quarta-feira, 2 de abril de 2008

Fernando Gabeira (O Que é Isso, Companheiro? = o livro e o filme, discrepâncias)

No livro “O que é isso, Companheiro?” Fernando Gabeira, narra sua história, e de outras pessoas, que durante o Regime Militar no Brasil estiveram envolvidas em movimentos contra a ditadura.

Por se tratar de um livro de memória, “O que é isso, Companheiro?”, pode apresentar falhas, ocultando e exaltando fatos ocorridos. O texto é escrito em primeira pessoa, e é uma fala solitária, mas ao mesmo tempo, é para o leitor coletiva, pois ele relata fatos ocorridos na sociedade brasileira na década de 60.

No livro, Fernando Gabeira, está sempre questionando sua ação dentro do movimento, ele faz críticas e mostra uma clareza ao questionar o que estava errado no movimento de esquerda brasileira. Isso não ocorre porque ele apresenta superioridade em relação aos outros e sim porque o livro foi escrito dez anos depois dos acontecimentos narrados. Nos anos de chumbo, Gabeira pensava igual aos outros companheiros, que desejavam fazer a sonhada “Revolução”.

Com base neste livro Bruno Barreto dirige o filme “O que é isso, Companheiro?” que apresenta contradições com relação ao livro, é portanto, falsa a idéia de um filme verídico, mas apresenta acontecimentos, datas e nomes reais.

Não é a primeira vez , que a realidade se transforma em ficção, na minissérie da TV Globo “Anos Rebeldes”, exibida em 1992, também apresentou fatos reais, com o extremo ar de romance. Mas existem outras produções sobre o período que não são obras de ficção é o caso do filme “Lamarca”, de 1994, que conta a história de um capital do exército que deixou a farda pela Revolução.

O contexto histórico dos fatos discutidos nesse trabalho, é o ano de 1969, que inicia-se em 13.12.68 com o AI-5, que foi o “golpe dentro do golpe”. O Brasil que já estava vivendo num período autoritário, e agora passa para um sistema rígido, violento e opressor. O seqüestro do embaixador é realizado neste contexto, de prisões, torturas e exílios. A esquerda, em sua maioria, havia entrado na luta armada, e estavam fazendo treinamento em Cuba. E foram realizadas ações contra a ditadura.

O momento era propício para a realização do seqüestro. O país estava sendo governado por uma Junta Militar, pois Costa e Silva afastou-se da presidência por motivos de saúde. “...Divididos sobre a aceitação das exigências do grupo, os militares tinham agora a possibilidade de um ataque direto. A Junta que ocupava a presidência a acompanhava as operações em tempo real, passo a passo: recém-empossada sob contestação de todos os lados, sabia não ter controle total sobre a tropa.” O seqüestro do embaixador foi planejado para a Semana da Pátria, para desmoralizar o e prejudicar a ação do exército.

Seqüestro que foi realizado pelo MR8, nome adotada para confrontar com a repressão que havia divulgado uma nota que o grupo terrorista MR8 estava eliminado, mas Movimento Revolucionário 8 de Outubro era apenas o nome do jornal. Então a Dissidência da Ganabara, resolveu adotar o nome, e por ser um grupo com pouca experiência na luta armada, pede ajuda a ALN de Carlos Marighella para realizar o seqüestro.

O filme O que é isso, Companheiro?, é uma ficção a partir de fatos reais do seqüestro do embaixador norte-americano no Brasil, Charles Elbrick. “ Como disse a atriz Fernanda Torres ao jornal O Estado de S. Paulo (01/05/97,p.D-7): ‘Precisamos atingir os jovens, eu não aprendi nada disso na escola, o cinema tem que ajudar o brasileiro a descobrir a complexidade da história recente do país.”

Em duas entrevistas Bruno Barreto se contradiz, pois em uma ele fala que fez um filme para os jovens que não viveram a época e necessitam conhecer uma história recente do país, e em outra entrevista fala que fez o filme pensando em mostrar aos norte-americanos o seqüestro do embaixador deles no Brasil na década de 60. Na realidade ele estava interessado em ganhar um Oscar de melhor filme estrangeiro, mas não poderia utilizar cenas reconstituídas no mesmo padrão de imagem da época, ou seja, ele inicia o filme em preto e branco, e ainda coloca uma legenda falando que se trata de uma história verídica, produzido como se fosse um filme norte-americano.

O filme é destinado ao entretenimento da massa e esquece o seu objetivo de relatar a verdade dos acontecimentos, o cinema apresenta aos seus espectadores uma história e uma cultura, fictícia ou real, tendo coerência em separar um do outro, no caso do O que é isso, Companheiro? A ficção se mistura com a realidade, contrariando a história de vida de pessoas que se vêem retratadas no filme. É um filme de alta produção, como esse, deixou muito a desejar, ele se preocupou com a forma e esqueceu o conteúdo. Bruno Barreto tem liberdade de criação em seus filmes, mas não se utilizar de fatos e imagens de pessoas, para ter bilheteria, pois é um filme produzido nos moldes da indústria cultural.

No filme “O que é isso, Companheiro”, Fernando Gabeira se destaca em relação aos outros personagens , ele é o mais sensato e inteligente dos militantes que participavam do seqüestro do embaixador. Tanto no livro como no filme a idéia do seqüestro é Fernando Gabeira, mas na realidade foi de um outro companheiro, Franklin Martins. E eu pergunto a Gabeira: “O que é isso, Companheiro?” O plágio não era crime em 69? Mas não ficou por aí, ele também assumiu a autoria do manifesto divulgado nos meios de comunicação, que o Franklin escreveu.

Em uma entrevista dada a Folha de S. Paulo, Bruno Barreto justifica-se dizendo “...Eu tomei certas liberdades com o personagem do Gabeira só para ele ter alguma qualidade. Ele não sabia dirigir, não sabia atirar, se não soubesse escrever, o que estaria fazendo ali ...”, fico abismada que nem escrever ele não sabia! Fernando Gabeira só ficou sabendo da ação no dia do seqüestro, pois o embaixador ficaria na casa que ele alugou para sede do jornal do grupo. Então por que assumir uma coisa que nem ia participar? Um outro ponto, que não mencionei, é que no filme começa com uma passeata, onde Fernando Gabeira estava participando, mas no livro ele conta que estava observando da janela do Jornal do Brasil, onde trabalhava.

Existem outros detalhes no filme, o assalto a banco é mostrado somente com o objetivo de juntar dinheiro para a realização do seqüestro, mas na realidade os assaltos eram feitos para garantir sobrevivência da clandestinidade e também como uma forma de protesto contra o sistema autoritário e o imperialismo. No livro Gabeira conta que ele seguiu os militares que estavam vigiando a casa em Santa Tereza, mas no filme fica ridículo esta encenação. Um outro ponto que chama a atenção foi a compra dos frangos, numa época de recessão e também repressão, que boa parte da população estava auxiliando os militares em perseguir os “subversivos”, como uma pessoa compraria doze frangos e mostrando muito dinheiro no bolso não levantaria suspeita? No Brasil atualmente nem todas as casas tem telefone, e na época só os mais privilegiados possuíam, então porque colocar telefones em todas as casas como nos Estados Unidos?

O plágio não é o único problema, a própria personalidade dos personagens está distorcida, Bruno Barreto utiliza nomes, codinomes e descrições dos verdadeiros participantes do seqüestro, só que de forma diferente, o mais prejudicado é o personagem Jonas, (Vírgilio Gomes da Silva), um operário, militante da ALN, que trouxe sua experiência na luta armada para a realização dessa ação em conjunto. O filme mostra um homem violento, calculista que mataria um companheiro caso esse enfraquecesse, e deu ordem ao Paulo personagem de Fernando Gabeira, de matar o embaixador caso as exigências não fossem aceitas. Jonas não tem nada a ver com o personagem primitivo do filme, segundo seus parentes Jonas era um homem calmo.

Bruno Barreto é extremamente preconceituoso, pois coloca a imagem distorcida de um pessoa devido sua classe social, um operário e coloca um intelectual no alto.

Bruno Barreto faz isso também com o personagem feminino da história, Vera Sílvia Magalhães, "... Foi ela que, então com 21 anos, fez o levantamento da ação, tendo também participado diretamente do seqüestro, na cobertura logística. Vera, porém, não permaneceu dentro da casa em Santa Tereza - nenhuma mulher ficou -, mas acompanhou os acontecimentos passo a passo, por intermédio de alguns companheiros que entravam e saíam. No filme, ela seria a fonte de inspiração das personagens de Cláudia Abreu(que faz o levantamento da ação) e de Fernanda Torres, que, como Vera, deixa o país com as pernas paralisadas - quando de sua libertação em troca de embaixador alemão Ehrenfried von Holleben (seqüestrado em 1970), junto com mais 39 prisioneiros políticos -, em conseqüência das violentas torturas que sofreu na cadeia."

A relação de preconceito neste fato, reduz a utilização do corpo feminino para obtenção de favores, Vera utilizou de encantos femininos para obter as informações sobre a rotina do embaixador, mas nunca teve nenhuma relação com o segurança, como mostra no filme.

Um outro ponto importante, é que Bruno Barreto mostra no filme um conflito entre um torturador e sua esposa, este militar fala a um outro amigo militar se ele consegue dormir depois do trabalho, e ele fala que sim. Ele tenta demonstrar que o torturador também tinha uma história, uma família, e ficava com a crise de consciência, e por sinal o torturador que se sentia bem no trabalho que fazia, que era torturar os “subversivos”, era negro, outro fato de preconceito.

Com relação a tortura em si, o filme ficou devendo, pois, no livro Gabeira conta alguns detalhes sobre os porões do Dops, fala do tiro que levou quando foi preso, como ele fazia para enganar os torturadores para não contar detalhes do seqüestro, fala das suas transferências, conta a história de um militante que resistiu até a morte e antes de morrer conseguiu atingir um torturador, ferindo-o muito, todos dentro da cadeia ficou sabendo desse fato, e esse preso era justamente Vírgilio Gomes da Silva, o companheiro Jonas, e no filme Bruno Barreto mostra um lado tão simplório da tortura, ele faz questão de mostrar que os torturadores eram bonzinhos, que a tortura não eram tão violenta como na realidade foi. Em comparação com o filme Lamarca, que mostra bem como era feita a tortura, quando ele coloca um pau-de-arara um homem nú o expondo a humilhação, ele sofre violentos choques elétricos no seu órgão genital, e quando este vem a falecer depois de tanto sofrimento, o comandante da ação fala que a causa da morte, “atropelado quando resistia a prisão”.

A frieza dos militares é bem retratada nesse filme, o esquema do exército, suas influências e sua violência. E Bruno Barreto deixa de lado essa questão, com relação ao exército ele só mostra dois comandantes, que fazem tudo desde as ordens, a prisões e a tortura. Segundo Renato Tapajós, “ A tortura pode ser uma decisão racional para os altos escalões de comando, que decidem permiti-la ou aceitá-la como método e são capazes, inclusive, de mandar trazer assessores internacionais para divulgar técnicas ‘modernas de tortura entre seus comandados. No entanto, no escalão do torturador, daquele sujeito que põe a mão na massa, a tortura significa infligir for, humilhação e talvez a morte a outro ser humano. Ela acontece em meio a gritos, sangue, cheiro de sangue e de suor, o fedor insuportável do medo, freqüentemente urina e fezes - porque o medo e a dor soltam bexiga e intestinos...a tortura é a negação do humano - e essa é a chave da sua eficácia...”

Bruno Barreto compreende as razões do torturador, de um certo modo defendendo-o, quando na realidade eles não passem de criminosos, no Brasil e não existe punição para esses crimes, todos sem exceção deveria ir para a justiça, tanto os torturadores, o alto escalão do exército e os políticos que apoiavam a ditadura.


“ Frente a todos os perigos, frente a todas as ameaças, as agressões, aos bloqueios, às sabotagens; frente a todas os divisionistas, frente a todos os poderes que tratam de nos enfrenta, temos que demonstrar, uma vez mais, a capacidade do povo para construir a sua história.”
Ernesto Che Guevara


A capacidade da classe dominante apagar a memória e a esperança do povo pela luta de seus direitos, é incrível. Com uma simples distorção da história, ela pode mudar a capacidade de raciocínio da maior parte das pessoas.

Fonte:
Adriana De Oliveira Costa. Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”
Faculdade De Ciências E Letras. Departamento De Sociologia. Araraquara, 1997.

Antonio Aleixo (1849 – 1949)


Que importa perder a vida
na luta contra a traição
se a razão mesmo vencida
não deixa de ser razão

António Fernandes Aleixo, é um autodidata. Este poeta popular algarvio, de vida acidentada e humano, morreu tuberculoso em Loulé. Foi tecelão, emigrante, pastor de cabras e cauteleiro. Percorria as feiras improvisando à guitarra ou vendendo folhas avulsas com quadra e glosas. A sua poesia distingue-se pelo rigor de inspiração e de talhe e caracteriza-se por uma tendência conceptiva de qualidade. As primeiras edições da sua obra, disseminada oralmente, foram promovidas por Joaquim da Rocha Peixoto Magalhães, que recolheu sistematicamente todo o manancial, quer a partir do próprio autor, quer de amigos e conterrâneos.

António Fernandes Aleixo (Vila Real de Santo António, 18 de Fevereiro de 1899 — Loulé, 16 de Novembro de 1949) foi um dos poetas populares algarvios de maior relevo, famoso pela sua ironia e pela crítica social sempre presente em seus versos. Também é recordado por ter sido simples, humilde e semi-analfabeto, e ainda assim ter deixado como legado uma obra poética singular no panorama literário português da primeira metade do século XX.

No emaranhado de uma vida recheada de pobreza, mudanças de emprego, imigração, tragédias familiares e doenças, na sua figura de homem humilde e simples, havia o perfil de uma personalidade rica, vincada e conhecedora das diversas realidades da cultura e sociedade do seu tempo.

Do seu percurso de vida fazem parte profissões como tecelão, guarda de polícia, servente de pedreiro, trabalho este, que emigrado, também exerceu em França.
De regresso ao seu país natal, restabeleceu-se novamente em Loulé, onde passou a vender cautelas e a cantar as suas produções pelas feiras portuguesas, actividades que se juntaram às suas muitas profissões e que lhe renderia a alcunha de "poeta-cauteleiro".

Faleceu por conta de uma tuberculose, em 16 de Novembro de 1949, doença que tempos antes havia também vitimado uma de suas filhas.

Corrente do cancioneiro popular português

O termo "cancioneiro" é, em geral, atribuído à reunião de canções populares; cada uma das coleções da antiga poesia lírica portuguesa e galega, com início entre os séculos XI e XIII, reunidas sob a alçada de reis e príncipes e constituídas por composições de vários autores, de entre homens das diversas classes sociais, é o "cancioneiro" em língua portuguesa mais conhecido.

No Algarve, na primeira metade do século XX, teria irrompido uma poderosa corrente de um novo cancioneiro popular português, a qual recebeu o nome do poeta semi-analfabeto que lhe teria "aberto as comportas": António Aleixo. Quem apontou essa corrente foram o artista plástico Tóssan também autor da imagem supra, e o professor de liceu Joaquim Magalhães, este último o professor do Liceu de Loulé e "descobridor" de António Aleixo, ao qual se deve o registo e publicação da obra do poeta popular algarvio e sua inclusão no sistema literário português.

Estilo literário

Poeta possuidor de uma rara espontaneidade, de um apurado sentido filosófico e notável pela «capacidade de expressão sintética de conceitos com conteúdo de pensamento moral», António Aleixo tinha por motivos de inspiração desde as brincadeiras dirigidas aos amigos até à crítica sofrida das injustiças da vida. É notável em sua poesia a expressão concisa e original de uma amarga filosofia, aprendida na escola impiedosa da vida.

A sua conhecida obra poética é uma parte mínima de um vasto repertório literário. O poeta, que escrevia sempre usando a métrica mais comum na língua portuguesa (heptassílabos, em pequenas composições de quatro versos, conhecidas como "quadras" ou "trovas"), nunca teve a preocupação de registar suas composições. Apenas com o trabalho de Joaquim de Magalhães, que se dedicou a compilar os versos que lhe ditou o poeta no intuito de compor o primeiro volume de suas poesias ("Quando Começo a Cantar", e com o posterior registo pelo próprio poeta com o incentivo daquele mesmo professor, é que a obra de Aleixo recebeu algum registo escrito. Antes de Magalhães, contudo, alguns amigos do poeta lançaram folhetos avulsos com quadras por ele compostas, mais no intuito, à época, de angariar algum dinheiro que ajudasse o poeta em uma situação de miséria que com a intenção maior de permanência da obra na forma escrita.

Estudiosos de António Aleixo ainda conjugam esforços no sentido de reunir o seu espólio, que ainda se encontra fragmentado por vários pontos do Algarve, algum dele já localizado. Sabe-se também que vários cadernos seus de poesia - nos quais era incentivado por Joaquim de Magalhães a registrar seus poemas, já que antes os produzia espontaneamente em suas apresentações em feiras e praças públicas, sem a preocupação de publicação - foram cremados como meio de defesa contra o vírus infeccioso da doença que o vitimou, sem dúvida, um «sacrifício» impensado, levado a cabo pelo desconhecimento de seus vizinhos. Foi esta uma perda irreparável de um patrimônio insubstituível no vasto mundo da literatura portuguesa.

A opinião pública e reconhecidos amigos

A partir da descoberta de Joaquim de Magalhães, o grande responsável por "passar a limpo" e registar a obra do poeta, António Aleixo passou a ser apreciado por inúmeras figuras da sociedade. Também é digno de registo José Rosa Madeira, que o protegeu, divulgou e colecionou os seus escritos, contribuindo no lançamento do primeiro livro, "quando Começo a Cantar" (1943), editado pelo Círculo Cultural do Algarve.

A opinião pública aceitou a primeira obra de António Aleixo com bom agrado, sendo bem acolhido pela crítica. Com uma tiragem de 1.100 exemplares, o livro esgotou-se em poucos dias, o que proporciona a Aleixo uma pequena melhoria de vida, que é ensombrada pela morte de uma sua filha, doente com tuberculose. Desta mesma doença viria o poeta a sofrer pelos tratamentos que vida lhe foi impondo, tendo que ser internado no Hospital – Sanatório dos Covões, em Coimbra, a 28 de Junho de 1943.

Em Coimbra começa uma nova era para o poeta que descobre novas amizades e deleita-se com novos admiradores, que reconhecem o seu talento, de destacar o Dr. Armando Gonçalves, o escritor Miguel Torga e António Santos (Tossan), o artista plástico e autor da mais conhecida imagem do poeta algarvio, amigo do poeta que nunca o desamparou nas horas difíceis. Os seus últimos anos de vida foram passados, ora no sanatório, em Coimbra, ora no Algarve, em Loulé.

Os Derradeiros momentos de António Aleixo:
Caro Senhor Dr. Joaquim Magalhães;
Saúde! E boa vontade!
Este é o rogo do moribundo. Pasmo como ainda lhe sobra vontade para querer alguma coisa.
Deve ter adivinhado que se trata do Aleixo. Ele mandou-me chamar hoje. Fui encontrá-lo medonhamente acabado. Olhou-me quando entrei e creio que lhe faltavam as forças para o fazer mais vezes. Enquanto me falou, - com esforço visível, num sopro enrouquecido, - fitava alguma coisa, longe ou perto com a lividez gelada da última hora. Pasmei como se poderia interessar por alguma coisa.

Falou-me do livro e pediu-me que telefonasse ainda hoje a desistir da publicação. Disse-me que desistia e que com o dinheiro ia dar de comer à família que ultimamente vem passando mal… É claro que lhe tirei isso do sentido; pelo menos fiz o possível dizendo-lhe que não, que isso era mal pensado e que ele tinha a obrigação de pensar (como se já lhe assistisse qualquer espécie de obrigação) na receita que poderia advir do livro em proveito da família, da sua relativa continuidade, etc, etc. Disse-lhe ainda que escreveria ao Sr. Dr. no sentido de apressar o mais possível a impressão do livro, - argumento com que o convenci a não fazer a asneira da desistência. Prometi escrever ao Sr. Ainda hoje e lá o deixei mais ou menos consolado com a ideia de que tudo se iria passar rapidamente, não como seria a nossa vontade mas dentro das possibilidades de que dispomos. Consolei-o dizendo que todas as pessoas que mais ou menos contribuem para a publicação do livro estão a fazer o que podem nesse sentido e com toda a boa vontade - Na verdade, creio que por mais depressa que o assunto se resolva não virá a horas de lhe dar a satisfação que ele vê fugir, - a sua grande e última satisfação. Penso que poucas horas lhe restarão. Demais ele já não come há dois dias. Todo o volume que ele faz no leito não excede o de uma criança de poucos anos. Todavia há que pensar na miséria que o rodeia e que muito se acentuará depois do seu último dia. Talvez por isso ele peça por meu intermédio ao Sr. Dr. Magalhães toda a urgência.

Por mim espero que o Sr. Dr. Magalhães fará o possível, assim como já terá dado alguns passos no sentido de regularizar os registros de autor do Aleixo, dos quais ele me falou hoje e a que eu lhe respondi que o Sr. andava a tratar do caso como lhe era possível.

Posto o que ficou dito, fico em boa consciência pensando que nada mais poderia fazer.

Recomendo-me e cumprimento-o respeitosamente
Armando Gonçalves (médico que assistiu Aleixo no Sanatório dos Covões - Coimbra)

Sua Obra:
Quando começo a cantar – (1943);
Intencionais – (1945);
Auto da vida e da morte – (1948);
Auto do curandeiro – (1950);
Auto do Ti Jaquim - incompleto;
Este livro que vos deixo – (1969) - reunião de toda a obra do poeta;
Inéditos – (1979); tendo sido, estes quatro últimos, publicados postumamente.

Fontes:
Carlos Leite Ribeiro – Marinha Grande – Portugal
http://www.caestamosnos.org/indice/indice.htm
http://acaciasrubras.no.sapo.pt/biblioteca/poesia/antonio_aleixo/ (retrato)

Antônio Aleixo (Quadras Populares)

Forçam-me, mesmo velhote,
de vez em quando, a beijar
a mão que brande o chicote
que tanto me faz penar.
«»
Eu não tenho vistas largas,
nem grande sabedoria,
mas dão-me as horas amargas
lições de filosofia.
«»
Vós que lá do vosso império
prometeis um mundo novo,
calai-vos, que pode o povo
querer um mundo novo a sério.
«»
Pra mentira ser segura
e atingir profundidade,
tem que trazer à mistura
qualquer coisa de verdade.
«»
Enquanto o homem pensar
que vale mais que outro homem,
são como os cães a ladrar,
não deixam comer, nem comem.
«»
A vida na grande terra
corrompe a humanidade.
Entre a cidade e a serra
prefiro a serra à cidade.
«»
Eu não sei porque razão
certos homens, a meu ver,
quanto mais pequenos são
maiores querem parecer.
«»
Uma mosca sem valor
poisa, c'o a mesma alegria,
na careca de um doutor
como em qualquer porcaria.
«»
Num arranco de loucura,
filha desta confusão,
vai todo o mundo à procura
daquilo que tem à mão.
«»
Entre leigos ou letrados,
fala só de vez em quando,
que nós, às vezes, calados,
dizemos mais que falando.
«»
Quando te vês mal, e dizes
que preferias a morte,
pensa que outros menos felizes
invejam a tua sorte.
«»
Tem a música o poder
de tornar o homem feliz;
nem há quem saiba dizer
tanto quanto ela nos diz.
«»
Gosto do preto no branco,
como costumam dizer:
antes perder por ser franco
que ganhar por não ser.
«»
Queremos ver sempre à distância
o que não está descoberto,
Sem ligarmos importância
ao que está à vista e perto.
«»
Sei que umas quadras são conselhos
que vos dou de boa fé;
outras são finos espelhos
onde o leitor vê quem é.
«»
Quantas sedas aí vão,
quantos colarinhos,
são pedacinhos de pão
roubados aos pobrezinhos!
«»
Quando não tenhas à mão
outro livro mais distinto,
lê estes versos que são
filhos da mágoa que sinto.
«»
Julgam-me mui sabedor
E é tão grande o meu saber
Que desconheço o valor
Das quadras que sei fazer!
«»
A quadra tem pouco espaço
Mas eu fico satisfeito
Quando numa quadra faço
Alguma coisa com jeito
«»
Nos versos que se improvisem,
Os poetas sabem ler,
Para além do que eles dizem,
Tudo o que querem dizer
«»
Falemos sinceramente,
Como p'ra nós mesmos, a sós;
Lá longe de toda a gente,
Do mundo, e até de nós
«»
Mentiu com habilidade,
fez quantas mentiras quis;
agora fala verdade,
ninguém crê no que ele diz
«»
Há luta por mil doutrinas.
Se querem que o mundo ande,
Façam das mil pequeninas
Uma só doutrina grande.
«»
A arte em nós se revela
Sempre de forma diferente:
Cai no papel ou na tela
Conforme o artista sente
«»
Embora os meus olhos sejam
Os mais pequenos do mundo,
O que importa é que eles sejam
O que os Homens são no fundo. Porque o mundo me empurrou,
caí na lama, e então
tomei-lhe a cor, mas não sou
a lama que muitos são.
«»
À guerra não ligues meia,
porque alguns grandes da terra,
vendo a guerra em terra alheia,
não querem que acabe a guerra
«»
Que importa perder a vida
em luta contra a traição,
se a Razão mesmo vencida,
não deixa de ser Razão?
«»
Sei que pareço um ladrão...
mas há muitos que eu conheço
que, não parecendo o que são,
são aquilo que eu pareço.
«»
Eu já não sei o que faça
pra juntar algum dinheiro;
se se vendesse a desgraça
já hoje eu era banqueiro.
«»
O mundo só pode ser
melhor do que até aqui,
- quando consigas fazer
mais pelos outros que por ti!
«»
Bate a fome à porta deles
e é lá mais mal recebida
do que na casa daqueles
que a sofreram toda a vida.
«»
Para não fazeres ofensas
e teres dias felizes,
não digas tudo o que pensas,
mas pensa tudo o que dizes.
«»
Vinho que vai para vinagre
não retrocede o caminho;
só por obra de milagre,
pode de novo ser vinho.
«»
Eu não tenho vistas largas,
nem grande sabedoria,
mas dão-me as horas amargas
lições de filosofia.
«»
Mentiu com habilidade,
fez quantas mentiras quis;
agora fala verdade
ninguém crê no que ele diz.
«»
Quando os homens se convençam
que a força nada faz,
serão felizes os que pensam
num mundo de amor e paz.
«»
Não sou esperto nem bruto,
nem bem nem mal educado:
sou simplesmente o produto
do meio em que fui criado.
«»
Porque será que nós temos
na frente, aos montes, aos molhos,
tantas coisas que não vemos
nem mesmo perto dos olhos?
«»
Vemos gente bem vestida,
no aspecto desassombrada;
são tudo ilusões da vida,
tudo é miséria dourada.
«»
Julgam-me mui sabedor;
e é tão grande o meu saber
que desconheço o valor
das quadras que sei fazer.
«»
Peço às altas competências
Perdão, porque mal sei ler,
P’ra aquelas deficiências
Que os meus versos possam ter.
«»
Quem nada tem, nada come;
e ao pé de quem tem de comer,
se alguém disser que tem fome,
comete um crime, sem querer
«»
Nada direi, mas, enfim,
Vou ter a grande alegria
De a Arte dizer por mim
Tudo quanto eu vos diria
«»
Falemos sinceramente,
Como p'ra nós mesmos, a sós;
Lá longe de toda a gente,
Do mundo, e até de nós
«»
Após um dia tristonho
de mágoas e agonias
vem outro alegre e risonho:
são assim todos os dias
«»
São parvos, não rias deles,
deixa-os ser, que não são sós;
às vezes rimos daqueles
que valem mais do que nós
«»
Quando os Homens se convençam
Que à força nada se faz,
Serão felizes os que pensam
Num mundo de amor e paz.
«»
Quem prende a água que corre
É por si próprio enganado;
O ribeirinho não morre,
Vai correr por outro lado.
«»
Julgando um dever cumprir,
Sem descer no meu critério,
- Digo verdades a rir
Aos que me mentem a sério!
Fonte:
Carlos Leite Ribeiro – Marinha Grande – Portugal
http://www.caestamosnos.org/indice/indice.htm

Adriana Lunardi (Clarice)

Na varanda, ele aponta a pedra pontuda e as casinhas apinhadas que sobem pela encosta. Professoral, chama cada coisa pelo nome, educando-me o olhar para as coisas que ama. Aquele é o morro Dois Irmãos; do lado, a favela da Rocinha. Na vibração da voz, no atropelo de assuntos, a pressa de revelar-se. A ansiedade pelo papel que durante toda a vida (a minha vida, ao menos) evitou desempenhar. O de ser meu pai.

Eu não decidira ainda de que modo chamá-lo. Com minha mãe, ele sempre fora ele, simplesmente, o pronome indicando um mesmo sujeito, o único homem importante em minha biografia. Pai é uma palavra que nunca precisei usar – já tinha dentes quando aprendi a pronunciá-la – e Otávio, pura e simplesmente, exige maior intimidade do que posso oferecer. O jeito é usar a neutralidade do que você e despistar todas as vezes que os apelos tenham que ser mais diretos.

Lá é o Leblon, Ipanema do lado e, à direita, esse você sabe, o Cristo. Apresenta os bairros e as montanhas como um senhor feudal e, em seguida, me espreita, à espera de reação. Aliás, ele me observa o tempo todo, procurando em meu rosto aquelas semelhanças que todos os parentes procuram nas gerações mais novas. Quem sabe na forma dos olhos, no jeito de sorrir, encontrasse uma prova inequívoca, material, de que somos mesmo pai e filha.

Em minha cabeça, nada se acomoda. Os pensamentos fogem antes que eu possa esclarecê-los. É muita informação logo cedo, e estou em jejum, o que agrava meu desconforto. Para completar, tem essa bondade no olhar dele encaramelando tudo.

Estava à beira de vomitar quando a senhora de uniforme avisou que o café seria servido.
Não há silêncio mais incômodo do que aquele de duas pessoas sentadas frente a frente, sem ter o que falar ou, ao contrário, com tanto a dizer que não imaginam por onde começar senão saindo aos gritos. Um pouco de violência faz parte de mim. Uso unhas afiadas sempre que me põem contra a parede. A cicatriz discreta, mas indelével, na pálpebra esquerda da Cris, coleguinha de maternal, é testemunha do meu estilo. Desde que me alfabetizei, contudo, transferi essa ferocidade para as palavras, que cicatrizam mais lentamente que os arranhões. Será a minha contribuição a esse homem que, enquanto raspa a polpa de um papaia até a casca, tenta mapear o gelo em que pisa. Sou capaz de destruí-lo, sinto a força em mim. A força de um selvagem das cavernas que não sabe controlar os próprios instintos.

Procurando incessantemente por pistas, ele pergunta coisas que se perguntam às crianças: se vou bem ao colégio, qual a minha matéria predileta, qual grupo de rock. Quer saber tudo de mim entre uma colher de geléia e uma mordida de pão. Basta o resumo.

Sim à primeira, português à segunda e Mutantes à última, respondo num tiro, esperando que o questionário morra ali. Sem me abalar, ele pensa um pouco e retoma o rimo, fazendo apreciações analíticas.

Mutantes? Achei que na sua idade ninguém mais conhecia.

Gostaria de ter certeza de que ele sabe que tenho dezessete anos. Minha aparência diz menos. Parei de crescer aos doze, e mesmo naquela época era a menos da turma, de modo que é fácil me confundirem com uma menina, especialmente para um pai recém-nascido que nunca comprou presentes de aniversário. Talvez essa imagem de anjo perverso explique os olhos arregalados, incertos sobre o que dizer ao me verem encher a segunda xícara de café e acender o primeiro cigarro do dia.

Sopro a fumaça de lado, pergunto se incomoda. Ele agüenta firme. Autoriza-me um fique à vontade de anfitrião educado e, no embalo, confidencia ter parado de fumar há pouco. E que achava que a minha geração estava melhor informada sobre os malefícios do fumo.

Os vícios é que nos salvam, penso em dizer, mas acho melhor ficar calada.

O silêncio se alarga entre o guardanapo e a boca. Uma pergunta difícil, dessas que se experimenta primeiro, abrindo-lhe a casca para verificar se está perfeita, demora a achar a voz de Otávio, mas chega. Qual o primeiro lugar que eu gostaria de conhecer no Rio de Janeiro?
O cemitério do Caju, respondo sem hesitar.

Pronto. Está feito. Sou uma garota difícil. Dessas que fazem os pais fincarem os cotovelos na mesa e segurarem as têmporas com o indicador e o dedo médio, enquanto os polegares sustentam as mandíbulas inferiores, analisando a máscara da perplexidade.

A gargalhada da Penha, tirando a mesa do café, enche a sala de espontaneidade.

Tanta coisa linda para se ver nessa cidade e a menina querendo ir ao cemitério. É de lascar, seu Otávio!

Otávio empalidece e afunda os olhos na mesa, vexado por ter de se expor à crítica popular dos fatos.

Você é gótica? Penha se esbalda, irreverente. O termo aprendido na novela da tevê é uma sobremesa que irá apreciar em família, depois do expediente, comentando sobre a estranha filha do patrão que em vez do Pão de açúcar preferia visitar o caju.

A gargalhada vívida desaparece por uma porta vaivém, deixando migalhas na toalha xadrez e, no ar, um vapor inflamável de posto de gasolina. Apago o cigarro, temendo explosões.

Arrependido, digo, ambígua no tom, que tanto pode ser interrogativo quanto de adivinhação.
Era o que você queria? Otávio me encara, a raiva fininha se infiltrando na massa corrida do discurso paterno, o rosto crespo de indignação. Não está entre amigos, ele devia saber, mas parece não ter entendido ainda. Ninguém que responde a uma pergunta fazendo outra sabe. Deixei que a provocação agonizasse sozinha até que o ruído dos carros, vindo de muito longe, a atropelasse. Otávio desviou as pupilas para o céu e suspirou.

O ódio bem podia ser o sentimento supremo que nos une. Temos, afinal, o mesmo código, eu e esse cara. O exame de DNA disse. O resto da história, como e porquê são buracos mal cobertos pelas versões esfarinhadas de minha mãe. O resumo básico é que ela tivera com Otávio uma fidelidade insuficiente para tranqüilizá-lo quanto à genética do embrião que carregava. As dúvidas favoreceram mágoas, acusações e o resto da cartilha dos amores imperfeitos. Na hora do meu nascimento, não havia ninguém para fotografar o parto.

Às vezes basta uma desculpa, dessas que só o tempo afia, para tudo ficar cristalino como uma janela recém-lavada. Em outras vezes, no entanto, é preciso um grande susto para a verdade aparecer. A certeza da minha origem precisou das duas possibilidades combinadas: a crise dos quarenta batendo à porta de dois ex-namorados e um exame de saúde trazendo a suspeita de que em breve eu seria órfã de mãe. Desde então, tenho aprendido que a morte, sua vizinha inapelável, exige sinceridade absoluta de todos os envolvidos. A minha inclusive.

Vamos para a sala? ele convida, reclinando a cabeça no ombro esquerdo. Deve ter precisado alongar o pescoço muitas vezes na vida para não perdê-lo. Esse apartamento, por exemplo. O piso recamado de persas, a cintilância de alguns cristais e essa natureza na varanda, luxuosa como documentário da National Geographic, escancaram em cada metro quadrado uma alma vendida.

Gostou daqui? Ele me flagra apreciando seus tesouros. Da próxima vez terei de ser mais cuidadosa. Odeio que me apanhem desprevenida.

Bonito. Caro. O segundo adjetivo saiu quase sem querer, colado à lisonja, como se eu estivesse avaliando profissionalmente o lugar.

Demorei muito para conseguir, Otávio se defende, enumerando as virtudes necessárias para se adquirir um império. Trabalho duro, ambição, resistência. As reticências na fala deixam a lista em aberto, fazendo crer que tem mais. Um pouco de sorte também, ele considera, jogando a purpurina da modéstia para causar boa impressão.

Você trabalha com propaganda, mamãe disse.

Internet. Sou sócio em um provedor.

Ele, provedor. Meu riso explode. Só podia ser uma piada. Otávio finge não perceber a ironia.
Quer saber se eu navego, qual é a minha máquina, quanta memória ela tem.

Pouca. Uso o computador só para escrever.

Os filhos dos meus amigos respiram Web. É divertido. Você não tem vontade?

Não gosto de me divertir.

Eu estava fazendo uma citação, mas ele jamais presumiria. A sombra da culpa embaça-lhe a inteligência. Cada frase que eu disser pode significar uma grosseria diante de suas sublimes intenções patriarcais, pois tudo o que ele teme é o Quarto Mandamento ser rasgado em mil pedacinhos no chão da sala, sujando os tapetes que, de tão puros, prometem voar.

Sem conseguir conter a frustração, Otávio sopra mais um suspiro e cruza as pernas, enlaçando as mãos sobre o joelho que ficou por cima.

Do que você gosta, então? desafia, meio zombeteiro, meio irritado.

De aprender, respondo, a voz sumindo a cada sílaba, espuma que se empraia na arrebentação.

Então você deve ir bem na escola, se olhos se acendem: enfim uma brecha, quase um diálogo inteiro. Colei até o fim da faculdade, confidencia, animadíssimo. Nunca achei que alguém tivesse alguma coisa para me ensinar e... Ele segue falando até distrair-se com a própria voz. Aproveito para observar a casa.

Será que ele mora sozinho? Procuro pelas mesas e balcões um porta-retrato, desses em que se aparecem rostos queridos lembrando do quanto somos importantes, ao menos para duas ou três fotografias. Os enfeites, contudo, são poucos. Quase sempre esculturas ou objetos de uso obscuro vindos de algum lugar bem distante.

O mar! – me lembro – preciso descobrir se fica longe, se posso ir a pé até a praia e andar sozinha, andar até saber o que lalande.

Ao descobrir que falava sozinho, Otávio se cala. Afasta o antebraço, olha o pulso e dá um salto.
Preciso dar uma passadinha no trabalho. Depois teremos o final de semana inteirinho pra gente. Penha me fará companhia, ele garante, caso eu queira descer, caminhar, ver a lagoa de perto.
Pede licença e desaparece no corredor.

Sinto-me infinitamente mais à vontade sem ninguém por perto. As coisas começam a ganhar sentido. Preciso de clama para senti-las, para saber o que significam, se gosto ou não delas. É tão demorado acostumar-se com o novo, que parece não haver tempo suficiente para isso. Em vez de viver, verbo irresponsável demais para tanta exigência, a gente deveria dizer estou me dedicando, como em um trabalho difícil, desses que exigem cada uma das horas do dia.

Otávio ressurge. Trocou de roupa e penteou os cabelos. Chama Penha e distribui ordens enquanto apanha chaves. Pára um segundo, olha para mim e pergunta se preciso de alguma coisa. Faço um não com a cabeça. Ele diz que volta para o almoço e bate a porta. O som abafado da madeira devolve o silêncio de antes, mas agora um perfume almiscarado flutua no ar.

Onde fica o Caju? Entro na cozinha, assustando Penha. Dá para ir caminhando?

Dá não, responde Penha. É lá para os lados de São Cristóvão.

Conto o dinheiro entre as páginas de um livro. Mostro a quantia a Penha, perguntando se é suficiente para o táxi. Ela diz que eu não deveria ir sozinha.

A cidade é perigosa, você não conhece nada. Seu Otávio não vai gostar.

Saio depressa, Penha me segue até o elevador, ameaça ligar para o “seu pai”, enquanto exclama por santos desconhecidos para mim. Aperto o botão do térreo e, me certificando de que a pedra está comigo, prometo estar em casa à hora do almoço.

Parte do caminho é bonita. Margeia a lagoa, tomada por remadores e pessoas que se exercitam como se o dia fosse feriado. O táxi entra por um túnel tão longo que é mais fácil adivinhar o fim do mundo do que o céu azul esperando na saída. Depois, são viadutos que espicham línguas em cima dos edifícios, fazendo o carro voar sobre a cidade. Mais adiante, um cinza de subúrbio, casas baixas, ruas estreitas.

Na vitrina de uma loja, a coroa de flores anuncia que estamos chegando. Um muro alto passa a acompanhar o carro. A asa de um anjo espia o movimento do lado de fora. Mais adiante, uma cruz. O táxi diminui a marcha e estaciona.

O comunal Israelita é logo ali, diz o motorista.

Rente à calçada, a parede prossegue, bloqueando a visão. Deixo que meus dedos rocem a superfície áspera do tijolo até ferir a pele. Sob a tinta barata, posso sentir o frio, antigo como a terra, revelando a alma de todos os muros. Tenho vontade de encostar minha testa ali, deixar que a indiferença dos séculos acalme as passadas rápidas do meu coração, que quer sempre outro, ou ser finalmente ele mesmo, e bate apenas para me lembrar que está à espera de uma decisão.

A opacidade da muralha é finalmente interrompida pelo gradeado de um portão. Em cada uma das folhas, finas lanças de ferro apontam o firmamento. No meio do caminho abrem mão de sua verticalidade para formar o desenho de duas estrelas de seis pontas, e voltam à retidão anterior até espetar o céu. Detrás delas, filas de lajes compridas e estreitas como camas de solteiro estampam o terreno de norte a sul.

Bem no meio, organizando o dormitório, a rua principal, feita de pedras portuguesas, alterna ondas pretas e ondas brancas. Um alpendre azul celeste a recobre. Os pilares se erguem, à esquerda e à direita, encimando um telhado pontudo. Lembram as casinhas que se desenha na infância. Feitas apenas de contornos, ocas por dentro. No alto, uma tumbérgia agarra-se firme ao madeirame. É muito jovem para entender os motivos de estar ali, mas seu destino de sombra e sombrinha está escrito.

O branco repetido das tumbas não ajuda a decidir quanto à direção a ser tomada. Escolho a fila mais próxima. Começar pelo meio pode não ser muito racional, mas depois de investigar três alas de retângulos idênticos e ler as inscrições em hebraico descubro que há uma organização por datas, ou então muita gente morreu em 1968.

Quanto mais avanço, mais o oco do silêncio se fecha, amplificando o som das solas dos sapatos a esmigalhar a terra. O calor também cresce, e sinto que estou perdida. Paro, escuto com mais atenção. Nada se mexe, salvo uma abelha perturbada pelo sol. Espero, imóvel, até meus ouvidos alcançarem o som abafado de uma batida repetir-se muito longe de onde estou.

Volto sobre minhas pegadas e depois de dobrar esquinas e errar o caminho, avisto um pedreiro ajoelhado junto a uma cova aberta. Faço aproximação cautelosa, evitando que ele se assuste com a minha presença. O homem se vira, deixando ao meio um golpe de picareta. Cumprimento-o.
Ele responde, mantendo o toco de charuto no canto da boca, depois estica o queixo pra o vazio aberto no chão e acrescenta. Não tenha medo. É só um trabalho de reforma. Sorrio, tentando mostrar confiança, e pergunto onde fica o túmulo que procuro. O homem aponta uma pá suja de cimento para a direção de onde vim.

Siga por ali até a rua G. É o oitavo, à esquerda.

Agradeço, aliviada, e, ao virar as costas, escuto ele perguntar:

Você é da família, moça?

Volto-me, a língua já alojada nos dentes da frente, o sopro do n pronto para iniciar o não, quando uma idéia rodopia no fundo da resposta, adiando-a.

Não, não era filha, sobrinha, prima. Nenhum laço de genealogia me atava a ela, mas a que família eu podia afirmar pertencer? Não tivera um pai até hoje e, quando ele aparece, é minha mãe que parte: um arranjo simples demais para a instituição familiar; ofende as leis mais elementares que a regulam. Nada em minha vida afiançara as relações de parentesco. Se eu quisesse uma família, tinha que criá-la eu mesma. Fazer uma seleção particular de pessoas e inventar uma afinidade que nos unisse. Um desespero de compreensão, por exemplo, no lugar do sangue. Então sim, poderia afirmar, gritar ao coveiro, que Clarice me era mais familiar do que qualquer outro ser no mundo. Com ela eu tinha finalmente uma coisa parecida. Uma coisa fundamental. Ela era alguém que me olhava nos olhos, e nesse olhar estava o segredo que compartilhávamos. Um segredo que só existe pela cumplicidade de sabê-lo, como todos os segredos da família. Ela afastava de mim o temor de enlouquecer só porque aquilo que eu sentia ainda não tinha nome. E me encorajava a ser o que eu era, a gostar de sê-lo. Assumia a minha estranheza, apontava-me a beleza que havia nela e, sobretudo, cercava-a de dignidade. O resto do mundo que ficasse atônito se eu era um daqueles que matam para florescer.

Antes que eu pudesse dizer um sim vitorioso, sibilante de convicção, o homem já tinha retomado sua tarefa, indiferente como um pedreiro que ergue tumbas debaixo do sol.

Volto devagar à rua principal. Dobro a esquina indicada e meus olhos avançam sobre o mármore que se ergue da terra como pombo de peito estufado. Um pombo cubista. Na lápide, as letras foram pintadas à mão sobre o molde talhado em pedra. Na linha superior, o nome em hebraico e a estrela de David. Uma única data, 9-12-1977, sepulta para sempre o mistério do ano do seu nascimento.

Clarice Lispector, leio. Clarice Lispector, leio outra vez, repetindo, repetindo, até meus olhos acreditarem.

Um gosto salgado me invade a boca. As lágrimas enchem os canais escondidos sob o rosto, mas não escorrem. Seguro-as para me fortalecer no sofrimento. Quero o choro apenas quando o mal for maior que a compreensão. E aqui, há encontro. Estou diante do túmulo de Clarice Lispector e essa é a minha história. Tinha ido até ali para vivê-la, para fazer-me do que gosto, ceder à mínima manifestação do meu ser difícil, áspero, desesperado. Sobretudo, tinha ido ali para me filiar.

Tiro a pedra do bolso e deposito-a na superfície respingada de luz. Um ritual de que não conheço ao certo o sentido, mas que tomo de empréstimo para iniciar a tradição da minha linhagem.

O meio-dia varreu toda possibilidade de sombras. Acaricio o leito branco. A poeira se gruda em meus dedos, lembrando-me do eterno pó que somos e seremos. O corpo dói de celebração. Atrás de mim ouço um ruído. Não tenho pressa. Sei que ao dar as costas verei Otávio, as mãos nos bolsos, entre furioso e aliviado, pensando no que fazer comigo. Há, finalmente, coisas para as quais ele não tem um nome. Mas pode estar perto, muito perto, de conhecer a ordem dos corações selvagens.

Fonte:
In: Vésperas. Rocco, 2002.
http://www.claricelispector.com.br/artigos_adrianaLunardiVesperas.aspx

terça-feira, 1 de abril de 2008

Tertúlia - Encontros de Literatura no SESC Pinheiros

O projeto teve início no dia 20 de março e vai até 18 de junho de 2008, no SESC Pinheiros.
A cada encontro será feita a leitura e interpretação de texto de um reconhecido escritor, onde o público é também convidado a ler. Orientação da professora Susanna Ventura e interpretação do ator Clóvis Torres. A cada encontro um convidado, dentre eles nomes como Fabrício Carpinejar, Ana Miranda, Lourenço Mutarelli, Contardo Calligaris, Juliano Pessanha e Lygia Fagundes Telles.

Próximos encontros, sempre as 20hs:


"O homem desativado" - João Gilberto Noll por Fabrício Carpinejar
03/04 - SESC Pinheiros

"Anjos e Quimeras - Procura-se um editor!" - Augusto dos Anjos por Ana Miranda
10/04 - SESC Pinheiros

"O homem invisível" - William Burroughs por Lourenço Mutarelli
17/04 - SESC Pinheiros

"O prazer da ficção" - Luiz Alfredo Garcia-Roza por Contardo Calligaris
24/04 - SESC Pinheiros

"Kafka: poeta em mundo sem poema" - Franz Kafka por Juliano Garcia Pessanha
08/05 - SESC Pinheiros

"Indecifráveis olhos de ressaca" - Machado de Assis por Lygia Fagundes Telles
14/05 - SESC Pinheiros

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O SESC Pinheiros fica localizado na

rua Paes Leme, 195 Pinheiros São Paulo - SP

Inscrições no balcão da Sala de Leitura - 2º andar.



Andreia Lima - Assessoria de Imprensa, SESC Pinheiros
Tels.: (11) 3095.9421 ou 3095.9425
http://www.sescsp.org.br/


Fontes
E- mail enviado por Douglas Lara
Acontece em Sorocaba - Últimas Notícias
http://www.sorocaba.com.br/acontece

segunda-feira, 31 de março de 2008

André Carneiro em Ação

No fim do ano passado uma pesquisa internacional selecionou 24 fotógrafos artísticos considerados "Pioneios na Criação de uma Arte Fotografica Modernista, no Brasil". André foi incluído, com destaque para uma foto "Trilhos" premiada nacionalmente em 1949. A Galeria de Arte de S. Paulo Madalena mais a Galeria Bergamin, fizeram exposições dessas fotos em S. Paulo e no Rio de Janeiro. Tambem estão vendendo (só os direitos de reprodução da foto), até para exposições de galerias estrangeiras como "Tate Galery of London". Essa noticia provocou o interesse de uma editora que esta fazendo capas de uma grande Editora com fotos abstratas de sua autoria.

Em 2007 praticamente publicou três livros: O fac-símile do seu jornal Literário “Tentativa”, apresentado por Oswald de Andrade e titulo desenhado por Aldemir Martins, considerado o melhor do Brasil naquela época, além da maior coletânea de contos de Ficção Científica até hoje publicada, "Confissões do Inexplicável", com 600 páginas, mais a Antologia Poética "Quânticos da Incerteza", extraida de sua obra de 700 poemas inéditos, por Osvaldo Duarte, editado por Araceles Stamatiu e impresso na Imprensa Oficial de São Paulo.

Seu conto “Escuridão”, vendido a um cineasta espanhol está com seu roteiro quase terminado.

A Oficina de Literatura e Poesia orientada por André, em Curitiba, continua em alto nivel, já com dois "oficinados" Dr. Mustafá Ali Kanso e Dr. Bertoldo Schnadey ganhadores do Primeiro Lugar em Concurso Nacional de Contos.

A Oficina esta com um livro pronto para ser lançado, com o titulo: “Proibido Ler de Gravata”.

Nos últimos 12 meses em Antologias dos melhores contos Brasileiros e outros sairam meia dúzia de contos do André Carneiro.
.
Fontes:
E-mail enviado pelo André Carneiro.

Origenes Lessa (1903 - 1986)

Orígenes Lessa nasceu em Lençóis Paulista, a 12 de julho de 1903.
- Colaborou e trabalhou em diversos veículos de comunicação, tendo feito sua estréia nos jornaizinhos escolares, com 12 ou 13 anos.
- Tentou, sem continuidade, diversos cursos superiores. Ingressou como tradutor no Departamento de Propaganda da General Motors, que teria grande influência na sua vida profissional: tornar-se-ia um dos publicitários de maior renome do País.
- Tomou parte ativa na Revolução Constitucionalista em 1932.
- Em 42, fixou-se em Nova York trabalhando no Coordinator of Inter-American Affairs, tendo sido redator da NBC em programas irradiados para o Brasil.
- Regressou ao Rio de Janeiro em meados de 43. Escritor, com uma obra bastante extensa, publicou, entre outros: Rua do Sal (Prêmio Carmen Dolores Barbosa — romance); O Escritor proibido (contos); Garçon, Garçonette, Garçonnière (menção honrosa da Academia Brasileira de Letras); O Feijão e o Sonho (romance — Prêmio António de Alcântara Machado, 15 edições com mais de 200.000 exemplares vendidos); 9 Mulheres (contos — Prêmio Fernando Chinaglia); O Evangelho de Lázaro (romance — Prêmio Luíza Cláudia de Souza do Pen Club do Brasil, 1972); e Beco da Fome.
- Incursionou pela literatura infanto-juvenil com muito sucesso, publicando oito ou dez volumes, um dos quais, Memórias de um Cabo de Vassoura, bateu a vendagem de O Feijão e o Sonho. Seus contos têm sido traduzidos para o inglês, espanhol, romeno, tcheco, alemão, árabe, hebraico, e várias vezes radiofonizados, não só no Brasil, mas também na Polônia.
- Foi eleito em 9 de julho de 1981 para a Cadeira n. 10 da Academia Brasileira de Letras, na sucessão de Osvaldo Orico. Casado com Elsie Lessa, jornalista, é pai do escritor Ivan Lessa.
- Faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 13 de julho de 1986.

Fonte:
http://www.releituras.com/olessa_calu.asp

Adriana Maria Toniolo Jacon (As várias faces da escritura lessiana)

Em um de seus artigos, Josué Montello, falando de Orígenes Lessa em virtude de seu octogésimo aniversário, pergunta-se:

"Que fez Orígenes Lessa para as nossas palmas em redor de sua mesa, e para a festa da Casa de Rui Barbosa? Fez livros. Ou melhor, romances, contos, novelas, livros para crianças, artigos de jornal..."

Porém, mais do que palmas, talvez falte ao escritor Orígenes Lessa ter suas obras conhecidas e estudadas de maneira mais aprofundada, pois como se lê no artigo de Josué Montello, foi significativa a contribuição de seu trabalho para a cultura e para a literatura brasileira. O autor que nasceu em Lençóis Paulista em doze de julho de 1903 e faleceu em treze de julho de 1986, aos oitenta e três anos ainda se encontrava em plena atividade profissional. Sua obra chama a atenção pela variedade e qualidade de material. Tanto nas narrativas curtas, quanto nos romances, o autor elabora o enredo de forma a obter um resultado que revela expressão e estilo singulares, ou seja, uma linguagem do cotidiano, bem próxima do leitor, o que permitiu que suas obras fossem bem recebidas pela crítica e pelo público que com elas tiveram contato.

Henrique L. Alves, em texto escrito para a revista da Academia Brasileira de Letras, reproduziu uma opinião de Genolino Amado sobre o estilo de Orígenes Lessa, afirmando:

Orígenes Lessa - segundo Genolino Amado - é um desses olhares excepcionais que sabem surpreender a novidade das coisas ou dos homens vulgares e o humanismo oculto nos temas aparentemente mais sisudos.

Ao desenvolver esse aspecto da obra lessiana, Henrique L. Alves, acrescenta uma pista de leitura sobre a linguagem de Orígenes Lessa:

Escritor que sabe manejar situações irônicas com verve descontraída. Procura flagrantizar o cotidiano, diversificando temas, catalisando frases fáceis, sem preciosismos ou busca de palavras inacessíveis ao leitor.

Pedro Bloch, leitor, amigo e estudioso das obras de Orígenes Lessa, ressaltou a importância da escritura de Lessa pelo fato de ser constituída pela observação de acontecimentos triviais que acabam por encontrar ressonância em quem a lê. Afirma o crítico: "Orígenes Lessa conduz sua narrativa com aquela fluidez, segurança e originalidade que lhe são próprias." E, completando, ressalta as características da escritura de Orígenes Lessa:

...quando, ao voltar do México, alguém lhe perguntou se tinha falado com Cantinflas ou Diego Rivera, ouviu: ‘Não, mas falei com mendigos, gente de rua, prostitutas.’ Seus episódios de viagem estão repletos de seres humildes, de vida colorida. É por isso que seus contos traduzem tanta humanidade, pulso tomado na alma de cada um.

Dr. Marcos Almir Madeira, em uma homenagem póstuma a Orígenes Lessa, ratificou todas as opiniões anteriores sobre o estilo de Orígenes Lessa, ao afirmar:

...escritor em cuja obra personalíssima o contista, o romancista, o novelista puseram singularidades de temática e de forma, de conteúdo e expressão - um estilo de narrador diferente.

No entanto, o fato de as obras de Orígenes Lessa serem fruto de uma observação do cotidiano não quer dizer que sejam desprovidas de talento artístico. Muito pelo contrário, as obras lessianas demonstram a capacidade do autor em criar histórias que sejam compreendidas pelo público, o que não significa pobreza de linguagem. O feijão e o sonho, por exemplo, foi reelaborado em várias edições.

Quanto à capacidade artística de Orígenes Lessa, Olney Borges Pinto de Souza do Jornal Correio da Manhã, afirmou:

... o notável contista logrou compor toda uma série de narrações, em que seu talento, jogando com uma riqueza extraordinária de cenário, esparzindo humor ou colhendo uma funda movimentação anímica, lança toda uma galeria de tipos humanos a realizar-se plenamente no centro de cada história, com todos os atributos de legitimidade artística.

A primeira obra, editada em 1929, o livro de contos O escritor proibido , foi muito bem recebida por Medeiros e Albuquerque, João Ribeiro, Menotti del Picchia e Jorge Amado, este último, admirador do trabalho de Lessa, como fica claro na reportagem de Bella Jozef publicada no Jornal O Estado de São Paulo , em 31 de julho de 1983 ao reproduzir as palavras do autor de Os Velhos Marinheiros:"Sempre fui de opinião que Orígenes Lessa é um dos maiores contistas de toda a nossa história."

No entanto, confirmando a afirmação de Peri Augusto sobre Orígenes Lessa:"Difícil asseverar, entre o romancista e o contista, qual o melhor.", torna-se difícil dizer em qual gênero literário Lessa se sobressai, pois tanto nos contos quanto nos romances, sabe tecer seus textos que estabelecem um diálogo com o leitor, favorecendo a recepção e a apreciação de suas obras, sejam elas histórias curtas ou não.

Dos trabalhos realizados por Orígenes Lessa e citados por Josué Montello no Jornal do Brasil, como vimos na citação do início deste capítulo, não foi mencionado o trabalho como publicitário, iniciado em 1928. A essa faceta desconhecida, acrescenta-se a de tradutor, no período em que trabalhou na General Motors (1931). Outro trabalho realizado por Lessa foi o de padrinho da Biblioteca Municipal de Lençóis Paulista, que leva o seu nome, para a qual solicitou a doação de obras de escritores renomados, com autógrafos e dedicatórias. O acervo dessas obras chega, atualmente, a oitenta e quatro mil volumes, sendo que a cidade possui por volta de sessenta mil habitantes, ou seja, mais de um livro per capita, o que fez com que Arnaldo Niskier em discurso na Academia Brasileira de Letras afirmasse:

Qual é a singularidade de Lençóis Paulista? É a cidade que tem mais livros do que habitantes. Seguramente dos quatro mil e duzentos municípios brasileiros, Lençóis Paulista deve ser exemplo único da cidade pequena, no interior paulista, em que os livros são mais numerosos do que os habitantes. Isso revela o interesse cultural que transbordou da simples presença de Orígenes Lessa para ser uma preocupação dominante em toda sua população.

Orígenes Lessa também obteve consagração como escritor de literatura infantil e infanto-juvenil, tendo-se iniciado nesta vertente quando solicitado para palestrar sobre O feijão e o sonho em uma escola para crianças. Acabrunhou-se com isso, pois, para ele, este romance era uma leitura para adultos como fica claro na reportagem do Jornal Correio do Povo:

Orígenes Lessa confessou que sempre escreveu para as crianças com extremo temor e mesmo pavor, pois sente imensa responsabilidade, tendo fugido muito a um encontro cara a cara com elas desde que soube que elas liam seu livro O feijão e o sonho.

Assim escreveu, em menos de quinze dias, Memórias de um cabo de vassoura , editado em 1971 e, a partir daí, devido ao sucesso com o público infantil, não parou mais de escrever para crianças, sem deixar, porém, de escrever para adultos.

Em entrevista concedida a Edilberto Coutinho, Orígenes Lessa, questionado quanto ao seu relacionamento com as crianças, declarou sentir-se mais jovem, depois de ter-se dedicado à literatura infantil e juvenil.

Fantástico. Incrível...Quando cheguei aos 60 anos, pensei que estava velho. Aos 70, me sentia mais jovem. Acho que devo isto, em parte, aos meus livros infantis e juvenis. Com eles, parece que liberto o menino que há em mim.

Contudo, sua maior preocupação foi com o leitor. Nos textos de literatura infanto-juvenil Lessa demonstrou para com o leitor a mesma preocupação já existente na sua literatura para adultos, pois tinha consciência da estreita relação entre autor, obra e leitor, o que pode ser lido nas declarações feitas ao Jornal Estado de Minas:

Escrever para crianças é muito gostoso se a gente acerta o gosto delas, mas é uma barra muito pesada, pois seremos os responsáveis pelas suas futuras preferências. Daqui a algum tempo seremos os culpados ou não pela receptividade da leitura pelos adolescentes.

O sucesso com o público infanto-juvenil fez com que Maria Antonieta Antunes Cunha estabelecesse uma comparação entre Orígenes Lessa e Monteiro Lobato, ressaltando as características que os aproximam, como a comicidade e o humor, elementos que prendem a atenção das crianças, além de certo olhar crítico diante da vida. Essa criticidade se apresenta de forma lúdica e atinge um alto nível de comunicação com o público infantil. Tanto Lobato quanto Lessa tinham a qualidade de exímios contadores de histórias, porém cada um possuía, apesar das semelhanças, as suas peculiaridades estilísticas, ainda que ambos produzissem obras voltadas para a esperança, revelando fé em um mundo melhor. Maria Antonieta Antunes Cunha observou em seu estudo semelhanças entre os dois autores, o que a levou a tecer o seguinte comentário: "Na literatura infantil é legítimo sucessor de Monteiro Lobato. As mesmas emoções a criança experimenta na leitura de um e de outro."

A afirmação de Maria Antonieta Antunes Cunha leva-nos à questão das leituras de Orígenes Lessa e da presença lobatiana em suas obras. E, assim como ela, outros estudiosos também viram nas obras de Orígenes Lessa certa similaridade com as de Lobato. Francisco de Assis Barbosa afirmou:

Seguis a mesma trilha, senhor Orígenes Lessa, sem pretender o lugar deixado por Lobato. Vossa mensagem é bem diferente, sem agressividade, espírito polêmico ou depreciativo.

Ainda sobre a comparação de Lessa com Lobato, a reportagem do jornal Tudo é Diálogo de Porto Alegre, também apontou semelhanças entre os dois autores, no que diz respeito ao interesse do leitor pela obra.

Como autor de obras destinadas ao público infanto-juvenil, Orígenes Lessa talvez só possa ser nivelado em nosso país, com seu co-estaduano, o genial Monteiro Lobato. De fato, cada um com suas características fundamentais no modo de realizar a narrativa, ambos conseguiram que suas criações, suas histórias e suas personagens prendessem a atenção dos leitores não só dos jovens, mas igualmente dos adultos.

O interesse do público permitiu que se comparasse Orígenes Lessa a Monteiro Lobato. Porém, em entrevista cedida a Jorge de Aquino Filho para o especial da Revista Manchete o autor de O feijão e o sonho afirmou ser apenas um admirador de Monteiro Lobato, não tendo a pretensão de substituí-lo:

-É possível observar na sua obra características que o aproximam de Monteiro Lobato, como a presença da fantasia, da aventura, do humor e da comicidade, além da preocupação em não dissociar no seu texto o entretenimento da reflexão sobre a vida humana. Você se considera o legítimo sucessor de Monteiro Lobato?

- Nunca tive essa pretensão. Admirei Monteiro Lobato a vida inteira. Foi o autor da minha adolescência. Foi um escritor extraordinário. Não tenho capacidade para substituí-lo(...) Monteiro Lobato tem o lugar dele, que é dele. Há em mim uma grande admiração destituída de qualquer pretensão em substituí-lo.

Outra face de Orígenes Lessa revela o estudioso da Literatura de Cordel, pois chegou a publicar estudos sobre o assunto, e obteve, com essas publicações, repercussão internacional.

Depois de ter participado da Revolução de 1932, e ter sido preso, experiência que resgata em Não há de ser nada em 1932 e Ilha Grande em 1933, foi para os Estados Unidos, onde morou, no início da década de quarenta. Lá trabalhou, em 1942, como coordenador de assuntos internacionais e foi repórter e entrevistador de Charles Chaplin, Sinclair Lewis, Langston Hughes, John Steinbeck, figuras que colaboraram para a formação de sua bagagem intelectual.

Toda essa vivência com escritores estrangeiros, o aprendizado e o contato com outras leituras foram importantes. Ainda nos Estados Unidos, escreveu reportagens sobre brasileiros que lá viviam, surgindo então OK América em 1945, obra jornalística que revela em sua escritura, o autor de literatura. Na biografia de Noel Nutels, trabalho jornalístico e crítico sobre a vida deste médico nascido em Odessa na Rússia e que se preocupava com a saúde dos índios, intitulada O índio cor-de-rosa e editada em 1978,Orígenes Lessa pôde revelar sua habilidade artística .

Os primeiros exercícios de linguagem têm origem na infância, pois ainda criança tentava desvendar o mundo através da linguagem, queria aprender a ler para escrever com carvão nos muros e calçadas, como faziam as outras crianças. Quando, enfim, começou a aprender a ler, isso aos seis anos, ensaiou escrever alguns textos, parte deles copiados, mesmo sem entendê-los, do livro de grego do pai que era professor e pastor protestante. Depois disso, escreveu o que para ele foi o primeiro livro, conforme se lê na entrevista concedida a Cláudia Miranda e Luiz Raul Machado: "Foi em São Luís que escrevi meu primeiro ‘livro’, aos seis anos: A bola."

Após ser alfabetizado, tido como mau aluno, era, no entanto, um leitor ávido. Lia tudo. Na adolescência, leu mais de duzentos livros e foi nesta época que, na escola, por volta dos seus treze e quatorze anos, tendo aguçada a sua criticidade por meio de tantas leituras, fundou o jornal escolar O beija-flor , que se tornou o primeiro degrau na sua escalada como jornalista, chegando a trabalhar, mais tarde, no Jornal Folha da Manhã em 1931.

Fica, então, a questão: quem nasceu primeiro, o escritor de literatura ou o jornalista?

Se respondermos a esta pergunta, tendo como ponto de vista o profissional, responderemos que foi o jornalista. Mas, se analisarmos do ponto de vista da linguagem de seus textos e das conclusões a que chegamos após ler as entrevistas, diremos que foi o escritor que, desde criança, já ensaiava as primeiras letras.

Em estudo sobre o autor, Reynaldo Valinho Alvarez chega a sugerir que o tripé jornalista-publicitário-escritor forma o eixo da obra de Orígenes Lessa:

Como jornalista e publicitário, Orígenes Lessa tinha o sentido da comunicação objetiva, direta, imediata, precisa bastante para a clareza da mensagem, mas ambígua na isca dos subentendidos com que a publicidade atrai e fisga o consumidor.

Nas entrevistas concedidas por Orígenes Lessa, pode-se observar o desejo inato de ser escritor, ainda que para isso tivesse que fazer o percurso do jornalismo e da publicidade.

- Sempre fui muito vadio, mas sempre quis ser escritor. No começo creio não ter manifestado a menor vocação. Meu irmão Vicente, sim (somos seis irmãos). Mais de um deles tinha muito mais jeito para as letras do que eu. Mas, mesmo pequeno, eu tinha a mania da coisa. Queria aquilo e sabia que queria.

Desenvolvendo suas habilidades escriturais enquanto jornalista e publicitário, Orígenes Lessa ia em busca do sonho: tornar-se escritor. Não chegou a formar-se em curso superior, mas pode ser chamado, como o foi Machado de Assis, de autodidata, pois desde muito jovem, a exemplo do pai, cultivava o hábito da leitura de clássicos da literatura, da filosofia e , embora se tivesse afastado da religião na década de vinte, era um estudioso da Bíblia.

Os temas abordados na obra lessiana contemplam os dramas humanos vividos no cotidiano, com ênfase ao drama do homem como vítima do contexto social e econômico que aniquila o sentimento e a sensibilidade. Orígenes Lessa trabalha esses dramas num misto de tristeza e alegria, uma sátira dos sofrimentos beirando a ironia. Fantasia, humor, amor, misturados ao cômico e à tristeza, tudo que compõe o vasto universo interior do homem está presente na obra de Orígenes Lessa, levando-nos a refletir criticamente sobre situações diversas: tudo pode ser pensado e repensado pelo leitor que encontra nos textos a constância dos erros e acertos do homem, vítima das paixões individuais e dos problemas existentes na sociedade, levando-nos a reflexões sobre questões universais, filosóficas, sobre o ser e o estar no mundo. Esse enfoque foi analisado por Mário da Silva Brito em um de seus textos sobre Orígenes Lessa:

Às pesquisas formais, Orígenes Lessa tem preferido, ao longo de sua carreira de narrador, a preocupação do conteúdo ficcional. Em vez da aparência pretende a essência. Daí interessá-lo, na prática literária, o drama humano, pequeno ou grande, profundo ou intenso, extenso ou raso.
Homero Senna, ao tecer comentários sobre os contos de Orígenes Lessa, compara-o a Wilde e Maupassant, afirmando:

Como são os contos de Orígenes Lessa? São maliciosos, irônicos, mordazes, não raro pungentes. Sabendo, como leitor de Wilde, que a vida, freqüentemente, é mais inverossímil do que a arte, inspira-se em fatos e figuras do viver cotidiano, procurando fazer de suas histórias, como queria o mestre Maupassant, uma fatia da vida.

Embora, segundo Mário da Silva Brito, Lessa tenha-se utilizado, também, do aprendizado de técnicas narrativas de autores como Luigi Pirandello, Franz Kafka, Gilbert Keith Chesterton e James Joyce, no entanto, aproveitou-se dessas "raízes inspiradoras" para compor "a seiva de sua própria e pessoal dicção literária."

Orígenes Lessa foi criador de seu próprio estilo e, embora não tenha desprezado todas as propostas literárias surgidas entre os idealizadores da Semana de Arte Moderna, como o uso de uma linguagem extremamente brasileira, sem resquícios e ornamentos eruditos, manteve-se fiel às suas próprias tendências. A escritura de Orígenes Lessa conduz o leitor mansamente como as águas calmas de um rio conduzem seu fluxo à grandiosidade do mar.

Artur Eduardo Benavides, em artigo publicado na Revista Leitura, refere-se ao defeito da imitação, isentando Orígenes Lessa de tal defeito. Segundo seu ponto de vista, o autor é:

...simples e liberto de qualquer defeito de imitação de mestres ou de escolas, qualidades essas que se manifestam em todas as suas páginas, algumas das quais podem ser consideradas verdadeiramente antológicas.

A dramaticidade da vida humana proposta nas obras de Lessa, assim como de obras de autores do seu repertório de leitura tem, como pano de fundo, a realidade urbana, com personagens e ambientes bem próximos da vida real, figuras do dia-a-dia, quase sempre de uma vida moderna que são flagrados e trabalhados pelo autor. Orígenes Lessa retirava do mundo as mais diversas situações e transformava-as em arte, algo que só alguém que viveu às voltas com a escritura, num trabalho de dedicação para com as letras, e tem uma base intelectual como a sua, pode fazer.

Francisco de Assis Barbosa, escritor e membro da Academia, no discurso de posse de Orígenes Lessa na Academia Brasileira de Letras, parece ter fechado a questão em relação ao trabalho do jornalista que teria contribuído para a produção literária de Orígenes Lessa, ao afirmar: "Viestes do jornal, uma universidade."

Sem dúvida, o estilo literário de Orígenes Lessa tem muita relação com o estilo jornalístico e publicitário de que herdou a construção instantânea de frases de impacto, juntamente com a experiência na escolha e uso de determinadas palavras, adquirindo versatilidade e agilidade.

Orígenes Lessa aprendeu no jornalismo e na publicidade a ser conciso, sem por isso dizer pouco. Exercitou o trabalho de lapidador, retirando o excesso que pode sobrepujar em textos de autores inexperientes, conferindo à sua literatura características difíceis de serem alcançadas: precisão e arte, com o emprego certo das palavras certas, um trabalho de artesão da escrita, o que fica patente na reelaboração de seus textos. As peculiaridades inerentes à profissão de jornalista e propagandista, Lessa conseguiu transportar para a de ficcionista. O compromisso de escrever por encomenda, como escrever para uma determinada campanha, para uma data também determinada, foi mantido na construção da ficção, como Lessa mesmo ressaltou: "...eu gosto mais daquilo que estou fazendo naquele momento. Ou então, escrever por encomenda..."

Escrever por encomenda não desmerece quem domina a técnica da linguagem. Nos textos jornalísticos, publicitários e literários, a linguagem se faz de maneira natural, consolidando beleza e utilidade, aumentando o poder de comunicação.

Mas Orígenes Lessa sabia que, assim como na publicidade, na ficção, apenas o uso da palavra não garante público. Na propaganda, ele dizia ser necessário não só argumentar, mas criar no anúncio a necessidade no comprador pelo produto anunciado.

Na literatura, o processo de cativar o leitor não se dá de forma diferente. Suas obras vão ao encontro dos anseios e necessidades de cada leitor, possibilitando a fruição da obra, num jogo de perguntas e respostas que envolvem o escritor e o leitor na dialética do texto. A literatura de Lessa é, para usar um termo de Mário da Silva Brito, escritor e amigo pessoal de Orígenes Lessa, "de comunhão" e, porque não dizer, de diálogo com seu leitor que se vê envolvido pela ficção. Um diálogo velado, de forma indireta, que ocorre por meio do diálogo das próprias personagens do qual o leitor participa vivendo, encarnando seus problemas, tomando partido, envolvendo-se e opinando.

O diálogo, uma constante nas obras de Lessa, que fez render-lhe o título de "mestre do entrecho e do diálogo", embora usado demasiadamente, não afeta a qualidade dos textos, pois o autor sabe dosá-lo com equilíbrio às situações, às tramas e às personagens, tornando favorável a adaptação de seus textos para o teatro, cinema e novelas de rádio e T.V. como aconteceu com Noite sem homem em 1968, O feijão e o sonho em 1976, e Juca Jaboti, Dona Leôncia e a super-onça em 1976 e fez render a Orígenes Lessa uma crítica favorável, quanto ao enredo de suas obras, pelo crítico Hugo Barcellos:"Machado de Assis, Orígenes Lessa e outros contistas brasileiros forneceram, afinal, aquilo que estava faltando ao cinema pátrio - enredo."

O uso do diálogo confere às personagens lessianas uma vivacidade, dá alma aos seres ficcionais e constitui um elemento importante para o entendimento do processo criador de Orígenes Lessa e da recepção de sua obra pelo leitor.

Os artifícios utilizados por Lessa na criação de suas obras sempre foram frutos de sua preocupação com o leitor, seja ele adulto, infantil ou juvenil.

Orígenes Lessa merece toda a atenção dos educadores e dos pais com toda a segurança da maior seriedade e do maior carinho para com a formação conveniente de seus pequenos patrícios.

Daí a busca de uma perfeição, almejada por ele, quando fez mais de quinhentas alterações da quarta para a quinta edição de O feijão e o sonho e a humildade em dizer que não seria leitor de suas próprias obras. Isso faz parte de um comprometimento com o leitor e de uma visão perfeccionista de quem é capaz de afirmar:

Não gostei de nenhuma de minhas obras, não gostei porque sempre procuro escrever outras em busca da perfeição.

E ainda:

Gostaria de encontrar tempo para fazer uma grande varredura em tudo que escrevi.

O feijão e o sonho conta com mais de sessenta edições e teve repercussão nacional e internacional e, mesmo assim, Orígenes Lessa foi capaz de dizer que com esse romance teve sorte. Segundo Orígenes Lessa, O feijão e o sonho foi escrito em três semanas num escritório de propaganda, o que fez sofrer, nas novas edições, cortes e correções: "Cortar é mais importante e difícil do que acrescentar. Da quarta para quinta edição fiz mais de 500 modificações."

As vendas do romance aumentaram muito após a apresentação da novela pela T.V. Rede Globo, conforme a comprovação pelo bilhete enviado em dez de outubro de 1976 por Orígenes Lessa ao amigo Clóvis Pacheco que o publicou, mais tarde, no jornal de São Carlos de nome A Tribuna: "Clóvis, com a novela na T.V. Globo, saíram cinco edições sucessivas num total de 88.000 exemplares. Valeu o risco... Um abraço do Orígenes."

Contudo, a obra já havia sido lida por muitas pessoas e editadas várias vezes, antes mesmo do sucesso na televisão, o que mostra que não foi a obra televisiva que favoreceu a literatura, uma vez que esta já havia conquistado seu espaço por si própria, pois uma obra sem sucesso não seria adaptada para a televisão. Ao ser adaptado, o romance sofreu muitas alterações e Lessa nem quis ler o script antes de ir ao ar. Apenas acompanhou a reação do público que consumiu, só das Edições de Ouro, mais de 80 mil exemplares.

No ano de 1988, O feijão e o sonho foi traduzido para o Braille. Porém, com tanto sucesso obtido pelo romance, Orígenes Lessa se viu descontente com sua repercussão no meio infanto-juvenil com o qual, talvez, o enredo se identificasse, o que favoreceu a leitura, mas a contragosto de Lessa que via no romance uma leitura destinada a um público mais amadurecido, fugindo por muito tempo de um encontro direto com as crianças e adolescentes, quando convidado para dar palestras nas escolas.

Lessa afirmava não ser O feijão e o sonho sua obra preferida, embora fosse a do público. Dizia gostar mais de Rua do Sol editado em 1955,que trazia lembranças de sua infância e de Evangelho de Lázaro editado em 1972,que tinha muita relação com suas crises existenciais. Mas, sendo este o primeiro romance do autor, ficou evidente, seguindo o sucesso com seus livros de contos O escritor proibido editado em 1929 e Passa-três editado em 1935, a qualidade de romancista e "senhor da carpintaria do romance", devido à habilidade no trato com as palavras e na construção de textos, o que lhe conferiu valor como escritor de literatura.

Por todo este vasto trabalho no campo da escrita, Orígenes Lessa foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras no dia nove de julho de 1981 e, para encerrarmos estes apontamentos, voltemos às palavras de Josué Montello que termina seu artigo sobre Orígenes Lessa dizendo:

Todos nós temos duas datas para o ponto de partida de nossa biografia: a do dia em que nos puseram no berço, aos gritos, e a do dia em que tomamos conhecimento da vida e do mundo. A primeira é a que efetivamente conta para a banalidade usual de nossa cronologia; a segunda, mais importante para o ser humano, é aquela em que nos inserimos na vida consciente, começando a recolher as impressões lúcidas e indeléveis que nos acompanharão por toda a existência e com as quais criamos o nosso próprio mundo.

A data de partida da biografia de Orígenes Lessa, além da primeira, a de seu nascimento, aquela que os anos se encarregaram de levar, é, também, a de sua primeira escrita, que começou aos seis anos com o seu provável primeiro livro, A bola, momento a partir do qual Lessa foi despertado para a arte literária e não parou mais, despertando em nós, seus leitores, o prazer pela literatura, pela arte e a consciência da vida.

Fonte:
Adriana Maria Toniolo Jacon. trecho de Dissertação de Mestrado apresentada à Unesp-Assis, em julho de 1999, ORÍGENES LESSA: A LETRA E O SONHO. Disponível em
http://www.lencoispaulista.sp.gov.br/bmol/CURIOSIDADES/_AS_VARIAS_FACES_DA_ESCRITURA_/_as_varias_faces_da_escritura_.html

Origenes Lessa (O Natal de tia Calu)

Tia Calu deixara a porta semi-aberta, para não correr a todo instante a receber os rapazes. Maria Augusta, sozinha, não daria conta do recado. Eram salgadinhos de toda sorte, delicados pastéis, empadinhas apimentadas, camarões recheados, canapés de salmão importado, caprichosas invenções do seu reconhecido gênio culinário. Entre os presentes recebidos àquela manhã havia dois vidros grandes de caviar. Seriam a surpresa da noite. Cortava, amassava, picava, colocava, com requintes de decoradora, trabalho amoroso e sutil, em que punha a alma. Naquela noite todos viriam! Pela primeira vez todos estariam em sua casa, na doce festa de Natal.
Soaram passos na sala.

— Vai ver quem chegou, Maria Augusta.

A preta espiou à porta, viu um jovem oficial, de malinha na mão, contemplando risonho a grande árvore, fulgurante de luzes.

— Tem um que eu não conheço. Está fardado.

— Fardado?

Seu rosto subitamente se fechou. Tia Calu, em suas festas, não gostava que eles viessem de uniforme e todos sabiam disso. O uniforme era a lembrança viva do perigo permanente, da ceifadora implacável.

Tia Calu, em silêncio, lavou as mãos à torneira, enxugou-as lentamente.

— Você, meu filho?

— Pois é, tia Calu — disse o rapaz, alegre, ligeiramente constrangido. — Tenho que estar no campo às cinco horas. Vou para Assunção. Posso dormir aqui, depois da festa?

— Claro, seu pirata! — disse tia Calu abrindo-lhe os braços, beijando-o na testa.

E já brincalhona:

— Mas quem não trabalha não come e não dorme. Venha ajudar na cozinha, que está tudo atrasado e às dez horas a Maria Augusta vai-se embora. Tem festa também...

O capitão deixou a malinha a um canto, sacou fora o dólmã, arregaçou as mangas da camisa.

— Assim que eu gosto. Soldado enfrenta o inimigo em qualquer terreno. E se adapta... A capacidade de adaptação é tudo...

— Eh! Eh! Eh! — riu Maria Augusta, feliz. Ela gostava daquela rapaziada porque topava tudo, não tinha orgulho. Onde é que já se viu um capitão cheio de medalhas botar pastel na frigideira e ficar todo salpicado de gordura?

— Eh! Eh! Eh! Essa Dona Calu tem cada idéia! Mas já havia rumor novo na sala.

— Ô de casa! Pode-se entrar?

— Rua! — disse tia Calu aparecendo, os claros dentes abertos num sorriso. — Rua! Isto aqui não é casa da sogra! — Rua! Rua!

Estava com as mãos cheias de pacotinhos, que os dois lhe passavam.

— Vocês são umas crianças! Pra que essa bobagem?

E colocou, numa alegria de mãe feliz, os pacotes junto ao embrulhinho que o capitão auxiliar de cozinha depositara timidamente sobre um móvel.

— Vocês são impossíveis!

— Sabem que hoje não vai faltar ninguém?

— Não diga! — exclamou surpreso um dos recém-chegados.

— Não falta ninguém! O Guilherme chegou hoje do Pará. Já me telefonou. O Oto conseguiu habeas-corpus da família. Prometeu que vem. E até o Mesquita. Ele me telegrafou de Bagé. Conseguiu licença. Deve estar chegando...

E já dona-de-casa:

— Vão se servindo. Uísque tem à bessa.

— Uísque? Com os preços que andam por aí?

— Ora! Pra que é que a tia Calu trabalha? Não é pra vocês? Sobe o preço do uísque eu subo o preço das aulas, ora essa! Eu acompanho a marcha do câmbio...

Voltaram-se os três. Dois braços apontavam na porta, cada um terminando por uma garrafa de uísque. Tia Calu sorriu de novo:

— E depois, nem era preciso. Eu trabalho com um corpo incansável de contrabandistas... Eles não falham nunca!

Abraços e gargalhadas festejaram a aparição dos braços e garrafas.

— Gelo é só buscar lá dentro!

Voltou à cozinha:

— Vai fazer sala, capitão de bobagem. Seus companheiros estão chegando. Aqui você serve só para atrapalhar.

Vozes e exclamações festivas animavam a sala. Duas horas da manhã!

— Um uísque só — pediu o oficial que chegara primeiro.

— Guaraná, capitão. Hoje você é donzela. Também, pra que é que foi aceitar serviço para a manhã de Natal? É guaraná, se quiser. Você tem de voar muitas horas. E não amola, não, que daqui a pouco eu te ponho na cama...

Tia Calu se mirava amorosa nos doze rapazes. Estavam todos! Não faltava nenhum. Uma juventude magnífica, alguns prematuramente graves, alguns melancólicos, a família longe. O Heitor, um dos bravos da campanha na Itália, fumava muito sério, o copo de uísque na mão esquerda. No mundo, só tinha tia Calu. O único irmão perecera num desastre, dois anos antes, nas margens do Guaporé. Subira num avião obsoleto, que ele sabia sem condições de vôo. Dois outros recordavam uma viagem por Mato Grosso, em que o avião caíra. Haviam escapado por milagre. O mecânico desaparecera.

Tia Calu contemplava a sua macacada, como sempre dizia.

— Vocês não podiam respeitar um pouco esta casa? Isto é família, tá bem?

— Ora, tia Calu, não chacoalha — sorna um rapaz moreno, de sobrancelhas espessas.

Estava a contar ao amigo a história de uma garota conhecida em Anápolis.

E continuando, já alto de uísque:

— Você não faz idéia! Nunca vi criatura mais clara, cabelos mais louros! Mas louro natural, entendeu? Uma coisa maravilhosa! Custei a acreditar que fosse goiana. A gente sempre acha que goiano tem de ser índio...

— O Lauro era goiano e parecia alemão — disse tia Calu.

Ouve um silêncio pesado. Rápido. Lauro caíra seis meses antes. O motor falhara. O avião fora descoberto uma semana depois, quatro homens carbonizados em plena floresta. Tia Calu sentiu um arrepio. Ouvia ainda as três descargas em funeral, diante da cripta dos aviadores, no São João Batista. Vinte e oito anos.

(— Estou ficando velho, tia Calu. Parece que vou ficar pra semente...)

Tia Calu ergueu o copo de uísque à altura dos lábios. Sorria para o Capitão Eduardo:

— Está com inveja, hem, seu boboca? É pra você não aceitar vôo em véspera de Natal, tá bem?

O rapaz fez um muxoxo infantil:

— Ora, tia Calu.

— É pra aprender, entendeu? Olha, prova esses camarões... Trabalho de mestre... Duvido que você já tenha comido coisa melhor... Alguém cantarolava na cozinha, procurando mais gelo.

— Pára com essa taquara rachada — ordenou uma voz, ligeiramente engrolada.

Tia Calu se ergueu, dirigiu-se para o interior. Voz tinha o Meira. Estava agora em Pistóia. Tia Calu mordeu os lábios. Meira deixara um filhinho, tinha agora oito anos.

(— O que é que você vai ser quando homem, Vadinho?

— Ué! Aviador, tia Calu!)

Ela já estava na cozinha, um amontoado de bandejas, pratos, panelas, garrafas.

— Puxa! Você não presta nem pra tirar gelo, Simão. Nunca vi cara mais sem jeito! Escorre um pouco de água em cima, que eles se desprendem .

O rapaz olhou-a, atarantado. Tia Calu aproximou-se, em voz baixa:

— Você não tinha arranjado uma colocação no Ministério?

— Falhou, tia Calu.

Ela ficou séria, olhando a testa larga, os olhos ingênuos do moço. Fazendo viagens longas, voando em ferro velho, a mulher esperando bebê. Era o mais imprudente de todos. Na escola, até os instrutores tinham medo de subir com ele. Fora várias vezes censurado, até punido. Adorava os malabarismos no espaço. Ficava possuído, ao subir, de verdadeiro delírio. Dos malucos da turma, dos tidos como malucos, era o único sobrevivente. Por que não tivera ainda a sorte de cair e ficar inutilizado para os vôos, arranjando sinecura numa base qualquer, pegando uma promoção, livrando-a daquela agonia permanente?

— Vai ser menino ou menina?

— Pelo jeito, menina.

— Graças a Deus — disse tia Calu, arrumando uns canapés.

Voltou para a sala com a bandeja. O grupo cantava, agora, um dos sambas do pré-carnaval. Tia Calu parou à porta, contente de ver aquela sadia despreocupação. Eram o seu orgulho, aqueles rapazes. Caíam como pássaros atingidos em bando, por invisíveis caçadores. Tinham filhos, mãe, esposa, irmãs, gente que vivia em terra, sempre de coração pequenino. Voavam sempre, os nervos de aço, a vontade inquebrantável. Pela primeira vez os tinha todos ao mesmo tempo em casa. Rapazes de escol, exemplares raros de coragem, de saúde física, de saúde moral. Era como se fossem filhos. Nunca mãe nenhuma tivera tantos filhos, tantos filhos tão jovens, tão fortes, tão belos. Pena que não estivessem todos como Carlos. Ah! antes estivessem! E o coração apertado, pousou os olhos enternecidos em Carlos. Somente Carlos não cantava. Levava aos lábios um pastel de camarão. Uma entrada profunda no frontal, que lhe deformava a cabeça, garantia que Carlos não voaria mais.

Olhou o relógio de pulso.

— Duas e meia, capitão! Berço! Chega de guaraná! Vai dormir! Quer que eu te chame a que horas?

O rapaz, que cantava também, quis protestar.

— Não tem choro não. Vai dizendo boa-noite, dá um beijo na mamãe, vai dormir.

O capitão se ergueu, obedeceu docilmente. Pouco depois, um a um, o grupo se dispersava.

— Bom Natal, tia Calu.

Quando se viu só — o capitão ressonava. Maria Augusta saíra às dez horas, o apartamento em silêncio — tia Calu olhou a sala. Parecia um campo de batalha. Precisava pôr em ordem tudo aquilo, senão Maria Augusta resmungaria o dia inteiro. Começou a reunir os copos numa bandeja. Treze copos, doze de uísque, um dela, e o de guaraná, do capitão que ressonava. Aproximou-se, na mão a bandeja, ficou a observar-lhe o sono vagamente atormentado. A seguir, voltou e, a bandeja sempre na mão, atulhada de copos, enfrentou o retrato do filho na parede principal da sala, medalhas e citações ao lado. Durante toda a noite passara despercebido. Havia como que um acordo tácito. Tia Calu agora encarava o filho. Depois, os olhos enxutos, agitou a cabeça:

— E pensar que vocês eram setenta e oito, tenente, setenta e oito!

Fonte:
Balbino, Homem de Mar, Livraria José Olympio Editora — Rio de Janeiro, 1960, e extraído do livro Entrevero, publicação da L&PM Editores — Porto Alegre, especialmente para a MPM Propaganda, pág. 264. Disponível em http://www.releituras.com/olessa_calu.asp

domingo, 30 de março de 2008

Osman Lins (Lisbela e o Prisioneiro)

Osman Lins participou da vida literária e cultural do Brasil entre 1955, quando publicou seu primeiro romance, O visitante, até sua morte, a 08 de julho de 1978. Autor de uma obra vasta e variada (contos, romances, novelas, peças de teatro, livros de viagem, poesias, casos especiais para televisão, ensaios e artigos), este pernambucano de Vitória de Santo Antão sempre deixou claro que a menina de seus olhos era a ficção narrativa.

De fato, contos e romances foram objeto de extrema dedicação, imune a concessões que garantiriam a Osman Lins sucesso de público, mas que o desviariam de seu projeto literário, direcionado pela idéia de encontrar uma forma específica para dar conta da visão de mundo a que chegara em sua maturidade. Visão expressa literariamente a partir de Nove, novena (1966).

Além do romance inaugural já mencionado, antecederam este livro composto por nove narrativas, Os gestos (contos1957) e O fiel e a pedra (romance, 1961). Todos gravitam em torno da narrativa tradicional e demonstram um feliz domínio de fusão de técnica e estilo, regado por frases com ritmos adequados, por palavras exatas, por acertadas e belas imagens.

Os mesmos tipos de personagens de seus primeiros livros (velhos, doentes, crianças, adolescentes, mulheres em situações prosaicas da vida, em geral, em solo nordestino) se mantêm ao longo de sua obra, num registro lírico de literatura introspectiva, marcada pela solidão, mas também impregnada de problemática de ordem social, às vezes com sutileza, outras, com tintas mais fortes. Nove, novena e os romances Avalovara (1973) e Rainha dos Cárceres da Grécia (1976) diferenciam-se, no entanto, de seus primeiros livros pela quebra da ilusão da realidade com a rarefação e a dispersão do enredo, por novos processos de composição da personagem e por alta dose de reflexão sobre o romance, o que lhes permite representarem um “momento de decisiva modernidade”, na Literatura Brasileira dos anos de 1970. A fidelidade de Osman Lins à busca de uma expressão própria na ficção, decorrente de uma recusa à cômoda retomada do já conquistado e de uma fé inabalável no poder criador da palavra, foi reconhecida e admirada pela crítica brasileira e estrangeira, com raras exceções. No entanto, ele é um autor ainda pouco difundido. Por isso é oportuna esta publicação de Lisbela e o prisioneiro.

O reaparecimento desta obra é especial porque permite ao público entrar em contato com o texto, no registro dramático, de um autor meticuloso no uso da palavra e na arquitetura da peça. Além disso, revela um aspecto decisivo de sua personalidade literária e cultural no sentido de procurar dar o melhor de si, mesmo na esfera que, a rigor, não é a de sua preferência. Consciente e cioso de seu ofício com a palavra, tudo o que dispõe para seus leitores é fruto de um período de preparação.

Para escrever Lisbela e o prisioneiro, Osman Lins não demorou dez anos de exercício constante até atingir a configuração harmoniosa como ocorrera com seu livro de contos Os gestos. Ao contrário, iniciou-a em 25 de julho e a concluiu a 9 de setembro de 1960, tendo se dedicado às modificações que lhe pareceram necessárias nos dias restantes do referido mês, conforme seu depoimento, publicado no programa distribuído por ocasião da primeira temporada de encenação da peça pela Companhia Tonia, Celi, Autran (CTCA) no Teatro Mesbla, no Rio de Janeiro, em 1961.

No entanto, Lisbela e o prisioneiro é fruto de um meticuloso trabalho preparatório, pois Osman Lins já tinha obtido menção honrosa no I Concurso Nacional da Cia. Toni-Celi-Autran, com a peça, O vale sem sol, em 1958. Insatisfeito com sua incursão como dramaturgo, considerando-a deficiente, matricula-se, nesse mesmo ano, no Curso de Dramaturgia da Escola de Belas Artes de Recife, onde vem a ser aluno de Joel Pontes, de Hermilo Borba Filho e de Ariano Suassuna. Numa entrevista, Osman Lins mencionará este último como professor da disciplina de play-writer, que teria exercido uma possível influência sobre ele, no que diz respeito às normas de composição de Lisbela e o prisioneiro.

Ao concluir o curso, em 1959, escreve um drama em três atos, Os animais enjaulados. No ano anterior, solicitado por uma de suas filhas, compusera num só dia um auto de Natal, O cão do segundo livro, em dois atos. Depois deste paciente exercício, assumido com humildade (Osman Lins já tinha publicado dois livros de ficção, reconhecidos e premiados, quando se tornou aluno no Curso de Dramaturgia), o obstinado escritor pernambucano obteve o primeiro lugar de comédia no 2 Concurso Nacional da Cia. Tônia , Celi , Autran.

Outras peças serão ainda escritas por Osman Lins: Guerra do cansa-cavalo (prêmio Anchieta, 1965; encenada em 1971, na inauguração do Teatro Municipal de Santo André); peça infantil, Capa Verde e o Natal (prêmio Narizinho, da Comissão Estadual de Teatro, 1965); Mistério das figuras de barro (dirigida pelo autor e encenada pelos alunos da Faculdade de Marília, em 1974); Santa, automóvel e soldado (coleção de três peças, publicadas em 1975); Romance dos soldados de Herodes (encenada no Rio Grande do Sul e em São Paulo, em 1977).

Lisbela e o prisioneiro foi sua primeira peça a ser encenada, com retumbante sucesso. E com certeza é a que até hoje teve mais alcance de público. Se muito da fama de uma peça deve ser creditado ao trabalho de direção, ao desempenho dos atores, à cenografia, ao figurino, à iluminação, ao som; outro tanto pelo menos também deve ser atribuído ao texto do dramaturgo.

No caso específico desta peça, adensa-se a função do texto porque se inscreve no ideário do teatro tradicional, sob a pena de um autor obsessivo com a arquitetura da estória e com a atenção à palavra. Desse modo, trata-se de uma peça que também pode ser lida com prazer tanto pelo leitor que se contenta apenas com o divertimento como por aquele mais exigente, que busca, além da fruição, incursões em diferentes níveis de significação que a obra lhe oferece.

Lisbela e o prisioneiro é uma comédia de caracteres, embora as ações desenvolvidas na cadeia de Vitória de Santo Antão desempenhem uma função considerável na sua estrutura tradicional, com exposição, desenvolvimento, falso clímax, clímax, desfecho de situações, vivenciadas por personagens nordestinas e muito bem amarradas.

Lisbela, filha do Tenente Guedes, delegado da Cadeia de Santo Antão, forma par amoroso com o funâmbulo Leléu, um Don Juan nordestino. Esse casal anticonvencional assume riscos em nome de sentimentos intensos. Lisbela foge com Leléu, no dia de seu casamento com Dr. Noêmio, advogado vegetariano, por isso mesmo personagem destoante do meio em que se encontra, prestando-se a alvo de muitas tiradas cômicas. Ao marido, doutor, representante do estabelecido e da segurança, a jovem prefere Leléu, o artista de circo preso, com tudo o que este significa de risco e subversão dos valores vigentes em seu meio.

A peça é dominada pela presença de personagens masculinas. Além das já referidas, atuam na cadeia de Vitória de Santo Antão, Jaborandi, soldado e corneteiro, afeiçoado a fitas em série; Testa-Seca e Paraíba, outros presos; Juvenal, outro soldado; Heliodoro, cabo de destacamento, casado, já com uma certa idade, apaixonado por uma jovem, o qual chega a forjar um falso casamento para possui-la; Tãozinho, vendedor ambulante de pássaros, que rouba a mulher de Raimundinho; Frederico, assassino profissional, à procura de Leléu, que deflorou sua irmã Inaura,e que por ele é salvo, sem saber, de um ataque de boi; Lapiau, artista de circo, amigo de Leléu, que participa da farsa de casamento de Heliodoro com a jovem; Citonho, o velho carcereiro, esperto e dinâmico, cúmplice, no final, de Lisbela e de Leléu e mais dois soldados, personagens mudas.

Lisbela, a única filha do tenente Guedes, é também a única mulher que atua em cena; as outras são apenas mencionadas nos diálogos. E atua com força, porque enfrenta a autoridade patriarcal, representada pelo pai e pelo noivo, ao tomar iniciativa para colaborar com a fuga de Leléu da prisão e a se dispor a abandonar o marido no dia de seu casamento para aventurar-se na vida com o equilibrista. Como se não bastasse isso, é ela quem livra Leléu da morte, ao atirar, aparentemente, em Frederico, o assassino profissional, quando este lhe apontava a arma, pouco antes do desfecho da peça. Parece e julga-se tornar-se uma criminosa, colocando o pai numa situação incômoda. Para livrar a própria filha da cadeia, este usará expedientes comprometedores para a lisura de uma autoridade, com o fito de embaralhar ou ocultar a autoria do suposto crime, pois no desfecho da peça revela-se que Frederico morreu de morte natural. Por suas ações, Lisbela não apenas renega os mesquinhos valores, mas também expõe as fraturas da sociedade patriarcal.

O gênero comédia aliado ao perfil anticonvencional da dupla protagonista foi muito bem escolhido por Osman Lins para pôr em cena, no contexto de uma região de valentias, de sentimentos exaltados, de honra e vinganças, um crime inesperado, porque aparentemente cometido pela jovem Lisbela. Inesperado, mas plenamente justificado, se tivesse ocorrido.

Atitudes que causam surpresa também compõem Leléu, que nada tem de prisioneiro em termos dos valores estabelecidos, garantidores de acomodada segurança, mas negadores da “flama da vida”. Volúvel nos amores, experimentador de várias profissões, portador de diferentes identidades, afeiçoado a riscos e deslocamentos, o circence Leléu, que tanto quer e tanto faz para sair das grades da cadeia de Vitória de Santo Antão, não hesita a ela retornar, só para ficar próximo de Lisbela, quando fracassa o plano de fuga dos dois. O paradoxal retorno à prisão é mais um movimento desta personagem para a libertação das amarras de valores que lhe são menores do que os impulsos da vida. Ele vive sempre com fervor seu minuto de aflição ou de alegria, como bem acentuou o próprio Osman Lins, ao apontar para o efeito contaminador de sua ”flama”, no programa da primeira temporada desta comédia: Leléu acende, mesmo na cadeia, as apagadas chamas de Lisbela e desperta em Citonho, o velho carcereiro, o herói escondido.

Aliás, essa personagem é uma daquelas que mais se destacam na peça e atraem a atenção e a conivência do leitor, porque de velho caduco e fraco, propício a gozações dos mais jovens e fortes, ele não tem nada. Com maestria, Osman Lins desvela na personagem octogenária, enfraquecida, em tese, pela faixa etária e pela categoria da função exercida, a mais desqualificada do contexto da peça, sua perspicácia, lucidez, força e coragem. O velho solitário considerado caduco pelo tenente Guedes é o que, de todos os seus submissos, mais o enfrenta: toma partido de Lisbela e de Leléu, em prol do amor libertário, com todos os seus riscos, e age com esperteza para proteger a jovem da suposta autoria de seu crime. Enfim, do velho também emanam vida e movimento.

Essa poética do avesso contribui ainda para relativizar o lado antipático do tenente Guedes, representante da polícia. Apesar de suas atitudes condenáveis, como os desmandos, a prepotência, a conivência com o crime, o delegado mostra-se humano quase todo o tempo. Por causa de sua função, não consegue se desvencilhar do “encarceramento profissional” e se vê obrigado a tomar atitudes contrárias a seu temperamento. Eis um dos motivos pelos quais está sempre a afirmar que “a autoridade é um fardo”. Bordão com efeitos cômicos, de acordo com as situações nas quais é proferida. No fundo, o tenente Guedes é mais prisioneiro de sua profissão que todos seus subalternos.

Dentre estes, merece menção especial o soldado e corneteiro, Jaborandi, que vive fugindo do local de trabalho, para assistir fitas em série no cinematógrafo, interrompendo seus momentos de fantasia, na hora que tem de tocar a corneta. Em meio a idas e vindas, ele vive entre o sonho e a realidade, mas uma realidade na qual sua função, tocar corneta, é desprovida de sentido conseqüente, a não ser o de acentuar a sua falta de sentido naquele contexto: para quê tocar corneta numa prisão? No mínimo, tais cenas provocam o riso, cumprindo sua função na comédia, e abrem brechas para o próprio Jaborandi e outras personagens estabelecerem ligação entre as estruturas das fitas em série (filmes de bandido e mocinho) e os episódios da comédia, além de interiorizarem na própria peça alusões às relações entre a vida e a fantasia.

Por mais despretensioso que tenha sido Osman Lins na composição simples e direta desta comédia, quando se encontrava ainda na fase da busca de caminhos próprios para sua ficção e para seu teatro, como ele próprio afirmou em entrevista concedida em 1961, o fato é que Lisbela e o prisioneiro é uma peça de um autor seguro, engenhoso e talentoso, que tem muito ainda a dizer em nossos dias, desde o que se refere aos desmandos e à conivência da polícia com o crime até questões de ordem existencial.

O regionalismo de Lisbela e o prisioneiro, fundado no aproveitamento de incidentes testemunhados por amigos, por familiares e por Osman Lins bem como apoiado na transposição de ditados, expressões populares e dísticos encontrados em pára-choques de caminhões, é transfigurado sob a pena de seu autor. Matéria e linguagem re-elaboradas tecem esta peça, regada por uma equilibrada dosagem de leveza, comicidade e ternura, e assentada em valores libertários em prol da vida, o que lhe abre as portas para outros tempos e outros espaços.

O Filme
Lançado no Brasil em 2003, por Natasha Filmes / Fox Film do Brasil / Globo Filmes / Estúdios Mega. Direção: Guel Arraes. Elenco: Selton Mello (Leléu); Débora Falabella (Lisbela); Virginia Cavendish (Inaura); Bruno Garcia (Douglas); Tadeu Mello (Cabo Citonho); André Mattos (Tenente Guedes); Lívia Falcão (Francisquinha); Marco Nanini (Frederico Evandro)

Premiações
Ganhou 2 prêmios no Grande Prêmio Cinema Brasil, nas seguintes categorias: Melhor Ator (Selton Mello) e Melhor Trilha Sonora. Recebeu ainda outras 10 indicações, nas seguintes categorias: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator Coadjuvante (Bruno Garcia e Tadeu Mello), Melhor Atriz Coadjuvante (Virginia Cavendish), Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Figurino, Melhor Maquiagem, Melhor Montagem e Melhor Som.

Curiosidades
- Lisbela e o Prisioneiro é o primeiro longa-metragem do diretor Guel Arraes feito especificamente para o cinema. Seus filmes anteriores, O Auto da Compadecida e Caramuru - A Invenção do Brasil, eram adaptações de miniséries exibidas pela Rede Globo.

- Antes de levar Lisbela e o Prisioneiro aos cinemas, Guel Arraes adaptou o texto de Osman Lins para um especial de 50 minutos exibido pela Rede Globo e ainda uma peça teatral.

- Foi o 7º filme mais visto em 2003 no Brasil, tendo levado 3.146.461 pessoas aos cinemas.

Fontes:
Sandra Nitrini. Planeta, junho de 2003
http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=resumos/docs/lisbela