quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Marcio Brasil (Sobre amores e cores... )

Marcio Brasil (Cor de Rosa)
Num dia de chuva e vento, ele voltava para casa. Seu guarda-chuva não era dos melhores e, na verdade, já tinha algumas barbatanas tortas que ele insistia que voltassem ao lugar e esquecessem de obedecer as ordens do vento. Cruzou por centenas de outros guarda-chuvas de cores mil, até que se chocou com uma sombrinha cor-de-rosa (como é a cor do céu dos apaixonados...). Ela derrubou as pastas de escritório que carregava. Ele entortou o guarda-chuva e arrebentou as barbatanas em definitivo. Ajudou a recolher os papéis dela no chão e recuperou outros que tentavam ganhar o céu, num balé aéreo. Ele se molhava, mas sentia o perfume que ela usava. Eternity.

- Eu te dou uma carona debaixo do meu guarda-chuva...

Ela ofereceu. Ele, queria pedi-la em casamento...
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O garoto chorava e não queria largar da mão de sua mãe, que o levava ao primeiro dia de aula da sua vida. "Vá conhecer seus coleguinhas". Mas ele não queria. Aquele era um mundo estranho, cheio de estranhos. A mãe enxugava as suas lágrimas e quase se deixava convencer pelos seus apelos de levá-lo de volta para casa. Foi quando uma amiga chegou, trazendo sua filhinha, um pequeno anjo vestido de um azul cor-de-céu. Se recompondo diante do olhar da menina, o garoto secou as lágrimas e retribuiu o sorriso doce, corajoso e inspirador diante dele. A menina lhe estendeu a pequena e delicada mão.

- Vamos entrar juntos.

Ele tocou nos seus dedos, sem desviar de seus olhos brilhantes e do sorriso cheio de vida. E, confiantes um no outro, caminharam de mãos dadas até a sala de aula, ante o olhar orgulhoso de suas mães. Foi nesse dia em que ele conheceu o seu primeiro amor, mesmo sem saber o porquê de seu coração bater mais forte perto dela...
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Tudo tinha que ter lógica para ela. Era matemática e acreditava em resultados exatos e precisos. Tudo preto no branco. Se gostasse de poesia, teria estudado Letras. Mas não acreditava nisso. Desprezava poesia e odiaria receber flores (ela dizia). Para ela, o coração era simplesmente um órgão muscular cuja função era bombear o sangue vermelho para o organismo. Algo lógico e nada a ver com a descrição alienada de adolescentes apaixonadas e tolas, contagiadas pela síndrome de Cinderela (sempre à espera de um príncipe a lhe tomar nos braços). O amor, para ela, era uma farsa inventada para disfarçar nossos instintos primários de seleção natural e acasalamento (lógico que o ser humano é um animal, ainda que racional). Algo exato. O amor, ela dizia, era como um perfume caro que se comprava para disfarçar o odor do corpo humano ou a menta da pasta de dente. Podia até impregnar sua pele ou refrescar sua boca, mas isso não fazia parte de sua natureza. Era uma ilusão breve. Ela podia viver sem perfume, assim como podia viver sem amor. (E se o príncipe se desencantasse sentindo o bafo e o chulé da Cinderela ao calçar-lhe os sapatinhos de cristal?) Era fácil descontruir mitos. Deus? Uma lenda criativa, tão inventiva quanto o Papai Noel ou o Coelhinho da Páscoa. Para ela, a explicação divina para todas as coisas foi o tempo perdido para achar a verdade sobre todas essas coisas.

- Tudo nasce, cresce e morre. Acontece com uma planta, acontece com um sapo, acontece com uma bactéria e não há nada de romântico ou misterioso nisso. É pura lógica, matemática e cronologia.

Tudo tinha que ter lógica. Mas o que ela não conseguia entender era por que, entre seis bilhões de pessoas no planeta, foi se apaixonar justamente por aquela pessoa? O que tinha ela de tão especial, a ponto de destruir toda a visão de mundo que ela possuia e revirar seus conceitos pelo avesso? "Meu Deus, me permita viver esse amor", ela pediu, após mais uma noite insone e sem lógica...
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Ele tinha aceitado o conselho dos amigos e resolveu participar do tal grupo de terceira idade. Vivia sozinho, mas ao contrário do que os velhos amigos pensavam, ser sozinho não era de todo o mal. Ele fazia os seus horários, dormia até a hora que queria, comia de vianda, fazia suas caminhadas, deixava a roupa espalhada e pedaços do jornal que lia por toda a casa. E ninguém reclamava de outros hábitos peculiares. Depois de ter sido casado por 40 anos, ele reaprendia a viver uma vida de solteiro. E não era tão mal assim. Só ainda não havia se acostumado com aquele espaço vazio no sofá, ao seu lado na hora do chimarrão ou da novela (as horas cor-de-cinza e de saudade). Ela não estava mais aqui e ele, bem, ele era um velho. Naquele dia, no grupo de terceira idade, ele dançou. Até que a cãibra lhe fez perder o compasso.

- Já passei por isso também.

Ela disse, sentando ao seu lado.

- Pela cãibra?

Ele perguntou, bem humorado.

- Não. Por achar que minha vida tinha terminado com morte de meu marido.

Respondeu aquela senhora, que não pintava o cabelo, nem maquiava as marcas da passagem do tempo.

- E como superou?

Ele indagou.

- Percebendo que o mundo foi criado em nome do amor. E também que o tempo que temos é muito curto e que os medos que alimentamos são ilusórios. Como o de dizer que me apaixonei por ti.

Ele sorriu, como uma criança no primeiro dia de aula...
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Dois estranhos cruzam seus caminhos numa rua qualquer, numa pequena cidade qualquer, em frente a uma praça verde e arborizada qualquer. "Pode ser ela", ele se indaga. Ela, ele não sabe o que pensa, incapaz de ler pensamentos ou, simplesmente, de decifrar ou perceber as sutilezas femininas. Seus passos são apressados e carregados de compromissos profissionais. Ficam paralelos por uma fração de segundos, mas - sabe aquelas cenas de filme em que tudo fica em câmera lenta? Foi o que aconteceu aqui- ela passou ao lado dele, que invadiu-se de mil pensamentos, de mil frases para dizer, de uma vontade indescritível de desvendar aquele ser encantador que cruzava ao seu lado (e que inexplicavelmente não era notado pelos outros ao redor, como que acostumados a conviver com uma força da natureza absurdamente bela e enigmática, como a Lua). Em segundos, estavam distantes um do outro para, sei lá quando, cruzarem seus caminhos novamente. Restou a ele gravar as cenas em sua memória, retroceder seus passos e apertar o slow-motion para decorar aqueles poucos segundos em que a mulher mais apaixonante do mundo cruzou seu caminho numa rua qualquer, numa pequena cidade qualquer, em frente a uma praça verdejante qualquer...
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Ela passou a noite escrevendo poesia. Estava triste, profundamente. Tudo por causa de um amor. Num de seus versos descreveu que "o amor é a maior força do universo. Mas os que se vêem tomados por essa força se tornam intensamente fracos". Ela sabia o que descrevia e transformava a tristeza em poesia. Ela lembrava dele, do seu amor (que a deixou intensamente fraca). Já havia partido (em pedaços?) e estava longe. A distância não era apenas física, mas cronológica. Os dias, meses e anos passavam impiedosos e ela acreditava no seu retorno. "Talvez não como fomos, duas pessoas que se conheciam em corpo e alma. Mas como se fosse a primeira vez, quando você sorriu para mim e acreditamos que seria para sempre", ela escrevia em seus versos. Em seguida, boba, rasgava as páginas. Especialmente ao ouvir Por Enquanto, em que Renato Russo diz na canção que "o prá sempre, sempre acaba". Renato sempre soube das coisas. Ela abriu as janelas e deixou o vento entrar, fechou os olhos e sentiu a brisa brincar com seus cabelos. Ela era bela, intensamente bela, pelos sentimentos que nutria. E resolveu que não iria mais se fechar para o mundo. "Por que um romance do passado parece tão mais confortável de abraçar, com seus erros e acertos, do que estar aberta ao futuro, estranho e distante diante de nossos olhos?", se perguntou. Ela decidiu que não seria mais fraca e que o amor lhe daria forças. Amando a si própria, sem esperar pelo amanhã ou fazer planos de romances embalados por trilhas sonoras da novela das oito.

- O verdadeiro amor surgirá sem cobranças, sem exigir mudanças, compreendendo minhas falhas humanas, e será intensamente lindo, aos meus olhos. O verdadeiro amor será sublime, será fiel. E será simples, como meus versos e complexo como o meu coração. Como é a beleza de uma rosa e a textura de suas pétalas...

Escreveu a poetisa (sem escrever...) com a ponta dos dedos no azul do céu, onde as nuvens se uniam tomando a forma de um coração, à espera de um pôr-do-sol encantador... :)

Fonte:
http://marciobrasil7.blogspot.com/search/label/Contos

Gianfrancesco Guarnieri (Cem Gramas)

Marcio Brasil (O Engraxate)
Cem Gramas era miúdo e transparente, daí o apelido. Corria sobre duas pernas longas e finas em desproporção com o corpinho mirrado. Arrastava sua caixa de engraxate por um barbante comprido e ensebado. A caixa era seu trem e, às vezes, automóvel, navio, até mesmo avião. E corria pelas ruas, a caixa atrás, saltando, batendo, lascando-se no calçamento. Era seu instrumento de trabalho, brinquedo e cofre. Lá dentro, de mistura com graxa, escova e flanelas, as riquezas de Cem Gramas: um punhado de figurinhas, selos do Correio Nacional, uma caneta tinteiro sem pena, três bolinhas de gude, duas tiras de papelão ondulado, um “bob” de enrolar cabelo, uma faquinha de lâmina partida.Já perdera muitos fregueses por ficar absorto, manuseando a tralha, enquanto outros engraxates, mais vivos, tomavam conta do cliente.

Em verdade, raras vezes Cem Gramas conseguia serviço. Na disputa pelo trabalho, levava sempre a pior. Bastava um empurrão, de leve, para deixar Cem Gramas sem ação, vencido, choramingando. O que levava para casa era fruto de caridade. Gente que se compadecia e, sem usar de seus préstimos, lhe atirava alguma nota miúda. Cem Gramas não tinha o talento de alguns dos companheiros. Tuíra, o negrinho, atraía o freguês compondo sambas na hora, engraxando e batendo o ritmo na caixa; Miguelzinho utilizava com habilidade um sorriso gostoso de moleque maroto; Bentinho sabia enaltecer a superior qualidade do material que usava; Jamegão contava piadas incríveis; Rui Barbosa entretinha o freguês falando sobre política, com toda a autoridade de seus sete anos.

Cem Gramas não fazia nada. Podia atrair despertando compaixão, mas não se dava ao trabalho. O que conseguia não era por mérito. Não descobrira ainda a indústria da piedade. Distraído, boca sempre aberta, olhos arregalados como numa admiração constante, deixava-se viver, muito só, resignado, descobrindo as coisas do mundo, uma a uma, com moderado interesse.
Sabia que voltando à favela com pouco ou sem dinheiro levaria uma surra dolorida, raivosa. O pai - se era pai mesmo ninguém sabia - não se dava bem com o trabalho e quase sempre folgava, embebedando-se desde cedo. A mãe, mulher coitada, com dores, cuidando como podia de um barraco em ruína e do nada que tinha. Trabalho mesmo era dos pequenos, cinco crianças magras e largadas, entre elas o Cem Gramas. Dois engraxavam e três vendiam coisas: pentes, barbatanas e flor. O negócio estava em processo de ampliação. Tinha os fornecedores, os intermediários e a mão-de-obra miúda e doentia.

Diziam, com orgulho, trabalhar no comércio. Temendo a pancada, arrumavam-se todos de outra forma, que o rendimento das vendas nem sempre era considerável. E daí, que o maiorzinho - Julito - já estava adquirindo fama de punguista. Cem Gramas é que não tomava jeito. Resignando-se, cada vez mais, às surras, não se importava muito com dinheiro, mesmo porque não lhe conhecia o valor. Mas de tanto apanhar acabou por perder dois dentes e a dor foi aguda. Acabou por compreender o que se exigia dele e resolveu atender o pai. Mas dinheiro não vinha que não sabia criar habilidade. Foi quando recebeu a proposta de Juvenal, o Mais-que-Deus (o apelido provinha da extrema vaidade e prepotência do dito). O que tinha a fazer era simples: postar-se na estrada e à aproximação de alguém, chorar e simular fortes dores pelo corpo. Achou fácil e até engraçado e, lá pelas dez horas, foi pra estrada e fez tudo como o combinado.

O primeiro passante não caiu no conto, nem o segundo e terceiro, mas o quarto, um senhor já, acudiu o menino, levando-o para a margem da estrada. De um salto, Mais-que-Deus fez o serviço. E, no fim da noite, depois de muito se repetir o jogo, foi feito o balanço. Oito contos e trocados, relógios, dois anéis, dois chaveiros, as peças de um caminhão e um morto. Cem Gramas ganhou mil cruzeiros em notas de duzentos. Preferia os anéis e mesmo os chaveiros. Mais-que-Deus não quis saber:

- Fica com isso, isso é que serve. Dá uma nota dessas pro teu velho, uma só. Gasta o resto. Depois vem mais. E só…

Passou os dedos nos lábios impondo segredo. E Cem Gramas obedeceu. Deu uma nota de duzentos para o pai e naquele dia não apanhou. Andou de táxi e teve muita alegria. Perdeu uma das notas e guardou a outra na caixa de engraxate. À noitinha saiu à cata de Mais-que-Deus, procurando serviço.

Fontes:
GUARNIERI, Gianfrancesco. (Organização: Worney Almeida de Souza). Crônicas de 1964. Ed. Xamã, 2008.
Pintura = http://marciobrasil7.blogspot.com/

José Verdasca (A Vida, o Homem e o Universo: ensaios crítico-analíticos)



O Autor procedeu a uma pesquisa cuidadosa, servindo ao leitor as opiniões das várias tendências filosóficas e científicas que pontuaram de luz a sabedoria humana ao longo dos tempos. Uma obra de boa e reta intenção, sem precipitações e principalmente sem conclusões, obviamente impossíveis e indesejáveis num campo de tão delicados conteúdo e contorno.

Ao escolher uma temática desta natureza, ao fazer-nos navegar entre a essência e a existência, das incertezas epistemológicas para as que a escatologia suscita, o autor conseguiu promover o pensamento introspectivo de quem lê, tornando a leitura deste livro num sadio exercício da busca de si próprio e de novas descobertas ou alegrias intelectuais, alargando os horizontes desde o psicológico/individual ao coletivo/sociológico/humanidade. Ao interrogar-se sobre o seu próprio momento entre a origem e o fim, com os escassos instrumentos de complexidade cerebral de que ainda dispõe, o ser humano não deixará certamente de desejar a passagem dum tempo geológico que lhe permita abarcar tudo quanto lhe escapa... Se não vier a destruir a sua própria humanidade.

Pois se é verdade que o Homem aprendeu a dominar a Ciência e a Técnica antes de ter atingido a verdadeira dignidade humana; se é o único ser vivo sobre a Terra capaz de contrariar o terceiro princípio da termodinâmica; se não se capacitar da necessidade fundamental de uma convivência sadia consigo próprio, com os outros e com o ecossistema de que também faz parte - aquilo a que Carl Roger chamou nos anos 60's fenômeno organísmico - nunca a espécie humana viverá o tempo geológico suficiente para compreender as origens e o destino da humanidade que irá destruir, em conjunto com a sua aldeia global, num tempo meramente histórico.

Na contracapa:

Conhece-te a ti mesmo, e conhecerás o Universo e os deuses"
(Inscrição no Templo de Delfos)
Fruto de séria e profunda investigação, serena e intuitiva meditação e objetiva e honesta reflexão, através das quais o autor tentou dissecar os segredos da alma humana, descortinar os domínios secretos da Vida e do Homem e penetrar os mistérios do Universo, esta obra aborda os problemas do Espírito à luz do misticismo de Profetas, Filósofos, Sábios e os até agora ignorados elétrons espirituais, revelados pêlos maiores físicos subatômicos da atualidade, muitos dos quais se vêm identificando com os místicos de antanho, como que a provar o ciclo vicioso que a tudo e a todos acompanha, talvez porque de forma esférica sejam o cérebro humano e o Globo Terrestre, os astros e as estrelas, o átomo e as partículas subatômicas, e, quiçá, o próprio Universo.
Não sendo obra de natureza religiosa e muito menos de opinião, trata-se, isso sim, de um livro de índole reflexiva e expositiva, cujos objetivos primordiais visam informar o(a) leitor(a), e, sobretudo, levá-lo(a) a refletir profundamente sobre os mistérios que ensombram a existência humana, os segredos que rodeiam a Essência ou origem dos Espíritos e os enigmas que à Vida concernem e que aguçam a curiosidade intelectual dos homens superiores, desafiam a intuição humana e agridem as mais lúcidas inteligências, tornando-se fonte de constantes preocupações e indagações ao longo da nossa experiência, enquanto seres espirituais que realmente somos.
Nilton Barbosa Lima (do Parlamento Mundial para Segurança e Paz)

Alguns trechos do prólogo do livro:

com o prólogo (do gr. pro=a favor+logos=exposição, discurso, verbo, texto), temos a intenção de apresentar, esclarecer e explicar o texto, desejando torná-lo mais acessível, claro e compreensível, em especial no que concerne aos assuntos, idéias e conceitos habitualmente considerados complexos e ou de difícil entendimento, pelo que podem bloquear a nossa limitada capacidade de discernir e ou escapar ao campo da nossa inteligência; aos temas metafísicos, que estão acima ou para além da física (Natureza); e, ainda, dos considerados místicos (do gr. Mystikos=misterioso), de natureza especificamente intuitiva, contemplativa e ou meditativa, e que abordam o possível e ou hipotético contato dos humanos com o divino e com os seus mistérios, dogmas e ou enigmas, valendo-se da contemplação e da meditação, através da intuição mística, quando esta busca explicar as "visões" e ou experiências extra-sensoriais e ou da Vida do Espírito.

Ao longo da nossa exposição vamos tentar analisar, clarificar, relatar e definir, primordialmente, os conceitos expressos nos vocábulos título - Vida, Homem, Universo - perfeita trilogia cósmica que guarda semelhança com a Trindade formada pela essência (origem, constituição primeira, atributo fundamental), pela existência (viver de entes e seres), e pela Natureza (physis=conjunto dos seres e do mundo físico), aqui englobadas a natureza do Homem e a natureza da Natureza, bem como os fenômenos físicos e suas causas; acreditamos que os conceitos dos citados vocábulos título apresentam grande analogia com a idéia que a cristandade faz de Santíssima Trindade - Pai, Filho e Espírito Santo - ou ainda com os seus equivalentes dos antiqüíssimos deuses bramânicos - Brama (o Pai), Maya (a Mãe), e Visnu (o Filho) - que são essência, substância e Vida segundo os Upanishad da doutrina bramânica.

Temos plena consciência de que os assuntos aqui abordados são naturalmente polêmicos, mas gostaríamos de encarecer que não nos move qualquer intenção de polemizar, mas tão somente o desejo de debater para esclarecer, de expor para aprofundar e de comparar para optar, pois os temas são apresentados com o objetivo de despertar a curiosidade e o interesse do leitor, no sentido de tentar desmistificar tabus, de estudar crenças e religiões e de - conhecendo-as melhor - podermos alicerçar nossas convicções em bases e dados mais sólidos, onde a intuição mística seja complementada pelo raciocínio dedutivo, para que, através dele e por meio do silogismo, possamos tentar chegar a conclusões lógicas, portanto inteligentes.

O tema - ou temas - da presente obra é, ou são, talvez, os mais profundos de que poderíamos ocupar-nos, porquanto, desde sempre, a preocupação maior de nossos antepassados foi com as nossas origens, com o significado e interpretação daquilo que chamamos nascimento e morte e com o nosso destino após esta, e em especial com o sofrimento humano, mormente com a ansiedade e ou a angústia que, sem aviso prévio, muitas vezes de nós se apodera: a estas o Papa João Paulo II chamou "sofrimento da alma", exclusivo da nossa espécie ao longo do percurso dos homens na Terra; tal sofrimento tem muito a ver com a especulação dos crentes acerca da chamada vida extra-terrena ou eterna, e muito especialmente com a intranqüilidade ou insegurança provocada pelos primitivos mitos de céu ou paraíso, inferno e purgatório.
(...)
Acerca do título da obra - A Vida, o Homem e o Universo - urge explicar que se trata de três vocábulos de conceitos convergentes, porquanto a Vida inclui todas as vidas (em todo o Universo), quando o Homem engloba todos os homens (passados, presentes e futuros), ou seja a Humanidade, com o Universo abarcando o todo material e espiritual que são as vidas da Vida, que dele procedem para encarnar nos homens, e à Natureza retornam após a desencarnação; deste modo, estamos em presença de uma Trilogia interdependente e ou complementar, quando as três partes compõem o todo, quando o Microcosmos se aglomera e ou aglutina para formar o Macrocosmos, ou seja, quando as partículas elementares se vão juntando para a incorporação, perfeita, contínua e permanente evolução renovadora dos seres, cuja aparente matéria será fruto da atuação conjunta das quatro forças universais conhecidas: forças nuclear forte, nuclear fraca, eletromagnética, e gravítica.

Relativamente ao Universo, impõe-se-nos que o tentemos enxergar como incomensurável - como supomos que realmente é - composto de sistemas "provavelmente formados ou criados à imagem e semelhança do Sistema Solar", gigante sideral por sua vez também "desenhado" segundo o modelo do átomo, cujo núcleo equivaleria ao Sol, e cujos elétrons corresponderiam aos satélites, pois, como estes, giram em torno do núcleo, quando tudo e todos seriam compostos por matéria altamente concentrada, quem sabe talvez apenas energia que ainda confundimos com matéria. Neste nosso Universo - que continua praticamente desconhecido, "comandado" pelas citadas "grandes forças'' a que pensamos dever a sua harmonia, o seu equilíbrio, o seu funcionamento, talvez mesmo a sua existência - nada acontece por acaso, pois todos os fenômenos ditos naturais têm suas causas específicas, mesmo que por nós ignoradas; e se avançarmos em hipóteses e elucubrações, raciocínios e explicações, teses e conclusões, decerto acabaremos valendo-nos da nossa intuição mística que nos guiará no caminho já seguido pelos grandes místicos, fundadores de velhas religiões e ou de sérias teorias filosófico-morais.

É, pois, de tais seres e temas, conceitos e problemas, idéias e sistemas que vamos tratar, com seriedade mas com muita humildade; com determinação mas com profundo respeito; com objetividade mas sem qualquer tipo de preconceito; e, finalmente, com a melhor das intenções e com a mais rigorosa honestidade intelectual, apesar de sabermos - como muito bem sabemos - que a inteligência humana tem seus limites, que o domínio da língua é precário e que a linguagem escrita se presta a mal entendidos, incompreensões, distorções, erros e mesmo a contradições, falhas que aqui decerto existem, já agora assumimos e pelas quais definitiva e pessoalmente nos responsabilizamos; no que respeita às nossas limitações - por demais evidentes a quem tiver a bondade de ler o presente trabalho - delas temos uma rigorosa noção e para elas solicitamos generosa compreensão. É pois com sincera humildade, mas com muita esperança, que passamos a desenvolver os temas que nos propusemos, certos de que - em maior ou menor grau, e em circunstâncias favoráveis - alguma utilidade, proveito ou benefício poderão os nossos leitores obter deste trabalho.
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Fontes:
- VERDASCA, José. A vida, o homem e o universo: ensaios crítico-analíticos. São Paulo: Scortecci, 2006. (contracapa e pp.25-27, 33,34).

José Verdasca (1936)

José Verdasca (em pé) ao lado do presidente do Gabinete
de Leitura Sorocabano, Cel. Verlangieri.= (sentado).
José Verdasca nasceu em Gondemaria, Ourém (Fátima), Portugal, em 1936. Após o curso dos liceus efetuado no Colégio Fernão Lopes de Ourém, e no Liceu de Camões, em Lisboa, licenciou-se em ciências militares na Academia Militar de Lisboa, onde, no livro de curso, se iniciou na poesia. Prestou duas comissões de serviço nas antigas colônias portuguesas da África, a primeira como alferes em Cabo Verde e a segunda como capitão em Moçambique, onde enfrentou a guerrilha comandando várias unidades de combate. Freqüentou o curso de língua e cultura francesas na Alliance Française.

Emigrou para o Brasil em 1967, onde se dedicou ao comércio e indústria de madeiras, à pecuária e à construção civil. Licenciado e pós-graduado em Administração de Empresas pela Universidade Mackenzie, há duas décadas vem se dedicando à pesquisa histórica, tendo publicado as seguintes obras: "A Casa de Portugal e a Comunidade", "A Língua de Camões - Do Homo Sapiens à Língua Portuguesa", "Raízes da Nação Brasileira - Os Portugueses no Brasil" e "Memórias de um Capitão", esta editada e lançada em Portugal. Organizou, coordenou, comentou e prefaciou "Sermões Escolhidos" do Padre Antônio Vieira para a Editora Martin Claret.

É sócio titular da Academia Paulistana da História, do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, da Academia Cristã de Letras, da Sociedade de Geografia de Lisboa, da Ordem Nacional dos Bandeirantes e da Ordem Nacional dos Escritores, de que é o atual Presidente da Diretoria. Tem textos publicados nas revistas Ceru (Usp), Unicamp e em outras publicações brasileiras e estrangeiras. Profere palestras e conferências em universidades e instituições culturais no Brasil e no exterior. É Diretor de Relações Exteriores da Universidade Europan e membro do Parlamento Mundial para Segurança e Paz.

Foi distinguido com as seguintes honrarias e distinções: Ordem do Mérito Cultural Carlos Gomes; diploma de Honra ao Mérito da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo; diploma dos 500 anos do Brasil outorgado pela Secretaria de Estado da Cultura, Academia Paulista de Letras e Instituto Genealógico Brasileiro; Ordem Católica de São Miguel Arcanjo, no grau de cavaleiro-comendador, além de algumas dezenas de diplomas, medalhas e outras distinções.

Casado no Brasil, é pai de um casal de fihos e avô de três netas.

Fonte:
VERDASCA, José. A vida, o homem e o universo. São Paulo: Scortecci, 2006. (orelhas do livro)

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

António Gedeão (1906 - 1997)


(Rómulo Vasco da Gama de Carvalho), nasceu em Lisboa em 1906. Criança precoce, aos 5 anos escreveu os seus primeiros poemas e aos 10 decidiu completar "Os Lusíadas" de Camões. A par desta inclinação para as letras, ao entrar para o liceu Gil Vicente, tomou contacto com as ciências e foi aí que despertou nele um novo interesse.

Em 1931 licenciou se em Ciências Físico Químicas pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e em 1932 conclui o curso de Ciências Pedagógicas na Faculdade de Letras do Porto, prenunciando assim qual seria a sua atividade principal daí para a frente e durante 40 anos: professor e pedagogo. Exigente e comunicador por excelência, para Rómulo de Carvalho ensinar era uma paixão e uma dedicação. E assim, além da colaboração como co-diretor da "Gazeta de Física" a partir de 1946, concentrou durante muitos anos, os seus esforços no ensino, dedicando se, inclusive, à elaboração de compêndios escolares, inovadores pelo grafismo e forma de abordar matérias tão complexas como a física e a química. Dedicação estendida, a partir de 1952, à difusão científica a um nível mais amplo através da coleção "Ciência Para Gente Nova" e muitos outros títulos, entre os quais "Física para o Povo", cujas edições acompanham os leigos interessados pela ciência até meados da década de 1970.

Apesar da intensa atividade científica, Rómulo de Carvalho nunca esqueceu a arte das palavras e continuou sempre a escrever poesia. Porém, não a considerando de qualidade e pensando que nunca seria útil a ninguém, nunca tentou publicá-la, preferindo destruí-la. Só em 1956, após ter participado num concurso de poesia de que tomou conhecimento no jornal, publicou, aos 50 anos, o primeiro livro de poemas "Movimento Perpétuo" com o pseudônimo António Gedeão.
Continuou depois a publicar poesia, aventurando se, anos mais tarde, no teatro, no ensaio e na ficção.

Nos seus poemas há uma simbiose perfeita entre a ciência e a poesia, a vida e o sonho, a lucidez e a esperança. Aí reside a sua originalidade, difícil de catalogar, originada por uma vida em que sempre coexistiram esses dois interesses totalmente distintos.

A poesia de Gedeão é bastante comunicativa e marca toda uma geração que, reprimida por um regime ditatorial e atormentada por uma guerra, cujo fim não se adivinhava, se sentia profundamente tocada pelos valores expressos pelo poeta e assim se atrevia a acreditar que, através do sonho, era possível encontrar o caminho para a liberdade. É deste modo que "Pedra Filosofal", musicada por Manuel Freire, se torna num hino à liberdade e ao sonho. Mais tarde, em 1972, José Nisa compõe doze músicas com base em poemas de Gedeão e produz o álbum "Fala do Homem Nascido".

Nos anos seguintes dedicou se por inteiro à investigação, publicando numerosos livros, tanto de divulgação científica, como de história da ciência. Gedeão também continuou a sonhar, mas o fim aproximava se e o desejo da morrer determinou, em 1984, a publicação de Poemas Póstumos.

Em 1990, já com 83 anos, Rómulo de Carvalho assumiu a direção do Museu Maynense da Academia das Ciências de Lisboa, sete anos depois de se ter tornado sócio correspondente da Academia de Ciências, função que desempenharia até ao fim dos seus dias.

Quando completou 90 anos de idade, a sua vida foi alvo de uma homenagem a nível nacional. O professor, investigador, pedagogo e historiador da ciência, bem como o poeta, foi reconhecido publicamente por personalidades da política, da ciência, das letras e da música. Faleceu em 1997.

Obra Literária:
Poesia: "Movimento Perpétuo", 1956;
"Teatro do Mundo", 1958;
"Declaração de Amor", 1959;
"Máquina de Fogo", 1961;
"Poesias Completas", 1964;
"Linhas de Força", 1967;
"Soneto", 1980;
"Poema para Galileu", 1982;
"Poemas Póstumos",1984;
"Poemas dos textos", 1985;
"Novos Poemas Póstumos", 1990

Ficção:
"A poltrona e outras novelas", 1973

Teatro:
"RTX 78/24", 1978;
"História Breve da Lua", 1981

Ensaio:
"O Sentimento Científico em Bocage", 1965;
"Ay Flores, Ay flores do verde pino", 1975

Obra Científica:
"Ciência Hermética", 1947;
"Embalsamento Egípcio", 1948;
"Relações entre Portugal e a Rússia no Século XVIII", 1979;
"A Atividade Pedagógica da Academia das Ciências da Lisboa nos Séculos XVIII e XIX", 1981;
"A Astronomia em Portugal no Século XVIII", 1985;
"História do Ensino em Portugal, desde a fundação da nacionalidade até ao fim do regime de Salazar Caetano", 1986;
"O Texto Poético Como Documento Social", 1994
Diversos Livros de física e química em geral.

Fonte:
http://www.truca.pt/ouro/biografias1/antoniio_gedeao.html

Antonio Gedeão (Poesias)

Real Bordalo (Arco do Marques do Alegrete)
Certezas, precisam-se

Preciso urgentemente de adquirir meia dúzia de valores absolutos,
inexpugnáveis e impenetráveis,
firmes e surdos como rochedos.

Preciso urgentemente de adquirir certezas,
certezas inabaláveis, imensas certezas, montes de certezas,
certezas a propósito de tudo e de nada,
afirmadas com autoridade, em voz alta para que todos ouçam,
com desassombro, com ênfase, com dignidade,
acompanhadas de perfurantes censuras no olhar carregado, oblíquo.

Preciso urgentemente de ter razão,
de ter imensas razões, montes de razões,
de eu próprio me instituir em razão.
Ser razão!
Dar um soco furibundo e convicto no tampo da mesa
e espadanar razões nas ventas da assistência.

Preciso urgentemente de ter convicções profundas,
argumentos decisivos,
idéias feitas à altura das circunstâncias.
Preciso de correr convictamente ao encontro de qualquer coisa,
de gritar, de berrar, de ter apoplexias sagradas
em defesa dessa coisa.
Preciso de considerar imbecis todos os que tiverem opiniões diferentes

da minha,
de os mandar, sem rebuço, para o diabo que os carregue,
de os prejudicar, sem remorsos, de todas as maneiras possíveis,
de lhes tapar a boca,
de lhes cortar as frases no meio,
de lhes virar as costas ostensivamente.
Preciso de ter amigos da mesma cor, caras unhacas,
que me dêem palmadinhas nas costas,
que me chamem pá e me façam brindes
em almoços de camaradagem.
Preciso de me acocorar à volta da mesa do café,
e resolver os problemas sociais
entre ruidosos alívios de expectoração.
Preciso de encher o peito e cantar loas,
e enrouquecer a dar vivas,
de atirar o chapéu ao ar,
de saber de cor as frequências dos emissores.
O que tudo são símbolos e sinais de certezas.
Certezas!
Imensas certezas! Montes de certezas!
Pirineus, Urais, Himalaias de certezas!
======================
Lágrima de Preta

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu me o que é costume:

nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de Sódio.
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A um ti que eu inventei

Pensar em ti é coisa delicada.
É um diluir de tinta espessa e farta
e o passá-la em finíssima aguada
com um pincel de marta.

Um pesar grãos de nada em mínima balança,
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.

Um desembaraçar de linhas de costura,
um correr sobre lã que ninguém saiba e ouça,
um planar de gaivota como um lábio a sorrir.

Penso em ti com tamanha ternura
como se fosses vidro ou película de loiça
que apenas com o pensar te pudesses partir.
======================
Máquina do Tempo

O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.
Daí, que este arrepio,
este chama-lo e te-lo, ergue-lo e defronta-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.
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Pedra Filosofal

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e ouro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa dos ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
======================
Aurora boreal

Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.
======================
Dez reis de esperança

Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos à boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingênuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aquarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras seletas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,

roia as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.
======================
Amor sem tréguas

É necessário amar,
qualquer coisa ou alguém;
o que interessa é gostar
não importa de quem.

Não importa de quem,
não importa de quê;
o que interessa é amar
mesmo o que não se vê.

Pode ser uma mulher,
uma pedra, uma flor,
uma coisa qualquer,
seja lá o que for.

Pode até nem ser nada
que em ser se concretize,
coisa apenas pensada,
que a sonhar se precise.

Amar por claridade,
sem dever a cumprir;
uma oportunidade
para olhar e sorrir.

Amar como um homem forte
só ele o sabe e pode-o;
amar até à morte,
amar até ao ódio.

Que o ódio, infelizmente,
quando o clima é de horror,
é forma inteligente
de se morrer de amor.
======================
Todo o tempo é de poesia

Todo o tempo é de poesia
Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.
Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia
Todo o tempo é de poesia
Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram.
Vidas qu'a amar se consagram.
Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.
Todo o tempo é de poesia.
Desde a arrumação ao caos
à confusão da harmonia.
======================
Saudades da Terra

Uns olhos que me olharam com demora,
não sei se por amor se caridade,
fizeram me pensar na morte, e na saudade
que eu sentiria se morresse agora.

E pensei que da vida não teria
nem saudade nem pena de a perder,
mas que em meus olhos mortos guardaria
certas imagens do que pude ver.

Gostei muito da luz. Gostei de vê la
de todas as maneiras,
da luz do pirilampo à fria luz da estrela,
do fogo dos incêndios à chama das fogueiras.
Gostei muito de a ver quando cintila
na face de um cristal,
quando trespassa, em lâmina tranquila,
a poeirenta névoa de um pinhal,
quando salta, nas águas, em contorções de cobra,
desfeita em pedrarias de lapidado cetro,
quando incide num prisma e se desdobra
nas sete cores do espectro.

Também gostei do mar. Gostei de vê-lo em fúria
quando galga lambendo o dorso dos navios,
quando afaga em blandícias de cândida luxúria
a pele morna da areia toda eriçada de calafrios.

E também gostei muito do Jardim da Estrela
com os velhos sentados nos bancos ao sol
e a mãe da pequenita a aconchega-la no carrinho e a adormece-la
e as meninas a correrem atrás das pombas e os meninos a jogarem ao futebol.

À porta do Jardim, no inverno, ao entardecer,
à hora em que as árvores começam a tomar formas estranhas,
gostei muito de ver
erguer se a névoa azul do fumo das castanhas.

Também gostei de ver, na rua, os pares de namorados
que se julgam sozinhos no meio de toda a gente,
e se amam com os dedos aflitos, entrecruzados,
de olhos postos nos olhos, angustiadamente.

E gostei de ver as laranjas em montes, nos mercados,
e as mulheres a depenarem galinhas e a proferirem palavras grosseiras,
e os homens a aguentarem e a travarem os grandes caminhões pesados,
e os gatos a miarem e a roçarem se nas pernas das peixeiras.

Mas... saudade, saudade propriamente,
essa tenaz que aperta o coração
e deixa na garganta um travo adstringente,
essa, não.

Saudade, se a tivesse, só de Aquela
que nas flores se anunciou,
se uma saudade alguém pudesse te-la
do que não se passou.
De Aquela que morreu antes de eu ter nascido,
ou estará por nascer – quem sabe? – ou talvez ande
nalgum atalho deste mundo grande
para lá dos confins do horizonte perdido.

Triste de quem não tem,
na hora que se esfuma,
saudades de ninguém
nem de coisa nenhuma.
======================
Fala do Homem Nascido

(chega à boca da cena, e diz:)

Venho da terra assombrada,
do ventre da minha mãe;
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no ato de que nasci.

Trago boca para comer
e olhos para desejar.
Com licença, quero passar,
tenho pressa de viver.
Com licença! Com licença!
Que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo;
não tenho tempo a perder.

Minha barca aparelhada
solta o pano rumo ao norte;
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada.
Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham,
nem forças que me molestem,
correntes que me detenham.

Quero eu e a Natureza,
que a Natureza sou eu,
e as forças da Natureza
nunca ninguém as venceu.

Com licença! Com licença!
Que a barca se faz ao mar.
Não há poder que me vença.
Mesmo morto hei de passar.
Com licença! Com licença!
Com rumo à estrela polar.
======================
Autobiografia

Enquanto comia
num gesto tranquilo,
comia e ouvia
falar se daquilo.

Dormia e ouvia
solicitamente,
como se presente
presente estaria.

E enquanto comia,
comia e ouvia,
a frágil menina
que no fundo habita,
que chora e que grita
saía de mim.

Saía de mim
correndo e chorando
num gesto revolto,
cabelinho solto,
roupa esvoaçando.

Ia como louca,
chorava e corria,
enquanto eu metia
comida na boca.

Fugia lhe a estrada
debaixo dos pés,
a estrada pisada
que o luzeiro doura,
serpentina loura
que vai ter ao mar.

Corria a menina
de braços erguidos,
seus brancos vestidos
pareciam luar.

Por dentro ia a noite,
por fora ia o dia.
A vida estuava,
a maré subia.

Caiu a menina
na praia amarela,
logo um modelo de algas
se apoderaram dela.

Se apoderou dela
carinhosamente,
que as algas são gestos
mas não são de gente.

Caiu e ficou se
deitada de bruços,
desfeita em soluços
sem forma nem lei.

Ò minha águazinha
faz com que eu não sinta,
faz com que eu não minta,
faz com que eu não odeie!

Águazinha querida,
compromisso antigo,
dissolve me a vida,
leva-me contigo.

Leva-me contigo
no berço das algas;
que o sal com que salgas
seja o meu vestido.

Ficou-se a menina
desfeita em soluços,
seu corpo, de bruços,
com o mar a cobri-lo,
enquanto eu, sentado,
sentado comia,
comia e ouvia,
falar-se daquilo.
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terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Academia Passo-Fundense de Letras (Concurso Machado de Assis - 100 Anos de História)

Segundo Paulo Monteiro (Presidente da Academia Passo-Fundense de Letras), o sucesso desse concurso deve-se ao empenho de todos, mas absolutamente todos os acadêmicos; à colaboração da 7ª Coordenadoria Regional de Educação, também como um todo, e da direção, professores, funcionários e alunos de Ensino Médio das escolas envolvidas. A contribuição dos meios de comunicação social de Passo Fundo foi indispensável. Essa conjugação de esforços foi a responsável maior para que o concurso tivesse chegado a bom termo.

Orgulho Nacional, de Júlia Luvisa Gauer foi classificado como um dos melhores trabalhos do concurso “MACHADO DE ASSIS - 100 ANOS DE HISTÓRIA”.

Confira a resenha denominada de “Orgulho Nacional” da aluna Júlia Luvisa Gauer

Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela. Desde o momento de sua ascensão ninguém lhe disputou o cetro”. Este fragmento de Senhora, de José de Alencar, encaixa-se plenamente ao surgimento do mais notável escritor brasileiro: Joaquim Maria Machado de Assis. E foi em 21 de junho de 1839 que essa estrela nasceu. Filho de pai mestiço e mãe lavadeira açoriana, parecia não haver chance para o menino de saúde frágil, mulato, epilético e gago. Ele, porém, veio a surpreender a todos com seu singular talento.

Machadinho, para os íntimos, aos 12 anos de idade torna-se órfão de pai e mãe, sendo criado por Maria Inês, sua madrasta. Ela então, o matricula em uma escola pública, única que freqüentou. Autodidata e sedento por conhecimento, aprende francês e publica seu primeiro trabalho literário aos 16 anos, o poema “Ela”. Com 17, passa a trabalhar como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional. É onde conhece Manuel Antônio de Almeida, diretor da tipografia e pessoa que incentivou Machado à carreira literária. Em 1858, passa a trabalhar como revisor e colaborador da revista Marmota Fluminense, onde cria seu mais influente círculo de amizades, do qual fazem parte Joaquim Manoel de Macedo, José de Alencar, Gonçalves Dias e, é claro, Manoel Antônio de Almeida. Desde então, passa a publicar obras românticas, sendo Crisálidas a primeira. Em 1869 casa-se com Carolina Augusta Xavier de Novais, durando o matrimônio 35 anos, que apesar de feliz, não gera nenhum herdeiro. É ela quem lhe apresenta os clássicos portugueses e a vários autores ingleses. Nesse ponto, o escritor já era considerado bem sucedido na literatura e possuidor de um seguro cargo público. Em 1887, Machado funda e se torna primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, permanecendo no cargo até sua morte.

Sua obra pode ser dividida em dois momentos. A primeira é onde ele publica suas obras de influência romântica: romances, contos e poesias. Apesar das aparências, Machado não se sentia satisfeito, pois sua lucidez, mente fervilhante e questionamento do mundo o deixavam inquieto. Intoxicado pela desilusão e o pessimismo europeus, passa a escrever com ironia e humor inteligentes, iniciando a segunda fase, de caráter realista, a qual o consagra o gênio da literatura brasileira. Publica em 1881 uma obra completamente original e diferente dos padrões da época: Memórias Póstumas de Brás Cubas, onde um defunto narra sua história e vangloria-se por não ter deixado filhos. Em seguida, publica Quincas Borba e Dom Casmurro, outras famosas obras suas. Essa, mostra a ingenuidade do homem quando se apaixona, e, ironiza as teorias da época, principalmente o positivismo. Aquela, talvez seja a mais instigante. Até hoje não se sabe se Capitu, uma das protagonistas, traiu seu marido Bentinho com o melhor amigo, Escobar. Nem mesmo estudiosos de Machado de Assis conseguem desvendar esse mistério, apenas confirmando sua genialidade. Aliás, as mulheres de Machado possuem uma área de mistério e dissimulação. Conscientes de seus poderes sobre os homens, seduzem-nos para conseguir o que querem: fugir de suas tediosas rotinas ou de matrimônios arruinados. Isso pode ser notado explicitamente em D. Conceição, de Missa do Galo; D. Severina, de Uns braços, e em Sofia, de Quincas Borba. No geral, o casamento em si representa uma instituição falida em suas histórias.

Cosmopolita, reservado e cínico, o escritor preferiu escrever realizando uma análise profunda do ser humano, salientando suas vontades, defeitos e vaidades. Assim como em seu conto O Espelho, o gênio parecia possuir duas almas, a externa e a interna. A externa gostava do júbilo que recebia por sua fama e o fazia parecer sereno e pacato. Porém, sua alma interna era como lava incandescente, fazendo-o questionar o ser humano e o mundo a sua volta. Acostumado a disfarçar suas emoções desde jovem, utiliza tal característica em suas obras, não deixando o leitor se envolver ou criar laços afetivos com seus personagens através de sua narrativa. A todo o momento interrompe a história para falar e instigar seu leitor. Também trata dos temas universais em suas histórias, como a confusão de sentimentos, jogos de interesses, inveja, ciúmes e hipocrisia.

Machado de Assis morre de câncer no Rio de Janeiro em 1908, deixando muitos admiradores. Sua história ainda contraria a tese defendida pelo naturalismo, que afirmava o homem estar submetido ao meio. O gênio é um grande exemplo de vida, pois sua origem humilde não o impediu de ganhar o mundo e tornar-se uma das mais brilhantes estrelas da Literatura Mundial
."
===============
Sobre a autora:
Júlia Luvisa Gauer, tem 16 anos, e cursa o 3º ano do Ensino Médio, na Escola de Ensino Médio Garra, sendo orientada pelo professor Fábio Aroque Candaten.

Fonte:
http://www.escolagarra.com.br/

Academia Passo-Fundense de Letras (RS)

(Foto de Natália Monteiro)
Acadêmicos presentes à sessão de encerramento cultural do ano acadêmico de 2008.
Da direita para a esquerda: Jurema Carpes do Valle, Elisabeth Souza Ferreira, Craci Dinarte, Helena Rotta de Camargo e Dilce Piccin Corteze (sentadas).
Em pé: Marco Antonio Damian, Gilberto R. Cunha, Xiko Garcia, Rogério Sikora, Osvandré Lech, Paulo Monteiro, Getúlio Vargas Zauza, Darcy Pinheiro da Silva (de Cruz Alta), Santo Verzeleti e Alberto Rebonato.

A Academia Passo-Fundense de Letras, antes denominada “Grêmio Passo-Fundense de Letras”, surgiu no dia 7 de abril de 1938. O termo inicial de fundação foi assinado pelas 25 pessoas presentes ao ato. Conforme o que foi decidido na reunião preliminar de 31/03/1938, teve lugar na Prefeitura Municipal de Passo Fundo, no dia 7 de abril de 1938, às 20h 30min, a sessão de fundação do Grêmio Passo-Fundense de Letras.

Sante Umberto Barbieri, bispo da Igreja Metodista, deu início à reunião, usando da palavra, na qualidade de delegado da Academia Rio-Grandense de Letras, propôs que fosse aclamado presidente da solenidade que ora se iniciava o sr. Arthur Ferreira Filho. Para secretariar os trabalhos, foi convidado o dr. Verdi De Césaro, que redigiu extensa ata relatando o histórico acontecimento.

A primeira diretoria eleita e empossada, ficou assim constituída: Arthur Ferreira Filho, presidente; Gabriel Bastos, vice-presidente; Sante Uberto Barbieri, secretário geral; Verdi De Césaro, 1º secretário; Lucila Schleder (Ronchi), 2º secretário; Daniel Dipp, tesoureiro e Antônio Athos Branco da Rosa, bibliotecário.

No dia 29/04/1939, às 20h 30min, conforme ata nº 04, foram aprovados os estatutos da entidade.

O Grêmio Passo-Fundense de Letras, no dia 16/09/1939, foi reorganizado, começando, assim, a sua segunda fase de atividade, que culminou com a transformação do Grêmio em Academia, por iniciativa do acadêmico Celso da Cunha Fiori. Esse fato ocorreu no dia 20/05/1960, em sessão presidida pelo confrade José Gomes, presidente do Sodalício.

A Academia Passo-Fundense de Letras foi instalada em 07/04/1961 conforme ata nº 01, livro 045 estando na presidência o acadêmico Celso da Cunha Fiori. Sua diretoria estava assim constituída: Celso da Cunha Fiori, presidente; Túlio Fontoura, vice-presidente; Mário Braga Júnior, 2º vice-presidente; Arthur Sussembach, secretário geral; Paulo Giongo, sub secretário; Verdi De Césaro, tesoureiro; Rômulo Cardoso Teixeira, 2º tesoureiro e Gomercindo dos Reis, bibliotecário.

Em 1961, a Academia Passo-Fundense de Letras foi declarada de utilidade pública, conforme projeto de lei nº 1/61, no governo do prefeito Benoni Rosado e Centenário Amaral, presidente da Câmara de Vereadores.

Presidentes da APL (1938 a 2008)
01 - António Augusto Meirelles Duarte (sete mandatos)
02 - Antônio C. Oliveira (dois mandatos)
03 - Arthur Ferreira Filho
04 - Aurélio Amaral
05-Benedito Hespanha (cinco mandatos)
06 - Celso da Cunha Fiori (seis mandatos)
07 - César José dos Santos
08 - Delma Rosendo Gehm
09 - Francisco Antonino Xavier e Oliveira
10 - Gelásio Maria
11 - Irineu Gehlen (seis mandatos)
12 - Ironi G. Andrade
13 - José Gomes
14 - José Pedro Pinheiro
15 - Mário Daniel Hoppe
16 - Nídia Bolner Weingartner
17 - Octacílio de Moura Escobar
18 - Paulo Renato Ceratti (quatro mandatos)
19 – Paulo Monteiro (atual)
20 - Ricardo José Stolfo
21- Romeu G. S. Pithan
22 - Rômulo Cardoso Teixeira
23 - Sabino Ribas Santos
24 - Sady Machado da Silva
25 - Santina Rodrigues Dal Paz
26 - Saul Sperry Cézar
27 - Túlio Fontoura
28 - Umberto Lucca (três mandatos)
29 - Verdi De Césaro (dez mandatos)
30 - Welci Nascimento

Academia Passo-Fundense de Letras se localiza na Av. Brasil Oeste, 792 – CEP: 99010-001 – Passo Fundo – RS - Brasil

Fontes:
http://jornaltelescopio.blogspot.com/2008/12/academia-passo-fundense-de-letras.html
http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=9295&cat=Ensaios&vinda=S

Tarcísio Costa (A Poesia do Grande Poeta)

Como qualquer poeta,
Fico perplexo com a poesia dos grandes poetas,
Eles nos trazem os seus sentimentos
e o seu pensar

Com inflência no nossos comportamento.
Ninguém consegue esquecer a sua poesia,
Ela permanece na nossa lembrança
Por toda a vida...

Se ela fala de amor,
Sentimo-nos figura central do poema,
Ressuscitam as nossas paixões...

Se fala de saudade,
O faz de forma comovente,
Fica comprovada a junção da dor e do prazer.

A saudade é, realmente, uma dor
Que só é sentida por quem ama.

Os grande poetas
Quando, na sua poesia, mostram desilusão,
Nos deixam caídos, até com medo....

O grande poeta cria na sua imaginação,
Aquilo que sente o os corações,
O cerne de suas palavras nos atingem.

Assim, é a poesia do grande poeta,
Encanto e magia.

Silvino Potêncio (... O Beco da Lama!)

José Barcelos (Sexta à noite)
Ali no Beco da lama,...
Onde eu passo todo o dia.
Tem mau-cheiro e muita má fama,
mas também muita folia!...

Ali no Beco da lama,
tem pagode, tem seresta, tem lá muita cantoria.
...tem noites de dor e cama!
- E tardes de estrepolia.

Ali no Beco da Lama,
Onde vive a boemia...
Muita birita, muita cana!
Corre o verso e a poesia...
Solta ao som da viola, do pandeiro, e o cavaquinho,...
Ali no Beco da Lama, o tempo passa devagarinho.

Por lá passo todo o dia,
É p'ra cumprir minha promessa.
De tirar o pé da lama e viver sem muita pressa!

Ali no Beco da Lama, em tardes ensolaradas,
Fecha a rua o tempo todo!...
Quem passa por lá não passa,
... sem escutar o som do lodo.

Ali no Beco da Lama... não existe mordomia,
Todo mundo bebe e canta, ao som de algum violão.
Tem cadeira e tamborete, tem até gente no chão
A dormir pela calçada, depois de muita cachaça...
Ali no Beco da Lama, a tristeza não tem graça!

Ali no Beco da Lama, onde eu passo todo o dia,...
Muito folião ali passa, em dias de muita alegria.
- Tem poetas, escritores, pichadores da agonia,
Pensadores e muitos cantores, das coisas da boémia.

Imitantes, intrujões da voz do Nelson Gonçalves,
Outros tantos são os figurões da politica como os "Alves".
Dos <> e dos outros tipos, ali todos se consagram.
Ali no Beco da Lama, vozes roucas não se apagam.

...depois da primeira lapada,
Ali no Beco da Lama,
onde eu passo todo o dia
tem café quente, e até caldo!,... de Cana p'ra boemia!

Ali no Beco da Lama,
A rua fica entulhada.
De mesa em mesa ela chama
Ó garçom!...sai mais uma!, e bem gelada!

Traz mais uma rapidinho!,...
- aqui p'ro amigo cantor.
Ele não bebe cachaça,
- mais, mais... ele me faz versos de amor.

Cá por mim só bebo Cana,
Nem que seja da quinta cabeça!...
Canto o meu verso a quem ama,...
Que de mim jamais se esqueça!!!.

Que ali no Beco da Lama,
- onde eu passo todo o dia,
Me vejo a sumir no cansaço,
... de viver a poesia!
*******************
Fonte:
Colaboração do autor Silvino Potêncio - Emigrante Transmontano em Terras Potiguares

Arlene de Lima (Maria-Fumaça)

José Barcelos (Maria Fumaça)
"Café-com-pão, café-com-pão, café-com-pão"... Era o barulho da valente maria-fumaça, que ainda guardo na memória.

Ziguezagueara, desde tempos remotos, rompendo belas paisagens envolvidas por nuvem de vapor, em fantásticos cenários. Rolava sobre trilhos, parecia um arremate faiscante da saia verdejante das matas que atravessava.

Luzindo com as ferragens de cobre brilhando ao sol sobre rodas e eixos, rodando, girando. Nos trilhos deslizava sem parar, comendo os dormentes. Píu!... Píu!... Apitando, nos chacoalhando, lá ia a maria-fumaça às estações; gente embarcava e desembarcava, pessoas cansadas a caminho do lar.

As novas gerações das décadas recentes não experimentaram a sensação de uma viagem em maria-fumaça.

Tinha uns 10 anos; coloquei meu vestido novo, lindo, para uma pequena viagem de trem. Meu coração palpitava de emoção com o "café-com-pão, café-com-pão", que meus ouvidos docemente ouviam. Lá veio o garçom vendendo chocolates... Admirava as paisagens, de repente uma faísca caiu e queimou-me o vestido novo. A sensação foi ruim, mas não chegou a tirar minha alegria, pois a maria-fumaça fazia parte da minha vida.

Margeava os rios, indo em paz. Muito fogo... muita fumaça... espantava rebanhos e levava o progresso a muitos rincões.

O trem está na alma brasileira. Quantas histórias sobre os seus trilhos foram presenciadas. Gente do sítio e da cidade aglomerava-se nas estações, nos finais de semana, para ver o trem chegar e partir.

Eram tantos vagões puxados pela potente e espalhafatosa maria-fumaça. Hoje temos a pioneira 800, estacionada, adormecida, à entrada do Parque do Ingá. Ali está: bonitinha, bem reformada, quase novinha, essa linda lembrança que tanta alegria me deu na infância e à cidade de Maringá.

Os trens tinham um vagão exclusivo para bagagens, alguns carros de segunda classe, outros de primeira, destinados aos mais ricos, e vagões com leitos, que, geralmente, eram os últimos. O carro-restaurante servia comida saborosa, por isso estava sempre lotado.

Mais tarde, chegam as locomotivas a diesel, os comboios aumentaram de tamanho: acopladas, duas ou três possantes máquinas arrastavam sem dificuldade incontáveis vagões.

Às vezes, partiam com centenas de cabeças de gado, café, madeira e cereais. Os trens da época, no entanto, carregavam muito mais: animais, arados, mudanças, carros, máquinas, todo tipo de material de construção.

A maria-fumaça também guarda a memória das histórias de amor, os lenços acenantes de um adeus.

O apito do trem, o "café-com-pão, café-com-pão"... ficaram-me gravados na mente, deixando-me na alma saudades.

Hoje há trens confortáveis, rápidos. Em países desenvolvidos, são sinônimo de solução, segurança, eficiência, modernidade. O Brasil precisa recuperar o seu tempo perdido.

Lá vai rodando, girando...
Adeus “Maria-Fumaça”.
Píu... píu... píu... píu... apitando,
e a saudade é uma graça!
Maria-fumaça, lembrança dos meus lindos sonhos, repousantes no coração, pois me leva a viagens e traz-me recordações.
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Sobre a Autora
Arlene de Lima (1937)
Cadeira nº. 15 da Academia de Letras de Maringá – Patrono: Fagundes Varela
Assistente social. Foi vereadora, fundadora e presidente do Lar Betânia por 29 anos. Nasceu em São Sebastião do Paraíso – MG, no dia 16 de julho de 1937. Autora de Vida que ensina viver, Estrelas do meu chão, Estrelas do meu caminho, Flores que cultivei, Estréia, Pérolas da alma e Mosaico de ternuras.

Fontes:
Academia de Letras de Maringá.
http://www.afacci.com.br/
Pintura =
http://www.josebarcelos.com.br/

Antonio Facci (Alento)


Acordava

Com a ponta dos dedos,
tocava, de manhã,
suavemente,
os cabelos de meu peito.
Eu acordava.
Simplesmente
acordava.
E ela sorria.
Simplesmente
sorria.
     

Almas Gêmeas

Sinto como se estivesse
flutuando, leve como
um pássaro a voar.
Os campos são verdes.
As colinas azuis.
Levito suavemente sobre as
nuvens.
Vislumbro a distância um vulto
de mulher toda vestida de
verde-esmeralda. Meu coração não
descompassa,
apenas se alegra.
Meus olhos sorriem.
Minhas mãos se estendem.
Vejo-a aproximar-se
suavemente sobre as nuvens
de algodão.
Sorri.
Estende as mãos.
Não nos tocamos.
Sentimos apenas a leveza do
momento.
     

Sorriso de Mulher

Mais belo que a flor,
apenas o sorriso da mulher
que a admira.
     

Fonte:
FACCI, Antonio. Alento. Disponivel em
http://www.afacci.com.br/

Antonio Facci (Alípio e Isabel)

Vindo do distante Portugal, juntamente com tantos outros imigrantes, aportou no Brasil ainda jovem, de compleição física avantajada, disposto a, nestas paragens, mesmo que enfrentando as maiores dificuldades que se lhe apresentassem, vencer na vida. Não importava que, para isso, tivesse que exaurir-se fisicamente.

Aqui chegando, levado por amigos e companheiros, foi logo agregar-se aos mais vigorosos e, mercê de sua força física e disposição de luta, encontrou trabalho como madeireiro. Trabalho duro. O trançador, empunhado inicialmente meio sem jeito, a ser empurrado de lá para cá com rapidez e energia, provocava uma transpiração exagerada, regando o chão com seu suor. Outras vezes, empunhando o machado, sangrando árvores, deitando ao chão perobas, cedros, pau-d' alhos, alecrins e tantas outras, que tombavam vencidas pela força daquele jovem português, disposto a vencer sem reclamar e nem em sonho fraquejar.

Passados os tempos, já com algumas pequenas economias, pensou: "Ora, pois, não está na hora de encontrar uma rapariga que me faça companhia?"

Assim pensando, encontrou, na vila próxima ao seu trabalho, uma formosa jovem brasileira, filha de espanhóis, que lhe agradava os olhos. Procurou conhecê-la melhor. Percebeu que não apenas "lhe agradava aos olhos", mas enchia também seu coração endurecido pela labuta diária. Aproximou-se, conheceu sua família.

A cada dia mais se apaixonava.

Ela, moça simples, embora brasileira, falava com o sotaque próprio de filhos de imigrantes que conservavam a tradição de, em casa, manter o idioma de sua pátria. Ela gostou muito do português. A família se afeiçoou a ele. Era trabalhador, dedicado e, acima de tudo, honesto. Ah, sim, honesto. Essa era a condição primordial para ser recebido naquela família.

Casaram-se. Com o passar dos anos, vieram os filhos. Foram quatro. Todos educado na forma rude que o ambiente cultural impunha. Mas o desenvolvimento na região veio trazendo escolas, comércio, energia elétrica, estradas, enfim o progresso chegou de mansinho, mudando a vida e os costumes daquele casal. Os filhos cresceram. Tornaram-se adultos. Um novo ambiente cultural fizera-se presente e, às vezes mesmo a contra gosto, os filhos encaminharam-se para outras profissões. Mais modernos, estudados, cada um buscando a realização pessoal, mas sempre ouvindo, obedecendo, procurando aplicar nas suas novas áreas de atuação os ensinamentos daquele rude casal que lhes dera a vida.
Os filho também encontraram seus companheiros e companheiras, formando novos lares. Os netos apareceram.

O português, antes forte e ativo, agora já via encanecer seus cabelos. A espanholita, outrora alegre e falante, sentia o peso dos anos. Não tinha mais as faces rosadas, o corpo perfeito, os cabelos sedosos. Mantinha, isto sim, a fé inabalável e a certeza de ter cumprido e seu dever e, principalmente, a missão de mulher, mãe, esposa e agora avó. Dura sim, às vezes. Mas, mesmo quando ralhava com os filhos e consciência fazia que aplicasse os castigos, mas o coração sangrava. O tempo, inexorável, marcava aqueles corpos.

Ela, de vez em quando, sentia algumas dores nas pernas. Algumas tonturas. Ele, embora sempre atencioso, poucas palavras de amor pronunciava. Nada de gestos carinhosos na presença de outras pessoas, mesmo que estas fossem as mais íntimas. Jamais um beijo em público. Jamais um afago, por mais simples na presença dos filhos. Agora velho, mantinha a tradição cultural em que fora educado. "Beijo é sinal de amor? Ora, lembre-se que Judas também beijou".

Já septugenário, o português ouviu da companheira:

-Não estou me sentindo bem. Minhas pernas doem muito.

-Ele, rapidamente, procurou um médico, internou-a no melhor hospital da cidade. Acompanhou todos os exames. Não entendia nada do que estava escrito naqueles papéis, mas ouvia dos médicos, estes seus amigos, as explicações para o terrível drama que se avizinhava. A conselho médico, transferiu a esposa para um hospital onde os recursos eram maiores em uma cidade vizinha. Não entendia bem o que estava acontecendo, mas assinou uns papéis que autorizavam a cirurgia.

Alguns dias depois, veio a alta médica. Finalmente voltaram para casa. Todos estavam bem? Sim. Tudo como antes, a não ser que a formosa espanholinha chegava de volta a casa, rodeada por todos os filhos e amigos, amparada pelo marido, com uma das pernas amputada!

Passaram-se os dias, meses. O português sempre à cabeceira da companheira, cuidava a seu modo de tudo. Ia buscar alimentos na cozinha, ministrava medicamentos, mudava as roupas do leito.

Para atender necessidades comerciais, viajou. Distante, sofreu um acidente de automóvel. Ganhou algumas fraturas, escoriações diversas. Foi internado. Na cama, perguntava sempre:

- Avisaram minha mulher?

Informado de que não, ficava satisfeito. Era preciso evitar que qualquer notícia desagradável viesse a perturbar a pessoa que o acompanhara por toda a vida. Melhorou, voltou para casa. Lá estava, no mesmo leito, a companheira.

Certa noite, fortes dores na outra perna da companheira. Os mesmos hospitais. Os mesmos médicos. O mesmo resultado. A mesma volta. Os mesmos amigos. Os mesmos familiares. Apenas uma pequena diferença: não tinha mais a perna que restava. Mais uma amputação se concretizara.

O português continuou ali, o pensamento em Deus. Os filhos iam e vinham amorosos. Os amigos diariamente a lhes prestar solidariedade. Ele ali, ao lado da companheira.

Certo dia, apenas para a regularização de documentos, foram visitados por um notário público. Este velho amigo da família, encontrou o encanecido português sentado à sala. Trocaram cumprimentos. Falaram sobre tudo, problemas econômicos, filhos, saúde. Jamais qualquer alusão ao sofrimento foi ouvido pelo notário, vindo dos lábios do rude português. Mais tarde adentraram o quarto onde permanecia, onde permanecia a espanholinha. Explicaram o motivo da visita. Ela sentou-se auxiliada pelo companheiro, que, solícito, improvisou uma mesa, onde foi apoiado o livro. Algumas palavras simples foram trocadas. Depois, naturalmente tendo já acomodado docilmente a companheira em seu leito, dirigiram-se ao companheiro e o notário à sala. Ele sentou-se à mesa. Apanhou uma caneta da mão do visitante. Debruçou-se sobre o livro. Demorou-se muito além do tempo necessário para apor a assinatura.

O notário percebeu que ele já havia assinado, mas silencioso e respeitoso, nada disse. Sabia que aquele ato agora firmado, nada continha que se referisse à situação da saúde da companheira. Mas ela entenderia? Por isso, o silêncio e a demora. A dor interior pe;a possibilidade de estar fazendo sofrer a companheira estava, naquele momento, simbolizada na figura encanecida e septuagenária que, de cabeça baixa, demorava-se sobre o livro.

Levantou-se, não limpou os olhos. Nenhuma lágrima aparecia. O notário apanhou o livro e, ao fechá-lo, encontrou duas gotas d'água no rodapé da página, ao lado das assinaturas de Alípio e Isabel. Sutilmente, apanhou o lenço, enxugou-as; porque tinha documento. Mas seu desejo era deixá-las ali. Conservá-las para sempre. Derramadas pelo anteriormente rude português , forte e destemido, chefe de família, pai e avô extremoso, estava ali a mais sublime prova de amor que jamais presenciara.

Não era o amor externado por gestos estudados, novelescos. Era o amor marcado pelo sentimento puro. Do homem que se debruça ao lado da companheira mutilada e, mesmo não fazendo carinho em seus cabelos brancos ou lhe osculando as faces com seus rudes lábios, olha-a com firmeza e pureza de coração e alma. E ela retribui o olhar com a mesma intensidade, emoção e pureza.

É o verdadeiro amor.

Naquele momento, esquecem-se da dor física. Não percebem nem mesmo que os anos se passaram. Voltam a ser os jovens que pela primeira vez se encontraram na festa da roça, quando seus olhos se cruzaram e nunca mais seus corações deixaram de transmitir um ao outro a esperança, o respeito, a emoção e o verdadeiro amor dos que têm almas gêmeas e pensamentos absolutamente puros.

Aquelas lágrimas. Aquele olhar. Aquele ambiente. Tudo faz transformar o que seria um quarto de dor em exemplo de amor e fé para qualquer pessoa que tenha a ventura de aproximar-se dali.

Por certo, quando Deus os chamar para o seu reino, os anjos bons os farão novamente se encontrar para a continuidade desse dílio tão terno e puro.

Fonte:
FACCI, Antonio. Do Cio ao Sombrio. Disponivel em http://www.afacci.com.br/

Gianfrancesco Guarnieri (Murié e as alturas)



Acionaram o elevadorzinho de madeira e Murié fechou os olhos, segurando firmemente a tábua que servia de balaústre. Uma subida de nunca mais se acabar. Mas era um prédio pequeno, atingiria oito andares somente. Chegando ao topo, de um salto, ganhou a plataforma de concreto e, não conseguindo dominar-se, deixou-se cair sentado. Agarrou os joelhos com força, procurando conter o tremor que lhe sacudia o corpo. O sol já ia alto e abrasava a plataforma imensa de onde brotavam, hirtos, grupos de arames em ponta. Olhou para o alto semicerrando os olhos, reforçando-lhes as rugas. O suor escorria-lhe pelo peito nu. Deslumbrado, escondeu a cabeça entre os braços e deixou-se ficar, clarões vermelhos explodindo na escuridão, coração aos pulos e aquele tremor convulsivo. A mão de alguém pesou-lhe nos ombros. Levantou a cabeça com susto, temendo fosse o mestre-de-obras. Era Pedro. Sorriu contrafeito e tentou uma explicação:

- Vertigem. Tá me dando agora quase todo dia. Mariana diz que deve ser da vista. Eu já não. Acho que é do estômago. Me dá um vazio por dentro cada vez que subo…

- Tá é precisando de descanso, velho!

- É! Também pode ser.

Tentou erguer-se. As pernas continuavam trêmulas. Ao ver, lá embaixo, apequenados pela altura, os companheiros trabalhando, os automóveis cruzando-se na rua, agarrou-se com força ao braço de Pedro e chorou igual criança. Procurando acalmá-lo, Pedro levou-o, devagarinho, até o centro da plataforma. Murié soluçava, lágrimas rolando pelo rosto tisnado. A cada sacudir do corpo curvo do pedreiro, o amigo batia-lhe nos ombros, palmadinhas de consolo, numa solidariedade muda, pois palavras não cabiam. E se Murié chorava estava no seu direito que jeito mais nenhum não tinha. Pedreiro velho e acabado, com vertigem e tonturas; pedreiro com raiva do espaço é pedreiro findo, já sem forças e sem armas para o trabalho. Que é dado ao homem escolher um momento para desabafo. Depois, quando Murié - mais calmo e já no térreo - mastigava o conteúdo parco da marmita, ponderou Pedro com siso:

- Talvez, o melhor seja mesmo procurar outro modo de sustento. Trabalho mais calmo. Quem sabe, um emprego de vigia. Na construtora mesmo pode se encontrar colocação…

Era um fato. Murié murmurou um assentimento. Não via também outra solução. Solução a meio, insatisfatória. Que Murié tinha vida difícil como a de todo pobre, é claro e limpo para quem olhe o mundo com olho honesto. Mas com esforço e às custas da saúde, conseguira manter em nível de vida mínimo: uma mulher mãe de quatro filhos. Três do primeiro casamento. Um, seu. Tratava os quatro sem distinção. O que comia um comia outro. E mais, vestia o pequeno com a sobra dos maiores. As roupas do caçula, tendo passado de corpo em corpo neles se mantendo enquanto cabiam, eram remendos só. Remendos limpos, bem lavados e até recendendo a capim-cheiroso, que a mulher era de capricho e trabalhadeira.

E Murié tinha lá seus orgulhos: de Mariana, do aprumo dos filhos, dos edifícios. Trabalhara num sem número de construções. Mesmo nas grandes. Tinha satisfação contemplando a obra feita. Ele e os outros. Erguendo aquelas estruturas enormes, onde gente morava, onde carros entravam, carros bonitos, de todas as cores. E as pessoas também eram bonitas. Existia um prédio que era o que Murié mais gostava, Gigante de vinte andares, envidraçado, forte. E, à saída do trabalho, não poucas vezes Murié se deixava parado, olhando, entusiasmado com a obra feita. Depois, voltava para a casinha alugada, minúscula e distante, mas bem melhor que o barraco em que começara a vida.

Deixar o emprego, procurar outra colocação. Retrocesso que desgostava Murié. Não poderia admitir a diminuição da entrada mensal. Logo agora que pensava em aumento. Cada tostão, todo contadinho, organizado, aluguel, comida e as doídas prestações consumindo tudo. Não. Mariana estava com a razão. Aquelas vertigens deviam ser causadas pela vista. Os olhos não iam bem. Iria ao Instituto. Resolveria a coisa. Óculos, eis tudo…

Comeu a banana, que Mariana se lembrara da sobremesa e, resolvido, voltou para o elevador, subiu e caiu.
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Fontes:
GUARNIERI, Gianfrancesco. (Organização: Worney Almeida de Souza). Crônicas de 1964. Ed. Xamã, 2008.
Imagem = http://www.senai.fieb.org.br

Obra dramática de Guarnieri resgata coletividade



A convicção de que a realização do homem só se completa por meio do resgate da coletividade não se desgastou sequer sob o sucessivo impacto de golpes que a História recente desfechou sobre os projetos e as práticas socialistas

Cristãos e marxistas partilham pelo menos um artigo de fé: ninguém se salva sozinho. Na obra dramática de Gianfrancesco Guarnieri, construída peça a peça por mais de quatro décadas, a convicção de que a realização do homem só se completa por meio do resgate da coletividade não se desgastou sequer sob o sucessivo impacto de golpes que a História recente desfechou sobre os projetos e as práticas socialistas. Em Eles Não Usam Black-Tie, primeira peça de um jovem autor de 24 anos que estreou com grande impacto no Teatro de Arena de São Paulo em 1958, entrava em cena, pela primeira vez nos palcos brasileiros profissionais, um coletivo de trabalhadores brasileiros cujo dilema ético era a solidariedade de classe. O operário Tião, filho de um líder da classe trabalhadora, trai os companheiros ao furar uma greve e é, ao final, exilado do morro onde vivem a família e a moça com quem pretende se casar. Renuncia, enfim, ao seu lugar de classe em nome do bem-estar individual.

A repercussão dessa primeira peça entre a crítica e o público fez dela o marco inaugural de uma nova etapa do teatro brasileiro. Assim como para os trabalhadores, não haveria salvação individual para os artistas e intelectuais. Era imperioso, portanto, encontrar alternativas para a expressão estética do ideário coletivista. Essa primeira peça questionava a um só tempo os cânones da dramaturgia e da encenação do teatro burguês. Para encená-la, o Teatro de Arena de São Paulo criou um espetáculo em que a escassez de materiais e a mobilidade da vida da população operária se reproduziam nos artefatos em cena, na disposição circular do espaço e na interpretação que procurava, nos gestos e na voz, a reprodução das características culturais da comunidade da favela. O que se impunha como valor, ao mesmo tempo dramatúrgico e cênico, era a autenticidade.

Fenômeno aos 25 anos

Sábato Magaldi observaria mais tarde que o conjunto, dirigido por José Renato, “não seguiu também a pista falsa do pitoresco do morro, despreocupando-se da tarefa, quase impossível na arena, de mostrar a cor local”. Com esse despojamento material e essa tônica no valor testemunhal da expressão, o espetáculo peregrinou por diversas capitais brasileiras, foi apresentado em locais inusitados como circos e sindicatos, e tornou-se pioneiro de uma estratégia que se tornaria em breve usual entre os grupos de arte militante: ir à procura da classe social que protagonizava o drama.

Alguns desses procedimentos de concepção e produção da obra dramática estão gravados como marca de origem nas peças subseqüentes de Guarnieri. Em primeiro lugar o foco concentrado sobre a situação de classe das personagens e do drama que protagonizam. As situações, as opções morais, o ser das suas criaturas, só se concretiza dramaticamente na interação social. Gimba, que estreou em 1959 em uma produção do Teatro Popular de Arte dirigida por Flávio Rangel, era um experimento no palco italiano que iluminava a vida da comunidade da favela carioca sob outro ângulo, o da marginalidade. A mitificação do transgressor, uma constante na experiência das comunidades pobres que até hoje intriga a sociologia bem-pensante, servia de pretexto para exaltar a potência criadora de uma comunidade excluída da riqueza e confinada nas encostas dos morros. Com essas duas peças o dramaturgo é, com apenas 25 anos, um fenômeno, como nota Décio de Almeida Prado: “Em menos de um ano e meio de atividade pública como autor, Guarnieri já teve certamente mais espectadores do que a maioria dos nossos dramaturgos em toda uma existência dedicada ao teatro”.

O ponto de equilíbrio com A Semente

Com A Semente, peça que estreou em 1961 no Teatro Brasileiro de Comédia sinalizando uma alteração nos rumos de um conjunto até então de perfil culturalista, também dirigida por Flávio Rangel, a fase de caracterização, de namoro um tanto quanto idílico com as virtudes de proletariado, cedia lugar a uma impiedosa análise das virtudes e dos vícios da militância comunista junto ao operariado. Em perfeito equilíbrio, os dois pratos da balança se ofereciam à apreciação do público. No protagonista Agileu Carraro, um sofrido militante curtido por 20 anos de luta, é notável a entrega ao bem-estar coletivo, o desprezo pela felicidade pessoal e a confiança inquebrantável no futuro. Mas são também traços inalienáveis dessa integridade entre teoria e prática a insensibilidade, a incapacidade para a relação afetiva e a argúcia do aproveitador que, em nome da “oportunidade política”, explora a dor dos seus companheiros de fábrica. “Política é incompatível com sossego!” - afirma Agileu em uma reunião - “E pouco me importa que sua mulher esteja doente ou que seus filhos comam terra. Há muitas mulheres doentes e muitos filhos comendo terra. Muitos filhos mortos - e a hora é de ação.”

As crises internas do Partido Comunista, nessa ocasião disciplinado por uma orientação internacionalista nem sempre adequada à realidade brasileira, eram representadas por cenas que criticavam agudamente a burocratização. Por outro lado, a selvageria do comportamento patronal permanecia fiel ao realismo, mostrando que o simples cumprimento da legislação trabalhista em vigor (bem menos do que luta revolucionária) demandava dos trabalhadores uma luta permanente. Pelo equilíbrio de forças e pelo perspectivismo consciente, que abordava a luta proletária pelo ângulo do afeto, incluía o ponto de vista das mulheres, detalhava a desvalorização do valor do trabalho e estabelecia, a partir desse patamar concreto, a discussão política, essa peça permanece até hoje como uma das mais complexas e perfeitas realizações do corpo da dramaturgia brasileira. Seus aspectos contingentes, ligados à existência de uma militância comunista, contribuíram para alijá-la do repertório contemporâneo. Relida e reencenada hoje, no entanto, parece-nos de um vigor trágico e pode-se dizer que atualiza o conflito grego entre as exigências da polis e a necessidade individual. De qualquer forma, seus contemporâneos souberam reconhecer de imediato a importância da peça. De um lado da trincheira política o Estado e a Igreja se obstinaram em condenar a peça enquanto, do outro, artistas, intelectuais e jornalistas se uniram para defendê-la.

Desafio com a camisa-de-força da repressão

Falar abertamente sobre a atuação dos comunistas sob a batuta conservadora de Jânio Quadros e no interior da atmosfera fanática e dualista da Guerra Fria era, já nessa ocasião, um desafio considerável aos poderes estabelecidos. Em 1964, quando o Arena apresentava no seu repertório O Filho do Cão, uma peça que dava continuidade à investigação da realidade brasileira enfocando a exploração do misticismo em uma comunidade de agricultores miseráveis, a situação política do país se radicalizava institucionalmente por meio de um golpe militar. A temporada, interrompida por uma medida cautelar enquanto o grupo esperava para ver quais os riscos que efetivamente corria, não foi retomada. Para um autor em evidente processo de verticalização temática - a peça enfrentava o aspecto auto-destrutivo da miséria cultural dramatizando um episódio de infanticídio - impunha-se o freio inelutável de novas condições históricas.

Para Guarnieri, como de resto para todos os artistas e intelectuais da sua geração, os 20 anos da ditadura militar significaram ao mesmo tempo uma camisa-de-força imposta aos seus projetos originais e um estímulo para propor formas de comunicação que, de alguma forma, conseguissem driblar a mordaça. Os musicais do Arena, obras em colaboração onde é possível distinguir a sua marca nas tônicas da poesia e na ênfase dada à esperança, abandonavam a trilha do realismo documental e enveredavam por narrativas de valor analógico. Arena conta Zumbi (1965), Tempo de Guerra (1965) e Arena conta Tiradentes (1967) consolidaram um novo tipo de musical brasileiro, com uma estrutura fluida e uma lírica combativa inspirada no modelo brechtiano, exortando à resistência (no caso dos dois primeiros espetáculos) e encontrando uma forma original para a autocrítica dissimulada da atuação da esquerda no caso de Arena conta Tiradentes.

Galeria de papéis

De 1964 a 1970, data em que a prisão e o exílio de Augusto Boal determinam o fim do núcleo ideológico do Arena, o dramaturgo Guarnieri praticamente se dissolve nesse empreendimento coletivo de resistência cultural. Escreve em conjunto as peças, compõe músicas em parceria e se responsabiliza pela interpretação de personagens com um talento que lhe garante até hoje um lugar incontestado na galeria dos grandes intérpretes do teatro brasileiro. Quem já teve o privilégio de ver no palco o ator Gianfrancesco Guarnieri, não o esquecerá.

Talvez se deva a esse trânsito simultâneo entre o palco e a escrita - e não só ao treino forçado para driblar a repressão - a ênfase no simbólico das suas peças escritas após o fechamento do Teatro de Arena de São Paulo. Escreve peças menores, curtas e nitidamente circunstanciais, para expressar de modo direto os efeitos da opressão sobre a consciência e os hábitos de uma população mantida deliberadamente na irresponsabilidade política ou para retratar, sob a forma de vinheta, aspectos da experiência militante. São desse teor duas peças curtas escritas para as “feiras de opinião”, espetáculos compostos de peças de diferentes dramaturgos.

Mas além da opinião, da reiteração do credo político e ideológico, dá continuidade a um projeto pessoal de fazer incidir o foco dramatúrgico sobre a realidade que lhe é contemporânea, prescindindo cada vez mais do instrumento do realismo e incorporando ao texto aberturas para a música, para a expressão poética e para a inventividade plástica da encenação.

Um Grito Parado no Ar

Castro Alves Pede Passagem estreou em 1971 com uma estrutura semelhante à dos musicais do Arena. A narrativa da biografia e dos feitos do poeta do povo inseria-se dentro da moldura pervertida de um programa televisivo populista. Apropriado pelo reino da mercadoria, o idealismo tornava-se também um produto inócuo, enfraquecido na sua potência mobilizadora e transformadora. Com Um Grito Parado no Ar, inversamente, o meio de comunicação adotado pelas personagens - neste caso o teatro - era capaz, por si só, de extrair água de pedra. Considerado quase unanimemente um dos pontos mais altos do teatro brasileiro dos anos 70, o texto dispensava as minúcias narrativas para concentrar-se em um único ato simbólico.

Uma trupe de artistas ensaia, por meio de improvisações, um espetáculo que entrará em cena em um prazo máximo de dez dias. Não há dinheiro para o espetáculo, o reduzido equipamento vai sumindo durante a ação porque os credores vêm retirá-lo e, por fim, até a luz do teatro é cortada. No entanto, durante a improvisação, a alquimia do teatro se completa e, à luz de velas, os artistas cumprem a dupla missão de transformar-se e transformar a realidade porque, apoiando-se em documentos, constrói personagens de valor universal. Ao cândido simbolismo da representação que se mantém viva sob a chama de uma vela associa-se a complexidade da transformação da matéria histórica - indicada no texto pelo depoimento de populares - em signos de profunda significação para os indivíduos e para a sociedade.

Essa linguagem meio cifrada, que oculta para estimular a atividade analógica do público e, em grande parte, para preservar a comunicação emocional das obras, mantém-se até hoje como um traço característico dos textos de Guarnieri. Botequim, Ponto de Partida, Pegando Fogo Lá Fora, Anjo na Contramão e A Luta Secreta de Maria da Encarnação, que estreou em 2001, são, vistas como um conjunto, alegorias não só dos acontecimentos que moldaram a vida do País no último quartel do século 20, mas também a história íntima de todas as lutas travadas pela redenção dos oprimidos. Não são 20 ou mesmo 40 anos que estas peças simbolizam, mas “Séculos de luta, mulher! Séculos de luta que ninguém desfaz!

Fonte:
Mariangela Alves de Lima. Obra dramática de Guarnieri resgata coletividade. Jornal O Estado de São Paulo. Caderno Arte & Lazer. Variedades. Sabado, 22 de julho de 2006.