quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Nilson Pereira de Carvalho (Os Infernos de Rimbaud)

RESUMO: A complexa relação entre a tradição e a modernidade na poesia; o efeito da fragmentação e dispersão do sujeito poético, inclusive por meio de uma recifração lingüística; bem como a percepção de uma consciência histórico-literária evidenciada em um projeto de poesia são objetos de análise deste estudo, com base na leitura do poema-prosa Uma temporada no inferno do poeta francês Rimbaud.


1. Introdução

Sou o único a ter a chave desta parada selvagem.
Rimbaud

De um poeta que profere um verso tão ensimesmado como este acima, seria quase impossível falar. Quase se não fosse um poeta – ou ainda, se não fosse o príncipe dos poetas modernos, o gênio entre eles. “O príncipe era o gênio, o Gênio era o príncipe”(RIMBAUD, 1985, p.87) . Quase também, porque talvez seja ao poeta que melhor se refira o dito popular: “falem mal, mas falem de mim”.

A fala é o objetivo último da poesia. É o último recurso a que se recorre a fim de se constatar que ainda se vive ou que ainda vale a pena viver. Ou, para a nossa danação e condenação, aceitarmos, pelo reconhecimento da fala, o que se decifra no enigma nietzscheano, percebendo que o ato de viver não tem outro motivo senão o humano, demasiadamente humano.

Humano, portanto errado, inicio este ensaio justamente compreendendo sua inutilidade, decretando seu fracasso. No Conto de Rimbaud, o príncipe herda, e não cria, a realeza, a palavra; mas tampouco o gênio constrói o seu sucesso sem ter recebido um legado da natureza. O gênio tenta desvendar, conhecer o mistério das palavras, sem contudo saber criá-las. Fracassados, ambos se juntam, amotinados, e investem contra Deus. O destino desses é o mesmo de todos aqueles usurpadores no decorrer dos tempos. Mas ao menos felizes são os que sabem desse destino, por compreender os antepassados. Portanto, tudo o que aqui será dito já foi dito melhor, e isso tento compreender! A história subjuga os pós-criadores a coadjuvantes nas margens da literatura.

Outrossim, muita ousadia seria atribuir a si as palavras de um autêntico criador ou inventor quando analisa a história: “sou um inventor muito mais meritório do que todos aqueles que me precederam;”(RIMBAUD, 1985, p.91).

Essa consciência de divisor de águas na poesia, não ocorrida por seus predecessores, fez aquele poeta adolescente ou adolescente poeta redescobrir a fala, postergar a questão do divino e preconizar o eu em um outro, depois de tê-lo pulverizado em um ninguém.

Esse ninguém, Jean-Nicolas Arthur Rimbaud (1854-1891), nasceu em Charleville, nas Ardenas, tinha antepassados gauleses. Cedo fugiu de casa para ser iniciado nas rodas francesas de literatura pelo poeta Verlaine (o príncipe).

Embora seja necessário lançar mão de certos acontecimentos da tumultuada vida de Rimbaud, pretendo, neste ensaio, não me deter nesse abismo devorador, seja por prudência ou por ignorância. Outrossim, obedecendo os limites marginais deste texto, pretendo percorrer um trajeto não menos perigoso, infernal: o diálogo que sua poesia trava com a tradição enquanto se encaminha para uma modernidade no fazer poético; a dinâmica de promover um real caótico, sem regras, de forma contundente e voraz; o modo como sua poesia faz dispersar o sujeito poético; e a palavra em explosão evidenciando uma clara consciência poética no ato de criar.
Outros aspectos, evidentemente, podem ser ressaltados e prorromperem esse texto, o que promoverá, acredito, um diálogo mais coerente com o objeto sobre o qual desejo me debruçar, a saber, o poema-prosa Uma temporada no inferno.

2. Este é o sangue da nova e eterna tradição

Rimbaud era leitor dos clássicos. Baudelaire e Víctor Hugo fazem parte da grande pluralidade na voz do novo poeta, assim como Verlaine, um tutor involuntário, influenciador sem necessidade.
O respeito aos clássicos, em Rimbaud, tanto grita quanto sussurra. Seu poema é um espelho que se volta para o passado. Passado que é capaz de ver, no espelho, em seus reveses, como se numa consciência histórica, o futuro: “Falo com a certeza de um oráculo”(RIMBAUD, 1983, p.48).

Nesse caso, se toda poesia é profecia, vê, não o espelho ou no espelho, mas vê, através dele, um novo tempo que sempre foi o mesmo, desde que a história nunca “refletia” a história, senão uma pré-história. Rimbaud ensinou que prever o futuro é uma ação contingente de refletir o passado, por mais que isso pareça um lugar comum.

Seus versos estão repletos de reminiscências de autores do século XIX, contemporâneos e anteriores. Contudo, mesmo o que os faz lembrar possui o tom agudo que vem de Rimbaud e não de seus modelos.[...] Para uma apreciação de Rimbaud, aquelas reminiscências têm apenas um valor secundário. [...] ridiculariza o museu do Louvre e incita ao incêndio da Biblioteca Nacional (FRIEDRICH, 1978, p.64).

Só não incendiaria, por si só, a Biblioteca Nacional de França se lá não contivesse seu alimento principal: a palavra poesia. Para além de uma destruição material ou espiritual, o incêndio pretendido, a meu ver, é de teor histórico. Nesse caso, a tradição literária deveria achar-se nova eternamente para fazer-se tradição: É preciso ser sempre moderno. O essencial da arte exposta no museu ou entulhada e adornada pela célebre poeira da Biblioteca não é o que lhe cabe, nem do qual Rimbaud se alimentou para refazer-se de eternidade. Antes, a energia contida na arte (segundo a sugestão de Pound) é aquela capaz de conduzir o homem para compreender-se como diante do espelho, portanto essa energia é a matéria vital para o poeta.

Há um passado em cada arte. Ambos se encaram nesse anteparo narcísico e movimentam o cenário em redor de nós, pessoas-palavras. Se temos visão de continente e conteúdo, legado a nós por Baudelaire, Rimbaud, Saussure, Freud, Pound e tantos outros únicos, podemos manipular, em bom sentido, a arte de prever futuros, tanto quanto a presciência artística. Ou vemos o tempo que passa diante de nós, à revelia ou não; ou nos vemos passando pelo tempo com ou sem as dores e percalços advindos dele.

A forma como nos posicionamos diante dessa visão de arte pode ser o que chamamos de projeto estético. O de Rimbaud revela uma visão simultânea da arte na história; conjugava tradição com modernidade sem cair na explicitude de um panfletário inventor de manifestos nem no hermetismo de um anônimo propositor de uma nova ordem apocalíptica. O seu manifesto foi anônimo e inventivo; sua proposta, um pan-fleto escatológico. No espelho, Rimbaud enxergava, além do cenário e de si mesmo, o mais explícito dos hermetismos, e compreendeu-se universalmente particular. Talvez uma de suas graves diferenças para com a tradição fosse o simples fato de, numa posição como essa, manter os olhos abertos: “O primeiro estudo do homem que quer ser poeta é seu próprio conhecimento, inteiro; ele busca sua alma, experimenta-a, descobre-a. Tão logo a conheça, deve cultivá-la” (RIMBAUD, In: STEBAN, 1991, p.19).

Uma outra diferença seria a de não se apoiar nos escombros do cenário (o tempo) para se firmar como alguém que se vê, seu tempo o oprimia. E isso não acontecia com seus antecessores acomodados pelo crivo da tradição. Colocar-se como uma imagem que só é imagem diante de uma outra, configura uma cabotagem histórica, a qual somente será julgada pela memória. Mas essa é uma Outra história. Basta, neste espaço, evidenciar o auto-reconhecimento desse poeta num lugar de repulsa e de inevitável atração. Essa dinâmica promove a tensão necessária para uma poesia que não se entrega a desvendamentos comuns. O tempo, portanto, é tenso para Rimbaud, é resultado de uma força que lhe cai sobre os ombros de forma opressiva, porém justa, no sentido lato do termo.

O passado tornando-se um peso, devido ao extinguir-se da genuína consciência de continuidade e à sua substituição pelo historicismo e pelas coleções em museus, produz em alguns espíritos do século XIX uma reação que conduz à repulsa de tudo aquilo que é passado (FRIEDRICH, 1978, p.65).

Este tormento configura uma nova dimensão para a arte sob a alcunha da palavra modernidade. Destruir os espelhos (os parâmetros) consistiria num ato não somente de rebeldia, mas de auto destruição, ou melhor ainda, de uma implosão. Por isso, a idéia de modernidade, legada por Baudelaire, conter um caráter mais do que dicotômico, ambíguo: “A modernidade [...] é o transitório, o fugaz, o contingente, a metade da arte cuja outra metade é o eterno e o imutável.” (In: STEBAN, 1991, p.4).

As tramas do espelho diante de Rimbaud inauguram uma nova geração de inventores de poesia capazes de compreendê-la e compreender-se. É por isso que, em Rimbaud, pode-se vê-lo ao mesmo tempo em que pode-se ver a poesia pura, quase não contaminada pela interferência da palavra-inferno de Rimbaud.

É oportuno observar que o desregramento estético se forma a partir de um rígido regramento, ou seja, quanto mais caminha-se em direção a uma antítese, mais se afirma uma nova tese a ser refutada no futuro. Parodiando o pensador da dialética, a síntese mais evidente é o próprio ato de formular e refutar, ao qual Rimbaud se prontificou.

Para ele, então, fazer poesia é não querer fazer poesia. Essa arriscada proposição encontra paralelos famosos nas palavras do próprio poeta a exemplo de eu é um outro ou é falso dizer: penso. Dever-se-ia dizer: pensa-se em mim. Porém, com mais propriedade, João Alexandre Barbosa assim conclui sobre o fenômeno da recusa a respeito de Valéry:

Recusando, assim uma linguagem, a da Literatura, para a invenção de uma outra, a da Literatura (desta vez consumida pelo próprio ato de recusa), o artista elabora o esquema necessário para a revelação de uma realidade nova - passada pelo crivo da crítica problematizadora. Deste modo, a metalinguagem que se incrusta, de diversas formas, na obra contemporânea revela, mais do que um simples movimento tautológico da Literatura moderna, as próprias coordenadas da crise de representação em que se encontra. (1974, p.46).

Portanto, a temporada de Rimbaud no inferno é seu sôfrego castigo de viver entre a poesia e a palavra, a tradição e a modernidade, o eu e o outro, o real e o não real.

3. Em verdade vos digo que (não) vos conheço

Identificar o ponto de partida para o inferno é compreender a origem daquele que é seu visitante. Antes deste estar no inferno, o inferno está nele. Diante do Cérbero, na porta do inferno, o visitante de Rimbaud tem lampejos brascubeanos de consciência, interpolados por desejos de retorno à vida, a fim de consertar os males causados na origens: A caridade é essa chave. - Esta inspiração prova que sonhei.

O son(h)o é o princípio de todo o inferno, por isso busca-se artifícios de conforto, mas o inferno é imanente. Há que se saber que vozes são essas que gritam dentro de si.

Como se numa espécie de prólogo, na primeira parte de Uma temporada no inferno, o poeta dedica seus versos a apresentar as vozes dos agentes principais do poema. O tom irônico e tácito demonstra a ousadia com a qual a insólita viagem é configurada. A fragmentação do discurso não permite que se construa linearidade ou integridade desses agentes.

Uma das representações fragmentadas é a da virgem louca – que aparecerá com mais destaque na sessão Delírios. Segundo o texto bíblico, Jesus Cristo conta a parábola das dez virgens: cinco delas são prudentes; as outras cinco, loucas. A imprudência destas está no fato de não terem preparado azeite suficiente para suas lâmpadas, enquanto aquelas tinham o suficiente para si, o que impossibilitava uma redistribuição. Tendo que ir aos mercadores para comprar azeite, as cinco virgens loucas chegaram atrasadas para encontrar o esposo, por ocasião de seu casamento. Este levou consigo para as bodas somente as cinco que estavam presentes e prontas.

O estado da virgem louca apresentada por Rimbaud parece se assemelhar ao daquelas nas circunstâncias vexatórias transcritas nas palavras do evangelista, palavras estas que evocam um tênue sentido de injustiça e o rancor ressentido por parte de quem foi rejeitado. Uma vez que todas dormiram - o princípio é o mesmo:

E, tardando o esposo, tosquenejaram todas, e adormeceram. [...]
E, tendo elas ido comprá-lo [o azeite], chegou o esposo, e as que estavam preparadas entraram com ele para as bodas, e fechou-se a porta. E depois chegaram também as outras virgens, dizendo: Senhor, senhor, abre-nos. E ele respondendo, disse: em verdade vos digo que vos não conheço
(BÍBLIA SAGRADA, 1969, 39-40).

Tendo se fechado a porta, uma pergunta fica no ar, sobre a qual Jesus se silencia: qual foi a alternativa encontrada pelas virgens loucas, qual o seu destino?

Para o inferno! – responderia a cristandade. Isso evidencia o fato de que uma saison pelo inferno não seria propriamente uma opção, mas uma contingência. Outras atitudes coerentemente se agregarão à alternativa que restou à virgem louca:

Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos. - E achei-a amarga. - E injuriei-a
Armei-me contra a justiça.
Fugi. Ó feiticeira, ó miséria, ó ódio, a vós é que meu tesouro foi confiado. [...] o infortúnio foi meu deus
.” (RIMBAUD, 1983, 45)

O outro agente representado é o demônio, a quem o poema é dedicado: “[...] já que apreciais no escritor a ausência das faculdade descritivas ou instrutivas, destaco para vós estas hediondas folhas de meu caderno de réprobo.” (RIMBAUD, 1983, 45)

Anfitrião da virgem louca, Satã é requisitado pelo poema a ter um olhar menos irritado e compreender a contingência estabelecida e decorrente de uma mútua imprudência. O mesmo Satã sofreu com a rejeição desde sua expulsão do Céu, embora, segundo o texto bíblico, o inferno já estaria preparado para o diabo e seus anjos. Tal como o demônio e a virgem louca, a rejeição em Rimbaud era inerente ao seu espírito e muito mais explícita em sua palavra, porque sopro de Deus.

A dinâmica é a de que essa rejeição provoca a busca de um acolhimento. Esta dinâmica pode nos remeter à convivência complexa entre a tradição e a modernidade em Rimbaud, o que, em si, promove um estado propriamente “infernal” no fazer poético. A tradição elege a prudência, a beleza, a justiça, a moral e rejeita o novo como forma de auto preservação. Toda a formação anti-tradicional de Rimbaud decorre, contraditoriamente, de sua formação tradicional. Na metáfora da virgem louca e de seu conveniente anfitrião, um poeta imprudente e iniciante rejeita os termos positivos da tradição e mergulha (ou é lançado) em um lago de fogo, a saber, a “modernidade [que] conduz a novas experiências, cuja dureza e obscuridade exigem uma poesia suja e ‘negra’”. (FRIEDRICH, 1978, p.66) [grifo do autor]. O próprio poema é o inferno. O castigo é escrevê-lo, pois ele contém as palavras de condenação: profecia , (e)vidência.

A sessão intitulada Sangue ruim mostra profecias que se evidenciam tanto no plano real como no ficcional. Rimbaud transita do real para o não-real como já havia anunciado sobre sua tarefa de poeta: ausência de faculdades descritivas e instrutivas.

A origem que começa a ser narrada é a do próprio Rimbaud. Esta vai se diluindo entre as elucubrações acerca de sua história a ponto das metáforas desaparecerem, pois o universo se torna totalmente (ou puramente) metafórico. O homem real e o sujeito poético se equivalem nessa estética: “A mão que segura a pena vale tanto quanto a que empurra o arado.” Ambos, ao inferno, são condenados pelas próprias mãos: “ – Que século manual!” (RIMBAUD, 1983, p.47).
A origem genética constatada pelo próprio poeta faz com que se divida a culpa por sua condenação e ressalta a imanência. É pelas mãos que o poeta se condena, ao escrever, mas ele escreve o que ele é. Todos os atributos herdados, tanto dos antecessores estéticos como genéticos, se relativizam diante de sua descrição. Nada deve permanecer esclarecido – a (e)vidência se faz, não na explicitude, mas na crueza do simulacro: “Tenho deles [gauleses]: a idolatria e o amor ao sacrilégio; – Oh! Todos os vícios, cólera, luxúria, – magnífica a luxúria; – sobretudo mentira e indolência.”(RIMBAUD, 1983, p.47).

A misteriosa evidência contida nessas palavras, aos poucos retoma a metáfora do espelho e torna, aos olhos do leitor, um instrumento revelador de verdades universais. A família de Rimbaud é todas as famílias(Friedrich assim compreende a recorrência utilização da totalidade e dispersão do sujeito poético em Rimbaud: “[...] outra tendência de Rimbaud, a de isentar o individual de toda limitação local, ou de qualquer índole, mediante a expressão generalizante ‘todos’”[...] (1978, p.82)).

Essa verdade age, em nós leitores, como os descendentes que Rimbaud descreve como pilhadores que são “lobos que atacam o animal que não mataram” (RIMBAUD, 1983, p.48) Ou seja, não foi Rimbaud quem criou seus versos, foram legados a ele por seus ancestrais poéticos, mas somente Rimbaud poderia escrevê-los. Sabia-o o poeta: “Que era eu no século passado: só hoje é que torno a encontrar-me”(RIMBAUD, 1983, p.48).

Tendo consciência de sua inutilidade no processo literário, o poeta transforma, ou mesmo, deforma sua deficiência em prol de um projeto novo. Continuava sua descrição como se o tempo todo estivesse rindo de si e da humanidade, como fazia a Esfinge de Tebas. Para isso, palavras enganosas: “Espero Deus avidamente. Sou de raça inferior, por toda a eternidade. [...] pela minha máscara, pensarão que sou de uma raça forte.” (RIMBAUD, 1983, p.49).

No que era fraco deveria fazer-se forte. A divindade deve ser invertida, por isso, para a virgem sem azeite, na demora do esposo, é preciso contentar-se em fazer como todos, prudentemente: “o melhor a fazer é dormir, bêbedo, na praia.” (RIMBAUD, 1983, p.49) Repito: o son(h)o é princípio de todo o inferno.

Nesse ponto, o poema sugere atribuições demoníacas como adorar animais, quebrar corações, sustentar mentiras etc. Se o inferno de ser poeta atormenta seu coração, Rimbaud instrui a ter consciência disso, pois negá-lo também não lhe salvará desses tormentos: “Não te matarão mais do que se fosses um cadáver.” (RIMBAUD, 1983, p.51)

A oposição de Rimbaud a Deus, portanto, pode se dar nos dois planos referidos. Nisso, creio, pouco importa acreditar-se ou não na carta de sua irmã à mãe relatando a conversão do poeta ao cristianismo. Se Rimbaud rogou mesmo a misericórdia divina, sabia ele que seu destino, já traçado, era a condenação. Se estas palavras fazem crer que defendo aqui que, de contrapartida, o que acontece no plano estético é refletido no plano real, digo, sobrenatural, então fiquemos, cada um à sua maneira, com nossos próprios infernos.

No plano estético, outrossim, (não) somente no estético, percebemos uma trindade julgando os procedimentos do poeta: “pai, professores, patrões”, a saber, a moral familiar, a ciência e o capital.

Para tentar fugir, como Édipo, de seu destino, Rimbaud, com suas máscaras vai para a África traficar armas: “Entro no verdadeiro reino dos filhos de Cam” (RIMBAUD, 1983, p.52). Volta para onde teria sido o berço das artes e da humanidade, dizendo conhecer a natureza e a si mesmo. Tanto propõe o enigma como o desvenda. Prescinde de palavras e busca nos gritos e nas danças as verdadeiras origens da poética. Então todos os poetas cabem natimortos dentro de sua poesia: “Sepultei os mortos no meu ventre” (RIMBAUD, 1983, p.52).

Ali Rimbaud, como desejou Alberto Caeiro, revê a criação e vê-se criança: “Vou ser arrebatado como uma criança, para brincar no paraíso, esquecido de todas as desgraças.” (RIMBAUD, 1983, p.52).

Se pode renascer (de si mesmo), além de somente ver-se, conhecer-se, Rimbaud faz-se Deus, daí, sim, poder ter-se convertido: “A razão nasceu em mim. [...] tendo Jesus Cristo como sogro. Não sou prisioneiro de minha razão. Disse: Deus.”(RIMBAUD, 1983, p.53).

Este foi o percurso que o Príncipe e o Gênio fizeram a fim de se recuperarem de suas angústias (Estes personagens, já referidos anteriormente, constam na sessão “Conto” do poema “Iluminações” (Iluminations, de 1873). O destino do Príncipe e do Gênio é o aniquilamento, como sugerem os versos: “O Príncipe e o Gênio se aniquilaram provavelmente na saúde essencial. Porque não morreriam eles disto? Juntos, então, eles morreram.” (RIMBAUD 1983, p.87)). Mesmo porque, somente nessa posição de criador, poderiam assoprar nas narinas das outras criaturas seus próprios destinos; assoprar palavras de liberdade e de condenação; e saber de todos os mistérios e revelações oraculares das palavras desde a primeira delas; reconhecer-se no princípio e únicos. Conhecer e reinar absoluto: mistérios lacrados pelo engano de que as palavras elucidam. Pelo contrário, elas nos retardam à obscuridade, a qual existia na solidão de um Deus que precisava de um outro. Anterior ao Haja luz! , teria dito: Haja Eu!; então, no princípio era o verbo!

4. E o verbo, (a)traído, fez-se inferno

Estando configurada a predestinação do poeta ao inferno, fechada a porta do paraíso, a próxima sessão do poema em prosa é Noite do inferno. Nela o poeta tenta superar as dificuldades da descrição com sensações promovidas pelo efeito das palavras: “Possa eu descrever a visão, o ar do inferno não tolera hinos” (RIMBAUD, 1983, p.55).

Diante do impasse, apela para os sentidos evidenciados na forma. As sensações se alternam com ensaios de descrições e metáforas não usuais. Apresentando o seu projeto estético, Rimbaud, nessa sessão, supera os limites da objetividade e convoca o leitor a perceber a sua diferença para com a tradição poética: forma em explosão, conteúdo em explosão, projeto em explosão; a reiteração aqui é necessária: “As alucinações são inumeráveis.[...] Eu deveria ter um inferno para a minha cólera, um inferno para o meu orgulho, – e o inferno da carícia; um concerto de infernos.”(RIMBAUD, 1983, p.56-57)

Há sugestões para todos os sentidos humanos, inclusive a alucinação: “morro de sede, sufoco, não posso gritar.[...] magias, perfumes falsificados, músicas pueris [...] à luz da lanterna...”(RIMBAUD, 1983, p.55-56)

Entretanto, o sentido que mais se destaca é o do tato. É através dele que é apresentado um outro agente cuja voz o poeta utilizará: o traidor, Judas – a traição, um beijo. A história – todos conhecemos – mudou a nossa era: “este beijo mil vezes maldito! Minha fraqueza, a crueldade do mundo!”(RIMBAUD, 1983, p.57).

Um Judas, digo, um traidor no meio dos poetas franceses. Um discípulo que rejeita sua escola por muito se alimentar dela. Se enriquecer de seu saber, e, a partir disso, inaugura uma nova era da poesia. O aluno despreza seus mestres e os provoca: “É, sem dúvida, o que sempre tive: falta de fé na história, o esquecimento dos princípios. Silenciarei sobre isto: poetas e visionários ficariam enciumados. Sou mil vezes o mais rico, sejamos avaros como o oceano.” (RIMBAUD, 1983, p.56).
Parece ser o último aviso do poeta sobre o seu comportamento deslocado da estética tradicional. A partir de então, o poema se perde em Delírios sem concessões descritivas ou instrutivas.
Para que o leitor aceite o convite do poeta a acompanhá-lo pelo inferno, como o de Virgílio a Dante, basta um sinal, um beijo, e a aquiescência; acreditar nas sugestões proferidas: “Creio estar no inferno, então estou nele”(RIMBAUD, 1983, p.55).

A resposta para esse convite, o sinal e a assinatura do contrato com o Demônio podem ter sido feitos mesmo sem o consentimento anteriormente às formulações de decisão do leitor, na própria aquisição da leitura, quando o leitor treina os primeiros preceitos da decodificação. Desde as primeiras liturgias, obedecendo os sagrados sacramentos da escrita até a interpretação: “É a execução do catecismo. Sou escravo do meu batismo. Pais, fizeste a minha desgraça, e também a vossa. Pobre inocente! – o inferno não pode investir contra os pagãos.” (RIMBAUD, 1983, p.55).
Quem lê, então, não é mais inocente, não é mais pagão. Mais uma vez a palavra provoca a danação humana. Mas não é ela inerente ao homem?!

Além do aviso sobre o seu comportamento estético, o poeta alerta para os perigos da palavra, da poesia, batismo infernal, processo pelo qual o leitor será iniciado, tendo ou não feito uma opção.
O projeto do poeta torna-se consciente e notório em suas palavras. Se esse projeto caracteriza uma vida independente para as palavras, então fica perceptível, na voz poética, a consciência das palavras além do que elas dizem (metalinguagem), e também sobre o que elas se calam. Há um vazio silencioso e escuro que as palavras guardam, um continente ilógico e caótico que grita, não pela materialidade nelas, mas pelo que elas cheiram, comem, tocam, ouvem ou vêem – o que, em essência, deveriam ser ações materiais, contudo, no caso de serem palavras, não o são.
Sobre este aspecto, a percepção de Michel Foucault a respeito da obra de Borges parece bastante oportuna. Impressão por impressão, se tudo é crítica, uma desconfiança infernal exige um espaço aberto neste texto para o impressionante pensador d’As palavras e as coisas: “O embaraço que faz rir quando se lê Borges [para mim, Rimbaud] é por certo aparentado ao profundo mal-estar daqueles cuja linguagem está arruinada: ter perdido o ‘comum’ do lugar e do nome. Atopia, afasia.” (FOUCAULT, 1995, p..9).

Abertas as portas do inferno intertextual, convém um exemplo a mais, conhecido entre nós, talvez sobre a personagem mais metalingüística da literatura brasileira, justamente por provocar reflexões incompreensíveis na linguagem. Alfredo Bosi aponta a boa concisão terminológica do narrador para auxiliar uma aparente afasia no Menino mais velho de Vidas Secas:

O que interessa ao narrador é fixar o instante do curto-circuito, o processo da incomunicação, a conversa truncada na origem, o diálogo impossível; em suma, a barbárie que pulsa na assimetria de adulto e criança, de forte e fraco, e que está prestes a explodir a qualquer hora. Mas como o texto de Graciliano se produz em um regime de consciente economia, não esperdiçando símbolos ao acaso, importa a escolha do signo motivado. É exatamente a palavra inferno que acaba funcionando como analogon de toda a relação intersubjetiva de base (BOSI, 1988, p.16).

Portanto, o projeto de Rimbaud é mais voltado para esse desespero diante da não-linguagem. Algo ousado no contexto de uma cultura totalmente logocêntrica capaz de definir o homem como possível de ser definido por palavras. Nesse caso, aquilo que se vai desfigurar o homem, as coisas, deslocados de sua base essencial – a linguagem – necessitará de um novo lugar.

Esse deslocamento é um processo de transcendência: remete-se o que é aparente ao que é essencial. Platão, Kant, Nietzsche e outros que buscam pelo conceito de humano deram suas indicações. Segundo Friedrich, Rimbaud indica um vazio pleno, uma transcendência vazia.
Por isso é que o caminho se torna potencialmente perigoso. Todas as aventuras, tanto celestes como infernais poderão não passar de um efeito alucinógeno, de Delírios, como o do ópio ou do vinho, mas todas elas serão desregradas a ponto de serem questionadas, mesmo aquelas das quais não se podia sequer suspeitar: “Vou desvendar todos os mistérios: mistérios religiosos ou naturais, morte, nascimento, futuro, passado cosmogonia, o nada. Sou mestre em fantasmagorias.” (RIMBAUD, 1983, p.56).

É nessa sessão Delírios que os desvendamentos começam a se desatar em tons confessionais. Tudo pode conter semelhança com o real através dos discursos pseudo-enganadores de uma virgem louca e de um poeta-traidor, ambos em busca de redenção: irrealidades sensíveis na concepção de Friedrich, pois “estamos num mundo cuja a realidade existe só na língua.” (1978, p. 79)

A virgem louca procura argumentos que a fazem diferenciar-se das outras loucas, suas amigas, e dialoga com o esposo infernal a fim de escusar-se de seus pecados. Sente saudades, arrependida, dos tempos em que esperava pelo esposo dos céus. Uma relação de infidelidades se delineia em seu discurso, inclusive, lembrando o conturbado romance de Rimbaud e Verlaine. Torna-se interessante, a propósito, por conter os conturbados diálogos entre a poesia tradicional com a sinestésica poesia moderna:

Com seus beijos e abraços amigos, era sem dúvida num céu, num céu sombrio, que eu entrava, e onde desejaria ser deixada, pobre, surda, muda, cega.[...] Pois será preciso que eu parta um dia, para muito longe.[...] Esta promessa de amante, ele a fez vinte vezes a mim. Era tão frívola quanto minha frase que lhe dizia: ‘Eu te compreendo’.[...]Que estranho casal! (RIMBAUD, 1983, p. 61-62).

O diálogo fica mais intenso, e talvez mais explícito, na segunda sessão dos Delírios, a saber, Alquimia do verbo. Nela, Rimbaud promove uma reflexão de seus atos poéticos. A sessão, dedicada a ele próprio, reporta, em estrutura quase narrativa, suas aventuras de criador, portanto de usurpador do trono de Deus. O reconhecimento de sua desmedida tem um caráter de arrependimento, mas, em vez disso, torna-se uma auto-delação, sobretudo porque contém confissões irreversíveis que o fazem se contradizer: “Nenhum dos sofismas da loucura, – a loucura que leva ao hospício, – ficou esquecido por mim: eu poderia repeti-los todos, tenho um sistema.” (RIMBAUD, 1983, p.68).

A condenação é inevitável, uma vez que a palavra cria uma nova realidade, como o próprio poeta o faz perceber, e o verbo está em constante alquimia. Todas as vezes que pronunciar seus pecados, mesmo em confissão, ele confirmará o seu merecido castigo. Para tanto, a quantidade e qualidade dos verbos (Essa leitura pode ser arriscada se não evidenciar aqui os respectivos elementos. Os verbos, para citar alguns, ressaltam os comprometimentos estéticos no projeto de Rimbaud: possuir, amava, sonhava, inventei, regulei, nutri, traduzi, escrevi, anotava, fixava, assumia, tornei-me etc.), em abundância na sessão, negam o novo projeto ao qual o poeta se lançará no futuro: “Isso passou. Sei hoje saudar a beleza” (RIMBAUD, 1983, p.69). Mas a sorte já estava lançada, pois ele já havia informado o seu pior pecado quando elegia uma nova divindade: “Terminei achando sagrada a desordem de meu espírito”(RIMBAUD, 1983, p.65).

Na verdade, Rimbaud encontrou seu descanso, fugindo do conteúdo infernal da poesia. No plano estético, buscou a aproximação da pintura na composição de Iluminações e, no plano real, buscou a vida evasiva nos desertos africanos. Ali, seus afazeres comerciais não o deixariam lembrar-se ou pronunciar as palavras proféticas ou poéticas de condenação.

Em ambos os casos, percebe-se que a alternativa encontrada não diz respeito aos expedientes comumente utilizados pelo poeta, ou seja: os son(h)os, a alucinação, o espelho e a (e)vidência; os quais somente confirmariam sua angústia. As alternativas são o esquecimento, a fuga, e, sobretudo, o que tratarei na última e breve parte desse ensaio: a caridade. “A caridade é essa chave.”( RIMBAUD, 1983, p.45)

5. Vigiai e orai para que (não) entreis em (com)tradição

A chave para manter-se em vigília é a caridade. Isso para Rimbaud é uma incerteza, mas esta incerteza é a única coisa certa que possui.

A caridade tem morada: é no Oriente. Longe (ou muito próximo?) das potestades cristãs e suas respectivas punições, o poeta procura o alento oriental, berço das divindades primevas. Se a alternativa não foi a mais adequada, pelo menos é uma fuga.

Na sessão O impossível, o poeta anuncia a sua despedida com resolução: “Evado-me!” (RIMBAUD, 1985, p.70). Ignorar o céu é, pelo menos, fugir de suas determinações.
Uma nova mitologia é requerida para a poesia moderna. Rimbaud se cansa das tradições ocidentais e seus símbolos capitalistas como o Senhor Prudhomme. A ciência racional e a Igreja moralista do ocidente são venenos para a estética do poeta. Elas o mantêm sob um falso estado de vigília, a fim do trabalho, do progresso, mas ele reclama: “Mas me apercebo que meu espírito dorme”(RIMBAUD, 1985, p.72). Na iminência da chegada do noivo, o poeta-virgem-louco teme esse sono infernal proporcionado pela palavra lógica e venenosa.

Eis que a terceira via se abre: a meditação oriental, aquela que se faz, finalmente, de olhos abertos – venenos diferentes. A poesia deve ser diferente: pura e moderna; o poeta clama por pureza.

São os olhos abertos diante do espelho que poder ver, em todos os sentidos, O relâmpago. Esta é a sessão que anuncia a vinda do juízo final para a poesia e para todos: “Porque assim como um relâmpago que sai do oriente e se mostra no ocidente, assim há de ser a vinda do filho do homem.” (BÍBLIA SAGRADA, 1969, P.38).

Como já dói condenado, mesmo que nos últimos dias tenha arrependido e se esquecido, o poeta vai a julgamento acusado de usurpação. Há, nesse momento, duas direções para seguir, segundo a ordem de Deus, o qual está no centro. Rimbaud entende que a poesia é infinita, cíclica e seu destino não é decidido em apenas duas palavras:

Não! Não! Agora eu me revolto contra a morte! [...] No derradeiro momento, eu investiria para a direita, para a esquerda...[para o centro?]
Então, – oh! – cara e pobre alma, a eternidade estaria perdida para nós! (RIMBAUD, 1985, p.74).

A perdição eterna estaria, em quaisquer casos, decretada e só não se cumpriria se, tendo imergido nesse abismo dos son(h)os, o poeta acordasse. A ação temporal de levá-lo da noite ao dia seria providencial e redentora: “Venha, venha o tempo/que nos enamora” (RIMBAUD, 1985, p.65). É isso que se segue na sessão Manhã, a parte do dia em que, segundo Édipo, o homem é criança.

É nesse período que as primeiras palavras vêm e com elas um novo ciclo se inaugura, de narrações e imaginações. O poeta sente que seu dever foi cumprido e que suas sugestões de memória ainda se afloram nos seus sonhos pueris: “[...]que mortos têm pesadelos, tratai de narrar minha queda e meu sono. [...] Contudo, creio ter terminado hoje a minha narração de minha temporada no inferno. Era realmente o inferno: o antigo, aquele cujas portas o filho do homem abriu.”(RIMBAUD, 1985, p. 75).

Portanto, o poeta continua ciente de sua angústia com a palavra. Com ela viriam o natal, o trabalho novo, os primeiros e os escravos: o mundo é uma prisão!, disse Hamlet.
A partir desse moto-contínuo, tudo é redundância.

Por isso disse que é quase impossível falar desse poeta. Estou falando de todos: acordados, desacordados, sonolentos, sonâmbulos, taciturnos, madrugadores, vigilantes, sonhadores, tosquenejantes, entorpecidos, alucinados e os que me fogem ao léxico. Entre eles, este crítico que escreve em devaneios e este leitor que pestaneja sob enfados. A todos nós, um último aviso: o son(h)o é o princípio de todo o inferno!

Isto é crítica: falar de quando é impossível, como a mim foi; fazer adormecer crianças e acordar os homens, tanto quanto embalar os homens no colo e despertar crianças de um pesadelo. Fazer crítica se limita com catar verdades. Esta é uma tarefa de homens totalmente modernos: “Poesia só pode ser criticada por poesia” (SCHELEGEL, 1994, p.91). Poesia criticada: “alma de corpos mortos e que serão julgados!” (RIMBAUD, 1985, p.76)

A crítica à poesia é uma forma de pôr-se no lugar da poesia como uma nova poesia, daí ser fiel e conspirar ao mesmo tempo; é postergar a palavra-poética destruindo-a como se faz com sementes enterradas em “minha imaginação e minhas lembranças!”; portanto, é voltar à terra, ser plantador de poesias, “Camponês!” (RIMBAUD, 1985, p.76-77)

É esse constante destruir e recriar, dualidade da sessão Adeus, que nos permite relacionar a obra de Rimbaud ao que Nietzsche conceitualiza de niilismo ativo, a saber, o que, por força da vontade de potência se supera eternamente em movimentos espirais. Nesse ponto, vale destacar a polêmica que Steban estabelece com uma pretensa poesia moderna outra, desprovida de sentido, a qual não crê numa superação: “É preciso com Rimbaud, após Rimbaud, não deixar de crer nisso. Pois toda sua poética, mesmo ligada à sua noite, aspira a construir como que uma arquitetura de signos, e portanto uma morada possível para o sentido.” (STEBAN, 1991, p.17).
O sentido não está distante dessa poesia moderna pregada por Rimbaud, mas se fragmenta numa linguagem caótica. Segundo Friedrich, nas unidades desses fragmentos, “vibra o caos que foi necessário para a unidade tornar-se linguagem: na unidade de uma musicalidade superior ao sentido que penetra todas as desarmonias e harmonias.” (1978, p.60).

Essas afirmações afinam-se com o conceito de poesia moderna de Barbosa: “O que chamo de poesia moderna é, sobretudo, aquela em que a busca pelo começo se explicita através da consciência de leitura: a linguagem do poeta é, de certo modo, a tradução/traição desta consciência.” (1986, p.14).

As concepções acima, com as quais concordo, propositadamente enchendo o meu texto, meu discurso, me valendo de conclusão, auxiliam-me e me autorizam a criticar a poesia de Rimbaud em forma de um concerto de poesias e críticas. Desafinar, entretanto, é um risco que todo poeta-crítico deve correr, sobretudo aquele educado com escalas próprias e diapasões artesanais de sua própria oficina.

Tal concerto me vale, agora, como aquela mão amiga requerida por Rimbaud no final de seu poema, de sua temporada. Neste ensaio, o que é nota marginal sobe ao corpo do texto – note o leitor o meu próprio inferno! O final, por mais que o adio, avança contra a resistência à morte do poeta e sua intolerância à vida. Viver, eis sua função maldita! Um poeta fantasma e desalmado que, de corpo e alma, busca a verdade.

“[...]e me será permitido possuir a verdade em uma alma e um corpo.”(RIMBAUD, 1873, p.78) ...e tentar resgatar aquela parte desgarrada de Deus, se lhe somos semelhantes, que, pela alquimia do verbo, fez-se carne e, de tempos em tempos, criações em criações, dilúvios em dilúvios, juízos em juízos, tenta lançar-se contra os grilhões temporais da linguagem, a fim de, diante de um espelho, de olhos abertos, em constante vigília, em oração, sem querer cair na tentação do son(h)o profundo do inferno, ser novamente, e pela primeira vez, Deus.
Ou, então, ser antes d’Ele, pois avisei que seria redundante!, o caos.

Fonte:
Artigo apresentado em Simpósio realizado na Universidade Federal de Uberlândia, em 2006.

Fonte: SOUZA, Enivalda Souza Freitas de. TOLLENDAL, Eduardo José. TRAVAGLIA, Luíz Carlos (orgs.). Literatura: caminhos e descaminhos em perspectiva. Uberlândia: EDUFU, 2006. CD-ROM.

Narração

A narração ou narrativa pode ser definida como um dos três modos literários, sendo os outros o lírico e o dramático; ou como um dos três modos básicos de redação, sendo as outras a descrição e a dissertação.

Basicamente narrar é contar uma história, e para tanto teremos personagens, cenários, conflitos, cenas. O estudo da narrativa e destes elementos é chamado de narratologia, comumente associado ao estruturalismo, mas com referências na Poética grega e no formalismo russo.

Roland Barthes, mestre no estudo da narrativa, afirma que "a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades, começa com a própria história da humanidade; é fruto do gênio do narrador ou possui em comum com outras narrativas uma estrutura acessível à análise".

Ação
A ação é o conjunto de acontecimentos que se desenrolam num determinado espaço e tempo. Aristóteles, em sua Poética, já afirmava que "sem ação não poderia haver tragédia". Sem dificuldade se estende o termo tragédia à narração, e assim a presença de ação é o primeiro elemento essencial ao texto narrativo.

Estrutura da ação
A ação da narrativa é constituída por três ações: Intriga, Ação principal e Ação secundária.
•Intriga: Ação considerada como um conjunto de acontecimentos que se sucedem, segundo um princípio de causalidade, com vista a um desenlace. A intriga é uma ação fechada.
•Ação principal: Integra o conjunto de seqüências narrativas que detêm maior importância ou relevo.
•Ação secundária: A sua importância define-se em relação à principal, de que depende, por vezes; relata acontecimentos de menor relevo.

Seqüência
A ação é constituída por um número variável de seqüências (segmentos narrativos com princípio, meio e fim), que podem aparecer articuladas dos seguintes modos:
•Encadeamento ou organização por ordem cronológica
•Encaixe, em que uma ação é introduzida numa outra que estava a ser narrada e que depois se retoma
•Alternância, em que várias histórias ou seqüências vão sendo narradas alternadamente.

Tempo
•Tempo cronológico ou tempo da história - determinado pela sucessão cronológica dos acontecimentos narrados.
•Tempo histórico - refere-se à época ou momento histórico em que a ação se desenrola.
•Tempo psicológico - é um tempo subjetivo, vivido ou sentido pela personagem, que flui em consonância com o seu estado de espírito.
•Tempo do discurso - resulta do tratamento ou elaboração do tempo da história pelo narrador. Este pode escolher narrar os acontecimentos:
Por ordem linear
•(anacronia), recorrendo à analepse (recuo a acontecimentos passados) ou à prolepse (antecipação de acontecimentos futuros);
•(isocronia), como, por exemplo, na cena dialogada;
•(anisocronia), recorrendo ao resumo ou sumário (condensação dos acontecimentos), à elipse (omissão de acontecimentos) e à pausa (interrupção da história para dar lugar a descrições ou divagações).

Personagens
Roland Barthes, além de retomar a importância que os clássicos davam à ação, avança ao afirmar que “não existe uma só narrativa no mundo sem personagens”. Aqui se entende personagem não como pessoas, seres humanos. Um animal pode ser personagem (Revolução dos Bichos), a morte pode ser personagem (As intermitências da morte), uma cidade decadente ou uma caneta caindo podem ser personagens, desde que estejam num espaço e praticando uma ação, ainda que involuntária.

Relevo das personagens
•Protagonista, personagem principal ou herói: desempenha um papel central, a sua atuação é fundamental para o desenvolvimento da ação.
•Personagem secundária: assume um papel de menor relevo que o protagonista, sendo ainda importante para desenrolá-lo da ação.
•Figurante: tem um papel irrelevante no desenrolar da ação, cabendo-lhe, no entanto, o papel de ilustrar um ambiente ou um espaço social de que é representante.

Composição
•Personagem modelada ou redonda: dinâmica, dotada de densidade psicológica, capaz de alterar o seu comportamento e, por conseguinte, de evoluir ao longo da narrativa.
•Personagem plana ou desenhada: estática, sem evolução, sem grande vida interior; por outras palavras: a personagem plana comporta-se da mesma forma previsível ao longo de toda a narrativa.
•Personagem-tipo: representa um grupo profissional ou social.
•Personagem coletiva: Representa um grupo de indivíduos que age como se os animasse uma só vontade.

Caracterização
•Direta
•Autocaracterização: a própria personagem refere as suas características.
•Heterocaracterização: a caracterização da personagem é-nos facultada pelo narrador ou por outra personagem.
•Indireta: O narrador põe a personagem em ação, cabendo ao leitor, através do seu comportamento e/ou da sua fala, traçar o seu retrato.

Espaço
•Espaço físico: é o espaço real, que serve de cenário à ação, onde as personagens se movem.
•Espaço social: é constituído pelo ambiente social, representando, por excelência, pelas personagens figurantes.
•Espaço psicológico: espaço interior da personagem, abarcando as suas vivências, os seus pensamentos e sentimentos.

Final
Narrador
• Participação
• Heterodiegético: Não participante.
• Autodiegético: Participa como personagem principal.
• Homodiegético: Participa como personagem secundária.
• Focalização: É a perspectiva adotada pelo narrador em relação ao universo narrado.
• Focalização onisciente: colocado numa posição de transcendência, o narrador mostra conhecer toda a história, manipula o tempo, devassa o interior das personagens.
• Focalização interna: o narrador adota o ponto de vista de uma ou mais personagens, daí resultando uma diminuição de conhecimento.
• Focalização externa: o conhecimento do narrador limita-se ao que é observável do exterior.

Sucessão e Integração
Claude Bremond, ao definir narrativa, acrescentará a sucessão e a integração como essenciais para a narratividade: "Toda narrativa consiste em um discurso integrando uma sucessão de acontecimento de interesse humano na unidade de uma mesma ação. Onde não há sucessão não há narrativa, mas, por exemplo, descrição, dedução, efusão lírica, etc. Onde não há integração na unidade de uma ação, não há narrativa, mas somente cronologia, enunciação de uma sucessão de fatos não relacionados".

Totalidade de significação
A totalidade de significação é apontada por Greimas como outro elemento fundamental da narrativa. Ainda que aparentemente o leitor não entenda um texto, há de ter nele uma significação para que se configure como história, como narração.

Em prosa e verso
Apesar de aparecer comumente em prosa, a narração pode existir em versos. Os exemplos clássicos são as epopéias, como a Odisséia, ou os romanceiros, como o Romanceiro da Inconfidência. Mas poemas como O Caso do Vestido e Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade, são verdadeiras narrativas em versos, com ação, personagens, sucessão, integração e significação.
Fonte:

Luiz Otávio (1916 - 1977), Príncipe dos Trovadores

artigo enviado por Carolina Ramos

O POETA

Gilson de Castro nasceu a 18 de julho de 1916, no Rio de Janeiro. Luiz Otávio foi o pseudônimo que ele adotou para assinar suas trovas, poesias e outras manifestações de seu talento literário. Era cirurgião-dentista, profissão que exerceu no Rio de Janeiro, onde se formou e mais tarde se transferindo para Santos no final de sua vida.

Começou a enviar seus versos para os jornais e revistas lá por 1938, ainda timidamente, oculto sob pseudônimo. Não pretendia misturar a vida literária com a profissional. As principais revistas e jornais da época começaram a divulgar poesias e principalmente trovas de Luiz Otávio, que podiam ser encontradas no "Correio da Manhã", "Vida Doméstica", "Fon-Fon", "O Malho", "Jornal das Moças", revistas que, como "O Cruzeiro", eram as mais lidas dos anos 1939, 40 e 41, etc. A revista "Alterosa" de Belo Horizonte, também o divulgou. Pouco a pouco, a Trova tomou conta do coração do poeta, assumindo Literalmente papel de Liderança na sua vida. E ele confessa:

A Trova tomou-me inteiro,
tão amada e repetida,
que agora traça o roteiro
das horas da minha vida!...

Para a ascensão da Trova na vida de Luiz Otávio, muito contribuiu sua amizade com Adelmar Tavares. Quem os aproximou foi o consagrado poeta A. J Pereira da Silva. Recuperava-se Luiz Otávio na Fazenda Manga Larga em Pati de Alferes, quando teve oportunidade de conhecer esse renomado poeta, da Academia Brasileira de Letras, com quem iniciou amizade edificante, solidificada pela Poesia; amizade que se estendeu até os derradeiros dias de A. J. Pereira da Silva que, naquele tempo, já passava dos sessenta, enquanto Luiz Otávio não galgara ainda o vigésimo segundo degrau de sua sofrida existência. Isto não perturbou as horas deliciosas de conversa amena e espiritualizada, em que a fina sensibilidade de ambos fazia desaparecer a diferença de idade, provando que um coração capaz de vibrar "de amor" e pulsar em ritmo de poesia, simplesmente não tem idade.

A viúva do acadêmico Antônio Joaquim Pereira da Silva, doaria posteriormente, a preciosa Biblioteca do poeta ao seu particular amigo, Luiz Otávio, que, por sua vez, ao transferir residência para Santos, em 1973, doou parte desse valioso acervo, juntamente com livros de sua própria estante - num total de mil exemplares devidamente catalogados - à Academia Santista de Letras, que só então teve formada sua Biblioteca. Na época, a A.S.L. era presidida pelo Dr. Raul Ribeiro Florido que se responsabilizou pelo transporte Rio-Santos. Com esta doação, Luiz Otávio não pretendia nada para si, como deixou bem claro em carta, (era de conhecimento geral sua quase aversão às Academias, em virtude do próprio temperamento). Mas pediu, por uma questão de justiça, que numa das estantes fosse colocada uma placa que levasse o nome de A. J Pereira da Silva. Luiz Otávio recebeu um carinhoso oficio de agradecimento do então Presidente da Academia. O atual Presidente, Dr. Nilo Entholzer. Ferreira, trovador de méritos, comprometeu-se a cumprir essa cláusula. Como já dito, A. J. Pereira da Silva foi quem levou Luiz Otávio até Adelmar Tavares, também da Academia Brasileira de Letras, em visita à sua casa, em Copacabana. Corria o ano de 1939. Adelmar Tavares sentia a idade pesar-lhe nos ombros, e, mais uma vez, um jovem poeta e um velho e consagrado mestre da Poesia uniam-se por laços afetivos dos mais duradouros. A principal responsável por essa união foi a Trova, que Adelmar Tavares cultivava e da qual Dr. Gilson de Castro já era profundo apaixonado, trazendo-a para o público sob o Pseudônimo, agora definitivamente adotado.

Luiz Otávio. Luiz, por ser bonito, melodioso, e combinar com Octávio, o nome do Pai, a quem, homenageava. Para atualizar o nome, o c foi cortado em acordo às regras ortográficas vigentes. A Poesia de Luiz Otávio ganhava espaço. Jornais de outros estados o acolhiam em suas páginas, tinha ao seu dispor colunas literárias de crítica poética, onde comentava livros, publicava trovas, poesias e arrebanhava fãs e admiradores de todas as idades. Daí ai constituir-se Líder de um Movimento Trovadoresco, era questão de um passo, muito embora isto viesse acontecer sem procura. Idealista, lírico, por excelência, com um profundo senso de organização, Luiz Otávio acumulava ainda outras qualidades indispensáveis ao "verdadeiro Líder", seja lá do que for. Era simples, honesto, e sabia convencer sem forçar. Embora convicto e determinado, sabia humildemente ceder, se preciso fosse. Se persuadido da necessidade de uma renúncia, cedia, sim, porém, não facilmente, mesmo porque antes de propor algo, o fazia convicto de que aquilo era o certo, respondendo de antemão a todos os possíveis apartes - o que de certo modo desarmava, a priori, o opositor. Era bom, afável e acima de tudo, profundamente carismático. Um verdadeiro Príncipe!

O TROVADOR

Era, portanto, o campo fecundo onde a semente da Trova encontrou chão propício para deitar raízes, expandindo sua opulência por todo território nacional. O ritmo da Trova que embalava seus ouvidos desde os tempos de escoteiro, cresceu com ele, ganhando melodia ao som do violão de Glauco Vianna, mais tarde pertencente ao "Bando dos Tangarás", seu colega de faculdade e de noitadas de seresta.

Final
Luiz Otávio sempre gostou de cantar e compor embora não conhecesse música. Aloysio de Oliveira, outro companheiro, também possuidor de um bom timbre vocálico, iria pertencer, no futuro, ao Bando da Lua, que tanto sucesso fez na terra de Tio Sam ao lado de Carmen Miranda. A influência destes dois amigos foi grande na iniciação poética de Luiz Otávio. Glauco tocava, Aloysio cantava e Luiz Otávio não apenas cantava como também compunha letras e músicas de canções, sambas, fox-trotes, valsas, etc. e continuou cantando e compondo até o final dos seus dias. Nascia o "Trovador" - assim carinhosamente chamado, já naquele tempo, antes mesmo do seu ingresso definitivo no Mundo da Trova.

Cada quadrinha que faço
em hora calma ou incalma,
é pequenino pedaço
que eu mesmo furto a minha alma.

Ó trovas – simples quadrinhas
que tem sempre um que de novo...
- Como podem quatro linhas
trazer toda a alma de um povo?!

Uma trova pequenina,
tão modesta, tão sem glória,
bem pouca gente imagina,
que também tem sua história.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Como trabalhar a poesia em sala de aula (Luciana Cláudia de Castro Olímpio)

“A poesia sensibiliza qualquer ser humano. É a fala da alma, do sentimento. E precisa ser cultivada.” Afonso Romano de Sant’Anna

Mesmo sabendo da importância da poesia na vida dos seres humanos como mostra acima Afonso Romano, muitas escolas esqueceram-na, principalmente nas séries iniciais, dando mais espaços, entre aspas, para coisas mais importantes e mais sérias, como também para textos em prosa, privando os alunos dessa “experiência inigualável”, conforme caracteriza Maria Helena Zancan Frantz (1998, p. 80)

Neste artigo, enfatiza-se a necessidade de educadores, principalmente nas séries inicias, pois o aluno só cria hábito se for iniciada desde muito cedo, trabalharem com poesia na sala de aula ou fora dela.

O objetivo não é transformar os discentes em grandes escritores de poemas, até porque se precisa ter dom para esta arte, mas sim transformá-los em leitores aptos a interpretar e compreender o que o poeta quis transmitir em meio aos versos, além de propor que os educandos não percam a poesia que nasce neles desde quando as mães cantavam cantigas de ninar para que dormissem e depois quando brincavam de cantigas de roda, adivinhas, trava línguas etc.

Com esse objetivo, proponho alternativas de trabalhos com poesia e didáticas para implantação tanto no Ensino Fundamental como para o Ensino Médio baseadas nas idéias dos escritores relacionados no parágrafo abaixo.

Vários autores vêm pesquisando as questões da leitura e de trabalhos de poesias em sala de aula como Pinheiro (2002), Micheletti (2001), Frantz (1997), Cunha (1986) e investigam as dificuldades que os alunos possuem de interpretar estes textos, não só pela falta do conhecimento prévio, mas também pelo pouco contato que eles têm com a poesia.

Metodologia
Atualmente, a prática da leitura de poesia está um pouco esquecida nas escolas. Isso ocorre devido ao pouco contato, desde os primórdios de sua formação, dos educadores de Língua Materna.

“Está claro que a personalidade do professor e particularmente, seus hábitos de leitura são importantíssimos para desenvolver os interesses e hábitos de leitura nas crianças, sua própria educação também contribui de forma essencial para a influência que ele exerce.” (Banberger, 1986)

Sem trair o escritor estudado, posso afirmar que se o professor não tiver um hábito de ler poemas e não se sensibilizar ao ler uma poesia, dificilmente conseguirá despertar esse interesse em seus alunos como afirma Cunha (1986, p. 95):

“... se o professor não se sensibilizar com o poema, dificilmente conseguirá emocionar seus alunos.”

Sabidos de que a poesia é um dos gêneros literários mais distantes da sala de aula, é preciso descobrir formas de familiarizar e de aproximar as crianças e os jovens da poesia. E essa forma de familiarização e aproximação deve ser feita com parcimônia e através de um planejamento para evitar as várias afirmações de que os poemas são de difíceis interpretações e entendimento.

Pinheiro (2002, p.23) afirma que “... a leitura do texto poético tem peculiaridades e carece, portanto, de mais cuidados do que o texto me prosa.”

Assim a poesia não é de difícil interpretação, apenas necessita de mais cuidado e atenção para que ocorra um entendimento da mesma. A aprendizagem da interpretação da poesia compreende o desenvolvimento de coordenar conhecimentos dos vários sentidos que um texto poético proporciona.

Uma forma para melhorar a aprendizagem é a aproximação constante da poesia, como também a utilização do conhecimento prévio. O conhecimento prévio engloba o conhecimento lingüístico, que abrange desde o conhecimento sobre pronunciar o português, passando pelo conhecimento de vocabulário e regras da língua, chegando até o conhecimento sobre o uso da língua. O conhecimento do texto, que se refere às noções e conceitos sobre o texto, e, por último, o conhecimento de mundo, que é adquirido informalmente através das experiências, do convívio numa sociedade, cuja ativação, no momento oportuno, é também essencial à compreensão de um poema.

Se estes conhecimentos não forem respeitados, o entendimento e a compreensão do poema podem ficar prejudicados, e assim, como foi dito anteriormente, de difícil interpretação.

Como exemplo do que foi exposto no parágrafo anterior, coloco excerto do poema “Balada do amor através das idades”, de Carlos Drummond de Andrade (Cinco Estrelas, 2001, p. 26).

“Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você troiana
Troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
Para matar seu irmão.
Matei, brigamos, morremos.

(...)

Mas depois de mil peripécias,
Eu, herói da Paramount,
Te abraço, beijo e casamos.

A compreensão do poema acima pode ficar comprometida se o leitor não tiver um dos conhecimentos acima citado. A poesia de Drummond exige do discente um bom conhecimento de mundo e da história para que ele entenda a poesia, pois nela é citado, de certa forma, a Guerra de Tróia, os costumes romanos como também expõe o nome de um dos mais poderosos estúdios de Hollywood, dando referência aos finais felizes dos filmes.

Para amenizar os problemas do distanciamento, de interpretação e de compreensão poética, é necessário que o professor compreenda que o ato de interpretar um poesia não pode ficar restrito a sua forma de apresentação sobre uma página, ou seja, como ocorre a disposição das palavras, dos versos, das rimas e das estrofes, e nem somente pelos questionamentos apresentados nas atividades de interpretação propostas pelos livros didáticos, pois as perguntas são impressionistas. Assim afirma Micheletti (2001, p. 22):

Freqüentemente a interpretação textual dadas nos livros e materiais afins tem um caráter ‘impressionista’, ou seja, o autor das questões propostas ou dos comentários, registram as suas intuições, as suas impressões sobre o texto.”

É necessário ressaltar que o professor deve partir de uma leitura poética do mundo, fazendo da poesia motivo de apreciação lúdica e de motivação para a produção de intertextualidade ( relação existente entre textos diversos, da mesma natureza ou de naturezas diferentes e entre o texto e contexto) e de muitas outras formas de criar com seriedade, mas brincando com palavras.

Segundo Elias José (2003, p. 11) , “vivemos rodeados de poesia”, ou seja, poesia é tudo que nos cerca e que nos emociona quando tocamos, ouvimos ou provamos, poesia é a nossa inspiração para viver a vida.

Conforme Elias José (2003, p. 101), “ser poeta é um dom que exige talento especial. Brincar de poesia é uma possibilidade aberta a todos.”. Então, se todos podemos brincar de poesia, por que não trabalharmos a poesia de forma lúdica? Assim proponho atividades que oportunizem momentos lúdicos aos alunos, tendo em vista exercícios de imaginação, de fantasia e de criatividade e ao mesmo tempo mostrar a vida de uma forma mais poética, com maior liberdade para construir seu conhecimento.

Todas as estratégias capazes de aguçar a sensibilidade da criança e do adolescente para a poesia são válidas. É interessante para isso, que a poesia seja freqüentemente trabalhada para que ocorra um interesse por ela.

Um dos processos para o educador iniciar este trabalho, é ele fazer uma sondagem para descobrir os temas de maior interesse dos alunos, proporcionando uma maior participação. Este levantamento pode ser de forma direta, através de pequenas fichas ou ouvindo e anotando as temáticas preferidas dos alunos. Outro método é descobrir os filmes, os programas de rádios e de televisão que mais gostam. Isso é necessário para o professor saber que tipo de poesia pode levar para a sala de aula. Vale ressaltar que cada sala tem um gosto diferente. No entanto não se pode prender-se somente aos temas escolhidos pelos discentes. A variedade e a novidade também são métodos eficazes para a aprendizagem.

Faz-se necessário, antes de iniciar as atividades poéticas, preparar um ambiente adequado, principalmente nas séries iniciais, para que os alunos sintam-se a vontade para recitar e interpretar os textos poéticos. Além de uma biblioteca agradável, ventilada, espaçosa e com um acervo bem variado para que os estudantes possam escolher livremente na prateleira o livro que quiser.

Trabalhar com poesia em pares é muito interessante. Este trabalho é realizado de duas maneiras: primeiro, através da leitura da poesia, depois são propostas as atividades interpretativas, nada de questões objetivas, já que cada pessoa interpreta um texto de forma diferente, mas de maneira coerente.As duplas conversam sobre o texto, analisam as possibilidades possíveis e escrevem o que foi apreendido.

É através das diferenças individuais que a troca de experiências vai sendo edificada, como também a partir da reflexão e da construção social do conhecimento sustentada pela interação dos indivíduos envolvidos. Essa interação entre os sujeitos é fundamental para o desenvolvimento pessoal e social, pois ela busca transformar a realidade de cada sujeito, mediante um sistema de trocas.

É proveitoso ressaltar também que construir um cantinho para fixar vários tipos de poesia é um método eficaz para o incentivo da leitura e interpretação poética, pois quanto mais se lê, mais se aprende e cria o hábito da leitura não só de poesia como de outros tipos de textos. Pinheiro (2002, p. 26) afirma que:

Improvisar um mural, onde os alunos, durante uma semana, um mês, ou o ano todo colocam os versos de que mais gostam (...) de qualquer época ou autor, são procedimentos que vão criando um ambiente (...) em que o prazer de lê-la passa a tomar forma.”

Não satisfeita ainda com as metodologias apresentadas, proponho mais alguns métodos que são incentivadores para a prática da leitura de poesia, como o momento poético, a poesia e as datas comemorativas e a apresentação da poesia em forma de dança, desenho ou interpretação teatral.

O primeiro, momento poético, é um artifício aplicado em sala de aula, em que os estudantes, dispostos de forma bem a vontade, sentados no chão ou em almofadões, se a escola possuir, uma música suave ao fundo, recitam poesias de preferência pessoal, ligadas, de preferência ao momento literário estudado, buscando, junto aos colegas, descobrir a mensagem transmitida pelo autor da poesia. O segundo, a poesia e as datas comemorativas, apesar de ser bastante criticada, também é uma forma proveitosa de aprender a gostar e interpretar a poesia. Como é o caso do dia 07 de Setembro em que os brasileiros mostram seu patriotismo comemorando a independência do Brasil. O mestre pode trabalhar a poesia de Gonçalves Dias, “Canção do Exílio” , fazendo primeiramente uma leitura crítica, levando os discentes a observar a poesia e fazer um paralelo da época em que a canção foi feita e se a terra natal (Brasil) hoje é tão perfeita como apresenta Gonçalves Dias em sua poesia.

Trabalhar a poesia ligada as datas comemorativas só se torna enfadonho, pouco proveitoso, sem criatividade e método empobrecido, quando a poesia só é lembrada nestas datas.

O último método citado neste artigo, é a apresentação da poesia em forma de dança, desenho ou interpretação teatral. Um exemplo do primeiro, a dança pode ser representada pela poesia “A Bailarina”, de Cecília Meireles, em que as crianças ou adolescentes podem formar um grupo de dança, todas vestidas de bailarina, para interpretar corporalmente a poesia abaixo que deve ser recitada por um outro estudante. Não é obrigatório o professor trabalhar com esta poesia, ela pode ser substituída por outra, tudo depende do docente ou dos alunos.

“Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.

Não conhece nem dó nem ré
Mas sabe ficar na ponta do pé.

Não conhece nem mi nem fá
Mas inclina o corpo para cá e para lá.

Não conhece nem lá nem si
Mas fecha os olhos e sorrir.

Roda, roda, roda com os bracinhos no ar
E nem fica tonta nem sai do lugar.

Põe no cabelo uma estrela e um véu
E diz que caiu do céu.

Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.

Mas depois esquece todas as danças,
E também quer dormir como as outras crianças.

No caso do desenho, ótimo método para se trabalhar tanto nas aulas de Língua Portuguesa como nas de Artes. Os alunos em grupo tentam interpretar a poesia lida através do desenho, para depois apresentar aos colegas de sala para também ser analisada por eles. Depois os desenhos podem ser colocados ao lado da poesia referente a cada um e exposto em um mural em toda a escola ou só na sala de aula.

O “Soneto”, de Álvares de Azevedo, pode ser um exemplo para ser apresentado em forma de teatro lido. O narrador representa o eu lírico, lendo a poesia enquanto uma aluna representa a mulher recitada nos versos.

Pálida, à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar! Na escuma fria.
Pela maré das águas embaladas,
Era um anjo entre nuvens d’alvorada
Que em sonhos se balançava e se esquecia!

Era mais bela! O seio palpitando...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti - as noites eu velei chorando;
Por ti – nos sonhos morrerei sorrindo!”

Estas aulas anteriormente citadas são bem lúdicas. Os alunos aprendem em grupo, de forma bem participativa, a interpretar e compreender as poesias tendo contato com as idéias dos amigos de sala.

As poesias também podem ser trabalhadas como ajuda para produções de textos, como é o caso das poesias de Manuel Bandeira, grande escritor do Modernismo brasileiro, “O Bicho” ( retrata a desigualdade social), “O Poema tirado de uma notícia de jornal (incentiva a produção de uma narração relatando o cotidiano humilde das pessoas desprestigiadas socialmente) e para finalizar, tem-se “Irene Preta” (retrata o preconceito racial).

Este trabalho exige que o aluno descubra qual o tema apresentado na poesia, para depois escrever, de acordo com o gênero exigido, o texto.

A poesia pode ser trabalhada não só nas aulas de Língua Portuguesa, mas também nas aulas de História, Geografia e outras como é o caso da poesia “A Rosa de Hiroxima”, de Vinícius de Moraes, que retrata o triste acontecimento da explosão da bomba atômica em Hiroxima.

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor, sem perfume
Sem rosa sem nada
Esta poesia, como foi dito acima, pode ser trabalhada numa aula de história, que o professor, através dos versos, pode explicar todo o conteúdo desse aterrorizante acontecimento. Pode explicar, por exemplo, por que o poema se chama A Rosa de Hiroxima, como também explicar que os escritores modernistas transplantavam o momento vivido para as poesias, como é o caso de Vinícius.

Conclusão

Os professores devem trabalhar poesias e textos poéticos com seus alunos pois estes vêm sendo indicados como um dos meios mais eficazes para o desenvolvimento das habilidades de percepção sensorial da criança e do adolescente, do senso estético e de suas competências leitoras e, conseqüentemente, simbólicas.

A interação com a poesia é uma das responsáveis pelo desenvolvimento pleno da capacidade lingüística da criança e do adolescente, através do acesso e da familiaridade com a linguagem conotativa, e refinamento da sensibilidade para a compreensão de si própria e do mundo, o que faz deste tipo de linguagem uma ponte imprescindível entre o indivíduo e a vida.


Fonte:
Luciana Cláudia de Castro Olímpio - Publicado em 19.02.2008
http://www.duplipensar.net/

Alexandre Herculano (O bispo negro)

1

Houve tempo em que a velha catedral conimbricense, hoje abandonada de seus bispos, era formosa; houve tempo em que essas pedras, ora tisnadas pelos anos, eram ainda pálidas, como as margens areentas do Mondego. Então, o luar, batendo nos lanços dos seus muros, dava um reflexo de luz suavíssima, mais rica de saudade que os próprios raios daquele planeta guardador dos segredos de tantas almas, que crêem existir nele, e só nele, uma inteligência que as perceba.

Então aquelas ameias e torres não haviam sido tocadas das mãos de homens, desde que os seus edificadores as tinham colocado sobre as alturas; e, todavia, já então ninguém sabia se esses edificadores eram da nobre raça goda, se da dos nobres conquistadores árabes.

Mas, quer filha dos valentes do Norte, quer dos pugnacíssimos sarracenos, ela era formosa, na sua singela grandeza, entre as outras sés das Espanhas. Aí sucedeu o que ora ouvireis contar.

2

Aproximava-se o meado do duodécimo século. O príncipe de Portugal Afonso Henriques, depois de uma revolução feliz, tinha arrancado o poder das mãos de sua mãe. Se a história se contenta com o triste espetáculo de um filho condenado ao exílio aquela que o gerou, a tradição carrega as tintas do quadro, pintando-nos a desditosa viúva do conde Henrique a arrastar grilhões no fundo de um calabouço. A história conta-nos o fato; a tradição verossímil; e o verossímil é o que importa ao que busca as lendas da pátria.

Em uma das torres do velho alcácer de Coimbra, assentado entre duas ameias, a horas em que o sol fugia do horizonte, o príncipe conversava com Lourenço Viegas, o Espadeiro, e com ele dispunha meios e apurava traças para guerrear a mourisma. E lançou casualmente os olhos para o caminho que guiava ao alcácer e viu o bispo D. Bernardo, que, montado em sua nédia mula, cavalgava apressado pela encosta acima.

-Vedes vós -disse ele ao Espadeiro -o nosso leal Dom Bernardo, que para cá se encaminha? Negócio grave, por certo, o faz sair a tais desonras da crasta da sua sé. Desçamos à sala de armas e vejamos o que ele quer. – E desceram. Grandes lampadários ardiam já na sala de armas do alcácer de Coimbra, pendurados de cadeiras de ferro chumbadas nos fechos dos arcos de volta de ferradura que sustentavam os tetos de grossa cantaria. Pelos feixes de colunas delgadas, entre si separadas, mas ligadas sob os fustes por base comum, pendiam corpos de armas, que reverberavam a luz das lâmpadas e pareciam cavaleiros armados, que em silêncio guardavam aquele amplo aposento. Alguns homens de mesnada faziam retumbar as abóbadas, passeando de um para outro lado. Uma portinha, que ficava em um ângulo da quadra, abriu-se, e dela saíram o príncipe e Lourenço Viegas, que desciam da torre. Quase ao mesmo tempo assomou no grande portal de entre o vulto venerável e solene do bispo D. Bernardo.

- Guardai-vos Deus, dom bispo! Que mui urgente negócio vos traz aqui esta noite? -disse o príncipe a D. Bernardo.

– Más novas,. senhor. Trazem-me aqui a mim letras do papa, que ora recebi.

– E que quer de vós o papa?

– Que de sua parte vos ordene solteis vossa mãe...

– Nem pelo papa, nem por ninguém o farei.

– E manda-me que vos declare excomungado, se não quiserdes cumprir seu mandado.

– E vós que intentais fazer?

– Obedecer ao sucessor de São Pedro.

– Quê? Dom Bernardo amaldiçoaria aquele a quem deve o bago pontifical; aquele que o levantou
do nada? Vós, bispo de Coimbra, excomungaríeis o vosso príncipe, porque ele não quer pôr a risco a liberdade desta terra remida das opressões do senhor de Trava e do jugo do rei de Leão; desta terra que é só minha e dos cavaleiros portugueses?

– Tudo vos devo, senhor -atalhou o bispo -salvo a minha alma, que pertence a Deus, a minha fé, que devo a Cristo, e a minha obediência, que guardarei ao papa.

– Dom Bernardo! Dom Bernardo! -disse o príncipe, sufocado de cólera -lembrai-vos de que afronta que se me fizesse nunca ficou sem paga!

– Quereis, senhor infante, soltar vossa mãe?

– Não! Mil vezes não!

– Guardai-vos!

E o bispo saiu, sem dizer mais palavras. Afonso Henriques ficou pensativo por algum tempo; depois, falou em voz baixa com Lourenço Viegas, o Espadeiro, e encaminhou-se para a sua câmara. Daí a pouco o alcácer de Coimbra jazia, como o resto da cidade, no mais profundo silêncio.

3

Pela alvorada, muito antes de romper o sol no dia seguinte, Lourenço Viegas passeava com o príncipe na sala de armas do paço mourisco.

– Se eu próprio o vi, montado na sua nédia mula, ir lá muito ao longe, caminho da terra de Santa Maria. Na porta da Sé estava pregado um pergaminho com larga escritura, que, segundo me afirmou um clérigo velho que aí chegara quando eu olhava para aquela carta, era o que eles chamam o interdito... -Isto dizia o Espadeiro, olhando para todos os lados, como quem receava que alguém o ouvisse.

– Que receias, Lourenço Viegas? Dei a Coimbra um bispo que me excomunga, porque assim o quis o papa: dar-lhe-ei outro que me absolva, porque assim o quero eu. Vem comigo à Sé. Bispo Dom Bernardo, quando te arrependeres da tua ousadia já será tarde.

Dali a pouco as portas da Sé estavam abertas, porque o sol era nado, e o príncipe, acompanhado de Lourenço Viegas e de dois pajens, atravessava a igreja e dirigia-se à crasta, onde, ao som de campa tangida, tinha mandado ajuntar o cabido, com pena de morte para o que aí faltasse.

4

Solene era o espetáculo que apresentava a crasta da Sé de Coimbra. O sol dava, com todo o brilho de manhã puríssimo, por entre os pilares que sustinham as abóbadas dos cobertos que cercavam o pátio interior. Ao longo desses cobertos caminhavam os cônegos com passos lentos, e as largas roupas ondeavam-lhes ao bago suave do vento matutino. No topo da crasta estava o príncipe em pé, encostado ao punho da espada, e, um pouco atrás dele, Lourenço Viegas e os dois pajens. Os cônegos iam chegando e formavam um semicírculo a pouca distância de el-rei, em cuja cervilheira de malha de ferro ferviam buliçosos os raios do sol.

Toda a clerezia da Sé estava ali apinhada, e o príncipe, sem dar palavra e com os olhos fitos no chão, parecia envolto em fundo pensar. O silêncio era completo.Por fim Afonso Henriques ergue o rosto carrancudo e ameaçador e disse: - Cônegos da Sé de Coimbra, sabeis a que vem aqui o infante de Portugal?

Ninguém respondeu palavra.

– Se não sabeis, dir-vo-lo-ei eu -prosseguiu o príncipe: -vem assistir à eleição do bispo de Coimbra.

– Senhor, bispo havemos. Não cabe aí nova eleição-disse o mais e velho e autorizado dos cônegos que estavam presentes e que era o adaião.

– Amem-responderam os outros.

Esse que vós dizeis -bradou o infante cheio de cólera -esse jamais o será. Tirar-me quis ele o nome de filho de Deus; eu lhe tirarei o nome do seu vigário. Juro que nunca em meus dias porá Dom Bernardo pés em Coimbra: nunca mais da cadeira episcopal ensinará um rebelde a fé das santas escrituras! Elegei outro: eu aprovarei vossa escolha.

– Senhor, bispo havemos. Não cabe aí nova eleição-repetiu o adaião.

– Amem-responderam os mais.

O furor de Afonso Henriques subiu de ponto com esta resistência.

– Pois bem! -disse ele, com a voz presa na garganta, depois de olhar terrível que lançou pela assembléia, e de alguns momentos de silêncio. -Pois bem! Saí daqui, gente orgulhosa e má! Saí, vos digo eu! Alguém por vós elegerá um bispo...

Os cônegos, fazendo profundas reverências, encaminharam-se para as suas celas, ao longo das arcarias da crasta.

Entre os que ali se achavam, um negro, vestido de hábitos clericais, tinha estado encostado a um dos pilares, observando aquela cena; os seus cabelos revoltos contrastavam pela alvura com a pretidão da tez. Quando o príncipe falava, ele sorria-se e meneava a cabeça, como quem aprovava o dito. Os cônegos começavam a retirar-se, e o negro ia após eles. Afonso Henriques fez-lhe um sinal com a mão. O negro voltou para trás.

– Como hás nome? -perguntou-lhe o príncipe.

– Senhor, hei nome Çoleima.

– És bom clérigo?

– Na companhia não há dois que sejam melhores.
– Bispo serás, Dom Çoleima. Vai tomar teus guisamentos, que hoje me cantarás missa.

O clérigo recuou: naquela face tisnada viu-se uma contração de susto.

– Missa não vos cantarei eu, senhor -respondeu o negro com voz tremula -que para tal auto não
tenho as ordens requeridas.

– Dom Çoleima, repara bem no que te digo! Sou eu que te mando vás vestir as vestiduras de missa. Escolhe: ou hoje tu subirás os degraus do altar-mor da Sé de Coimbra, ou a cabeça te descerá de cima dos ombros e rolará pelas lájeas deste pavimento.

O clérigo curvou a fronte.

-Kirie-eleyson... Kirie-eleyson... Kirie-eleysom! -garganteava daí a pouco Dom Çoleima, revestido dos hábitos episcopais, junto ao altar da capela-mor. O infante Afonso Henriques, o Espadeiro e os dois pajens, de joelhos, ouviam missa com profunda devoção.

5

Era noite. Em uma das salas mouriscas dos nobres paços de Coimbra havia grande sarau. Donas e donzelas, assentadas ao redor do aposento, ouviam os trovadores repetindo ao som da viola e em tom monótono suas magoadas endechas,


ou folgavam e riam com os arremedilhos satíricos dos truões e farsistas. Os cavaleiros, em pé, ou falavam de aventuras amorosas, de justas e de bofordos, ou de fossados e lides por terras de mouros fronteiros. Para um dos lados, porém, entre um labirinto de colunas, que dava saída para uma galeria exterior, quatro personagens pareciam entretidas em negócio mais grave do que os prazeres de noite de folguedo o permitiam. Eram estas personagens Afonso Henriques, Gonçalo Mendes da Maia, Lourenço Viegas e Gonçalo de Sousa, o Bom. Os gestos dos quatro cavaleiros davam mostras de que eles estavam vivamente agitados.

– É o que afirma, senhor, o mensageiro -dizia Gonçalo de Sousa -que me enviou o abade do mosteiro de Tibães, onde o cardeal dormiu uma noite para não entrar em Braga. Dizem que o papa o envia a vós, porque vos supõe herege. Em todas as partes por onde o legado passou, em França e em Espanha, vinham a lhe beijar a mão reis, príncipes e senhores: a eleição de Dom Çoleima não pode, por certo, ir avante...

– Irá, irá -respondeu o príncipe em voz tão alta que as palavras reboaram pelas abóbadas do vasto aposento. -Que o legado tenha tento em si! Não sei eu se haveria aí cardeal ou apostólico que me estendesse a mão para eu lha beijar, que pelo cotovelo lha não cortasse fora a minha boa espada. Que me importam a mim vilezas dos outros reis e senhores? Vilezas, não as farei eu!

Isto foi o que se ouviu daquela conversação: os três cavaleiros falaram com o príncipe ainda por muito tempo; mas em voz tão baixa, que ninguém percebeu mais nada.

6

Dois dias depois, o legado do papa chegava a Coimbra: mas o bom do cardeal tremia em cima da sua nédia mula, como se maleitas o houvessem tomado. As palavras do infante tinham sido ouvidas por muitos, e alguém as havia repetido ao legado.

Todavia, apenas passou a porta da cidade, revestindo-se de ânimo, encaminhou-se direto ao alcácer real.

O príncipe saiu a recebê-lo acompanhado de senhores e cavaleiros. Com modos corteses, guiou-o à sala do seu conselho, e aí se passou o que ora ouvireis contar. O infante estava assentado em uma cadeira de espaldas: diante dele o legado, em um assento raso, posto em cima de um estrado mais elevado: os senhores e cavaleiros cercavam o filho do conde Henrique.

– Dom cardeal -começou o príncipe -que viestes vós fazer a minha terra? Posto que de Roma só mal me tenha vindo, creio me trazeis agora algum ouro, que de seus grandes haveres me manda

o senhor papa para estas hostes que faço e com que guerreio, noite e dia, os infiéis da fronteira. Se isto trazeis, aceitar-vos-ei: depois, desembaraçadamente podeis seguir vossa viagem. No ânimo do legado a cólera sobrepujou o temor, quando ouviu as palavras do príncipe, que eram de amargo escárnio.

– Não a trazer-vos riquezas -atalhou ele -mas a ensinar-vos a fé vim eu; que dela parece vos esquecestes, tratando violentamente o bispo Dom Bernardo e pondo em seu lugar um bispo sagrado com vossas manoplas, vistoriado só por vós com palavras blasfemas e malditas...

– Calai-vos, dom cardeal -gritou Afonso Henriques – que mentis pela gorja!

Ensinar-me a fé?

Tão bem em Portugal como em Roma sabemos que Cristo nasceu da Virgem; tão certo, como vós outros romãos, cremos na Santa Trindade. Se a outra cousa vindes, amanhã vos ouvirei: hoje ir-vos podeis a vossa pousada. E ergueu-se: os olhos chamejavam-lhe de furor. Toda a ousadia do legado desapareceu como fumo; e, sem atinar com resposta, saiu do alcácer.

7

O galo tinha cantado três vezes: pelo arrebol da manhã, o cardeal partia aforradamente de Coimbra, cujos habitantes dormiam ainda repousadamente.

O príncipe foi um dos que despertaram mais cedo. Os sinos harmoniosos da Sé costumavam acordá-lo tocando as ave-marias: mas naquele dia ficaram mudos; e, quando ele se ergueu, havia mais de uma hora que o Sol subia para o alto dos céus da banda do Oriente.

-Misericórdia!, misericórdia! -gritavam devotamente homens e mulheres à porta do alcácer, com alarido infernal. O príncipe ouviu aquele ruído.

– Que vozes são estas que soam? -perguntou ele a um pajem.

O pajem respondeu-lhe chorando:

– Senhor, o cardeal excomungou esta noite a cidade e partiu: as igrejas estão fechadas; os sinos já não há quem os toque; os clérigos fecham-se em suas pousadas. A maldição do santo padre de Roma caiu sobre nossas cabeças.

Outras voz soou à porta do alcácer:

– Misericórdia!, misericórdia!

– Que enfreiem e selem o meu cavalo de batalha. Pajem, que enfreiem e selem o meu melhor corredor.

Isto dizia o príncipe encaminhando-se para a sala de armas. Aí envergou à pressa um saio de malha e pegou em um montante que dois portugueses dos de hoje apenas valeriam a alevantar do chão. O pajem tinha saído, e dali a pouco o melhor cavalo de batalha que havia em Coimbra tropeava e rinchava à porta do alcácer.

8

Um clérigo velho, montado em uma alentada mula branca, vindo de Coimbra seguia o caminho da Vimieira e, de instante a instante, espicaçava os ilhais da cavalgadura com seus acicates de prata. Em outras duas mulas iam ao lado dele dois mancebos com caras e meneios de beatos, vestidos de opas e tonsurados, mostrando em seu porte e idade que aprendiam ainda as pueris ou ouviam as gramaticais. Eram o cardeal, que se ia a Roma, e dois sobrinhos seus, que o haviam acompanhado.

Entretanto o príncipe partia de Coimbra sozinho. Quando pela manhã Gonçalo de Sousa e Lourenço Viegas o procuraram em seus paços, souberam que era partido após o legado. Temendo o caráter violento de Afonso Henriques, os dois cavaleiros seguiram-lhe a pista à rédea solta, e iam já muito longe quando viram o pó que ele alevantava, correndo ao longo da estrada, e o cintilar do sol, batendo-lhe de chapa na cervilheira, semelhante ao dorso de um crocodilo. Os dois fidalgos esporearam com mais força os ginetes, e breve alcançaram o infante.

– Senhor, senhor; aonde ides sem vossos leais cavaleiros, tão cedo e açodadamente?

– Vou pedir ao legado do papa que se amerceie de mim...

A estas palavras, os cavaleiros transpunham uma assomada que encobria o caminho: pela encosta abaixo ia o cardeal com os dois mancebos das opas e cabelos tonsurados.

– Oh! ... -disse o príncipe. Esta única interjeição lhe fugiu da boca; mas que discurso houvera aí que a igualasse? Era o rugido de prazer do tigre, no momento em que salta do fojo sobre a preia descuidada.

– Memento mei, Domine, secundum magnam misericordiam tuam! -rezou o cardeal em voz baixa e tremula, quando, ouvindo o tropear dos cavalos, voltou os olhos e conheceu Afonso Henriques.

Em um instante este o havia alcançado. Ao perpassar por ele, travou-lhe do cabeção do vestido e, de relance, ergueu o monante: felizmente os dois cavaleiros arrancaram as espadas e cruzaram-nas debaixo do golpe, que já descia sobre a cabeça do legado. Os três ferros feriram fogo; mas a pancada deu em vão, aliás i crânio do pobre clérigo teria ido fazer mais de quadro redemoinhos nos ares.

– Senhor, que vos perdeis e nos perdeis, ferindo o ungido de Deus -gritaram os dois fidalgos, com vozes aflitas.

– Príncipe -disse o velho, chorando -não me faças mal; que estou à tua mercê! -Os dois mancebos também choravam.

Afonso Henriques deixou descair o montante, e ficou em silêncio alguns momentos.

– Estás à minha mercê? -disse ele por fim. -Pois bem! Viverás, se desfizeres o mal que causaste. Que seja alevantada a excomunhão lançada sobre Coimbra, e jura-me, em nome do apostólico, que nunca mais em meus dias será posto interdito nesta terra portuguesa, conquistada aos Mouros por preço de tanto sangue. Em reféns deste pacto ficarão teus sobrinhos. Se, no fim de quatro meses, de Roma não vierem letras de bênção, tem tu por certo que as cabeças lhes voarão de cima dos ombros. Apraz-te este contrato?

– Sim, sim! -respondeu o legado com voz sumida.

– Juras?

– Juro.

– Mancebos, acompanhai-me.

Dizendo isto, o infante fez um aceno aos sobrinhos do legado, que, com muitas lágrimas, se despediu deles, e sozinho seguiu o caminho da terra de Santa Maria.

Daí a quatro meses, D. Çoleima dizia missa pontifical na capela-mor da Sé de Coimbra, e os sinos da cidade repicavam alegremente. Tinham chegado letras de bênção de Roma; e os sobrinhos do cardeal, montados em boas mulas, iam cantando devotamente pelo caminho da Vimieira o salmo que começa: In exitu Israel de Egypto.

Conta-se, todavia, que o papa levara a mal, no princípio, o pacto feito pelo legado; mas que, por fim, tivera dó do pobre velho, que muitas vezes lhe dizia:

– Se tu, santo padre, viras sobre ti um cavaleiro tão bravo ter-te pelo cabeção, e a espada nua para te cortar a cabeça, e seu cavalo, tão feroz, arranhar a terra, que já te fazia a cova para ter enterrar, não somente deras as letras, mas também o papado e a cadeira apostolical.

NOTA
A lenda precedente é tirada das crônicas de Acenheiro, rol de mentiras e disparates publicado pela nossa Academia, que teria procedido mais judiciosamente em deixá-las no pó das bibliotecas, onde haviam jazido em paz por quase três séculos. A mesma lenda tinha sido inserida pouco anteriormente na crônica de Afonso Henriques por Duarte Galvão, formando a substância de quatro capítulos, que foram suprimidos na edição deste autor, e que mereceram da parte do acadêmico D. Francisco de S. Luís uma grave refutação. Toda a narrativa das circunstâncias que se deram no fato, aliás verdadeiro, da prisão de D. Teresa, das tentativas oposicionistas do bispo de Coimbra, da eleição do bispo negro, da vinda do cardeal, e da sua fuga contrastam a história daquela época. A tradição é falsa a todas as luzes; mas também é certo que ela se originou de alguma ato de violência praticado nesse reinado contra algum cardeal legado. Um historiador coevo e, posto que estrangeiro, bem informado geralmente acerca dos sucessos do nosso país, o inglês Rogério de Hoveden, narra um fato, acontecido em Portugal, que, pela analogia que tem com o conto do bispo negro, mostra a origem da fábula. A narrativa do cronista está indicando que o acontecimento fizera
certo ruído na Europa, e a própria confusão de datas e de indivíduos que aparece no texto de Hoveden mostra que o sucesso era anterior e andava já alterado na tradição. O que é certo é que o achar-se esta conservada fora de Portugal desde o século duodécimo por um escritor que Ruy de Pina e Acenheiro não leram (porque foi publicado no século décimo sétimo) prova que ela remonta entre nós, por maioria de razão, também ao século duodécimo, embora alterada, como já a vemos no cronista inglês. Eis a notável passagem a que aludimos, e que se lê a página 640 da edição de Hoveden, por Savile: "No mesmo ano (1187) o cardeal Jacinto, então legado em toda a Espanha, depôs muitos prelados (abbates) ou por culpas deles ou por ímpeto próprio, e como quisesse depor o bispo de Coimbra, o rei Afonso (Henrique) não consentiu que ele fosse deposto e mandou ao dito cardeal que saísse da sua terra, quando não cortar-lhe-ia um pé".

Fonte:
http://www.gargantadaserpente.com/

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Amadeu Amaral (1875 – 1929)

Amadeu Amaral – nascido Amadeu Ataliba Arruda Leite Penteado-, foi poeta, folclorista, filólogo e ensaísta. É de Capivari, SP, do dia 6 de novembro de 1875. Faleceu em São Paulo, em 24 de outubro de 1929. Eleito para a Cadeira n. 15, na vaga de Olavo Bilac, foi recebido em 14 de novembro de 1919, pelo acadêmico Magalhães Azeredo.

Autodidata, surpreendeu a todos por sua extraordinária erudição, num tempo em que não havia, em São Paulo, as universidades e os cursos especializados que vieram depois. Dedicou-se aos estudos folclóricos e, sobretudo, à dialectologia. No Brasil, foi o primeiro a estudar cientificamente um dialeto regional. O dialeto caipira, publicado em 1920, escrito à luz da lingüística, estuda o linguajar do caipira paulista da área do vale do rio Paraíba, analisando suas formas e esmiuçando-lhe sistematicamente o vocabulário. Visando à formação dos jovens, assim como Bilac incentivara o serviço militar, Amadeu Amaral procurou divulgar o escotismo, que produziu frutos, no Brasil, até ser posteriormente posto de lado.

Confira trechos da obra mais famosa de Amadeu Amaral, abaixo. E entenda porque nosso dialeto é caipira....

O DIALETO CAIPIRA

INTRODUÇÃO

Tivemos, até cerca de vinte e cinco a trinta anos atrás, um dialeto bem pronunciado, no território da antiga província de S. Paulo. É de todos sabido que o nosso falar caipira - bastante característico para ser notado pelos mais desprevenidos como um sistema distinto e inconfundível - dominava em absoluto a grande maioria da população e estendia a sua influência à própria minoria culta. As mesmas pessoas educadas e bem falantes não se podiam esquivar a essa influência.

Foi o que criou aos paulistas, há já bastante tempo, a fama de corromperem o vernáculo com muitos e feios vícios de linguagem. Quando se tratou, no Senado do Império, de criar os cursos jurídicos no Brasil, tendo-se proposto São Paulo para sede de um deles, houve quem alegasse contra isto o linguajar dos naturais, que inconvenientemente contaminaria os futuros bacharéis, oriundos de diferentes circunscrições do país...

Ao tempo em que o célebre falar paulista reinava sem contraste sensível, o caipirismo não existia apenas na linguagem, mas em todas as manifestações da nossa vida provinciana.

FONÉTICA

Antes de tudo, deve notar-se que a prosódia caipira (tomando o termo prosódia numa acepção lata, que também abranja o ritmo e musicalidade da linguagem) difere essencialmente da portuguesa.

O tom geral do frasear é lento, plano e igual, sem a variedade de inflexões, de andamentos e esfumaturas que enriquece a expressão das emoções na pronunciação portuguesa.

2. Os acentos em que a voz mais demoradamente carrega, na prolação total de um grupo de palavras, não são em geral os mesmos que teria esse grupo na boca de um português; e as pausas que dividem tal grupo na linguagem corrente são aqui mais abundantes, além de distribuídas de modo diverso. Na duração das vogais igualmente difere muito o dialeto: se, proferidas pelos portugueses, as breves duram um tempo e as longas dois, pode-se dizer, comparativamente, que no falar caipira duram as primeiras dois tempos e as segundas quatro.

Este fenômeno está estreitamente ligado à lentidão da fala, ou, antes, se resolve num simples aspecto dela, pois a linguagem vagarosa, cantada, se caracteriza justamente por um estiramento mais ou menos excessivo das vogais

GRUPOS VOCÁLICOS

(acentuados ou não)

. ai (dit.) - Antes da palatal x, reduz-se à prepositiva: baxo, baxêro, faxa, caxa, paxão.

Dois exemplos de mudança em éi: téipa, réiva.1. ei (dit.) - Reduz-se a e quando seguido de r, x ou j: isquêro, arquêre, chêro, pêxe, dêxe, quêjo, bêjo, berada.

Nos vocábulos em que é seguido de o ou a, como ceia, cheio, veia, também aparece às vezes representado por ê: chêo, vêa, cêa. Cp. a evolução destas palavras no português: cheio <>
a) Acentuado ou não, contrai-se o primeiro em ô: poco, tôro, locura, rôpa. Em Portugal, bem como no falar da gente culta no Brasil, há notório sincretismo no uso dos ditongos ou e oi. Para o caipira tal sincretismo não existe: os vocábulos onde esses ditongos aparecem são pronunciados sempre de um só modo. Assim, lavôra, ôro, estôro, côro, côve, lôco, bassôra, tôca, frôxo, trôxa, e nunca lavoira, oiro, etc.; por outro lado, dois, noite, coisa, poiso, foice, toicinho, oitão, afoito, biscoito, moita, e nunca dous, noute, etc. Se há formas sincréticas, são raríssimas. A causa desta distinção é puramente fonética: note-se, nos exemplos acima, que há ô diante dos sons r, v, k e x, e oi diante de s = ç, z etc.
b) Nas formas verbais em que o acento tônico recai em ou, este às vezes se contrai em ó: róba, estóre, afróxa. A trouxe corresponde truxe; a soube, sube. ein (em) - Final de vocábulo, reduz-se a e grave; viaje, virge, home, êles corre. Parece-nos inútil acentuar que na palavra portuguesa viagem e em outras de idêntica terminação existe um verdadeiro ditongo nasal grafado em (viagein, virgein, etc.) Da mesma forma existe o ditongo nasal õu nas palavras bom, som, etc. (bõu, sõu). õu (om) - a) Na preposição com, reduz-se à vogal nasal un, quando se segue a essa prep. palavra que comece por consoante: cum você, cum quem vô, cumsigo, (com-sigo). Quando há eclipse, reduz-se a o grave: co ele, cos diabo(s). Nas palavras bom, tom e som muda-se em ão: bão, tão, são. Final de vocábulo, ditonga-se sempre em iu: paviu, tiu, riu.
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CONSOANTES b e v - Muda-se às vezes uma na outra, dando lugar a várias formas sincréticas: burbuia e vevúia - borbulha bassôra e vassora - vassoura berruga e verruga - verruga biête e viête - bilhete cabortêro e cavortero - cavorteiro jabuticaba e jabuticava - jaboticaba Piracicaba e Pricicava - Piracicaba mangaba e mangava (fruta) - mangaba bespa e vespa - vespa bagaço e vagaço - bagaço bamo e vamo - vamos
Fonte: Sítio do Caipira. Nossa Gente. Disponível em http://eptv.globo.com/

Língua do Caipira

Babau!
Tá de mal? Come sal. O dialeto caipira na pesquisa de um dos maiores estudiosos da língua e da cultura popular, Amadeu Amaral.

Você sabe o que quer dizer "azoretado"? Mestre Amadeu responde:
"Atordoado, confuso. E ele exemplifica: "As corujas do campo a mó que tavam malucas, essa noite: era um voar sem paradaem riba da minha testa, que me deixava azoretado..."

E tem mais. Você sabe o que é um azucrim? É um importuno! Aquele que azucrina.

Como é que o caipira diz amanhã? Diz da maneira mais castiça: "aminhã", que se aproxima do português antigo, ou arcaico.

E se chegar um circo, o caipira vai ver os "alifantes"...Também é a forma arcaica do nome elefante, no Brasil e em Portugal.

Angu é um termo que serve para designar duas coisas: alimento e confusão. Pode ser a papa de farinha ou de fubá. E pode ser também teia de intrigas e mexericos.

Você já notou que o caipira diz "ansim" e não assim? Esta é a forma usada também nas peças de Gil Vicente.

Quer dizer: o caipira parece que fala errado, mas fala muito certo. Pelo menos como se falava no Brasil e no Portugal antigos.
PS: Babau quer dizer: acabou!

Fonte:
Sítio do Caipira. Folclore. Disponível em http://eptv.globo.com/

Folclore (Mula Sem Cabeça)

O mito da mula-sem-cabeça passa pelo conceito de pecado para criar uma espécie de "lobisomem" feminino.

Dizem que ela se transforma da quinta para a sexta-feira de Lua cheia. Ela seria a amante do padre... castigada pelo pecado com o encantamento cruel. Um animal desvairado, de galope selvagem e relincho altíssimo, que solta fogo pelas ventas.

Mas que ventas, se a mula não tem cabeça? Mistérios do mito brasileiro. Segundo a lenda, o encanto só acaba se alguém lhe tirar o freio...Aí ela reaparecerá em sua forma humana, arrependida e nua. Outra maneira de evitar o encantamento é de que o amante a amaldiçoe sete vezes antes de celebrar a missa. Alguns folcloristas, como Gustavo Barroso, supõem que o mito tenha nascido no século 12, a partir do fato de que as mulas serviam, na época, ao transporte privativo dos padres. O cavalo era reservado às batalhas e aos guerreiros.

Fonte:
Sitio do Caipira. Folclore. Disponível em
http://eptv.globo.com/

Rocir Santiago (Causo: Num quero ser mentiroso)

Dois amigos, de São João, a 17 Km de Garanhuns, um caçador e pescador e o outro pessoa comum: Mário e Adolfo.
Certo dia Mário chamou Adolfo para uma caçada, no que ouviu:
-Tá doido, amigo! Num quero fama de mentiroso não!
Foram várias insistências e negativas como resposta até que um dia, Adolfo aceitou.
No mato, Mário perguntou:
- O amigo quer caçar, ou pescar?
- Prefiro pescar - respondeu Adolfo - não gosto de ofender à fauna, nem à flora!
Mário saiu para um volta pra ver se encontrava caça e deixou o amigo às margens de uma barragem pescando.
Passadas algumas horas, Mário voltou com um tatu que havia abatido, mas se deparou com o amigo cochilando às margens da barragem.
Aproveitou para fazer uma brincadeira: entrou lentamente na água, colocou o tatu no anzol, deu uns puxões e saiu.
Despertado, Adolfo arrastou o bicho da água e, vendo o amigo foi incisivo:
- Num conte isso pra ninguém não, senão vão me chamar de mentiroso! E olha que é o terceiro tatu que arrasto daí e devolvo pra água pra ninguém dizer que tô mentido!

Fonte:
Sítio do Caipira. Causos. Por Rocir Santiago (Guaranhuns/PE). Disponível em
http://eptv.globo.com/

Lá vem o Saci (Gabriela Romeu)

Há 90 anos, após inquérito de Monteiro Lobato, personagem estreou na literatura

O saci completa agora 90 anos de nascimento literário pela pena do escritor paulista Monteiro Lobato (1882-1948), principal responsável por propagar essa figura do imaginário popular nacional. O personagem, cujo nome é uma corruptela de Çaa cy perereg, do tupi-guarani, saltou do universo oral para o mundo das letras após pesquisa realizada por Lobato no começo do século XX.

O livro O sacy-perere – resultado de um inquérito (1918) foi publicado pouco depois de o escritor paulista reunir, para o Estadinho, edição vespertina do jornal O Estado de S. Paulo, muitos dos “causos” sobre o duende relatados por leitores de Minas Gerais, do Rio de Janeiro e, principalmente, do interior paulista. O futuro criador do Sítio do Picapau Amarelo convocara leitores a compartilhar informações sobre a criatura “genuinamente nacional”.

A obra, que antecedeu até mesmo Urupês, trazia o inquérito sobre o moleque: havia relatos de constantes aparições nas zonas rurais, a informação de que adorava praticar diabruras, como azedar o leite, embaraçar a crina dos cavalos e esconder objetos da casa. Um dos leitores garantiu: “(...) era um negrinho muito magro, muito esperto, de cima de uma perna só, do tamanho de um menino de doze anos, muito feio, banguela, olhos vivos, rindo sempre um riso velhaco de corretor de praça”.

O saci surgiu nas fronteiras do Paraguai, entre os índios guaranis. Mas foram os negros escravizados no país que se apropriaram da figura. E foi então que ganhou feições africanas, gorro vermelho e pito de barro, segundo Mario Cândido, presidente da Sosaci (Sociedade dos Observadores de Saci), associação engajada na missão de não deixar bruxas de Halloween apagarem a imagem do homenzinho perneta no imaginário das crianças brasileiras – hoje, no país, 31 de outubro é dia do saci.

E o duende perneta no universo lobatiano ressurge com destaque no livro O saci, de 1921. E ali é Pedrinho, mais uma vez de férias na casa da avó, que “andava com a cabeça cheia de sacis”. Com tanta curiosidade quanto medo, o menino vai perguntar sobre a criaturinha para tio Barnabé, aquele que “entende de todas as feitiçarias, e de saci, de mula-sem-cabeça, de lobisomem – de tudo”.

Até que um dia Pedrinho consegue captu¬rar um saci num rodamoinho que chega ao sítio com uma peneira de cruzeta. E, no meio da mata, perto de taquaruçus, espécie de bambu onde os sacis nascem, os dois travam diálogos filosóficos sobre a lei da floresta, a vida na cidade, a sabedoria dos homens, a importância da erudição – questionamentos lobatianos.

Só é lamentável que o livro (editora Brasiliense) seja pouco atraente para meninas e meninos de hoje, já acostumados com edições cada vez mais sofisticadas nas capas, no projeto gráfico e nas ilustrações. Mas em 2007, ano em que o escritor de Taubaté completaria 125 anos de nascimento, a disputa judicial pela obra do autor está na reta final – e tudo indica que novas edições das aventuras do Sítio do Picapau Amarelo estejam bem próximas.

Os sacis, no entanto, continuam aprontando poucas e boas na literatura infantil. A veterana Tatiana Belinky foi premiada pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) por Dez sacizinhos (Paulinas), com as ilustrações de Roberto Weigand. Belinky faz versos sobre o desaparecimento de sacis, que, um a um, vão sendo subtraídos da história: “Eram dez os sacizinhos; um ficou imóvel e nunca mais se moveu, e sobraram nove”.

Em Nas pegadas do Saci (Conex), Marcia Camargos, co-autora do premiado Monteiro Lobato – furacão na Botocúndia (Senac), coloca um grupo de amigos no rastro biográfico do moleque de uma perna só. Os diálogos entre adultos e crianças, recheados de informações históricas e mensagens ecológicas, soam, às vezes, um pouco artificiais. Mas, se a obra carece de recursos literários, o livro com ilustrações de Marcos Cartum destaca-se justamente por oferecer informação de qualidade sobre a criatura folclórica – é boa fonte de pesquisa para crianças em idade escolar.

Já Pererêêê Pororóóó (DCL), de Lenice Gomes, escritora de livros que resgatam o aspecto folclórico com roupagem contemporânea, é uma prosa poética cheia de adivinhas – “Pererêêê / Pororóóó / Saci-Pererê! / Adivinha o quê?”. Em versos livres, é contada a história do encontro de Raul e Diva, duas crianças, e três sacis que rodopiam feito “piões enlouquecidos” em um casarão abandonado na cidade. As colagens de André Neves dão um adequado toque folclórico aos personagens.

É também na cidade, em sua periferia, que o enredo de O caso do saci (Cosac Naify), do ilustrador e escritor Nelson Cruz, se desenrola. Os irmãos Manfredinho e Andréa desconfiam que é o duende que anda escondendo o dinheiro do pai, vítima de malandros do bairro. Depois de roubar o gorro vermelho do Saci, o que deixa o duende sem força, os dois acompanham o negrinho até o vale onde estão os objetos escondidos pelo moleque que migrou das zonas rurais para os centros urbanos – pelo menos na literatura infantil.

Fonte:
http://www2.uol.com.br/entrelivros

Os Livros que naõ lemos (Umberto Eco)

Lembro-me (mas, como veremos, isso não significa que eu me lembre direito) de um belíssimo artigo de Giorgio Manganelli, no qual ele explicava como um leitor requintado pode saber que um livro não é para ser lido mesmo antes de abri-lo. Ele não estava se referindo àquela virtude que muitas vezes se exige do leitor profissional (ou ao amador de bom gosto), a de conseguir resolver por algumas palavras iniciais, por duas páginas abertas ao acaso, pelo sumário, não raro pela bibliografia, se um livro vale a pena ou não ser lido. Isso, diria eu, são ossos do ofício. Não, Manganelli se referia a uma espécie de iluminação, da qual, evidente e paradoxalmente, se arrogava o dom.

Como falar dos livros que não lemos?, de Pierre Bayard, psicanalista e docente universitário de literatura, não trata de como saber se devemos ler um livro ou não, mas de como se pode falar tranqüilamente de um livro que não se leu, mesmo de professor para estudante, e mesmo em se tratando de um livro de importância extraordinária. Seu cálculo é científico: os acervos das boas bibliotecas contêm alguns milhões de volumes, e mesmo que leiamos um volume por dia, leríamos apenas 365 livros por ano, 3.600 em dez anos, e entre dez e 80 anos teríamos lido apenas 25.200 livros. Uma inépcia. Aliás, quem quer que tenha tido uma boa educação secundária sabe perfeitamente que pode acompanhar um raciocínio sobre, digamos, Bandello, Boiardo, inúmeras tragédias de Alfieri e até sobre As confissões de um italiano [de Ippolito Nievo] tendo aprendido sobre eles apenas o título e a classificação crítica na escola.

O ponto crucial, para Bayard, é a classificação crítica. Ele afirma, sem o menor pudor, que nunca leu o Ulisses de Joyce, mas que pode falar sobre ele aludindo ao fato de que se trata de uma retomada da Odisséia (que ele, aliás, admite não ter lido por inteiro), que se baseia no monólogo interior, que se passa em Dublin em um único dia etc. Assim escreve: “Portanto, em meus cursos acontece com certa freqüência que, sem pestanejar, eu mencione Joyce”. Conhecer a relação de um livro com outros livros não raro significa saber mais sobre ele do que o tendo lido.
Bayard mostra que, quando começamos a ler livros há certo tempo negligenciados, percebemos que conhecemos seu conteúdo porque entrementes havíamos lido outros livros que falavam deles ou se moviam dentro da mesma ordem de idéias. E (assim como faz algumas divertidíssimas análises de textos literários em que se trata de livros nunca lidos, de Musil a Graham Greene, de Valéry a Anatole France) honra-me ao dedicar um capítulo ao meu O nome da rosa, no qual Guilherme de Baskerville demonstra conhecer muito bem o conteúdo do segundo livro da Poética, de Aristóteles, que ainda assim ele tem na mão pela primeira vez, simplesmente por deduzi-lo de outras páginas aristotélicas. Veremos depois, no final dessa Ecco!, que não menciono esta citação por mera vaidade.

A parte mais intrigante desse panfleto, menos paradoxal do que poderia parecer, é que esquecemos uma porcentagem altíssima até daqueles livros que lemos realmente. Aliás, compomos uma espécie de imagem virtual a seu respeito, imagem feita nem tanto do que eles diziam, e sim do que fizeram passar em nossa mente. Por isso se alguém que não leu determinado livro citar para nós passagens ou situações ali inexistentes, somos mais que propensos a acreditar que o livro fala realmente daquilo.

É que Bayard não está tão interessado em que as pessoas leiam os livros alheios, mas antes no fato de que cada leitura (ou não-leitura) tenha de ter um aspecto criativo e que (utilizando palavras simples) em um livro o leitor tenha de colocar, antes de tudo, farinha de seu saco. A ponto de auspiciar uma escola em que – já que falar de livros não lidos é uma maneira para conhecer a si próprios – os estudantes “inventem” os livros que não deverão ler.

Exceto o fato de que Bayard, para mostrar que ao se falar de um livro não lido até quem o leu não percebe as citações erradas, lá pelo final de seu discurso confessa ter introduzido três notícias falsas no resumo de O nome da rosa, de O terceiro homem, de Graham Greene, e de A troca, de David Lodge. O caso divertido é que, ao ler, percebi de imediato o erro sobre Greene, tive uma dúvida a propósito de Lodge, mas não tinha percebido o erro a propósito de meu livro. Isso significa que provavelmente não li direito o livro de Bayard ou então que eu apenas o folheei. Mas a coisa mais interessante é que Bayard não se deu conta de que, ao denunciar seus três (propositais) erros, assume implicitamente que há, dos livros, uma leitura mais correta do que outras – tanto que, dos livros que analisa para sustentar sua tese da não-leitura, dá uma leitura muito minuciosa. A contradição é tão evidente que dá margem à dúvida de que Bayard não tenha lido o livro que escreveu.
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Sobre Umberto Eco
professor de semiologia da Universidade de Bolonha, na Itália, e autor, entre outros, de A misteriosa chama da rainha Loana, Baudolino, O nome da rosa e o pêndulo de Foucault
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Fonte:
http://www2.uol.com.br/entrelivros
edição 30 - Outubro 2007