terça-feira, 1 de julho de 2008

Eça de Queiroz (Memórias de uma Forca)

Foi por um modo sobrenatural que eu tive conhecimento deste papel, onde uma pobre forca apodrecida e negra dizia alguma coisa da sua história. Esta forca intentava escrever as suas trágicas Memórias. Deviam ser profundos documentos sobre a vida. Árvore, ninguém sabia tão bem o mistério da natureza; forca, ninguém conhecia melhor o homem. Nenhum tão espontâneo e verdadeiro como o homem que se torce na ponta de uma corda - a não ser aquele que lhe carrega sobre os ombros! Infelizmente, a pobre forca apodreceu e morreu.

Entre os apontamentos que deixou, os menos completos são estes que copio - resumo das suas dores, vaga aparência de gritos instintivos. Pudesse ela ter escrito a sua vida complexa, cheia de sangue e de melancolia! É tempo de sabermos, enfim, qual é a opinião que a vasta natureza, montes, árvores e águas, fazem do homem imperceptível. Talvez este sentimento me leve ainda algum dia a publicar papéis que guardo avaramente, e que são as Memórias de um Átomo e os Apontamentos de Viagem de Uma Raiz de Cipreste.

Diz assim o fragmento que eu copio - e que é simplesmente o prólogo das Memórias:

- Sou duma antiga família de carvalhos, raça austera e forte - que já na Antiguidade deixava cair, dos seus ramos, pensamentos para Platão. Era uma família hospitaleira e histórica: dela tinham saído navios para a derrota tenebrosa das índias, contos de lanças para os alucinados das Cruzadas, e vigas para os tetos simples e perfumados que abrigaram Savonarola, Espinosa e Lutero. Meu pai, esquecido das altas tradições sonoras e da sua heráldica vegetal, teve uma vida inerte, material e profana. Não respeitava as nobres morais antigas, nem a ideal tradição religiosa, nem os deveres da história. Era uma árvore materialista. Tinha sido pervertida pelos enciclopedistas da vegetação. Não tinha fé, nem alma, nem Deus! Tinha a religião do Sol, da seiva e da água. Era o grande libertino da floresta pensativa. No Verão, enquanto sentia a fermentação violenta das seivas, cantava movendo-se ao sol, acolhia os grandes concertos de pássaros boêmios, cuspia a chuva sobre o povo curvado e humilde das ervas e das plantas e, de noite, enlaçado pelas heras lascivas, ressonava sob o silêncio sideral. Quando vinha o Inverno, com a passividade animal dum mendigo, erguia, para a impassível ironia do azul, os seus braços magros e suplicantes!

- Por isso nós os seus filhos, não fomos felizes na vida vegetal. Um dos meus irmãos foi levado para ser tablado de palhaços: ramo contemplativo e romântico ia, todas as noites, ser pisado pela chufa, pelo escárnio, pela farsa e pela fome! O outro ramo, cheio de vida, de sol, de poeira, áspero solitário da vida, lutador dos ventos e das neves, forte e trabalhador, foi arrancado dentre nós, para ir ser tábua de esquife! - Eu, o mais lastimável, vim a ser forca!

- Desde pequeno fui triste e compassivo. Tinha grandes intimidades na floresta. Eu só queria o bem, o riso, a dilatação salutar das fibras e das almas. O orvalho de que a noite me banhava, atirava-o a umas pobres violetas, que viviam por debaixo de nós, doces raparigas lutuosas, melancolias condensadas e vivas da grande alma silenciosa da vegetação. Agasalhava todos os pássaros na véspera dos temporais. Era eu quem asilava a chuva. Ela vinha, com os cabelos esguedelhados, perseguida, mordida, retalhada pelo vento! Eu abria-lhe as ramagens e as folhas, e escondia-a ali, ao calor da seiva. O vento passava, confundido e imbecil. Então a pobre chuva, que o via longe, assobiando lascivo, deixava-se escorregar silenciosamente pelo tronco, gota por gota, para o vento a não perceber; e ia, de rastos, por entre a erva, acolher-se à vasta mãe Água! Tive por esse tempo uma amizade com um rouxinol, que vinha conversar comigo durante as longas horas consteladas do silêncio. O pobre rouxinol tinha uma pena de amor! Tinha vivido num país distante, onde os noivados têm mais moles preguiças: lá se enamorara: comigo chorava em suspiros líricos. E tão mística pena era que me disseram que o triste, de dor e de desesperança, se deixara cair na água! Pobre rouxinol! Ninguém tão amante, tão viúvo e tão casto!

- Eu queria proteger todos os que vivem. E quando as raparigas do campo vinham para junto de mim chorar, eu erguia sempre as minhas ramagens, como dedos, para apontar à pobre alma aflita de lágrimas todos os caminhos do Céu!

- Nunca mais! Nunca mais, verde mocidade distante!

- Enfim, eu tinha de entrar na vida da realidade. Um dia, um daqueles homens metálicos que fazem o tráfico da vegetação, veio arrancar-me à árvore. Não sabia eu o que me queriam. Deitaram-me sobre um carro e, ao cair da noite, os bois começaram a caminhar, enquanto ao lado um homem cantava no silêncio da noite. Eu ia ferido e desfalecido. Via as estrelas com os seus olhares lancinantes e frios. Sentia-me separar da grande floresta. Ouvia o rumor gemente, indefinido e arrastado das árvores. Eram vozes amigas que me chamavam!

- Por cima de mim voavam aves imensas. Eu sentia-me desfalecer, num torpor vegetal, como se estivesse sendo dissipado na passividade das coisas. Adormeci. Ao amanhecer, íamos entrando numa cidade. As janelas olhavam-me com olhos ensangüentados e cheios dum sol irado. Eu só conhecia as cidades pelas histórias que delas contavam as andorinhas, nos serões sonoros da espessura. Mas como ia deitado e amarrado com cordas, apenas via os fumos e um ar opaco. Ouvia o rumor áspero e desafinado, onde havia soluços, risos, bocejos, e mais o surdo roçar da lama, e o tinido sombrio dos metais. Eu sentia enfim o cheiro mortal do homem! Fui arremessado para um pátio infecto, onde não havia o azul e o ar. Comecei então a compreender que uma grande imundície cobre a alma do homem, porque ele se esconde tanto das vistas do Sol!

- Uns homens vieram, que me deram desprezivelmente com os pés. Eu estava num estado de torpor e de materialidade, que nem sentia as saudades da pátria vegetal. Ao outro dia, um homem veio para mim e deu-me golpes de machado. Não senti mais nada. Quando voltei a mim, ia outra vez amarrado no carro, e pela noite um homem aguilhoava os bois, cantando. Senti lentamente renascer a consciência e a vitalidade. Parecia-me que eu estava transformado numa outra vida orgânica. Não sentia a magnética fermentação da seiva, a energia vital dos filamentos e a superfície viva das cascas. Em redor do carro iam outros homens, a pé. Sob a brancura silenciosa e compassiva da Lua, tive uma saudade infinita dos campos, do cheiro dos fenos, das aves, de toda a grande alma vivificadora de Deus, que se move entre a ramagem. Eu sentia que ia para uma vida real, de serviço e de trabalho. Mas qual? Tinha ouvido falar das árvores, que vão ser lenha, aquecem e criam, e, tomando entre a convivência do homem a nostalgia de Deus, lutam com os seus braços de chamas para se desprender da terra: essas dissipam-se na augusta transfiguração do fumo, vão ser nuvens, ter a intimidade das estrelas e do azul, viver na serenidade branca e altiva dos imortais, e sentir os passos de Deus!

- Eu tinha ouvido falar das que vão ser vigas da casa do homem: essas, felizes e privilegiadas, sentem na penumbra amorosa a doce força dos beijos e dos risos; são amadas, vestidas, lavadas; encostam-se a elas os corpos dolorosos dos Cristos, são os pedestais da paixão humana, têm a alegria imensa e orgulhosa dos que protegem; e risos das crianças, ais namorados, confidências, suspiros, elegias da voz, tudo o que lhes faz lembrar as murmurações da água, o estremecimento das folhas, as cantigas dos ventos - toda essa graça escorre sobre elas, que já gozaram a luz da matéria, como uma imensa e bondosa luz da alma.

- Eu tinha ouvido falar também das árvores de bom destino, que vão ser mastro de navio, sentir o cheiro da maresia e ouvir as legendas do temporal, viajar, lutar, viver, levadas pelas águas, através do infinito, entre surpresas radiosas - como almas arrancadas do corpo que fazem pela primeira vez a viagem do Céu!

- Que iria eu ser?... - Chegamos. Tive então a visão real do meu destino. Eu ia ser forca!

- Fiquei inerte, dissolvida na aflição. Ergueram-me. Deixaram-me só, tenebrosa, num campo. Tinha, enfim, entrado na realidade pungente da vida. O meu destino era matar. Os homens, cujas mãos andam sempre cheias de cadeias, de cordas e de pregos, tinham vindo aos carvalhos austeros buscar um cúmplice! Eu ia ser a eterna companheira das agonias. Presos a mim, iam balouçar-se os cadáveres, como outrora as verdes ramagens orvalhadas!

- Eu ia dar esses negros frutos: os mortos!

- O meu orvalho seria de sangue. Ia escutar para sempre, eu a companheira dos pássaros, doces tenores errantes, as agonias soluçantes, os gemidos de sufocação! As almas ao partir, rasgar-se-iam nos meus pregos. Eu, a árvore do silêncio e do mistério religioso, eu, cheia de augusta alegria orvalhada e dos salmos sonoros da vida, eu, que Deus conhecia por boa consoladora, havia de mostrar-me às nuvens, ao vento, aos meus antigos camaradas puros e justos, eu, a árvore viva dos montes, de intimidade com a podridão, de camaradagem com o carrasco, sustentando alegremente um cadáver pelo pescoço, para os corvos o esfarraparem!

- E isto ia ser! Fiquei hirta e impassível como nas nossas florestas os lobos, quando se sentem morrer.

- Era a aflição. Eu via ao longe a cidade coberta de névoa.

- Veio o sol. Em roda de mim começou a juntar-se o povo. Depois, através dum desfalecimento, senti o ruído de músicas tristes, o rumor pesado dos batalhões, e os cantos dolentes dos padres. Entre dois círios, vinha um homem lívido. Então, confusamente, como nas aparências inconscientes do sonho, senti um estremecimento, uma grande vibração elétrica, depois a melodia monstruosa e arrastada do canto católico dos mortos!

- Voltou-me a consciência.

- Estava só. O povo dispersava-se e descia para os povoados. Ninguém! A voz dos padres descia lentamente, como a última água duma maré. Era o fim da tarde. Vi. Vi livremente. Vi! Dependurado de mim, hirto, esguio, com a cabeça caída e deslocada, estava o enforcado! Arrepiei-me!

- Eu sentia o frio e a lenta ascensão da podridão. Ia ficar ali, de noite, só, naquele descampado sinistro, tendo nos braços aquele cadáver! Ninguém!

- O sol ia-se, o sol puro. Onde estava a alma daquele cadáver? Tinha passado já? Tinha-se dissipado na luz, nos vapores, nas vibrações? Eu sentia os passos tristes da noite, que vinha. O vento empurrava o cadáver, a corda rangia.

- Eu tremia, numa febre vegetal, dilacerante e silenciosa. Não podia ficar ali só. O vento levar-me-ia, atirando-me, aos pedaços, para a antiga pátria das folhas. Não. O vento era brando: quase somente a respiração da sombra! Tinha vindo então o tempo em que a grande natureza, a natureza religiosa, era abandonada às feras humanas? Os carvalhos já não eram, pois, uma alma? Podiam, com justiça, vir o machado e as cordas buscar os ramos criados pela seiva, pela água e pelo sol, trabalho suado da natureza, forma resplandecente da intenção de Deus, e levá-los para as impiedades, para os tablados da forca onde apodrecem as almas, para os esquifes onde apodrecem os corpos? E as ramagens puras, que foram testemunhas das religiões, já não serviam senão para executar as penalidades humanas? Serviam só para sustentar as cordas, onde os saltimbancos bailam, e os condenados se torcem? Não podia ser.

- Pesava sobre a natureza uma fatalidade infame. As almas dos mortos, que sabem o segredo e compreendem a vegetação, achariam grotesco que as árvores, depois de terem sido colocadas por Deus na floresta com os braços estendidos, para abençoar a terra e a água, fossem arrastadas para as cidades, e obrigadas, pelo homem, a estender o braço da forca para abençoar os carrascos!

- E depois de sustentarem os ramos de verdura que são os fios misteriosos, mergulhados no azul, por onde Deus prende a terra - fossem sustentar as cordas da forca, que são as fitas infames, por onde o homem se prende à podridão! Não! Se as raízes dos ciprestes contassem isto em casa dos mortos - faziam estalar de riso a sepultura!

- Assim falava eu na solidão. A noite vinha lenta e fatal. O cadáver balouçava-se ao vento. Comecei a sentir palpitações de asas. Voavam sombras por cima de mim. Eram os corvos. Pousaram. Eu sentia o roçar das suas penas imundas; afiavam os bicos no meu corpo; penduravam-se, ruidosos, cravando-me as garras.

- Um pousou no cadáver e pôs-se a roer-lhe a face! Solucei dentro de mim. Pedi a Deus que me apodrecesse subitamente. Era uma árvore das florestas a quem os ventos falavam! Servia agora para afiar os bicos dos corvos, e para que os homens dependurassem de mim os cadáveres, como vestidos velhos de carne, esfarrapados! Oh! Meu Deus! - soluçava eu ainda - eu não quero ser relíquia de tortura: eu alimentava, não quero aniquilar: era a amiga do semeador, não quero ser a aliada do coveiro! Eu não posso e não sei ser a Justiça. A vegetação tem uma augusta ignorância: a ignorância do sol, do orvalho e dos astros. Os bons, os angélicos, os maus são os mesmos corpos invioláveis, para a grande natureza sublime e compassiva. Ó meu Deus, liberta-me deste mal humano tão aguçado e tão grande, que se traspassa a si, atravessa de lado a lado a natureza, e ainda te vai ferir, a ti, no Céu! Oh! Deus, o céu azul, todas as manhãs, me dava os orvalhos, o calor fecundo, a beleza imaterial e fluida da brancura, a transfiguração pela luz, toda a bondade, toda a graça, toda a saúde: - não queiras que, em compensação, eu lhe mostre, amanhã, ao seu primeiro olhar, este cadáver esfarrapado!

- Mas Deus dormia, entre os seus paraísos de luz. Vivi três anos nestas angústias.

- Enforquei um homem - um pensador, um político, filho do Bem e da Verdade, alma formosa cheia das formas do ideal, combatente da Luz. Foi vencido, foi enforcado.

- Enforquei um homem que tinha amado uma mulher e tinha fugido com ela. O seu crime era o amor, que Platão chama mistério, e Jesus chamou lei. O código puniu a fatalidade magnética da atração das almas, e corrigiu Deus com a forca!

- Enforquei também um ladrão. Este homem era também operário. Tinha mulher, filhos, irmãos e mãe. No Inverno não teve trabalho, nem lume, nem pão. Tomado dum desespero nervoso, roubou. Foi enforcado ao Sol-posto. Os corvos não vieram. O corpo foi para a terra limpo, puro e são. Era um pobre corpo que tinha sucumbido por eu o apertar de mais, como a alma tinha sucumbido por Deus a alargar e a encher.

- Enforquei vinte. Os corvos conheciam-me. A natureza via a minha dor íntima; não me desprezou; o Sol alumiava-me com glorificação, as nuvens vinham arrastar por mim a sua mole nudez, o vento falava-me e contava a vida da floresta, que eu tinha deixado, a vegetação saudava-me com meigas inclinações da folhagem: Deus mandava-me o orvalho, frescura que prometia o perdão natural.

- Envelheci. Vieram as rugas escuras. A grande vegetação, que me sentia esfriar, mandou-me os seus vestidos de hera. Os corvos não voltaram: não voltaram os carrascos. Sentia em mim a antiga serenidade da natureza divina. As eflorescências, que tinham fugido de mim, deixando-me só no solo áspero, começaram a voltar, a nascer, em roda de mim, como amigas verdes e esperançosas. A natureza parecia consolar-me. Eu sentia chegar a podridão. Um dia de névoas e de ventos, deixei-me cair tristemente no chão, entre a relva e a umidade, e pus-me silenciosamente a morrer.

- Os musgos e as relvas cobriam-me, e eu comecei a sentir-me dissolver na matéria enorme, com uma doçura inefável.

- O corpo esfria-me: eu tenho a consciência da minha transformação lenta de podridão em terra. Vou, vou. Ó terra, adeus! Eu derramo-me já pelas raízes. Os átomos fogem para toda a vasta natureza, para a luz, para a verdura. Mal ouço o rumor humano. Ó antiga Cíbele, eu vou escorrer na circulação material do teu corpo! Vejo ainda indistintamente a aparência humana, como uma confusão de idéias, de desejos, de desalentos, entre os quais passam, diafanamente, bailando, cadáveres! Mal te vejo, ó mal humano! No meio da vasta felicidade difusa do azul, tu és, apenas, como um fio de sangue! As eflorescências, como vidas esfomeadas, começam a pastar-me! Não é verdade que ainda lá em baixo, no poente, os abutres fazem o inventário do corpo humano? Ó matéria, absorve-me! Adeus! Para nunca mais, terra infame e augusta! Eu vejo já os astros correrem como lágrimas pela face do céu. Quem chora assim? Eu sinto-me desfeita na vida formidável da terra! Ó mundo escuro, de lama e de ouro, que és um astro no infinito - adeus! adeus! - deixo-te herdeiro da minha corda podre!-

(Gazeta de Portugal, 23 de Dezembro de 1867)

Fonte:
http://www.gargantadaserpente.com

Belvedere (O vinho branco)

Sentado na cadeira que pertenceu a várias gerações da família, faço o inventário de minha vida. O que fiz com ela? Percorri os caminhos que deveria, ou preferi atalhos? Aos noventa anos, já não tenho como modificar meus traçados, equívocos, rezas tortas...

Sozinho, miro o firmamento. O ser humano envelhece, se encarquilha, mas, se não houver a mão do homem, os cenários da natureza nunca se desfiguram.

Gosto do vinho branco seco. Traz-me paz à alma.

Meus filhos já se foram. Triste foi a morte da mais novinha, Mariazinha da Conceição, que a tuberculose levou. Coloquei nela uma roupa branca com véu cobrindo o rosto, e um terço entre as mãos. Nunca mais consegui sorrir como antes. Meu riso ficou preso.

A mulher envelheceu antes do tempo, foi murchando, sequer notou a ida dos filhos. Sofri a dor da morte dos cinco, enquanto ela ia se encolhendo na cama, me deixando só. Uma tarde, sorriu , olhou para o teto suspirando e morreu. Nem senti falta, porque, na verdade, ela já havia morrido há trinta anos.

Fiquei neste casarão sozinho. Não gosto de estranhos, nem preciso que cuidem de mim, pois tenho pernas e braços. Monto a cavalo, cozinho, lavo e passo. Empregado é pra cuidar dos bichos , da terra e do trabalho pesado da casa.

Cheguei a pensar numa nova companheira, mas desisti. Nasci pra ser só. Não gosto de vozerios, confusões, e as pessoas sempre trazem essas coisas.

Os vizinhos moram longe. De quando em vez, recebo visita. Trazem compotas de frutas, vinhos, pão de aveia. Não gosto de desfeitear, e aceito, mas digo que visita não pode passar de meia hora.

O que a vida ainda quer de mim?

Rasguei todas as fotos que havia por aqui. Quem ficaria com elas após minha morte? Não tenho herdeiros, os vizinhos acham pecado queimar lembranças, e as fotos, dizem que têm alma... Já doei todos os objetos de valor para a igreja. Meu maior apego é com aquele Sagrado Coração de Jesus em louça que tenho na parede da sala. Ainda não sei o que fazer com a casa. Tenho tempo pra pensar.

Leio muito bem, nenhum problema pra enxergar, nunca fui a médico, tenho uma saúde de ferro, mas um dia virá o sono eterno. Para onde vou? Como será a morte? Penso que acordarei no céu, vendo meus cinco filhos, mas por conta do que Conchita me fez, peço a Deus Todo Poderoso que me livre dela na outra vida. Que continue encolhida no além...

Vou tomar uma tacinha de vinho pra me ajudar a dormir. Os fantasmas às vezes aparecem e me tiram o sono. Nunca matei ninguém, apenas dei ordens. Cada cabra safado que encontrei na vida !.. Chegaram a matar dois de meus filhos. Dei idéia para queimarem eles. Sobrou só pó. Ri e joguei no charco. Quem sabe eles agora cismaram? Deixa isso pra lá! Tô velho demais pra me preocupar com esses assuntos.

Não sei por que ainda estou por aqui. Acordo, fico o dia todo olhando a paisagem, como, escuto rádio, ponho uns discos que já estão chiando de tão velhos... Que cansaço anda batendo em mim ao cair da tarde! Enrosco-me nas cobertas e vou dormir.

São cinco horas e ainda há sol. Vou tomar meu vinhozinho branco, ler meu livro de rezas, depois dormir na santa paz.

Nunca gostei de vinho tinto, por me lembrar sangue.

Que canseira me deu de repente, que sonolência estranha... Sinto frio, arrepios. Meus olhos se embaçam, pareço ver vultos, mas nunca tive problema de visão...

Estilhaços de garrafas e taças compunham o cenário final do inventário daquele homem.

Fonte:
http://www.gargantadaserpente.com/

Academia Niteroiense de Letras (História)

Em seu livro de memórias, O boi e o padre, Brígido Tinoco menciona a fundação da Academia Niteroiense de Letras em fins de 1931, o que de fato aconteceu, mas a instituição logo se desestruturou. Seus integrantes dispersaram-se, à medida que se foram formando, casando, assumindo funções e responsabilidades públicas, abrindo caminho em suas carreiras profissionais. A Academia Niteroiense de Letras que vingou foi fundada no dia 11 de junho de 1943, em sessão realizada na sala onde funcionava o gabinete do diretor do Departamento de Educação do Estado do Rio de Janeiro, Rubens Falcão, situado no edifício da Biblioteca do Estado, Praça da República, sem número.

Compareceram à reunião e foram considerados sócios fundadores: Antônio Santa Cruz Lima, Brígido Tinoco, Carlos Alberto Lúcio Bittencourt, Dulcydides de Toledo Piza, Francisco Martins de Almeida, Francisco Pimentel, Geraldo Montedônio Bezerra de Menezes, Guaracy de Albuquerque Souto Mayor, Heitor Luiz do Amaral Gurgel, Horácio Pacheco, Jefferson d’Ávila Júnior, José Pinto Nazareth, Lealdino Soares Alcântara, Macário de Lemos Picanço, Marcos Almir Madeira, Myrtharístides de Toledo Piza, Raul de Oliveira Rodrigues, Rubens Falcão, Ruy Buarque de Nazaré, Serafim Silva, Sylvio Lago e Walfredo Martins.

Durante o encontro, elegeu-se uma diretoria provisória, assim constituída: Myrtharístides de Toledo Piza – presidente, Francisco Pimentel – secretário, Lealdino Soares de Alcântara – tesoureiro.

Para elaborar o estatuto, designou-se uma comissão integrada por Myrtharístides de Toledo Piza, Raul de Oliveira Rodrigues e Guaracy de Albuquerque Souto Mayor. O projeto, após amplamente discutido, foi aprovado por unanimidade, em sessão realizada no dia 23 de junho de 1944. O registro em cartório deu-se somente no dia 10 de janeiro de 1957, no Quinto Ofício de Justiça da comarca de Niterói.

No dia 10 de julho de 1943, em reunião mais uma vez realizada no gabinete do diretor do Departamento de Educação, os que a ela compareceram confirmaram os nomes sugeridos pelo presidente Myrtharístides como patronímicos das quarenta cadeiras da Academia. Em assembléia-geral realizada no dia 19 de junho de 1973, 10 novas cadeiras seriam criadas.
Ainda no gabinete do diretor do Departamento de Educação, em 20 de julho de 1943, por aclamação, foi eleita e empossada a primeira diretoria da ANL, em substituição à provisória, composta dos seguintes nomes: Myrtharístides de Toledo Piza – presidente, Rubens Falcão – vice-presidente, Marcos Almir Madeira – secretário, Geraldo Montedônio Bezerra de Menezes – tesoureiro, Horácio Pacheco – bibliotecário.

A solenidade de instalação da Academia aconteceu no dia 27 de abril de 1944, no salão nobre do Instituto de Educação, atual Liceu Nilo Peçanha.

Eleito na assembléia geral realizada no dia 4 de setembro de 1957, o médico e homem de letras José de Araújo Júnior tomou posse na presidência da Academia Niteroiense de Letras no dia 22 de outubro do mesmo ano. Prometeu cuidadosa e dinâmica atuação. Com disposição e euforia, afirmou que sua gestão seria “uma verdadeira maratona intelectual”. Tudo indicava um período áureo para os destinos acadêmicos. Porém, o presidente adoeceu. Na esperança do restabelecimento de Araújo Júnior, no respeito à sua doença sem melhoras, a Academia manteve-se desativada por quinze anos. Em novembro de 1972, por iniciativa de Guaracy de Albuquerque Souto Mayor, a ANL foi reativada.

Se em sua primeira fase (1943/57) a Niteroiense sediou-se aqui e ali, depois de reativada não foi diferente. Após abrigar-se no Museu Antônio Parreiras, onde realizou suas reuniões por especial deferência do acadêmico Jefferson d’Ávila, diretor daquela casa de arte, com o consentimento do arcebispo D. Antônio de Almeida Moraes Júnior teve sede provisória em ampla sala do edifício D. João da Matha, até então utilizada pelo Departamento de Ensino Diocesano. Após o afastamento de D. Antônio, por enfermo, o administrador apostólico apresentou exigências para a continuidade da utilização das dependências da Cúria Diocesana, julgadas inatendíveis.
Houve, então, frustrada tentativa no sentido de a Academia abrigar-se no Palácio Nilo Peçanha, sede do governo estadual antes da fusão dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara.
Acolhida temporariamente numa sala do Serra Clube, iluminaram-se os horizontes da Niteroiense quando, por comodato, no final da gestão do prefeito Ronaldo Fabrício, em meados de 1977, pôde sediar-se num dos salões do prédio da antiga Câmara dos Vereadores, então administrado pela Fundação Atividades Culturais de Niterói (FAC). Com promessas sedutoras de melhores instalações, o que não se concretizou, a FAC transferiu a sede provisória da ANL para uma acanhada salinha na Rua Presidente Pedreira, levando-a, mais adiante, a desistir da ocupação e ao conseqüente desabrigo.

Em junho de 1979, quando ainda se comprimia no pequeno espaço que a FAC lhe destinara, a Academia encaminhou ofício ao então secretário de Justiça do estado do Rio de Janeiro, Erasmo Martins Pedro. Pleiteou, na oportunidade, instalar-se no sétimo andar do Edifício das Secretarias, onde havia área em disponibilidade. Não foi atendida em suas pretensões. Nova tentativa de obter abrigo no mencionado prédio ocorreu em setembro de 1982, dessa feita no espaço que a Associação Fluminense de Magistrados deixara vago. Arnaldo Niskier, à época secretário de Educação e Cultura, consultado, não se pronunciou. Por fim, em novembro de 1987, o apelo dirigiu-se ao governador Wellington Moreira Franco, mas também não foi atendido.
Enquanto batalhavam pela sede, os acadêmicos velaram-se de uma sala, onde realizaram suas reuniões de diretoria, bem como de um auditório, para suas sessões solenes, dependências cedidas sem qualquer ônus pelo Serviço Social do Comércio (SESC).

Em junho de 1988, ao comemorar quarenta e cinco anos, a ANL finalmente sediou-se, por comodato, no anexo do antigo prédio da Câmara Municipal de Niterói, Rua Visconde do Uruguai, 456, num ato de gestão do então prefeito Waldenir de Bragança.
A data de 27 de dezembro de 1973 é marcante na história da Academia Niteroiense de Letras. Registra o dia em que a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro decretou e o governador Raymundo Padilha sancionou a Lei 7.349, pela qual a instituição foi considerada de utilidade pública.

Na solenidade comemorativa do seu cinqüentenário, ocorrida no dia 11 de junho de 1993, no auditório Amaury Pereira Muniz, pertencente à Fundação Municipal de Educação de Niterói, a A.N.L. desfraldou pela primeira vez sua bandeira, criação do acadêmico Alberto Valle.
A ANL estrutura-se em quatro classes: membros efetivos (50), beneméritos, honorários e correspondentes.

Já presidiram a ANL: Myrtharístides de Toledo Piza, Geraldo Montedônio Bezerra de Menezes, Sylvio Lago, Luiz Palmier, Horácio Pacheco, Jorge Picanço Siqueira e Sávio Soares de Sousa. Desde janeiro de 2007, a presidência é exercida por Jorge Fernando Loretti. José de Araújo Júnior, eleito e empossado, não exerceu o mandato, por motivo de doença, ocasionando o grande recesso já mencionado.

Maiores informações sobre a ANL poderão se obtidas no livro Dança das cadeiras: história da Academia Niteroiense de Letras (LEITE NETTO, Wanderlino Teixeira. Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro, Niterói, 2001. 411p.)

Fonte:
Academia Niteroiense de Letras
http://www.academianiteroiense.org.br/

Concurso Literário Professor Horácio Pacheco (Academia Niteroiense de Letras)

Ocorreram 428 inscrições válidas: 64 crônicas, 168 contos e 196 poemas, provenientes de 20 Estados da Federação, do Distrito Federal e de Portugal.

Classificaram-se os seguintes escritores, que terão seus textos publicados em antologia a ser editada pela Imprensa Oficial do Rio de Janeiro:

Poesia:
· Ana Cristina Mendes Gomes (Rio de Janeiro / RJ): “O planeta colorido”.
· Anna Maria Avelino Ayres (Poços de Caldas / MG): “Lugarejo”.
· Antônio Rosalvo Accioly (Nova Friburgo / RJ): “A última esquina da rua sem nome”
· Isabel Florinda Furini (Curitiba / PR)): “Pesadelo”.
· Jafran José Bastos (Niterói / RJ): “Artesanato”.
· Janice Brito Mansur (Cabo Frio / RJ): Vinte e quatro tempos”.
· José Carlos do Nascimento (Fortaleza / CE): “Água”
· Lourdes Neves Cúrcio (Barra Mansa / RJ): “Versejando”.
· Pedro Ornellas (São Paulo / SP): “Recaída”.
· Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens (Niterói / RJ): Haicai.

Crônica:
· Agatha Dias Lemos (Poços de Caldas / MG): “A fila do banco”.
· Carlos José Rosa Moreira (Niterói / RJ): “Indignação e êxtase”.
· Cláudio Alves da Silva (São João do Mereti / RJ): “Zorro x Dom Quixote”.
· Coracy Teixeira Bessa (Salvador / BA): “O coletor de quimeras”.
· Deborah Goldemberg (São Paulo / SP): “Tarde no tanque”.
· Júlio César Dias Erthal (Niterói / RJ): “Coindidências”.
· Karla Leopoldino Oliveira Freitas (Iúna / ES): “Todos meus amores”.
· Raymundo Souza (Rio de Janeiro / RJ): “Resgatando o passado”.
· Ricardo Martins Freire (Aparecida / SP): “Marília Monroe”.
· Sérgio Martins Pandolfo (Belém / PA): “O presépio de Belém”.

Conto:
· Adriano Monte Alegre (Salvador / BA): “Da minha janela”.
· Alfeu de Melo Valença (Rio de Janeiro / RJ): “Três pedidos”.
· Antônio Augusto de Assis (Maringá / PR): “A enchente”.
· Celso Antônio Lopes da Silva (São Paulo / SP): “São Paulo / SP): “Rogai por nós”.
· Davi Menossi Gonzáles (São Caetano do Sul / SP): “Boneca”.
· Guilherme Ferreira de Toledo Lourenço (Juiz de Fora / MG): “Variações desconcertantes sobre a mulher impermeável”.
· Luiz Gilberto de Barros (Rio de Janeiro / RJ): “Urutu”.
· Maria das Dores Oliveira (Ipatinga / MG): “Conto das Irmãs Carmelitas”.
· Ricardo Rao (Bragança Paulista / SP): “Canto Mariano”.
· Vanda Fagundes Queiroz (Curitiba / PR): “Confidência”.

Fonte:
http://www.academianiteroiense.org.br/

Paraná em Trovas (Mensagem)

Informo, com satisfação e grande honra, aos trovadores que participaram do livro “Paraná em Trovas” o qual organizei, que a pedido da Secretaria Municipal da Educação de Curitiba, o referido livro estará presente, brevemente, nas estantes das 173 bibliotecas municipais de Curitiba, nos 13 Faróis do Saber e nas mãos de várias autoridades da área da Educação, fato relevante para todos nós.

Estou muito orgulhosa e confesso: Para mim, foi grande surpresa!

Meus sinceros agradecimentos para as competentes professoras Margareth Caldas Fuchs, da Secretaria Municipal da Educação de Curitiba e Maria da Graça Araújo, das Escolas: Papa João XXIII, São Miguel e Albert Schweitzer, que oportunizaram este feliz acontecimento.

Segundo a professora Maria da Graça Araújo: “Agora as Bibliotecas Municipais e Faróis do Saber, terão uma coletânea de trovas de autores paranaenses. Isso é inédito! Tenha certeza que é muito importante embora possa não parecer”.

Na qualidade de presidente da UBT Estadual do Paraná, agradeço a oportunidade de integrar estes ambientes, onde se respira cultura, através do acesso do livro Paraná em Trovas, nas Bibliotecas e Faróis curitibanos.

Saudações trovadorescas e um forte abraço à cada um de vocês, e, em especial à Margareth e Maria da Graça.

Vânia Maria Souza Ennes.

segunda-feira, 30 de junho de 2008

André Augusto Passari (O mago da ironia)

Lá se vão cem anos, e quanta solidão!
De lá para cá, o ser humano
Esse espectro frágil de qualquer coisa que seja Deus
Tropeçou em suas próprias armadilhas e se perdeu

Por isso, com a mesma ironia
E em memória àquele que um dia iluminou essa escuridão
Dedico estes versos, pobres e insuficientes versos
Mas que dão mote à grandeza do nome sobre o qual verso

Antes do mais, perdoe-me o engano
Não, não é um espectro frágil o ser humano
É antes o próprio ideal trágico de um sonho infeliz e patético
Uma gargalhada profunda de um Deus incrédulo e imagético

Mas vá lá, voltemos ao nosso mote
E à homenagem ao grande Cavaleiro das Letras
Fundador da Academia Brasileira de Letras
E que nos inspira em vida e em morte
Joaquim Maria Machado de Assis
Ou somente Machado de Assis

Não era mesmo para ser o orgulho da pátria
Estava mais para um néscio ou um paria
Mulato pobre, gago, órfão, epilético e sem estudo
Tornou-se logo entre todos o mais culto
E contrariando a ordem lógica do mundo
Inverteu a lógica, o real e o oculto

Enxergou como ninguém a alma humana
E a revelou com a elegância de uma arte grega ou romana
Mas o fez com tal sinceridade
Que até parece crueldade
É que o homem vive numa crise de identidade
Ante o bem e o mal, a dualidade

Homenageado com honras em seu velório
Machado de Assis nunca foi um simplório
Sabia que a vida é um desafio complexo
E que só com maestria e valentia é que faz nexo
Por isso aproveitou a ironia de ter nascido pobre
Para morrer com a insígnia de um espírito nobre
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Notas sobre o autor:
André Augusto Passari, novo escritor nascido em Sorocaba (SP), veio ao mundo em 1979. Médico psiquiatra, reside em Ribeirão Preto (SP). Na literatura, assume sua condição de profundo admirador de Machado de Assis.
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Fonte:
PASSARI, André Augusto. Tempo, Solidão e Fantasia. São Paulo: Scotercci Editora, 2005.

Edu Mercer (Universo de livros)

A batida da pesada porta de ferro ecoou uma eternidade. Desapressado, o pequeno Nicolau olhou para todos os lados. Certificou-se de que estava sozinho na imensa biblioteca. Como fazia há uns bons noventa anos — ou cem, ou talvez mais —, percorreu as estantes com os olhos à procura de algum volume. Olhou para as prateleiras da margem oposta, com o indicador da mão esquerda batucando a ponta do nariz. Olhou para a parede próxima até em cima, na altura onde surgiam as primeiras nuvens. "Deve estar por aqui", pensou. Colocou um quepe de alpinista na cabeça, a mochila nas costas, com um martelinho e uma corda presos por fora e começou a subir pela escada móvel metálica que atingia as estantes mais longínquas. Por mais frio que fosse nas alturas, contentava-se com uma jardineira de calças curtas e camisa sem mangas. Depois de horas e horas, voltou ao chão com um espesso alfarrábio. Isolada no centro da biblioteca, havia uma cadeira alta, entalhada de mogno, o assento fofo revestido com veludo carmim. Sentou-se e leu alguns capítulos. De súbito pensativo e triste, Nicolau interrompeu a leitura — a releitura — de "Capitão Áteras", de Julio Verne, e ficou a meditar. Lembrou que ainda moço estabelecera um rigoroso planejamento de leituras. Desde o verdor da juventude era propenso a estabelecer e cumprir metas. Algumas tolas, como não comer carne vermelha nos verões e raspar o cabelo nos anos bissextos. Outras de maior relevo, como aprender os idiomas latinos e desbravar a literatura clássica.

O planejamento literário funcionava da seguinte maneira: Nicolau lia um grande livro de um grande autor. Tão logo terminasse, começava a leitura de um grande livro de outro grande autor. E assim seguia o Primeiro Ciclo. Cumpria com prazer uma jornada diária de leitura, essencial para dar cabo de uma extensa lista elaborada com minúcia mas permeável a eventuais acréscimos. Por mais que se apaixonasse pelo estilo, pela verve do escritor, jamais lia outra obra do mesmo. "Há muitos autores a se conhecer", pensava com a ansiedade natural dos jovens.

Influenciado pela xenofobia da Semana de 22 ("tupi or not tupi, that's the question"), começou pelas obras nacionais. "O Ateneu", "Espumas Flutuantes", "Os Sertões", "Dom Casmurro" e várias outras de tal quilate. Tinha plena convicção de que Capitu traíra Bentinho e ficava exasperado quando a crítica literária cogitava outra hipótese. Depois, numa nova etapa, quando chegava aos trinta anos, começou os autores clássicos universais — Joyce, Shakespeare, Dickens, Dostoievski, Dumas, Poe, Borges, Eça, Aristófanes e companhia. Às vezes se permitia entremear a leitura de clássicos com livros de prosa jornalística, coletâneas de citações, estudos jurídicos, antologias de contos, enciclopédias ilustradas, best sellers digestivos e literatura infanto-juvenil. Sem contar a leitura diária de jornais e revistas variadas.

Essas interrupções, aparentemente inofensivas, representaram uma considerável parcela de tempo. Assim, Nicolau já contava com mais de cinqüenta anos ao iniciar o Segundo Ciclo — a leitura de outras obras dos seus autores prediletos. "O Processo", de Kafka, "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Quincas Borba", de Machado de Assis, "Sagarana", de Guimarães Rosa, "Crime e Castigo", de Dostoievski, "Otelo" e "Rei Lear", de Shakespeare.

Nicolau já era um resignado octogenário quando finalmente conseguiu iniciar o Terceiro Ciclo — a época das releituras. "A releitura é a verdadeira arte da leitura", dizia ele citando uma frase não lembrava de quem. Recordou outro escritor, Ernest Hemingway, que daria toda a sua fortuna se pudesse sentir de novo o prazer que sentiu ao ler, pela primeira vez, seus livros preferidos.

Naquela tarde encalorada em que começara a reler "Capitão Áteras" — o primeiro livro de sua vida, o livro culpado por sua paixão fulminante pela leitura — Nicolau pensou nos inúmeros livros que já havia lido e relido. Em quanto conhecimento e diversão aquelas centenas de milhares de volumes já haviam oferecido a ele. Em quantos bilhões de palavras já haviam passado por seus olhos e quantas palavras desconhecidas havia anotado com caneta Bic num bloco de papel jornal para depois descobrir seus significados. Lembrou-se das incontáveis semanas sem comer, dos meses sem se contemplar no espelho, dos anos sem fazer a barba. No meio de tantas reminiscências, lembrou-se com saudade de um dicionário ilustrado muito antigo, impresso em papel bíblia, que tinha bonitas ilustrações coloridas de peixes oceânicos.

Colocou a mochila às costas, pegou o equipamento de alpinista e ajeitou o quepe na cabeça. Começou a cantarolar e a subir os degraus da escada metálica. Se sua memória merecesse alguma confiança, o dicionário estava daquele lado, numa prateleira bem acima das primeiras nuvens.

O nefelibata Nicolau nunca mais voltou.
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Notas sobre o autor:
Edu Mercer nasceu em 1973 e é redator publicitário em Curitiba — Paraná. Já escreveu, segundo suas próprias palavras, "dois pequenos livros (opúsculos): Fundo de Baú e O Quintal de Minha Casa é um Bar", que reúnem contos, crônicas e letras de música.
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Fonte:
http://www.releituras.com/

Estante de Livros (Editora Escrituras)


Antônio Campos e Cyl Gallindo (Panorâmica do conto em Pernambuco)
896 páginas

Esta é a segunda grande obra coletiva lançada pelo Instituto Maximiano Campos (IMC) em parceria com a Escrituras Editora. Primeiro surgiu a poesia, a palavra cristalizada na publicação do Pernambuco, terra da poesia: um painel da poesia pernambucana dos séculos XVI ao XXI. Neste volume, destaca-se a prosa, uma forma mais analítica de revelar o ser humano, seus sentimentos, seu tempo e seu espaço.

Panorâmica do conto em Pernambuco reúne um conjunto de obras literárias a fim de desvelar o povo pernambucano no cenário nacional. O gênero conto atende muito bem ao momento atual de muitos afazeres e pouco lazer, já que, em questão de minutos, na ante-sala de um consultório ou gabinete, no percurso de uma pequena viagem, em um piscar de olhos, lemos uma obra literária, conhecemos um autor, abrimos uma janela do espírito para um mundo que sequer imaginávamos que existisse. A partir daí, surge o desejo de conhecermos o autor e o restante de sua obra.

A Panorâmica do conto em Pernambuco traz esse painel, visto, sentido e revelado por 114 autores, nascidos neste Estado ou que, por qualquer circunstância, vivenciaram ou vivenciam a realidade pernambucana, suas experiências históricas, seus momentos de alegria, seus anseios, suas adversidades e suas realizações. Mergulhamos na documentação e trouxemos escritos desde o primeiro contista até autores inéditos, com revelações surpreendentes, certos de que estamos edificando um marco histórico na cultura brasileira.

Quem se debruçar sobre este livro, ao concluir sua leitura, verificará que alcançou uma ampla visão literária de Pernambuco e do Brasil, uma vez que deste torrão também se formou, com muita luta e sacrifício, a identidade brasileira.
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Antônio Campos é advogado, articulista, conferencista, poeta, contista e presidente do Instituto Maximiano Campos (IMC). Nasceu no Recife (PE), em 25 de junho de 1940. Foi um dos fundadores do IMC, depositário do acervo literário e artístico do escritor Maximiano Campos, seu pai, prematuramente falecido. É também promotor e divulgador da cultura pernambucana e nordestina. O IMC apresenta uma lista considerável de lançamentos de livros de outros escritores e produção do IMC, como a coletânea Pernambuco, terra da poesia: um painel da poesia pernambucana dos séculos XVI ao XXI, organizada pelo próprio Antônio Campos e por Cláudia Cordeiro (IMC/Escrituras Editora, 2005). Além disso, o IMC realiza eventos culturais, como participação com a “Casa das Letras” no I Festival de Literatura de Garanhuns (2006) e a realização da III Fliporto - Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas, Pernambuco, com o tema “Integração Cultural Latino-Americana”. É autor de diversos livros, nas áreas do Direito, Gestão Empresarial e Literatura (contos, crônicas, ensaios).
Sites: www.imcbr.org.br / www.antoniocampos.com.br

Cyl Gallindo nasceu em Buíque (PE), em 28 de maio de 1935. Diplomado em Ciências Sociais pela UFPE, é escritor, poeta, jornalista e conferencista. Trabalhou na Assessoria de Comunicação do Senado Federal e de outras repartições públicas. Foi repórter, redator, editor e colunista de jornais de Pernambuco, Brasília, e Mato Grosso, além de correspondente do Jornal de Letras, RJ. Produziu e apresentou o programa Síntese na TV Universitária, Recife, e colaborou com o jornal Gazeta do Povo, Paraná. É membro da Academia de Letras do Brasil, do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, da ANE, Brasília (DF), e da UBE-P. Recém-eleito para a Alane, cadeira nº 18, substituindo o escritor William Ferrer Coelho. Foi membro (fundador) do Conselho Municipal de Cultura do Recife e é membro efetivo da Alane. Atualmente representa no Brasil a Francachela, Revista Internacional de Literatura e Arte, editada na Argentina e é diretor da Cicla, destinada a tradução e publicação de obra de autores brasileiros contemporâneos, na Argentina, e faz parte do Conselho Editorial da revista Encontro, do GPL, PE. Autor de diversos livros premiados, escreveu artigos, reportagens, críticas, crônicas, entrevistas, poesias e contos publicados em antologias, jornais e revistas de diversos Estados do Brasil. No exterior, foi traduzido, respectivamente, para o espanhol, alemão e francês, em: Francachela, Argentina; Xicóatl, Áustria; Rampa, Colômbia; Poésie du Brésil (org. Lourdes Sarmento), França; e Prismal (org. Regina Igel), University of Maryland, Estados Unidos.
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Felipe Machado (Olhos cor de chuva)
160 páginas

Quando você dança com o diabo, você não muda o diabo, o diabo muda você.
Andrew K. Walker

Um texto surpreendente, da primeira à última página. O ritmo inicial é calmo, permitindo que nos acomodemos na poltrona, como em um bom filme. Rapidamente, no entanto, somos capturados em um vórtice de sentimentos e emoções que harmonizam o real e o possível, o atual e o virtual, tornando o gesto mais delirante absolutamente lógico e natural. Após a leitura, não restará quem ache impossível apaixonar-se por um par de olhos cor de chuva, de alguma forma, em algum contexto...

...Aquela noite tinha tudo para ser apenas mais uma na agitada vida do escritor Alexandre Nastari. Freqüentador assíduo do Dixie - casa noturna e palco da big band Great Gatsbies -, viu sua vida mudar repentinamente: Manoela. Após uma noite inesquecível, Alex convida Manoela a se mudar para o seu apartamento. Um dia, da mesma maneira inesperada que surgiu, Manoela se foi. Alex encontra sua mulher morta.

Buscando uma razão para o assassinato da amada, acaba conhecendo Vanessa, ex-garçonete do Dixie e melhor amiga de Manoela. Entre várias revelações, ela conta que aquele não era o nome real da amiga, e que as duas trabalhavam no passado como prostitutas. Vanessa se muda para o seu apartamento. A família Nastari, querendo apresentar a garota à sociedade, oferece um almoço para o casal. Mas tudo dá errado e Vanessa deixa o local abalada Motivo: Enrico era um cliente antigo dela e de Manoela.

Alex tenta matar o pai, mas é impedido por Elizabeth e o velho empregado dos Nastari. As noites ficam cada vez mais pesadas, com cocaína, maconha e vodka, suas companheiras inseparáveis. Uma semana depois, o escritor vai ao Café Mondrian, local onde costumava buscar inspiração. Lá ele conhece Aline, outra paixão à primeira vista, igualmente fulminante, que o faz terminar o relacionamento com Vanessa. Alex conhece os artistas europeus Jorge Galies e Christian Lefuric, amigos de John. Lefuric, que lhe mostram a imagem de uma mulher que transformaria novamente sua vida.

Há, entretanto, um pequeno problema: ela não é real. Criada no computador por designers europeus, a personagem virtual é a última fronteira entre Alex e a loucura. O amor dá lugar a uma obsessão platônica quando, depois de tantos relacionamentos fracassados. Alex acredita ter encontrado a mulher perfeita...
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Felipe Machado passou a adolescência escutando Beatles e Led Zeppelin com a mesma atenção com que ouvia em casa o ruído ininterrupto das máquinas de escrever de seus pais, ambos jornalistas. Seus discos, no entanto, não eram os únicos companheiros: os livros de Monteiro Lobato e Agatha Christie também eram retirados da estante e devorados, um a um. Aos 12 anos, ganhou a primeira guitarra. Aos 16, gravou o primeiro disco com uma banda formada com amigos de infância.

Pouco depois, o VIPER já lançava discos no mundo inteiro e fazia turnês pela Europa, Japão e Estados Unidos. Os livros ficaram na estante, esperando. No final do século XX, influenciado por personagens reais - e completamente irreais - da noite paulistana, Machado partiu para uma nova carreira e um desafio ainda maior: escrever Olhos Cor de Chuva, romance finalizado poucos dias antes de entrar no prelo. Hoje, continua vivendo entre a música e as letras: depois de trabalhar como redator na agência de propaganda DPZ, ele divide seu tempo entre os palcos da banda Metanol e a redação do Jornal da Tarde.
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Myriam Campello (Como Esquecer - anotações quase inglesas)
128 páginas

O livro Como esquecer (anotações quase inglesas), de Myriam Campello, foi roteirizado para o cinema e começou a ser rodado no início de 2008, sob a direção de Malu De Martino (Mulheres do Brasil). A protagonista do filme será a atriz Andréa Beltrão.

Qual é a natureza do amor? E de sua perda?

Numa casa à beira-mar, todos os personagens sofreram algum tipo de perda. Como esquecer (anotações quase inglesas), título que revela a anglofilia da autora, Myriam Campello, é o mapa desse emocionante percurso interior que se acompanha como uma aventura em mar aberto. Duas mulheres formam o par amoroso central que se desfaz e deixa todo um deserto de lembranças e sofrimentos. No texto corre a dramaticidade de desilusões e perdas, misturadas com referências à Inglaterra por toda a narrativa, como o casal Catherine e Heathcliff do clássico de Emily Brontë, O morro dos ventos uivantes. O que nos faz relacioná-lo à intensidade da personagem, tanto na forma de amar como de sofrer. Da mesma forma como no relacionamento do casal há uma dependência, ao ponto de Catherine afirmar que é Heathcliff, na obra, há também esse sentimento entre Júlia e Antônia.

Através da narrativa da protagonista Júlia, somos envoltos por um emaranhado de lembranças sofridas e nostálgicas que, na maioria das vezes, são carregadas de um humor sarcástico - Quando alguém diz eu te amo para sempre, tenha certeza que você só tem uma opção: acreditar, babaca. Eu acredito em amor eterno, Papai Noel, coelhinho da Páscoa e que todo sofrimento tem fim - Conformada com a dor, passa a ironizá-la e a tratá-la como parte comum de sua vida. Pelas páginas desse romance, Júlia vai divagando sobre seus medos, suas dores e tentativas de esquecer um amor. Tentativas de se sustentar pelas próprias pernas, sem depositar sua vida no outro. Embriagada pelas lembranças, a personagem vive, muitas vezes, ausências da realidade, pega-se flutuando fora do mundo ao seu redor. Ela vive a constante busca de sua liberdade: esquecer e expulsar definitivamente da memória aquela que a abandonou.

Júlia compartilha com seus amigos o seu sofrimento. Personagens tão complexos quanto Júlia, que também perderam pessoas importantes, cada um de uma forma. Suas ações e reações estão muito próximas de nós. São todos convocados a olharem para dentro deles mesmos e a conhecerem-se a si mesmos, numa tentativa de vencer o caos, sejam quais forem as combinações afetivas.

O texto cola a palavra ao complexo ato de viver e transformar-se em pura criação literária. É esta quem reina soberana e que faz a leitura desse romance um sofisticado prazer. A experiência da perda comum a todos, a serviço de um estilo inconfundível, torna o livro impossível de esquecer.
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Myriam Campello nasceu no Rio de Janeiro. Com Cerimônia da noite, seu primeiro livro, recebeu em 1972 o Prêmio Fernando Chinaglia para romance inédito. Publicou ainda Sortilegiu (romance, 1981), São Sebastião blues (romance, 1993), editado na Alemanha em 1998, e ainda este ano será publicado na França, e Sons e outros frutos (contos, 1998), vencedor da Bolsa para Conclusão de Obra da Biblioteca Nacional, em 1996. Recebeu o Prêmio União Latina - Concurso Guimarães Rosa para conto inédito, em 1997. Participou de diversas antologias brasileiras, entre elas Os cem melhores contos brasileiros do século (2000). Tem contos publicados na Polônia, Alemanha, Holanda, França e Estados Unidos.

Fonte:
Editora Escrituras
http://www.escrituras.com.br/

Maria Antônia Canavezi Scarpa (Será incondicional)

Decidi que seria assim : incondicional,
exausta, venho traçando ao longo do caminho,
vértices que me enraízem sem limites,
no cerne das nossas vidas, este vento brando,
refrescando os nossos sentimentos
Cada detalhe, que não quero esquecer,
vou entrelaçando nas páginas que já foram escritas,
pois tudo somará um livro volumoso,
onde cada linha versará a rebeldia do querer,
dar, dar muito e receber
Será uma viagem longa, sem paradas vãs,
que não sejam para adornar este acalanto,
ao polir o brilho do olhar que vem dos seus
e dos olhos meus, como se cada vez
fosse a primeira vez
Tem que ser assim : incondicional,
você é o que sempre quis, um domador,
vindo de longe, abrir o etéreo,
para estes sonhos plurais, transformando-os,
modificando todos os meus conceitos
Fui deixando, que se rompessem,
todos os limites, quando a dor da saudade,
exigiu que se rasgassem todos os véus
que cobriam as minhas verdades,
expondo-as, que vivo você!

Fontes:
http://cafe-poetico.blogspot.com:80/
http://www.sorocaba.com.br/acontece

sábado, 28 de junho de 2008

Valentim Magalhães (1859 - 1903)

Antônio Valentim da Costa Magalhães (Rio de Janeiro, 16 de janeiro de 1859 — 17 de maio de 1903), foi um jornalista e escritor brasileiro, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras.

Biografia

Filho homônimo de Antônio Valentim da Costa Magalhães e de D. Maria Custódia Alves Meira. Formou-se em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco, em São Paulo, onde ingressara em 1877. Ali colabora para os periódicos acadêmicos "Revista de Direito e Letras", "Labarum" e "República", este último de Lúcio de Mendonça. Ainda nesta cidade publicou três obras: "Idéias de Moço", "Grito na Terra" e "General Osório", este último em parceria com Silva Jardim, além de seu primeiro livro, entitulado "Cantos e Lutas". Ali também casou-se, em 1880. Voltando para o Rio, dedica-se ao jornalismo, dirigindo o periódico "A Semana" (fundado em 1885), que torna-se o veículo dos jovens escritores da época, além da propaganda abolicionista e republicana, sendo um período de marcadas agitações culturais e políticas, estando Valentim Magalhães no proscênio dessas lutas todas. Sobre sua participação, regitrou Euclides da Cunha, que o sucedeu na Academia: "A geração de que ele foi a figura mais representativa, devia ser o que foi: fecunda, inquieta, brilhantemente anárquica, tonteando no desequilíbrio de um progresso mental precipitado a destoar de um estado emocional que não poderia mudar com a mesma rapidez".

Seu grande envolvimento com as causas que defendia não lhe permitiram uma maior produção literária, sendo comum entre os críticos que seu papel foi o de divulgar os demais escritores nacionais. Ficou célebre pelas inúmeras polêmicas criadas, que redundaram em ataques e desafetos, bem como pelas defesas que dele faziam os amigos. Durante o Encilhamento, falsa prosperidade econômica que se seguiu à Proclamação da República por obra do seu confrade Rui Barbosa, então feito Ministro das Finanças, Valentim dedicou-se ao lucro rápido, fundando uma companhia e, logo mais, como todos, vindo à falência. Sobre seu papel na memória futura, então ainda presenciando os reveses, declarou:

"A princípio fui gênio; mais tarde cousa nenhuma. Hoje César, amanhã João Fernandes..."

Poesia

Registra Manuel Bandeira que o autor participara, ao lado de Teófilo Dias, Artur Azevedo, Fontoura Xavier e outros, da chamada "Batalha do Parnaso", uma reação ao romantismo, iniciada ainda na década de 1860, e que ganhou força com a agitação promovida por Artur de Oliveira. Este misto de boêmio e intelectual conhecera em Paris os intelectuais parnasianos, e influenciara os autores brasileiros.

Versos

Íntimo
(domínio público)

Esta alegria loura, corajosa,
Que é como um grande escudo, de ouro feito,
E faz que à Vida a escada pedregosa
Eu suba sem pavor, calmo e direito,
Me vem da tua boca perfumosa,
Arqueada, como um céu, sobre o meu peito:
Constelando-o de beijos cor de rosa,
Ungindo-o de um sorriso satisfeito...
A imaculada pomba da Ventura
Espreita-nos, o verde olhar abrindo,
Aninhada em teu cesto de costura;
Trina um canário na gaiola, inquieto;
A cambraia sutil feres, sorrindo,
E eu, sorrindo, desenho este soneto.


Bibliografia

Sua obra, considerada menor no contexto da literatura brasileira, regista, entretanto, uma curiosidade, por conta de uma errata:

1896 – Concluído o romance “Flor de Sangue”, de Valentim Magalhães, que seria publicado pela Laemmert com a mais inusitada das erratas “...à página 285, 4a. linha, em vez de “estourar os miolos”, leia-se “cortar o pescoço”.
Seus livros:

Cantos e Lutas, poesia (1897);
Quadros e Contos (1882);
Vinte Contos e Fantasias (1888);
Inácia do Couto, comédia (1889);
Escritores e Escritos (1894);
Bric-à -brac, contos (1896);
Flor de Sangue, romance (1897);
Alma, crônicas (1899);
Rimário, poesia (1899)

Quando da Fundação da Academia, Valentim Magalhães foi convidado para ocupar a cadeiranúmero 7 da Academia Brasileira de Letras, que tem por patrono Castro Alves, cujo nome foi por ele escolhido para o patronato. A biblioteca do silogeu brasileiro teve início com a doação, feita por Valentim, de seu livro Flor de Sangue, em janeiro de 1897.

Fonte:
Biblioteca Eletronica. In Revista do CD Rom. n.156. julho 2008. Editora Europa. (CD-ROM).

Valentim Magalhães (Prefácio da Obra "Flor de Sangue")

Il y a une justice à rendre à l'amour — c'est que plus les motifi qui le combattent sont forts, clairs, simples, irrécusables, en un mot, moins il a le sens commun, plus la passion s'irrite et plus on aime. C'est une belie chose sous le ciel que cette déraison du coeur; sans elle nous ne vandrions pas grand'chose.
Alfred de Musset..

Il n'y a jamais rien que de três simple dans les événements les plus extraordinaires, comme il ný jamais rien que de três logique dans les hasards les plus inattendus. Un peu de réflexion nous aurait suffi le plus souvent pour empécher les uns et pour prévoir les autres. Mais le propre de la passion est de s'absorber dans son object tout entière.
Paul Bourget.

PREFÁCIO
Julguei conveniente, a bem da retidão do julgamento desta obra, precedê-la de algumas sinceras e curtas explicações.

Há 20 anos que escrevo para o público e mesmo, a rigor; há mais tempo ainda, pois na idade de 15 anos já eu publicava em jornais de província linhas de prosa e de verso, que só a meninice do autor tornava suportáveis à paciência benévola dos leitores. Nesses quatro lustros de atividade mental tenho feito um pouco de tudo - versos, folhetins, contos, panfletos, critica, biografia, artigos de todo gênero, teatro, que sei eu? E tenho construído com parte desses materiais para mais de uma dúzia de livros.

A critica tem-me reconhecido, com munificência que me há penhorado, um espírito vivaz, variável, curioso; uma atividade indefesa; um certo amor à língua vernácula, e daí pronunciado carinho no escrevê-la e um estilo correto e agradável; porém não tem ocultado o seu pesar por me não ver abalançar-me a isso que chamam os críticos "obra de fôlego" ou "trabalho sério" - um poema, um romance, um livro de crítica profunda. Ora, eu devo confessar que essa censura me calou sempre no espírito por havê-la formulado muitas vezes a mim próprio. Mas a necessidades inadiáveis da vida material, tão pesadas para um pai de família pobre nesta terra em que das letras ainda se não pode viver exclusivamente, impediram-me sempre de levar por diante esse projeto, cem vezes formulado e não poucas começado a executar. O tempo que me deixavam livre as ocupações de que provinha o pão cotidiano e o meu estado de saúde, precário, sempre, chegava apenas para escrever o conto, a notícia critica, a crônica faceta, o artiguinho diário a que me comprometera em um ou vários jornais; não havia possibilidade de realizar o meu sonho, satisfazendo a exigência dos críticos - escrever uma obra de fôlego.

Entretanto, desde as primeiras manifestações da minha vocação para as letras senti-me atraído para o romance, e entre os meus primeiros ensaios, abandonados e perdidos, figuravam alguns capítulos de um romance O Equilibrista, apenas encetado. Mais de uma vez comuniquei aos meus amigos esboços, planos de romance, e de alguns passaram notícias às folhas.

Ora, aconteceu que nos últimos dias do ano de 1895, conversando com um editor, propus-lhe escrever para ele o meu primeiro romance. Aceitou a idéia e ofereceu-me direitos autorais que me pareceram satisfatórios, razoáveis. Como deles tinha alguma urgência, atirei-me ao trabalho: no dia 19 de janeiro do corrente ano escrevi o primeiro capítulo; no dia 2 o segundo, no dia 5 o terceiro, no dia 6 o quarto; enfim, em dois meses, tinha escrito mais de metade do livro, apesar das muitas interrupções que outros misteres impunham. Mas o editor deu parte de fraco; pediu-me que o dispensasse do compromisso, provando-me que o não poderia cumprir. Esfriou-se-me o ardor; parei. Meses depois, tendo feito contrato com os meus editores habituais, os srs. Laemmert & C. (On revient toujours...) reatei o trabalho interrompido, dando imediatamente à composição tipográfica os capítulos escritos. Os originais não foram recopiados por mim, quer dizer, não fiz rascunho ou borrão. Escrevi sempre de uma assentada, capítulo a capítulo, e, acabado, relia-o, corrigia-o, mandava copiá-lo por um secretário, conferia a cópia e remetia-a aos tipógrafos.

Se conto estes pormenores é para explicar as muitas imperfeições de forma que sou o primeiro a reconhecer, tais como a vulgaridade de algumas frases, a fraqueza de certas expressões, o banal de vários títulos de capítulos (e dei-lhes títulos por uma conveniência pessoal; para orientar-me em cada capítulo do estado, do ponto em que ficara o enredo, a composição), um ou outro galicismo, como "golpe de vista", e outros defeitos mais.

O capítulo que primeiro escrevi, com a intenção de fazê-lo o primeiro do livro, foi o quinto da segunda parte - um dos últimos: eu havia principiado pelo fim. A circunstância de escrever de um jato, sem o polido e o repolido que Boileau tanto aconselhava aos ferreiros da idéia, só é prejudicial às obras mal concebidas e mal nascidas, que não trazem dentro alguma coisa de humano, de luminoso; bem sei, Manon, Le Neveu, Candide, Adolphe, são obras-primas e, no entanto, foram escritas sem rasuras, lembra P. Bourget em um de seus livros. O fato, pois, da correntia espontaneidade, não retificada no cadinho apurador da revisão paciente, com que compus este romance, não é justificativa das imperfeições que o deslustram mas é um fato, e como tal, o denuncio à critica para que o registre, se lhe aprouver.

Resta-me dizer algumas palavras, e justamente as mais importantes, acerca da escola e da moralidade de Flor de Sangue. Não me preocupei com aquela nem com esta, entendida esta no sentido que se lhe dá vulgarmente. Não resolvi fazer um romance naturalista, nem de aventuras, nem de psicologia, nem simbolista, nem idealista; resolvi simplesmente fazer um romance. E ele foi-me saindo dos bicos da pena com um certo feitio, uma certa fisionomia, um certo caráter, que não tentarei definir e ainda menos explicar.

Se todavia me interpelasse alguém sobre tal ponto, diria que para o seu autor é o meu romance filiado à escola da verdade, a única, que como os Goncourt, acredito real e fecunda em arte. Todos os tipos que nele fiz mover-se, e não sei se viver, encontrei-os na vida social, não só fluminense, não só brasileira, mas de todos os países.

Não cogitei tampouco de discutir, provar e impor uma tese. Faço Paulino suicidar-se, não para pregar o suicídio como solução única e necessária em situações morais idênticas; porém pela simples razão de haver dado a Paulino um caráter reto, inteiriço, não contaminado da gangrena moral da época. Isso não importa negar ao meu livro moralidade, porque lhe reconheço pelo menos uma, e não somenos, que é a seguinte - quando um homem de caráter é dotado de um temperamento que o contradiz e estorva, pode a vitória caber ao temperamento, na colisão deste com o caráter; mas o caráter reage com igual vigor e não aceita a situação moral criada pelo resultado do combate.

O Paulino que eu esbocei no segundo capítulo e fui tracejando nos subseqüentes poderia tirar a sua amada ao marido para viver com ela, confessando a sua culpa e arrostando-lhe todas as conseqüências, com uma bela impudência, bela por valorosa, se sentisse amado, porque a felicidade é cruel e injusta na hipertrofia do seu egoísmo; mas não poderia nunca aceitar a posição aviltante de terceiro no lar do seu amigo, protetor, quase pai, partilhando-lhe da mesa às claras e da cama às escondidas. Não vendo nenhum meio de conciliar a sua honra com o seu amor e não podendo vencê-lo, alvitra por sacrificar o amor à honra e mata-se. Esta moral, toda circunstancial e relativa, bem sei, não é a moral que os mercadores dela em livros e discursos expõem ao consumo público; mas é a única que a razão admite e que a ciência explica. E cabe aqui perfeitamente repetir o que escreveu o fino psicólogo da "Fisiologia do amor moderno" no prefácio deste livro.

Diz ele:
"Ser moralista (linhas acima dissera ele que a primeira e última lei para um escritor digno de empunhar uma pena é ser um moralista), ser moralista não é pregar — o hipócrita pode fazê-lo; nem indignar-se — Molière esqueceu esse traço no seu Alceste. Em dez misantropos profissionais contam-se nove farsistas, que fazem honorabilidade da sua indignação a frio. Não é concluir - o sofista conclui. Não é evitar os termos crus e as pinturas livres - nos piores livros libertinos, os do século 18, não se encontra uma frase brutal ou pinturesca. Não é tampouco evitar as situações escabrosas — não há uma nos primeiros romances de Mme Sand, e para mim eles são entre os livros belos os que mais justamente se chamariam imorais - conquanto, neste caso, a beleza da forma seja até certo ponto uma moralidade.

Não, o moralista é o escritor que mostra a vida tal como ela é, com as lições profundas de expiação secreta que nela se encontram por toda parte impressas. Tornar visíveis, como palpáveis, as dores da falta, a infinita amargura do mal, o rancor do vicio é fazer obra de moralista, e é por isso que a melancolia das Flores do Mal e a do Adolfo, a crueza do desenlace de Liaisons e a sinistra atmosfera de Cousine Bette fazem destes livros obras de alta moralidade".

É impossível dizer melhor.

Marcel Prévost, num artigo do Journal, intitulado Littérature et Morale, observa com grande verdade "que a literatura de uma época é sempre mais moral que seus costumes e que nenhum livro é tão libertino como as conversações correntes, na baixa como na alta sociedade".

Sou avesso a prefácios e entendo que o livro que se não explica a si próprio e por si próprio é um livro inexplicável. Mas conheço o meio em que vivo e prefiro ir ao encontro das principais objeções que ao meu romance prevejo serão feitas, e sobretudo a relativa à moralidade. Hão de acusar-me de haver feito um livro que não pode ser lido por donzelas e meninos. Não me defendo; ao contrário, confesso que não daria este romance a ler à minha filha, como o não dou à minha irmã nem a meus filhos; mas romances sinceros e verdadeiros, isto é: honestos e morais não se escrevem para serem lidos por donzelas e donzêis. E aqui me socorro ainda do excelente prefácio de Bourget, de que acima fiz alguns extratos:

"Imaginemos para a nossa obra um leitor de 25 anos e sincero: que pensará ele do nosso livro ao terminar a leitura? Se ele, depois de lida a derradeira página, é levado a refletir nas questões da vida moral com seriedade maior, o livro é moral. Aos pais, às mães e aos maridos compete proibir a sua leitura aos rapazes e às raparigas, para quem um livro de medicina também podia ser perigoso. Tal perigo não nos respeita. Só o que nos incumbe é pensar o mais justo que pudermos e dizer o que pensamos".

E justamente o que dizia há mais de 20 anos Guerra Junqueiro no prefácio da Morte de D. João, e num estilo mais colorido e imprevisto. Lembram-se?

"Não aconselho a ninguém que dê a ler a uma rapariga de nove anos nem a Morte de D. João, nem romances, nem dramas, nem comédias, nem o novo e, sobretudo, nem o Velho Testamento.

E linhas mais longe:
"Não se dá um poema a uma criança pelo mesmo motivo por que se lhe não dá uma garrafa de vinho ao jantar".

Mas a razão mais poderosa para que o romancista desdenhe preocupações de moralista banal, de convenção, é a que dá Edmundo de Goncourt nas seguintes linhas:

"Hoje que o romance se alarga e cresce, que vai sendo a grande forma séria, apaixonada, viva, do estudo literário e do inquérito social, que se vai tornando, pela análise e pela pesquisa psicológica, a história moral contemporânea, hoje que o romance se impôs aos estudos e aos deveres da ciência, ele pode também reivindicar suas liberdades e privilégios".

Estou bem apadrinhado, como vêem.

Por último, uma confissão.

Tive tanto gosto em escrever o meu primeiro romance, o gênero agradou-me tanto, deu-me tão belas horas de gozo intelectual, que o meu desejo era e é não escrever de ora avante outra coisa.

O romancista vive com as suas criaturas — ri, chora, goza, sofre com elas. É uma segunda vida, uma outra sociedade que trazemos palpitante dentro de nós — na rua, em casa, por toda parte. Como eu compreendo o velho grande Dumas dizendo ao filho, que o fora encontrar chorando e lhe perguntara qual a causa daquelas lágrimas:

"Um grande desgosto! Portos morreu! Acabo de matá-lo! E não posso deixar de chorar-lhe a morte! Pobre Portos!"

O poema e o romance são as duas formas literárias diferenciais, extremas, positivas. Tudo o mais — contos, odes, sonetos, peças teatrais são matizes, variações, gradações; motivos musicais, apenas, porque as óperas são eles. Ora, o poema não pode respirar e medrar neste nosso meio de hoje, excessivamente despoetizado pela indústria, pela ciência e pelo epicurismo. Resta o romance. O romance é o grande instrumento de reconstrução social. A princípio foi camartelo: destruiu; no século vindouro será escopro e trolha: construirá. O romance era fábula: hoje é história e critica; será filosofia amanhã.

Fonte:
MAGALHÃES, Valentim. Flor de Sangue. In Biblioteca Eletronica. In Revista do CD Rom. n.156. julho 2008. Editora Europa. (CD-ROM).
http://www.academia.org.br/ (imagem)

Valentim Magalhâes (A Grande Estréia!)

Autor!

Ele era autor, finalmente!

Ali estava a sua obra.

- O meu livro! - dizia ele dentro em si, com o coração boiando em uma onda de júbilo.

Aí terminaram, por fim, as torturas inenarráveis do ineditismo; terminaram as lutas, os labores, as angústias inominadas de autor in partibus: o cérebro atulhado de livros imortais... e nenhum na rua!

Vencera!

Só ele, o autor, ele somente sabia o valor dessa vitória, porque mais ninguém soubera, suspeitara sequer, que soma de esforços e desesperos lhe custara.

Um ano, dois anos a incubar, a fecundar a idéia: período da gestação, íntimo e ignorado, cheio dos júbilos da concepção e dos receios, dos sobressaltos inexplicáveis ante o futuro:

- Se eu publicasse um livro?

Depois - a resolução: fase nova, em que a idéia vai-se transmudando em fato:

- Está dito: publico o livro.

É dispensável dizer de que gênero é o livro com que estréia este jovem, pois é o mesmo com que toda a gente estréia - aqui, em Portugal, em França, em toda parte do mundo.

Dizê-lo seria ocioso, tão ocioso como perguntar a qualquer homem de letras se existe no seu pretérito esse pecado universal, que se redime sempre: - versos.

Quando a um mancebo lembra a idéia de fazer um livro, o livro já está feito, e nem ele perde tempo a debater o gênero da obra.

É que a poesia é como a puberdade.

Um belo dia a criança deixa-se ficar na cama, adormecida ao lado dos tambores rotos e dos polichinelos estripados, e acorda o homem: um indivíduo novo, recém-nascido, desconhecido para todos, e ainda mais para si próprio.

Entre os muitos fenômenos novos que desse dia em diante vão nele aparecendo, espontaneamente, por vontade do velho legislador - Natureza, - há um de que também não se apercebe o jovem. Deliciosa inebriez sonambuliza-lhe os atos e o pensamento...

Mas um dia, por acaso, detém-se em caminho para dar "bom-dia" ao sol, ou a uma "doce virgem" que passa, e, volvendo o olhar atrás... - surpresa! ó encanto! - o caminho, o curto caminho andado está todo semeado, todo florido - de versos!

- Sou poeta! exclama nesse instante, como ainda há pouco exclamara:

- Sou homem!

É nesse momento único, o mais puramente feliz de toda a existência, que lhe vem a idéia da Glória, do Futuro, do livro, enfim.

Depois, o trabalho é apenas de retroceder, e, colhendo as mais belas e cheirosas flores, fazer um ramalhete.

Mas de improviso surge um óbice, uma dificuldade feia e repentina, como esses fantoches que saltam súbitos das bocetas de confeitos ao nariz das crianças:

- E a fita para enlaçar o bouquet?

Ah! o título para o livro!

Que Adamastor!

Que assunto para epopéias!

Quando terás também o teu Camões, ó monstro?

Neste ponto, o azul enubla-se, abismos abrem-se famélicos, montanhas pulam diabólicas ante os passos do poeta.

O desânimo invade-o, arrastando consigo para dentro do mísero - a dúvida, o medo, o desespero.

E o grosso caderno do manuscrito dorme poento ao fundo da gaveta, como um pobre diabo que, na gare de uma linha férrea, adormeceu à espera do sinal de partir.

O título!

Aqui, há tempos, assisti a uma luta horrível, interessantíssima, a única que possa fornecer um pálido simile da de um futuro autor com os títulos: - a luta com as gravatas.

Foi assim:

Entrou em uma loja, em que eu por acaso me achava, um elegante; e, dirigindo-se ao caixeiro, disse-lhe com voz trêmula:

- Desejo uma gravata.

- Pois não, senhor; em escancarando-lhe a vasta vitrine, acrescentou o caixeiro:

- Faça o favor de escolher.

Escolher!

Aí o busílis.

O janota ficara-se imóvel. Estava pasmo: as mãos sem gestos, os olhos deslumbrados.

Elas eram trezentas, seguramente.

Eram trezentas gravatas: - pretas, verdes, roxas, brancas, douradas, prateadas, azuis, amarelas, havanas, opalinas, granada, esmeralda, safira, cor-de-café, cor-de-rosa, cor-de-garrafa, cor-de-gema-de-ovo, cor-de-azeitona, cor-de-manteiga, cor-de-leite, cor-de-chocolate, cor-de-creme, cor-de-carne-crua, cor-de-carne-assada, cor-de-vinho — cor de tudo!

Pintadas, sarapintadas, chamalotadas, de listras, de pingos, de flores, de estrelas, de bichos!

Ah! E as formas?

Quadradas, redondas, oblongas; em laço, em pasta, em fita, em triângulo, em losango, em quadrilátero, em octágono; plastrons, mantas, lenços; de cetim, de gaze, de seda, de crepe, de linho, de chita, de lã...

Vendo-as, inúmeras, horríveis e formosas, esquisitas, de mil cores e de mil formas, a rir, a dançar, a vir sobre o janota extático, atordoado, trêmulo de gozo, de assombro e de indecisão, lembrou-me a marcha dos deuses-monstros por diante de Antônio, o santo eremita da Tebaída, caído em delíquio - no livro imortal de Flaubert.

E o caixeiro repetia:

- Faça o favor de escolher.

Depois de longa e penosa hesitação, decidiu-se o janota por uma gravata meio-plastron, estofada de veludo bleu foncé.

Pô-la ao pescoço, viu-se com ela ao espelho, e logo arrependeu-se.

Tomou então de uma outra, de seda creme, pontilhada de pequenos botões de rosa escarlates..

- Prefiro esta disse. Faça o favor de embrulhá-la.

E enquanto o empregado assim o fazia, continuou extático ante a vitrine, a ver uma, a ver outra, a desejá-las todas. De repente, estremeceu de súbita alegria e exclamou:

- Olhe, tire-me aquela acolá. Não, a outra: granada e ouro. Essa; essa mesma.

Agora sim: estava satisfeito. O caixeiro substituiu a gravata no embrulho.

O janota deu-lhe a paga, tomou do volumezinho, e foi saindo vagarosamente. Posto cá fora, na rua, deteve-se ante a larga montre, opulenta de gravatarias rutilantes, espalhafatosas, e sentiu-se logo profundamente arrependido da espiga que se havia deixado impingir.

- É tão lindo aquele laço de cetim creme! Diabo! Se eu trocasse...

E, num enleio desgostoso, esteve por pouco a entrar de novo na loja, para fazer a troca. Mas envergonhou-se a tempo, e lá se foi com a sua gravata nova, cheio de raivas biliosas contra ela - por ser tão estupidamente feia, e contra si próprio - por ter um gosto tão reles, tão desgraçado...

Assim, exatamente assim nos sucede com a escolha de título, a todos que de tão perigosa coisa carecemos.

Ao princípio fica-se perplexo: são tantos! e todos tão lindos! Qual escolher? Aquele, aquele belo título vermelho, flamante como um carbúnculo. Pois será ele. E, sem demora, ata-se o título escolhido ao pescoço da obra e mira-se o efeito. Que desilusão! A cor da gravata não diz com a roupa.

O livro é todo azul claro e brancuras de neve: toalete risonha e fresca, toalete para passeio nos jardins de Armida; e o título é de um rubro tão vivo, inopinado e gritão!

A que lhe vai a matar é esta de escomilha branca, tirando a azul nas dobras, de um tom delicioso de leite puro.

Bravos! Perfeitamente!

E o autor, satisfeitíssimo, ata a nova gravata ao seu dandy e sai com ele a passeio.

Mas as decepções não tardam. Uns amigos acham que ela devia ser cor-de-rosa, curta, sem pregas.

Aquela é trivial, inexpressiva, tão sem graça e sem expressão que, embora com a gravata ao pescoço, parece o janota tê-la esquecido em casa...

Outros amigos, porém, (ó La Fontaine!) assobiam o pobre poeta, atiram-lhe remoques como pedriscos:

- Que! Melhor fora então pôr-lhe por título: Vendavais, Cataratas ou Labaredas! Esse não presta: é por demais pantafaçudo.

E, corrido do seu mau gosto, o poeta arranca ao livro a gravata e recomeça a correria das lojas.

Tais angústias que as conte o pobre Eugênio Lopes, o "esperançoso e jovem poeta" que hoje estréia.

Foram dias, mais: - foram meses de luta e de insônia.

Dez vezes achou a gravata da sua escolha, o non plus ultra das gravatas, a bela por excelência, a deliciosa, a única.

Vinte vezes se arrepelou furioso, bezuntando-se de impropérios, e pensando sinceramente, como quem se resolve ao suicídio: - O melhor é pôr-lhe por título - Sem título! O pobre!

Safiras, Flores singelas, Borboletas, Magnólias, Harpejos, Serenatas, Suspiros d’alma, ai! tudo! tudo! - até nem mesmo faltou o venerando, o nunca assás surrado título - Peregrinas! - tudo ocorreu àquele infeliz que andou atrás de um títutlo, como Telêmaco à cata do perdido pai.

Urgia, porém, decidir.

A Glória instava.

E a continuar daquele modo perderia a Posteridade, envelhecendo à espera de um título - como de um bilhete de viagem para ir lá ter.

Decidiu-se, enfim.

Arroubos: - foi a gravata que escolheu.

Arrependeu-se mil vezes da eleição; chegou mesmo a tentar anulá-la em favor de um candidato novo; mas era tarde: - parte do livro já estava impressa, e ao alto de cada página o título dado.

Ficou triste, desanimado.

Arroubos!... Dava lugar a esta pilhéria: Roubos!

Uma pilhéria grave!

Enfim...

Agora, na tipografia - diante da longa banca da cartonagem, cercada de operários em camisa, dobrando, cortando, cosendo, colando folhas de livros - um gozo intenso, profundo, atordoador, engasga solenemente o poeta Eugênio Lopes.

O meu livro! O meu livro! - é o estribilho íntimo da muda canção de júbilo que o seu espírito canta...

Cora e sorri; e ante os seus olhos úmidos, dilatados no espasmo daquele deslumbramento, as oito letras do título - Arroubos - impressas a carmim, em elzevir, sobre a capa de papel-granito do seu livro, passam gravemente, marchando a um de fundo, para os campos da Glória. Os RR erguem as pernas à frente, em um passo de marcha larga, majestosa: as grandes pernas de fuzileiros, vestidas das rubras calças de grande gala.

E, em cima, ao alto, por sobre um filete de fantasia o nome do autor: - Eugênio Lopes!

E, imóvel, como adormecido de olhos abertos sobre o livro fechado ainda, - sem se dar conta dos risinhos irônicos que entre a fumarada dos cigarros lhe mandam os operários, - quantos planos gloriosos, quantas quimeras, quantos delírios mudos assaltam nesse momento o poeta!

Seu nome, seu pobre nome, tão singelo e humilde, o nome de filho de um modesto molhadista por atacado; seu nome desde este dia vai partir veloz sobre os quinhentos volumes da edição; vai voar nas asas palpitantes da imprensa periódica!

Vai ser conhecido, procurado, citado e recitado, querido, talvez famoso!

"Eugênio Lopes, o mimoso poeta dos Arroubos."

Assim se previa designado em breve por toda a imprensa. Nas livrarias, entre Musset e V. Hugo, cercado pelos mais célebres poetas do mundo, está um poeta novo, chegado naquele instante das regiões do anonimato, cheirando ainda a papel molhado e a tinta de impressão.

Quem é? É ele: - Eugênio Lopes.

E, todo embebido desse luar invisível e magnetizante da cisma, com um sorriso vago a lhe pairar na boca, o poeta voltou a capa do livro, a primeira página, e ia a voltar a segunda; mas deteve-se, contemplando-a... Era a dedicatória. Dizia assim:

A ...

"Anjo, valquíria, deusa, a quem a vida
E o futuro, sorrindo, dediquei,
Aceita os versos meus, mulher querida,
E nunca mais perguntes se te amei!"

Como vai ela ficar contente e cheia de orgulho!

Mas que dirão seus pais? que dirão os velhos?

A velha, santa mulher que o adora, vai certamente chorar de júbilo ao saber que seu filho - o seu Eugênio "anda nas folhas e nos livros", todo enfeitado de adjetivos elogiosos... Quanto ao velho...

E ensombrou-se-lhe a fronte. Ah! é o destino de todos nós... pensava o poeta, enrolando um cigarro em silêncio.

Balzac, Baudelaire, Henri Conscience, Casimiro de Abreu - quantos e quantos! - encheram de mágoa e de vergonha seus velhos pais, porque se deram à glória, porque foram poetas e pensadores, em vez de agiotas e negociantes.

Paciência! Tudo sofreria resignado. Era o seu destino: havia de cumpri-lo!

Mas os críticos?... Que dirão os críticos?...

Que dirá dos Arroubos o Jornal, esse velho inimigo de sonhadores, tão severo, tão duro, tão parco de elogios? Que dirá o Jornal? Naturalmente o que sói dizer semore: - Recebemos do Sr. Fulano o seu livro de versos, intitulado Isto ou aquilo. E mais nada.

Ó sequidão antipoética!

Ah! se o Jornal dissesse ao menos: - bonitos versos, ou esperançoso, inspirado poeta... Como para o velho o Jornal é a palavra de Deus escrita na terra... do Brasil, lendo aquilo, talvez o velho embrandecesse...

E a Gazeta? que dirá a Gazeta, tão benévola para os que principiam, tão delicada na censura... mas também às vezes tão trocista?... Que dirá ela? Bem ou mal?

E, por uma súbita ligação de idéias, lembraram-lhe uns versos frouxos, outros - ásperos, que só agora reconhecia como tais...

Ah! estava perdido: - era horrível o seu livro!

Mas aquela poesia Flores mortas? Era bem feita e bonita: havia de agradar...

Logo na primeira estrofe, último verso, exatamente um dos que antes julgava melhores, encontrou formidável asneira...

Atirou o livro, empalidecendo.

No dia seguinte, muito cedo, comprou todas as folhas da manhã, - tremendo como um réu, a quem se vai ler a sua sentença - e, percorrendo-as...

- Basta, porém.

Nem mais uma palavra sobre esse poema trágico, de que havemos sido todos, mais ou menos, heróis.

Talvez que um dia o poeta dos Arroubos nos dê as suas Memórias, e então, se ele as houver escrito de todo o coração, não haverá quem se não comova e sorria, lendo esse capítulo, escrito com o próprio sangue, capítulo negro e rutilante, cheio de lágrimas e estrelado de sorrisos, que só se escreve uma vez na vida: - A grande estréia!
(Vinte contos, 1886.)

Fonte:
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
http://www.academia.org.br/

Valentim Magalhães (Juramento - A Idéia Nova -Tortura)

JURAMENTO
(F. COPPÉE)

Oh! poeta, por que te deixaste encantar,
Se deviam roubar-te essa gentil criança,
E se o seu coração, cheio de confiança,
Não podia por ti viver a palpitar?
Que importa! Germinou à luz do seu olhar
Na minh’alma tristonha e que a existência cansa
O amor, que nos remoça e enche de esperança;
Por isso eu devo sempre a bendizer e amar.
Feliz ou infeliz, ser-lhe-ei fiel ainda!
Amarei minha dor, pois dela será vinda,
Dela por quem do seio os males arranquei.
Virgem, de cujo olhar cativam-me os encantos,
Se me fazes chorar, eu abençôo os prantos,
Se me deres a morte, - a morte abençoarei.
Dezembro - 1879.
(Rimário, 1900.)

A IDÉIA NOVA
A Barros Cassal.

Abisma o teu olhar no azul do firmamento;
Devassa o velho Olimpo e o velho céu cristão:
À serena altivez do seu deslumbramento
A indagadora vista elevarás em vão!

Está deserto o céu! No grande isolamento
Palpita, ensangüentado, o sol - um coração.
Mas os deuses de Homero, o Jeová sangrento,
Alá e Jesus Cristo, os deuses onde estão?

Morreram. Era tempo. Agora encara a terra:
Ressoa alegre a forja e sai da escola um hino.
O Gênio enterra o Mal em uma negra cova.

Deus habita a consciência. O coração descerra
Aos ósculos do Bem o cálix purpurino.
Vem perto a Liberdade.
É isto a Idéia Nova.
S. Paulo, abril - 1879,
(Rimário, 1900.)


TORTURA
A Adelino Fontoura.

Ante a mesquita d’áureos minaretes
Açoitam dois telingas a traidora;
As vergastas, sutis como floretes,
Sibilam sobre a carne tentadora.

À vibração das varas, estremecem
Seus níveos membros firmes, delicados,
E, nos espamos do sofrer, parecem
Das contorsões do gozo eletrizados.

Geme aos golpes, que as carnes lhe retalham,
E aberta a rósea boca, os olhos belos
Pérolas vertem, que seu peito orvalham;

Dobram-se as curvas, soltam-se os cabelos,
E do alvo colo, amargurado e exangue,
- Como esparsos rubis - goteja o sangue.
Julho - 1881.
(Rimário, 1900.)
-
Fonte:
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
http://www.academia.org.br/

Viriato Corrêa (Cazuza)

Tese mostra como o escritor Viriato Corrêa transformou seu personagem, protagonista de livro homônimo publicado em 1938, em arquétipo do “cidadão dos novos tempos”

Um menino narra as amargas experiências escolares com um professor autoritário no minguado povoado onde nasceu, encravado no fundo do Maranhão, até os dias de colégio na capital, São Luiz. Esse o núcleo do livro Cazuza, do escritor maranhense Viriato Corrêa, objeto de dissertação de mestrado — Literatura infantil, história e educação: Um estudo da obra de Viriato Corrêa —, de Ana Elisa de Arruda Penteado, defendida na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp.

Analisando a relação entre literatura infantil, história e educação, a pesquisadora procura resgatar das páginas de Cazuza como estavam sendo discutidas questões como pátria, trabalho e educação, temas de grande relevância na construção da ideologia do Estado Nacional, que se pretendia arquitetar no momento em que a obra foi escrita. De acordo com Ana Elisa, Viriato Corrêa certamente pretendia, ao escrever sua obra máxima, ir além de um simples romance. Podendo ser visto como um livro de formação, o escritor planejava, com Cazuza, constituir “o cidadão dos novos tempos”. Além de escrever um belo romance, desejou denunciar práticas abomináveis de disciplina nos estabelecimentos de ensino da época. Como a prática do “bolo”, castigo por meio da palmatória.

Publicado pela primeira vez em 1938, em pleno regime do Estado Novo, logo após o golpe de 37, “o livro insere-se no amplo projeto empenhado em construir o Estado Nacional e o novo cidadão que a ele convinha. Um projeto que começou a ser esboçado nos primórdios da República”, explica Ana Elisa. O país passava por um processo de modernização equipando-se para ingressar numa nova era do desenvolvimento do capitalismo e a educação era, obviamente, um eficiente instrumento de controle social e de consolidação de um regime autoritário, perpetrado por Getúlio Vargas.

Jornalista, contista, romancista, teatrólogo, dramaturgo, autor de uma série de livros infanto-juvenis, Viriato Corrêa foi ainda professor de história do teatro, de história e geografia no ensino público e membro da Academia Brasileira de Letras. A pesquisadora diz que, com Cazuza, o escritor faz uma crítica à escola do início do século, que ainda conservava o ranço do Império. Quer dizer, os alunos, em classe, apenas ouviam a voz do professor, principalmente nos estabelecimentos de vilarejos, espalhados pelas cidades do interior. “O professor constituía a única pessoa na sala com o poder absoluto da palavra. Só ele falava e as crianças apenas ouviam e copiavam as lições, no mais completo silêncio. Se porventura respondessem de forma errada, os alunos apanhavam”, revela o livro.

O cotidiano de uma sala de aula da escola de primeiras letras, no povoado, era como uma prisão: “qualquer movimento, qualquer olhar de esguelha, qualquer cochicho era motivo para que a criança fosse punida freqüentemente com castigos físicos. O vilão da história de Cazuza era o professor João Ricardo, criatura de cara amarrada, intratável e feroz”, que costumava segurar os alunos pelas orelhas e fazer vibrar a régua em suas cabeças. “O professor passeava pela sala de mãos para trás, vigiando-os através dos óculos pretos, com ar terrível de quem está com vontade de encontrar um pretexto para castigar”, conta o personagem Cazuza. As crianças ofereciam as mãos para que o professor batesse nelas com a palmatória.

Certa vez Cazuza levou tanto “bolo” do professor que suas mãos ficaram inchadas e sangrando; isso revoltou seus pais, que decidiram tirá-lo da escola do povoado. “A questão do ‘bolo’ e a precariedade da escola do povoado, assim como a hostilidade do professor, retratam um quadro negro da educação no País do final do século 19”, observa Ana Elisa. É nesse contexto político e ideológico que o livro Cazuza é elaborado. Destinada às crianças, a obra traz, num tom fortemente didático, questões que envolvem a moral, o enaltecimento de virtudes que devem a todo custo ser seguidas. “Como a tolerância, a generosidade, a obediência, o respeito e a piedade, assim como o repúdio aos vícios — a mentira, a soberba, o autoritarismo — a exaltação do amor à família, célula a ser mantida, pois é no seu seio que se inicia a formação do cidadão, posteriormente lapidado pela escola”, acredita Ana Elisa.


TRECHO

"Cada par copiava um mesmo trecho de prosa e vencia o aluno que apresentasse a letra mais bonita. O prêmio que se lhe dava era meter-lhe na mão a palmatória para que castigasse o vencido com uma dúzia de “bolos”. O professor chamou o meu nome e o nome do Doca. Aproximamo-nos da grande mesa. Eu tremia. Durante três minutos o velho examinou e comparou as duas escritas. Depois disse:
As duas letras são bem parecidas. Não se pode dizer que uma seja melhor do que a outra. Ambas são boas.
E lançou o julgamento:
“Empate”.
Respirei livremente.
O professor entregou-me a palmatória.
“Para que isso?”, perguntei.
“Para que há de ser?”, disse-me. Os dois não empataram?”. Você dá seis ‘bolos’ nele, e ele lhe dá seis ‘bolos’”.
Achei aquilo um disparate. Olhei o velho com surpresa.
“Que é que você está olhando?”, roncou ele asperamente.
A minha língua travou.
“Não posso compreender isso!, exclamei. Por que houve empate? Porque o Doca tem letra boa e eu tenho letra boa. Então quem tem letra boa apanha?”

João Ricardo ergueu-se da cadeira com um berro.
“Não quero novidades! Sempre e sempre foi assim. Atrevido! Quem é aqui o professor?
E entregou a palmatória ao Doca.

Fonte:
Cazuza ou a Cartilha das Virtudes. artigo publicado por Antonio Roberto Fava no Jornal da UNICAMP - 17 a 23 de junho 2002
http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/junho2002/unihoje_ju177pag11.html