado de miséria permanente cria a criminalidade; que a fome, na imagem do calo (forma de defesa, de resistência corporal contra a dor cotidiana) que se forma com o tempo, é um incômodo social gerador de atritos desgastantes, de desordem civil.

A multiplicidade de sentidos se revela no título "Conseqüência", irônico por dar a entender uma relação causal determinista e inevitável contra a qual nada se pode fazer. Afinal, não é só a fome dos miseráveis a responsável pela marginalidade. Ao contrário, ela é sintoma de um contexto, de uma conotação mais abrangente que o poema mostra. Na barriga, o vazio cria calo, mas na mente o vazio de idéias, a falta de planos de ação eficazes, gera uma carência na sociedade, uma fome que é "tapeada" com resoluções paliativas, com presídios que trazem a falta de liberdade tanto para os presos quanto para os cidadãos trancafiados em suas casas, com medo.

A crítica social faz, desse modo, o esquema de confronto ação (criar, gerar) vs. não-ação (calo, fome).

NU
(Maristela Straccia)
temo o silêncio
quando ouço a nudez
de meu pensamento

A imagem construída pelas palavras "... nudez / de meu pensamento" caracteriza um estado de total desproteção do fluxo de idéias do eu-lírico, ou seja, sua mente está desprovida de qualquer carapaça que a possa disfarçar e, por isso, o temor do silêncio ao ficar sozinho, introspectivo, consiste no receio de constatar o "nada" em sua consciência, de descobrir-se uma pessoa vazia de conteúdo.

É possível fazer outra leitura à medida que se considera o pensamento como algo que agride a voz poética, e o temor do silêncio procede porque é nesse momento em que se está em contato com o próprio fluxo psíquico, o que se constitui um processo doloroso para o eu-lírico.

O embate semântico reside no par de antíteses superficialidade vs. conteúdo, que caracteriza o conflito pessoal de achar-se entre essas classificações.

A visibilidade do poema está manifestada na imagem da nudez do pensamento, que dá margem a uma multiplicidade de sentidos. A seleção das palavras, para construir um jogo de significados, comprova a exatidão do poetrix.

SONSAS
(Lilian Maial)
Estrelas
não dizem a verdade;
Elas piscam.

O poema nos leva a contemplação das estrelas e conseqüente conclusão de que somos apenas um ponto ínfimo no Universo. No entanto, a voz poética nos conforta, alegando que estrelas mentem, são sonsas, dissimuladas; talvez ainda sejamos importantes e a vida valha a pena.

Pode ser abordada de outra forma a questão da mentira. As estrelas iludem quem as vê, seja na dimensão, seja no tempo. Primeiro porque, devido à distância, somos incapazes de ter a noção do tamanho real delas; segundo, que olhar para o céu, é como observar o passado: muitas estrelas já se extinguiram há séculos, milênios, e sua luz ainda nos chega.

O último verso é uma evidência que comprova o "caráter" das estrelas. Afinal, fisicamente, o movimento do ar na atmosfera faz com que tenhamos a ilusão de ótica de que tais astros piscam. Ora, isso nos leva a conclusão popular de que "quem pisca, mente".

Há uma oposição semântica verdade vs. mentira presente no texto. A visibilidade nos é evocada pela própria imagem da piscadela e a multiplicidade é a possibilidade de várias interpretações.

SOS
(Pedro Cardoso)
em mim,
explodem os canhões.
sem motivos, estendo as mãos.

O poetrix retrata o conflito interior enfrentado pelo eu-lírico: é como uma guerra, onde canhões explodem, fazendo com que ele se veja na necessidade de pedir socorro. Essa mensagem está sintetizada no título "S O S".

Percebe-se a oposição semântica guerra interior vs. paz interior, sendo que a paz só será obtida com a ajuda de um ente externo. Por isso, o último verso diz: "... estendo as mãos".

Aliás, o ato de estender as mãos pode ser tanto um pedido de socorro como um gesto simbolizando a trégua. E é essa a grande imagem do poema.

A expressão "sem motivos..." também dá margem a uma ambigüidade. Ele está sem motivos aparentes para estender as mãos ou sem motivação alguma?

SÍSIFO
(Aila Magalhães)
gravidade e esperança
na pedra que não se contenta
com o meio do caminho apenas!

A evocação do mito grego Sísifo, logo no título, já sugere um certo cuidado com acréscimos interpretativos externos. Segundo CALVINO

"... toda interpretação empobrece o mito e o sufoca: não devemos ser apressados com os mitos; é melhor deixar que eles se depositem na memória, examinar pacientemente cada detalhe, meditar sobre seu significado sem nunca sair de uma linguagem imagística. A lição que se pode tirar de um mito reside na literalidade da narrativa, não nos acréscimos que lhe impomos do exterior." (1990:16-17)

O mito, na potência de sua imagem significativa, explora diversas interpretações. Sísifo, em sua eterna tarefa de rolar a pedra até o cume de um monte para que após isso a rocha deslize novamente e o trabalho recomece infinitamente, nos retrata a própria condição humana. Por outro lado "com o meio do caminho apenas!" remete-nos ao célebre poema de Carlos Drummond de Andrade.

O conflito se instaura de forma abrangente, segundo o esquema alto (esperança) vs. baixo (gravidade). O texto flui entre as oposições, entre a imagem da pedra, pesada, estorvo, e a leveza da esperança que não se contenta com os obstáculos, com o meio do caminho, com a força da gravidade agindo sobre os corpos, trazendo-os para o chão. O poema ganha vida, oscila, desliza, como a pedra em seu eterno trajeto, ora no alto, ora nas profundezas, num movimento dinâmico e ininterrupto.

SEMIÓTICOS
(Aníbal Beça)
A pá lavra
para a semeadura
A colheita se escolhe.

O tema desse poetrix já se manifesta no título "Semióticos". Fica clara a intenção de lidar com o sentido do texto, tanto em seu significante, no jogo "pá lavra", quanto no seu significado como um todo, aberto a múltiplas interpretações, porém com a ressalva de que a analogia cultivo/colheita com escrever/ler é propícia. O autor que "planta" um texto não sabe o que o leitor vai "colher". Cria-se então um conflito que pode ser expresso desta maneira: autor (plantar) vs. leitor (colher).

A visibilidade, a imagem fixada no poema é a palavra tornada semente, unidade que pode se potencializar de forma fecunda, dando frutos inesperados, dependendo de quem "escolhe o que vai colher", alimentando o espírito. Trata-se mesmo de um exercício semiótico, de construção de significados, de decifrar os diversos frutos que podem ser extraídos da terra lavrada pelo autor: o texto, com toda a sua multiplicidade latente, esperando pelo leitor coletor atento.

APÊNDICE: Entrevista com Goulart Gomes

O fundador do Movimento Internacional Poetrix, poeta Goulart Gomes, concedeu-nos uma breve entrevista. A seguir, os principais trechos.

1) De onde veio a idéia do poetrix? Como tudo começou?

R: Eu, como muitos outros poetas, escrevia tercetos acreditando que eram hai-kais. A maioria dos escritores não procura conhecer a essência do hai-kai antes de escrevê-lo ou, quando a conhecem, simplesmente passam por cima. Não concordo com isto, acredito que o hai-kai deva ser preservado como ele é desde há mil anos. Quando descobri que eu fazia algo diferente veio a necessidade de dar um nome diferente a isso. Em 1999, na Feira Internacional do Livro da Bahia (hoje, Bienal) lancei meu livro TRIX POEMETOS TROPI-KAIS - que foi premiado pela Academia Carioca de Letras e União Brasileira de Escritores - RJ, em 2000 - no qual coloquei o MANIFESTO POETRIX, propondo a nova linguagem.

2) Notamos certa resistência, sobretudo do meio acadêmico, frente ao poetrix. Por que o movimento não é tão conhecido? Há a idéia de intensificar a divulgação do projeto? Como?

R: Não diria que haja resistência ao poetrix no meio acadêmico. Talvez, pouco conhecimento. Como eu disse, meu livro de poetrix foi premiado pela Academia Carioca de Letras; nossa homepage está listada no site da UNESCO; professores da Faculdade Jorge Amado (Bahia) o tem disseminado; no curso de pós-graduação em Literatura Brasileira da Universidade Católica de Salvador, onde sou aluno, o poetrix também tem sido muito bem recebido. Vários críticos têm elogiado nossa proposta. Não temos do que reclamar. É verdade que o poetrix é pouco conhecido fora da Internet. Dentre outras ações para popularizá-lo estamos organizando, agora, uma antologia luso-brasileira que será distribuída aos "protocolos de consagração".

3) Quais as metas para o MIP num futuro próximo?

R: A única meta do MIP a curto, médio e longo prazo é continuar divulgando o Poetrix e os poetrixtas, nacional e internacionalmente.

4) Já que a principal mídia utilizada pelo movimento é a Internet, como você encara a questão dos direitos autorais?

R: É uma questão polêmica, sobre a qual nem mesmo a Justiça chegou a um consenso. O plágio sempre existiu e sempre existirá, seja lá qual for a mídia. Se plagiam obras impressas, com seus direitos autorais registrados, quanto mais o que é divulgado virtualmente! Sempre recomendo aos autores que registrem seus trabalhos que julgarem mais importantes, antes de divulgá-los.

5) Qual a relação entre Poetrix e Internet? O Poetrix é a poesia da Era Digital?

R: Uma das características da Era Digital é a velocidade. Velocidade na transmissão das informações, velocidade de consumo, velocidade na interatividade. Por ser breve, o poetrix guarda grande afinidade com esta característica. Além disso, ele se afina muito bem com os novos recursos tecnológicos, como apresentações em Power Point, Flash, etc. Há quem chame o Poetrix de "poeminha da internet", sem nenhum caráter pejorativo.

6) Você acredita que o Poetrix, por ser mais dinâmico, mais "rápido", é mais acessível para o público? Como tem sido a receptividade?

R: As pessoas dispõem de cada vez menos tempo para ler as tantas mensagens que lhes chegam. Talvez, por isso, o poetrix seja tão bem aceito. Ele é breve (apesar de que nem sempre deva ser lido com brevidade), busca a síntese e, ao mesmo tempo, com sua subjetividade, deixa uma grande margem para interação com o leitor. Geralmente quem lê um bom poetrix, duplix, triplix ou multiplix, gosta

7) Quais são as suas influências literárias? Quais poetas você lê dos "clássicos"? E dos contemporâneos?

R: Dos clássicos, Machado de Assis, Fernando Pessoa e Guimarães Rosa são minhas leituras preferidas. Dos contemporâneos gosto muito de João Cabral, Manoel de Barros, Ferreira Gullar e Affonso Romano (citando apenas os de língua portuguesa).

8) Como você vê a qualidade, no geral, da literatura contemporânea?

R: Em todas as épocas coisas boas e ruins foram escritas. Os autores contemporâneos têm, a seu favor, um vastíssimo acervo cultural herdado. É preciso conhecê-lo bastante, estudá-lo, antes de se ter a pretensão de escrever.

9) Você acredita que o MIP pode entrar para a história da literatura brasileira, como os movimentos que costumamos estudar?

R: Estamos trabalhando para que isso aconteça. "É a parte que nos cabe neste latifúndio". Mas, não depende apenas de nós. Como diria o Ariano Suassuna, pode ser que sejamos vanguarda hoje e, amanhã, retaguarda. Só o tempo dirá.

10) Com a Internet, você acha que o brasileiro está lendo mais?

R: A Internet ainda não faz parte da realidade de milhões de brasileiros, que não tem nem o que comer, dependendo de esmolas públicas e privadas para sobreviver. São milhões de Sem-Terra, Sem-Teto, Sem-Saúde, Sem-Trabalho, Sem-Educação. Acho, sim, que a Internet propicia um incremento na leitura, apesar de que nem sempre a leitura certa. Sete dos dez sites mais visitados na Internet são de pornografia! Mas tenho certeza que se lê cada vez mais. Meus e-books gratuitos têm sido bastante lidos, assim como textos que tenho disponibilizado na Usina de Letras. Gostaria de convidá-los a conhecer os sites www.poetrix.org e www.goulartgomes.tk.

Fonte: http://www.movimentopoetrix.com/

Poetrix: Uma Proposta para o Novo Milênio (Goulart Gomes)

Em 1984 a Universidade de Harvard (USA), solicitou ao escritor e crítico Italo Calvino que elaborasse uma série de palestras a respeito das qualidades da escritura. Ao todo seriam seis palestras. Contudo, em 1985, este escritor nascido em Cuba, mas radicado na Itália, viria a falecer, deixando prontas apenas cinco palestras. Estas palestras foram reunidas em um livro publicado no Brasil pela Companhia das Letras, sob o título “Seis Propostas Para o Próximo Milênio”.

Com sua vasta cultura, Calvino discorre com bastante elegância e propriedade acerca destas “qualidades” - Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade e Multiplicidade - fazendo um rico passeio pela literatura universal, desde os clássicos até os escritores contemporâneos.

Quinze anos depois, em 1999, durante a Feira Internacional do Livro da Bahia, eu viria a publicar o Manifesto Poetrix, que serve como introdução ao meu livro TRIX – POEMETOS TROPI-KAIS, premiado em 2000 pela União Brasileira de Escritores (RJ) e Academia Carioca de Letras. Naquele manifesto estão propostas as bases de uma nova linguagem poética, o POETRIX, que neste ano foi definido por um grupo de poetrixtas, reunidos na internet, como “terceto contemporâneo de temática livre, com título, ritmo e um máximo de trinta sílabas, possuindo figuras de linguagem, de pensamento, tropos ou teor satírico”.

Não pretendemos, neste texto, equiparar o poetrix aos demais subgêneros literários seculares existentes – a poesia, o romance, o conto etc – tão bem apresentados através da vasta erudição de Calvino em sua obra magistral, mas apenas demonstrar como as qualidades destacadas por ele também são pertinentes a este “caçula” do universo literário.

Logo na sua primeira palestra fui surpreendido com a seguinte afirmação de Calvino:

“No universo da literatura sempre se abrem outros caminhos a explorar, novíssimos ou bem antigos, estilos e formas que podem mudar nossa imagem do mundo...”

O poetrix surgiu justamente desta necessidade de renovação literária. Ele resgata e renova a poesia em tercetos, agregando-lhe uma profundidade e uma beleza metafórica sem precedentes.

GRAVIDEZ
(Goulart Gomes)
pingos pousam no brilho
a mulher cresce
nasce o filho

HEROESIA
(Sara Fazib)
de joelhos, reverente
provo a Tua presença
sarça ardente

Novas propostas requerem novos nomes. Poetrix (de Poe=poesia e trix=três), nascido nos estertores do milênio passado, propagado e multiplicado pelo “efeito internet”, representa muito bem esta união entre o clássico e o moderno, abrindo uma infinidade de caminhos e atalhos que podem ser trilhados pela nossa criatividade.

Mas, vamos aos conceitos desenvolvidos nas palestras. Na primeira delas, intitulada LEVEZA, ele nos diz:

“Se quisesse escolher um símbolo votivo para saudar o novo milênio, escolheria este: o salto ágil e imprevisto do poeta-filósofo que sobreleva o peso do mundo, demonstrando que sua gravidade detém o segredo da leveza”.

FLOR SECA
(Enrique Anderson - Argentina)
flor seca
entre páginas de poesias
ya es también poema

Curiosamente, a poetrixta Sara Fazib (SP) em carta aberta intitulada “Como Fazer Poetrix” à também poetrixta Andréa Abdala, em 23/05/2001, comenta:

“...penso no poetrix perfeito como um pequeno projétil que nos atinge direto
num órgão vital; um detonador de emoções; algo que nos dispara o coração,
o tesão; que atinge como um raio a nossa cabeça... o inesperado, a surpresa, caem muito bem no poetrix... O poetrix parece coisa fácil. Três versinhos. Mas vejo assim, não. Antes eu o considero um desafio de síntese, sensibilidade e criatividade. E concordo com o poeta Antonio Augusto de Assis, quando diz "que o micropoema será a poesia do novo milênio: diz o máximo no mínimo de tempo e espaço".

PESSOIX
(Goulart Gomes)
um terço de mim delira
um terço de mim pondera
outro terço, ah!, quem dera!

É justamente esta “surpresa” do poetrix que torna a mais densa, mais vasta, mais profunda mensagem em um texto leve, breve, na exigüidade das suas três linhas. O poder de síntese do poetrix faz levitar as idéias, sem retirar-lhes a profundidade.

Já em sua palestra sobre o tema RAPIDEZ, Calvino afirma:

“Nos tempos cada vez mais congestionados que nos esperam, a necessidade de literatura deverá focalizar-se na máxima concentração da poesia e do pensamento... A rapidez de estilo e de pensamento quer dizer antes de mais nada agilidade, mobilidade, desenvoltura”

E noutro parágrafo conclui:

“O êxito do escritor, tanto em prosa quanto em verso, está na felicidade da expressão verbal, que em alguns casos pode realizar-se por meio de uma fulguração repentina, mas que em regra geral implica uma paciente procura do mot juste, da frase em que todos os elementos são insubstituíveis, do encontro de sons e conceitos que sejam os mais eficazes e densos de significado.”

Os tempos “congestionados” preconizados por Calvino chegaram. São milhares as informações que nos chegam diariamente, desde o banner automático que se abre na tela do computador até o panfleto distribuído nos semáforos. É fácil constatar que o tempo fica cada vez mais escasso, principalmente tempo para ler, sempre preterido. Agilidade, mobilidade e desenvoltura são, assim, características naturais do poetrix.

DEMASIADUMANO
(Murillo Falangola)
eu genomo
tu genomas
nós tememos

NOVA EDIÇÃO
(Andréa Abdala)
Conto da carochinha,
mulher de verdade
não goza de mentirinha.

A fulguração repentina, a frase perfeita é a busca incessante do poetrixta, levado a representar o universo na brevidade das três linhas. Certamente aí está o segredo do seu sucesso no mundo virtual, onde tudo se move à velocidade do pensamento... ou dos modens.

APAGÃO, GÊNERO FEMININO
(Andréa Abdala)
Na rua escura
enxergo-me
light.

POETRIX MARINHO
(Fred Matos)
o mar o olhar abarca
o olhar o barco arca
o barco marca o mar

A terceira palestra de Calvino versa sobre EXATIDÃO. Em um determinado ponto ele nos diz que requer:

“... uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação... O poeta do vago só pode ser o poeta da precisão, que sabe colher a sensação mais sutil com olhos, ouvidos e mãos prontos e seguros”

ALCÓOLATRA
(Pedro Cardoso)
desaba
aos bafos
o bêbado

Quando o poetrixta dá um título – elemento fundamental - ao seu poetrix ele transforma o seu texto na sua tradução pessoal daquele conceito a partir do seu universo. A precisão com que ele tratará a sua abordagem fará toda a diferença, pois são o seu pensamento e a sua imaginação, únicos no mundo, que estarão ali representados. Tanto melhor o poetrix quanto com maior exatidão ele trate o seu tema:

BRAILE
(Gilson Luiz Siqueira)
cego de amor
leio-te
com a ponta dos dedos

FEROHORMÔNIO
(Sávio Drummond)
Pressinto-te no ar,
Farejo-te no vento.
Qual bicho ao relento.

Quando, na palestra seguinte, Calvino trata da VISIBILIDADE, ele nos traz uma série de correlações ente palavra e imagem. É como se além da palavra falada, escrita e cantada, ele quisesse nos falar da “palavra em movimento”:

“... a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens”

“O escritor – falo do escritor de ambições infinitas, como Balzac – realiza operações que envolvem o infinito de sua imaginação ou o infinito da contingência experimentável, ou de ambos, com o infinito das possibilidades lingüísticas da escrita... Seja como for, todas as “realidades” e as “fantasias” só podem tomar forma através da escrita”

É esta necessidade de traduzir, transcrever ou recriar o mundo através das palavras, tão típica do escritor, que ganha nova vida com o poetrix. O poetrix já nasceu imagético. No já citado livro que publiquei em 1999, há em anexo um disquete com apresentações animadas de alguns poetrix. Neste ano de 2001 nasceu o grafitrix, uma proposta do poetrixta Murillo Falangola (BA), que une o poetrix a imagens ou desenhos, permitindo uma maior diversidade na sua leitura.

Na última das palestras escritas, Calvino fala sobre MULTIPLICIDADE:

“Só se poetas e escritores se lançarem a empresas que ninguém mais ousaria imaginar é que a literatura continuará a ter uma função.”

E mais adiante:

“Entre os valores que gostaria fossem transferidos para o próximo milênio está principalmente este: o de uma literatura que tome para si o gosto da ordem intelectual e da exatidão”.

Em uma determinada data dois poetrixtas de Brasília, Tê Soares e Pedro Cardoso, tiveram a feliz idéia de juntar dois de seus poetrix formando um novo texto: estava criado o duplix. Esta idéia cresceu e surgiram o triplix e o multiplix, criações coletivas, permitindo uma série de possibilidades de (re)leituras do poetrix. Ousadia, coragem de navegar por novos mares. irrompendo fronteiras, derrubando barreiras, renovando a literatura.

JANTAR A DOIS // OLHOS NOS OLHOS
(Judith de Souza // Martinho Branco - Portugal)
O lume da vela//Na mesa da sala
o amor revela//o olhar embala
e vela//e fala

MARIPOSAS // BORBOLETAS
(Judith de Souza // Rodrigo M. de Avellar)
Em volta da lâmpada, // Aguardando a alvorada
a dança mortal e pagã // Falecendo a lagarta
ignora o amanhã. // Ressuscitará alada.

Para finalizar este trabalho, gostaria de transcrever uma outra citação de Calvino, que nos faz refletir sobre o poder que possuímos de modificar o mundo à nossa volta, de fazer com que concretizemos nossos sonhos, a partir da riqueza que todos nós possuímos em nosso universo de imagens e conhecimentos:

“Ao contrário, respondo, quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis”.

LA LUNA
(Everardo Torres - México)
Moría la luna
en el obscuro cielo
de unos ojos entrecerrados.

ÁGUA
(Goulart Gomes)
a água furou a pedra
moinhos de amsterdã
a manhã será mais bela...

Fonte: http://www.movimentopoetrix.com/

Entrevista com Goulart Gomes

Entrevista concedida a Ivan Cavalcanti Proença por Goulart Gomes

Entrevista concedida por Goulart Gomes, criador e coordenador geral do Movimento Internacional Poetrix a Ivan Cavalcanti Proença, Professor, Mestre e Doutor em Literatura. Autor de inúmeros livros/Ensaios de Literatura e Diretor/Professor da Oficina Literária mais antiga do Brasil.

Qual a inspiração mais atuante? Os micropoemas, poemas-minuto do Modernismo ou os tercetos orientais? Ou nenhum deles? Nesse caso, revelar a (s) fonte (s).

Eu diria que ambas. Rilke (1) afirmava que um poema é bom se nasceu pela necessidade. O POETRIX nasceu pela necessidade. Transmitir uma mensagem poética em apenas uma estrofe de três versos já impõe uma grande limitação; se, aliado a isto, temos ainda limitações temáticas ou estilísticas, a dificuldade torna-se ainda maior. Mas este não é o único entrave: perde-se em criatividade, perde-se a possibilidade de alçarmos maiores vôos. O POETRIX em sido chamado de "anti-haicai" ou "filho rebelde do haicai". Eu diria que ele é um 'herdeiro" do haicai, pela sua forma e um "herdeiro" dos micropoemas e poemas-minuto, pelo seu conteúdo. Mas, não esqueçamos que o terceto também tem uma tradição ocidental, oriunda dos terzettos italianos, praticados por Dante Alighieri.

O movimento literário Poetrix se vale de liberdades métrica e rímica, mas padrão estrófico. Como se explica, diante da, hoje, aceita conceituação de que Conteúdo é forma que vem à tona?

Conceitos são bons até que surjam outros, melhores, que os substituam. Qualquer paradigma só aguarda o momento de ser quebrado. O POETRIX preza a similicadência (frases com um mesmo ritmo ou cadência) ou, ao menos, o isocronismo (mais ou menos o mesmo número de sílabas) (2). Mas isto não é uma regra. Aliás, é sempre bom relembrar: não existem regras no POETRIX. No Manifesto Poetrix (3) apenas identificamos algumas características principais, que viriam a contribuir para a formulação da definição (ainda não definitiva) à qual chegaram os integrantes do Movimento Internacional Poetrix: um terceto contemporâneo, de temática livre, com título, ritmo e um máximo de trinta sílabas, possuindo figuras de linguagem, de pensamento, tropos ou teor satírico. Alguns teóricos defendem a opinião segundo a qual o que diferencia a poesia da prosa é o ritmo. Ainda assim, a poesia concreta despreza o ritmo; não seria ela, então, nem prosa nem poesia? O POETRIX insere-se no universo dos tercetos, possui padrão estrófico e rítmico mas, ao mesmo tempo, temos visto surgirem POETRIX CONCRETOS, no espaço das três linhas. O que vem à tona sempre é o conteúdo, na forma que melhor se adeque.

Os não-ditos e o jogo imagístico constituem a força, a essência dos poemas?

Em grande parte, sim. A nossa linguagem, ocidental, não tem o recurso "paisagístico" dos ideogramas japoneses. O grande haijin Masuda Goga (4) cita, em um dos seus livros, o escritor nipônico Ikutarô Nishida: "penso que uma forma poética como o haiku não poderá ser, absolutamente, traduzida para idioma estrangeiro... [ele]... mostra a atitude peculiar dos japoneses em relação à vida e ao mundo" . As mais bem intencionadas tentativas ocidentais (e principalmente brasileira, como a de Guilherme de Almeida) de prática do haiku - e sua adaptação, transformando-o em haicai - não passam de pálidos reflexos, sem a riqueza dos originais. Então, parodiando Caetano Veloso ("só é possível filosofar em alemão"): só é possível fazer haiku em japonês. Por aqui, "atropelamos" o haicai. A maioria dos poetas, por absoluto desconhecimento, acredita que está fazendo haicai, mas não. Ignoram o kigo (emoções vinculadas a estações do ano), o haimi (sabor, essência), o kireji (cadência). Para compensar esta nossa "desvantagem" visual, o POETRIX traz a imagética para o texto. O não-dito, por vezes, fala mais. Reconstruímos as imagens com o que nos permitem as palavras, incorporando figuras de linguagem, o non-sense, o humor. Acredito que, principalmente por isso, o POETRIX esteja sendo tão bem aceito por poetas do México, Argentina, Espanha e Portugal, dentre outros. Ele já "nasceu" ocidental, adequado à nossa escrita e facilmente assimilável pelas mais diferentes culturas.

Poetrix resulta do experimentalismo de vanguarda, da exaustão do Modernismo, ou de uma retomada da idéia de que "não sabemos o que queremos, mas sabemos o que não queremos!"

O POETRIX sabe o quer: tornar-se uma nova linguagem poética, que permita ao autor realizar altos vôos num curto espaço, "desengessar" o terceto, retirar-lhe as amarras, torná-lo contemporâneo. O POETRIX surge no "rastro" de poetas como Leminsky, Millor e Cacaso e totalmente adequada à dinâmica e à velocidade da informação no cibermundo em que vivemos. Mas o enigma da literatura brasileira hoje é: Onde termina (ou terminou) o Modernismo? Esse movimento quase octogenário é um divisor de águas. O recente e polêmico livro Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século, organizado por José Nêumanne Pinto, tem a sua primeira parte intitulada "Pré-Modernismo", adotando o conceito de Alceu Amoroso Lima: "o que concede ao prefixo pré uma conotação meramente temporal de anterioridade". Nela estão elencados poetas tão distintos quanto Augusto dos Anjos e Machado de Assis! E o que aconteceu após a Semana de 22 que realmente se diferenciasse da proposta modernista? Talvez, apenas, o Concretismo e o Poema-Processo, que tem um apelo muito mais visual, gráfico, do que semântico. Hoje, temos bons poetas românticos, simbolistas, parnasianos, modernos; sonetistas, cordelistas, trovadores, de visuais, de versos livres. Vivemos uma agradável "babel", onde todos se entendem. Neste ponto, sim, o conteúdo é forma que vem à tona... de qualquer forma! O Modernismo deu um tiro de misericórdia nas "escolas literárias" ou, como diria Raul Seixas, "faça o que tu queres pois é tudo da Lei". Melhor seria considerar o POETRIX como resultante do experimentalismo de vanguarda, da busca por novas formas de expressão da nossa criatividade ou, apenas um exercício do que preconiza o mestre Ferreira Gullar: é preciso, ao poeta, elaborar a sua linguage,.

Agradeço à Amélia Alves pela oportunidade de conceder esta entrevista, ao mestre Ivan C. Proença pelo brilhantismo das questões levantadas e convido todos os leitores a conhecerem mais o POETRIX visitando: http://www.movimentopoetrix.com

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Rilke, Rainer Maria. Cartas a um Jovem Poeta.
Garcia, Othon M. Comunicação em Prosa Moderna.
Gomes, Goulart. Trix Poemetos Tropi-kais.
Goga, H. Masuda. O haicai no Brasil.
Pinto, José Nêumanne, Os cem melhores poetas brasileiros do século.

Fonte: www.movimentopoetrix.com