quinta-feira, 19 de março de 2009

Cíntia Moscovich (O tempo e a memória)

Pintura de Salvador Dali
Para Modesto Carone

Poderia ter seus sessenta, no máximo sessenta e cinco anos. Beleza, não; ao menos não se diz de um homem daquela idade que é bonito.

Demonstrava, no entanto, a altivez de quem ocupa uma posição. Não era alto, mas o corpo tinha contornos de firmeza. Os óculos de hastes finas eram um halo a emoldurar os olhos cinzentos; os cabelos, raros; a testa alteada como a de um fidalgo. O vinco entre as sobrancelhas tornava-se um exaspero sobre o peso do rosto.

Ao abrir a porta, sorriu apenas educado, e o sorriso cavou com nítida precisão a ruga acima do nariz. Eu quis saber se ele era o professor Augusto e se tinha lembrança de que eu telefonara no dia anterior. Disse que sim e cumprimentou-me com dedos enérgicos. Num gesto cordial, convidou-me a entrar. Cedeu passagem recuando o corpo, e senti que me observava. Por vaidade, contraí as nádegas e alteei o queixo. Por vaidade. Foi assim que penetrei naquele lugar, com o coração ainda escuro - ainda sem nódoa.

O gabinete era amplo, e prateleiras repletas de livros enchiam o ambiente. Numa parede sobre a qual se aplicara papel de um bordô muito profundo, dominava essa pintura a óleo, de cores bastante tênues: uma mulher, jovem, trazendo ao peito um colar de pérolas. Senti que o homem ainda me observava. E, orgulhosa de juventude, ainda mais contraí as nádegas, fingindo observar o retrato.

Ofereceu-me a cadeira em frente à escrivaninha - grossos cadernos de espiral empilhavam-se a um canto, ao lado do telefone - baquelite, uma raridade - e do abajur de opaline. Deu volta e tomou assento naquele que era seu lugar; escorou os antebraços sobre a mesa, entrelaçando os dedos. Muito bem, ele disse, e então?

Um jornalista escreve para o esquecimento, enquanto desejaria escrever para a memória e para o tempo. Mesmo assim, tirei da bolsa o gravador, caneta e bloco de notas. Fiz menção de ligar o aparelho, mas ele estendeu o braço, detendo-me com a mão espalmada:

- Gravadores deixam-me com voz metálica. Além do mais, sei que a senhora não vai publicar nem metade do que vou dizer.

Jornalistas editam e cortam; jornalistas são sempre infiéis. Como, então, eu pedia que confiasse em mim? Recolhi meu equipamento, pressurosa e um pouco envergonhada. Ele empurrou as costas contra a cadeira: a vitória aliviava a concentração do rosto. Engoli o desconcerto e, alisando o papel em que rabiscara algumas notas, busquei aplicar-me à entrevista: ele era especialista em filologia, mas se dedicava, havia alguns anos, à tradução de Borges, uma das melhores, segundo diziam. Fiz a primeira pergunta.

Professor Augusto pendeu o tronco para a frente, cedendo o movimento quando estava suficientemente apoiado no braço da cadeira. Colocara-se muito próximo de mim - uma intimidade. Olhou-me:

- Por que eu traduzo Borges? Ora, porque não consigo escrever como Borges, senhora.

Talvez se tratasse de uma frase de efeito, talvez ele quisesse me confundir. Eu ainda não compreendia como a fala e as intenções se podiam modular do claro ao escuro; tudo o que existia naquela época era o preto no branco, coisas que se percebessem no brilho da nitidez. Para uma repórter ansiosa de coisas que se concretizassem, aquela era, em definitivo, uma retórica injusta, que eu escutei exatamente assim: como se não a merecesse. Anotei tonta e literalmente a afirmativa. Pedi, mentindo sobriedade, que continuasse.

- Tenho pensado que Borges não precisa que o traduzam. Melhor ler Borges no original. A senhora já leu Borges em castelhano?

A primazia das perguntas era minha, pretendi avisá-lo. Na realidade, alguns anos antes, a passeio em Buenos Aires, comprara um antigo exemplar de Ficciones numa das livrarias da calle Corrientes, volume que trouxe com o ânimo de quem porta um souvenir de viagem. Lembro, ainda hoje, de ter lido a brochura com dificuldade, um castelhano árduo mesmo para quem nasceu em terras sulinas do Brasil. Por isso, pelo penoso da experiência, naquela hora não consenti em dar a ele as miudezas de minha pequena história - muito menos me animei à confissão do quanto me custara a visita ao Ficciones. Tornei-me, de repente, cansada, de repente exausta, sem vontade de estar na frente daquele senhor, que me arrostava, os olhos cor de ardósia muito intensos.

Abreviei a entrevista: que diferença fazia eu ter lido ou não Borges no original?

Toda a diferença do mundo, retrucou, não sem certo amuo, dirigindo a atenção para algum ponto às minhas costas. Dei volta com o corpo, curiosa. Nós, os dois, agora, olhávamos para a mulher no retrato. O papel de parede, no fundo do qual frutos e pássaros entrelaçavam-se, começava a despegar à altura do encontro com a moldura de gesso que servia de contorno ao teto. Os dentes da mulher eram nacarados e pareciam repetir o brilho das pérolas. Voltei a encará-lo. Pegou uma caneta onde o dourado se amortecera pelo tempo. Repetiu a mesmíssima pergunta: a senhora leu Borges no original?

Respondi, finalmente, que sim. Seu rosto se iluminou, como quem encontra um seu igual. E desandou a falar, Borges e seus símbolos, Borges e sua erudição, Borges e seu Sul, Borges e sua melancolia, a fidelidade do tradutor ao original de partida, o conhecimento da língua de chegada, as equivalências possíveis entre espanhol e português - tudo numa velocidade que a minha tonta mão se negava a acompanhar, o papel impermeável àquele jorro repentino. Consegui retardá-lo duas ou três vezes, nunca o suficiente. Ele continuava, a caneta orquestrando uma sinfonia de instrumentos loucos, da qual me sentia excluída - não parecia fazer a mínima diferença eu ter lido Borges no original.

Até que o telefone tocou. Ele se interrompeu, a respiração poderosa. Levantou o fone do gancho, agastado. Ouviu com repentina atenção, fazendo um movimento afirmativo com a cabeça, a ruga arando a pele num sulco trágico. Ao cabo de poucos segundos, disse que já estava indo, saio agora mesmo, não se preocupe, não vai ser nada, querida.

Querida. Então havia no mundo alguém que aquele homem queria, alguém que o esperava em algum lugar - onde? Depôs a caneta sobre a pilha de cadernos, alinhando-a com o capricho de quem arranja um antigo documento. Pôs-se de pé, sentia muito, mas tinha de ir. Juntei minhas poucas coisas, apalermada de susto. Levou-me até a porta:

- Volte, por favor, amanhã, às duas da tarde. - Colheu do cabide atrás da porta um cachecol vermelho, que enrodilhou ao pescoço, e um grosso sobretudo de lã, que vestiu com destreza: - Não gosto de entrevistas por telefone.

Descemos os dois degraus que separavam a porta da calçada. A tarde já ia em seu fim, e o céu se anuviava frio de cinza. Uni as abas da gola e ajeitei melhor a bolsa sobre o ombro. Estendi-lhe a mão. Sua pele estava gelada. Fez sinal para um táxi, que se deteve logo adiante. Antes de embarcar, supôs que eu merecesse uma justificativa:

- É meu netinho, um corte na testa. Não deve ser nada, mas minha filha está muito nervosa. Sabe como é.

Não, eu não sabia. Dali a alguns anos, eu teria filhos, mas ainda faltava em mim um laço para que eu entendesse todas as formas de afeto e seus desesperos. O táxi partiu. Decidi caminhar até a redação. Uma nódoa ameaçava dentro. Apertei o passo, impressionada.

Naquela noite, jantei duas fatias de pão com manteiga. Resolvi ir para a cama antes da hora de costume. Depois de escovar os dentes, fui até a estante de livros. Como se fosse por primeira vez, dei de mão no volume de Ficciones. Luz de cabeceira acesa, tapada até o pescoço, comecei a penosa releitura. À altura da estranha história de Juan Dahlmann e seu profundo sentimento argentino, meus olhos já pesavam. Antes de chegar ao desfecho, o livro caiu dentro do silêncio do quarto e se perdeu na voragem do sono. Em meus sonhos, o bibliotecário que tinha em mãos o exemplar das Mil e uma noites se altercava com um homem de feições indiáticas.

No dia seguinte, cheguei cedo à redação. Queria, na verdade, escrever a matéria sobre Borges, antecipar-me ao prazo das rotativas. Meu editor perguntou sobre a entrevista. Menti, sendo imprecisa. Ele disse que precisava de fotos do professor Augusto, não havia nenhuma no arquivo, e pediu que escrevesse o obituário de um escritor local, que estava à morte. Concordei, com a alma densa.

O telefone tocou pelas dez. Atendi. E escutei:

- Sou eu, Augusto.

Veio algo como aflição, que também poderia ser surpresa e que - pensando bem - poderia ser alegria. A voz ao telefone soava faceira e doce, e era como se não correspondesse ao corpo de alguma idade e à índole brusca que demonstrara. Busquei, na papelada sobre minha mesa, o bloco de anotações. Ele me interrompeu:

- A senhora está ocupada agora?

Falei-lhe do obituário. O professor espantou-se, conhecia o autor e lamentava a gravidade dos fatos. Decidiu punir-me, mais uma vez: pensava que o necrológio deveria ser somente feito quando o escritor morresse. Não tinha resposta e fiquei em silêncio. Ele me fustigou:

- Assim são as coisas, senhora. As fúrias se antecipam ao ato.
Tentando dar a mim mesma alguma dignidade, comentei que era bela a frase. Ele retrucou, seco:

- A frase não é minha. É de Kafka. Por favor, venha às quatro da tarde.
Antes que ele desligasse, avisei que levaria comigo um fotógrafo. Ele foi quase ríspido:

- Senhora, uma das coisas que menos aprecio no mundo é que me fotografem.

Desligou. Terminei o texto exatamente ao meio-dia. O escritor faleceu perto da uma da tarde.

Pelas duas, começou a chover, água debatendo-se furiosa contra as vidraças. Meia hora antes do combinado, pedi que o carro do jornal me levasse à casa do professor. O motorista queixava-se da tormenta. Eu também queria queixar-me. Mas de quê?

Toquei a campainha. Ele atendeu: uma vaga de calidez suavizava a ruga entre os olhos. E, pela primeira vez, um homem daquela idade era quase bonito.

Sentei, ainda confusa, no mesmo lugar do dia anterior. Perguntei como estava o neto, se havia sido algo de grave. Ele riu com gosto:

- Dois pontos no supercílio, nada demais - o tom dele era o de amor sólido e severo. - Minha filha se assusta com facilidade - e olhou por cima de meu ombro.

Alguma penumbra muda se instalou no meio de nós. Tomei coragem e, numa vingança débil, informei que o escritor havia morrido. Ele reagiu:

- Sim, já sei. E o necrológio está pronto. - Inclinou um pouco a cabeça: - Talvez eu tenha sido indelicado com a senhora. Sou velho, a morte está ali ao lado - apontou com o queixo uma das prateleiras de livros - mas ainda não somos amigos.

Voltei os olhos para as lombadas e perdi a ação. Calar-me significava concordância com ambas as afirmativas: a de que ele era velho e a de que a morte inspirava pouco apreço. A morte era, sim, algo terrível, e o quê mais era ele senão isso, um homem velho? Nada pude falar. Sem que parecesse dar sentido ao meu mutismo, sugeriu:

- Aceita um café?

Bem, era uma idéia. Apoiou as mãos na borda da mesa e ergueu o corpo, não sem certa dificuldade. Volto já, ele disse, cruzando por mim.

Observei-o: trajava de cinza, calça e pulôver de lã, o cachecol vermelho em volta do pescoço. Ele decerto sentiu que o olhava. Pelo menos, aprumou os ombros ao cruzar pela porta do gabinete. Teria sido belo anos antes.

Caminhei até o retrato. Abaixo da assinatura - indecifrável - a data indicava que exatos trinta anos se haviam passado. Examinei sua biblioteca, detendo-me numa antiga brochura das Mil e uma noites, de Weil, que folheei com deferência; as ilustrações não poderiam ser mais encantadoras. À frente dos livros, quase à beira da estante, algo que se assemelhava a um caleidoscópio chamou-me a atenção. Levei o tubo ao olho, e coloridos vidrinhos armaram-se simétricos, mas nem por isso monótonos. Voltei à mesa de trabalho e medi a pilha de cadernos. Um pecado não estava proibido, e peguei uma das brochuras. O cheiro íntimo de café já se desprendia da cozinha, mas sem ainda ser suficiente para me espantar. Ao alto, no cabeçalho da folha, lia-se "Ulrica". O texto vinha numa caligrafia caprichada, de arranque impetuoso, que logo se suavizava, escandindo-se ao longo da página com elegância. Admirei-me: um trabalho bonito. Devolvi o caderno à pilha e voltei à cadeira quando escutei o breve tilintar de louças. Ele colocou a bandeja entre nós.

- Poderia ser seu pai, senhora - ele disse, acomodando-se.

A frase não resistia à lógica da circunstância. Poderia mas não é, respondi, tentando acompanhar a sinuosidade do raciocínio. Pedi que retirasse a senhoria, melhor chamar-me pelo meu primeiro nome.

Retribuiu a gentileza na mesma moeda. Comentei que o tratamento cerimonioso fazia com que houvesse uma espada entre as pessoas. Ele incendiou o rosto num sorriso, comentando que aquela poderia ser uma frase de Borges. Perguntou se podia servir o café - a essa altura já me tratava pelo primeiro nome. Aceitei.

As palavras que ele dizia portavam cada qual sua sombra, isso era seguro. Mas havia coisas que me eram dadas, naquele momento, compreender. E compreendi. O café que ele serviu era um tanto de amor na louça delgada feito casca de ovo. No meio do silêncio vagaroso, ocorreu-me que o professor mudara de atitude da noite ao dia.

Simplesmente assim: ele havia buscado uma bandeja na cozinha e a dispusera na escrivaninha que nos separava. Sem que eu pedisse - sem que eu merecesse -, colocara, ao lado do bule, quindins lisos e perfeitos.

E como me oferecesse sóis de gemas, a fome veio. Levei o doce à boca, o ovo feito geléia, e o açúcar suavizou meus lábios. Comemos, sem que, por muito tempo, se escutasse uma só palavra: no espaço entre nós, reinava alguma mútua satisfação. O último ruído audível foi o da colher chocando-se contra a louça.

Cada um de nós tomou duas xícaras de café. Depois de passar o guardanapo de papel nos lábios finos, perguntou se estava servida.

Agradeci, elogiando a refeição inesperada. Retirou a bandeja da escrivaninha, depondo-a numa mesa lateral - movimentava-se com elegância. Sentando-se, alisou o cachecol. Varreu com a polpa do indicador alguns farelos imaginários do tampo de madeira; estalou os nós dos dedos e me ofereceu um pensativo semblante. Tive o pressentimento de que ia me dizer algo e, antes que fizesse isso, indaguei a respeito da tradução. Calmamente, repetiu o que declarara, aos jorros, no dia anterior. Ouvi.

Para não deixar as mãos abandonadas, volta e meia pousava-as na pilha de cadernos manuscritos, acarinhando-os. Os olhos perscrutavam-me, avaliando, vez que outra, meu colo, o que me inquietava um pouco ou talvez me envaidecesse. A fala se tornara mais lenta, a dicção, perfeita: uma récita que eu seguia com todos os sentidos. Em determinado momento, tive a intenção de detê-lo, de parar aquela espécie de amor que vinha no caudal das palavras. As certezas ainda longe de mim, temi que estivesse fazendo um cálculo torto - poderia ser somente bondade o que me parecia ser um influxo de carinho. Eu não tinha como saber.

Perguntei se realmente traduzia Borges porque não podia escrever como Borges. Ele sorriu.

- Desisti da carreira quando me dei conta que conseguia manejar bem dez frases curtas, mas que não conseguia uma única frase longa que prestasse - e fez um gesto com a mão, desprezando-se. - Você nunca quis ser escritora?

Confessei que sim, queria, desde pequena, quando lera Lobato. Lobato?, ele repetiu, animado. O sulco sobre a testa havia praticamente sumido.

Aparou a cabeça nos nós dos dedos. E comentou:

- Ontem eu comecei a traduzir Ulrica. É uma história de amor.

Lembrei-me, com algum receio, do caderno que havia aberto quando ele estava na cozinha. A caligrafia caprichada, de arranque impetuoso, fazendo volteios em torno do U inicial. Ele ainda me oferecia os olhos aguados, como se fosse feliz. Desviei o rosto, não sem embaraço, e, ao deter-me na caderneta de anotações, senti uma pontada de entusiasmo: do tanto que havíamos conversado, tinha assunto suficiente para três matérias. Olhei o relógio e uma onda de espanto veio, já era tarde; comentei que tinha de ir. Ele acendeu o abajur de opaline, alisou outra vez a pilha de cadernos e tomou nas mãos a caneta dourada:

- Pois bem, mocinha. O milagre tem o direito de impor condições.

Creio que, por juventude, ainda não sabia ficar calada. Só depois, descobri a imobilidade que, aliada ao silêncio, me traria a vantagem da dúvida. Disse, então, como uma tola, aquela que eu realmente era, que não havia entendido. Ele respondeu que não tinha a menor importância.

Foi comigo até a porta e ajudou-me com o casaco e com a bolsa, ajeitando o cachecol junto a meu pescoço. Perguntou se eu iria até a redação. Falei que já era hora de voltar para casa e que gostava de caminhar sozinha. Sem abrir a porta, ele disse:

- Eu também. Podemos caminhar juntos um dia desses.

Rimos os dois. Parados, de frente um para o outro, ríamos juntos, e eu temi que fosse feliz na hora errada. Num gesto imprevisto colocou-me as mãos sobre os ombros. Estaquei: uma mulher se depara como mulher frente a um homem poucas vezes no espaço de uma vida. Atendendo a algum impulso subterrâneo, abracei-lhe o corpo. Ele suspendeu a respiração. Para uma mocinha, e para um senhor, para nós dois, o contato físico era um dom inesperado. Ele retribuiu o abraço com muita força e encostou, como se fosse permitido, o rosto ao meu. Conheci a pele escanhoada. Era macia.

- Sou viúvo - ele disse. - Não costumo ter nos braços outras pessoas que não minha filha e meu neto.

O diálogo se tornara difícil, como o de duas criaturas que não podem se enganar. Saí com dó daquele laço; sem encará-lo, confidenciei que estava triste por ter acabado a entrevista.

- Ora, mocinha. Amanhã o sol vai brilhar em seus dentes.

A frase tinha lá sua pompa; fazia parecer que o afeto era fácil. Ele abriu a porta e aspirou o ar gelado. Estiara. Hesitou um breve momento antes de perguntar.

- Você quer vir amanhã?

Eu me confundi. Depois de alguns momentos, em que tentei avaliar a pergunta, fiz que sim com a cabeça. Ele disse que me esperaria. E mais:

- A vocação dos velhos é esperar.

Quis saber se, de fato, ele se sentia velho. Negou, meneando a cabeça com certo orgulho.

Ganhei a calçada. A porta fechou-se delicadamente às minhas costas.

Eu, úmida, parada no meio de uma rua transversal da cidade, sentia-me o avesso de uma menina. Meu rosto, onde a pele do professor se juntara à minha, era puro resplendor. Estava toda sensibilidade, algo que me incomodava sem doer, feito uma unha quebrada. Era uma alegria, que apesar de ser alegria, pesava: carga tão difícil de ser eu mesma daquele jeito insolente. Um calor me vinha de dentro do corpo, do tempo em que batia o coração, mas que também era marcado pelos passos que percutiam na calçada. Enfrentava o vento frio, como se houvesse chegado a algum extremo. Cada coisa já tinha sua sombra. Uma delas se instalara em mim e, ao menos por aquele momento, eu achava que era uma bênção. Porque são abençoadas, as pessoas continuam a viver.

Naquela noite, mais uma vez, pouco comi. Deitada, mantive os olhos abertos, numa tentativa de contar a mim mesma meu dia. Nas trevas do quarto, o rosto do professor surgiu, as hastes dos óculos pura iluminação.

Nos meus sonhos, ele se defrontava com o homem de feições indiáticas.
Bem cedo, pulei da cama. Antes de bater a porta de casa, apanhei o volume de Ficciones e carreguei-o junto ao peito. Bastante antes do meu horário de costume, estava na redação. Escrevi e escrevi, horas inteiras. Borges nunca me pareceu tão claro e tão próximo. Era uma intimidade recente, bem certo, mas havia laços que me autorizavam. Meu editor veio pedir-me outro obituário. Polidamente, recusei, alegando que as fúrias não deviam se antecipar ao ato. Ele estranhou.

Por volta de cinco da tarde, a matéria estava pronta. Pedi ao arquivo fotografias de Borges. Escolhi uma bastante antiga, em que se notava o trabalho do tempo. Ao final da edição, dando o artigo por concluído, conheci o medo de ficar sozinha.

Cheguei à casa do professor pelas sete da noite. O volume de Ficciones agarrado junto aos seios. Toquei a campainha. Ele abriu a porta: recebeu-me sem surpresa. Meu coração trocou o tempo em que batia, e eu acolhi, enfim, como quem aprende, a nódoa.

O rosto de um homem daquela idade era finalmente bonito.

Fonte:
MOSCOVICH, Cintia. Arquitetura do Arco-Íris. RJ: Record, 2004.

Cintia Moscovich (1958)


Nascida em 15 de março de 1958 na cidade de Porto Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul, Brasil, Cíntia Moscovich é escritora, jornalista e mestre em Teoria Literária, tendo exercido atividades de professora, tradutora, consultora literária, revisora e assessora de imprensa. Dentre vários prêmios literários conquistados, destaca-se o primeiro lugar no Concurso de Contos Guimarães Rosa, instituído pelo Departamento de Línguas Ibéricas da Radio France Internationale, de Paris, ao qual concorreu com mais de mil e cem outros escritores de língua portuguesa.

Em 1996, publicou sua primeira obra individual, "O reino das cebolas", co-edição da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e da Editora Mercado Aberto, que mereceu a indicação ao Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro. Um dos contos que integram a coletânea foi traduzido para o inglês e faz parte de uma antologia que reúne escritores judeus de língua portuguesa. Em 1998, pela L&PM Editores lançou a novela "Duas iguais - Manual de amores e equívocos assemelhados", que recebeu o Prêmio Açorianos de Literatura, na modalidade de Narrativa Longa, em 1999, e que acaba de ser reeditado pela Record. Em outubro de 2000, também pela L&PM Editores, lançou o livro de contos "Anotações durante o incêndio, que tem apresentação de Moacyr Scliar e reúne onze textos de temáticas diversas, com destaque ao judaísmo e à condição feminina, merecendo outra vez o Prêmio Açorianos de Literatura. A mesma obra recebeu nova edição pela Editora Record, em novembro de 2006.

Em 2004, publicou a coletânea de contos "Arquitetura do arco-íris", também pela Record, livro que lhe valeu o terceiro lugar em contos no prêmio Jabuti, além da indicação para o Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira e para a primeira edição do Prêmio Bravo! Prime de Cultura.

Em novembro de 2006, lançou o romance "Por que sou gorda, mamãe?", também pela editora Record.

Em dezembro de 2007, lançou seu primeiro livro infanto-juvenil, "Mais ou menos normal", pela Publifolha; e seu sexto livro individual, o romance infanto-juvenil Mais ou menos normal, que faz parte da série Cidades visíveis, da Publifolha.

Ex-diretora do Instituto Estadual do Livro, órgão da Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul, também trabalhou como editora de livros do jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Atualmente, dedica-se exclusivamente à literatura.

Obras
Reino das Cebolas, contos, 1996 (L&PM) – indicado ao Prêmio Jabuti
Duas iguais, novela, 1998 (L&PM) e 2004 (Record)
Anotações durante o incêndio, contos, 1998 – Prêmio Açorianos na categoria de Contos
Arquitetura do arco-íris, contos, 2004 (Record) – Prêmios Portugal Telecom e Jabuti de 2005.
Por que sou gorda, mamãe?, romance, 2006 (Record)

Participação em Antologias

"Geração 90: manuscritos de computador" - seleção realizada por Nelson de Oliveira, publicada em 2001 pela Boitempo Editorial.
"13 dos melhores contos de amor da literatura brasileira"(Ediouro, 2003), com organização de Rosa Amanda Sztraus
"Ficções Fraternas", organizado por Lívia Garcia-Roza e publicado pela Record, 2004.
"25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira", organizada por Luiz Ruffato, publicado pela Record.
"O viajante transcultural - leituras da obra de Moacyr Scliar", organizado por Regina Zilberman e Zilá Bernd (Edipucrs, 2004)
"O dever da memporia - o levante do gueto de Varsóvia" - organizado por Abrão Slavutzky (AGE, 2003)
"Contos para ler em viagem" - organizado por Miguel Sanches Neto (Record, 2005)
"Contos do novo milênio", organizado por Charles Kiefer (IEL, 2005)
"O livro dos sentimentos" - organizado por Márcio Vassalo e Maria Isabel Borja, publicado pela Guarda-Chuva em 2006.
"Os 100 menores contos do século" (Ateliê Editorial) - organizado por Marcelino Freire em 2005.
"Contos de bolso" - organizado por Laís Chaffe para a editora Casa Verde, em 2005.
"69/2 Contos eróticos" - organizado por Ronald Claver, publicado pela editora Leitura em 2006.
"Contos de bolsa" - organizado organizado por Laís Chaffe para a editora Casa Verde, em 2006.
“35 segredos para chegar a lugar nenhum” (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, organização de Ivana Arruda Leite).
“Guia de leitura: 100 autores que você precisa ler” (Porto Alegre: L&PM Editores, 2007 - organização de Léa Masina)
“Recontando Machado”. (Rio: Record, 2008 – organização de Luiz Antonio Aguiar

Fontes:
http://pt.wilipedia.org/
http://www.cintiamoscovich.com/

Felipe Giacomin (Sentidos do Amor)



Amor é algo que domina a gente
Mesmo igual é sempre diferente.

Amor é algo que bate dentro de mim
Fazendo meu coração bombear sem fim.

Amor não tem tempo, nem cor
Amor é apenas amor.

Amor não é tão fácil
Que se conquiste dando um passo.

Amor tem vários sentidos
Podemos amar até nossos amigos.

Amor é uma doação, querendo ou não
Todo mundo quer tê-los em mão.

Uma conquista que prá muitos vale pouco
E prá poucos vale muito.

Sublime é o amor
Sem raça sem cor.

Amor que nos faz flutuar
Isto é a razão de viver e amar.
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Fellipe Giacomin, nasceu em Sorocaba em 12 de abril de 1994.
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Fonte:
MORAES, Cintian. LARA, Douglas (organizadores). Antologia Rodamundinho 2008. Itu: Ottoni, 2008.
Imagem = http:// www.imotion.com.br

terça-feira, 17 de março de 2009

Luís Delfino (Caldeirão Poético de Santa Catarina)



ALTAR SEM DEUS

Inda não voltas? — Como a vida salta
Destes quadros de esplêndidas molduras!
Mulheres nuas, raras formosuras...
Só a tua nudez entre elas falta ...

Pede-te o espelho de armação tão alta,
Onde revias tuas formas puras;
Pedem-te as cegas, lúbricas alvuras
Do linho, que a Paixão no leito exalta.

Pedem-te os vasos cheios de perfume
Os dunquerques, as rendas, as cortinas,
Tudo quanto a mulher de bom resume,

Escolhido por tuas mãos divinas...
E sai do teu altar vazio, ó nume,
A tristeza indizível das ruínas ...

CADÁVER DE VIRGEM

Estava no caixão como num leito,
Palidamente fria e adormecida;
As mãos cruzadas sobre o casto peito,
E em cada olhar sem luz um Sol sem vida.

Pés atados com fita em nó perfeito,
De roupas alvas de cetim vestida;
O tronco duro, rígido, direito,
A face calma, lânguida, dorida...

O diadema das virgens sobre a testa,
Níveo lírio entre as mãos, toda enfeitada,
Mas como noiva, que cansou na festa.

Por seis cavalos brancos arrancada...
Onde irás tu passar a longa sesta
Na mole cama, em que te vi deitada?!...

TELA APAGADA

Tecum vivere amem.
Horácio

Como isto aqui mudou!... Agosto, o ano passado,
Tinha mais sol, mais luz, mais calor, menos frio;
Mas tudo o mais é o mesmo: a água do mesmo rio,
A ponte de madeira, as mangueiras, ao lado,

Velhas, grandes, em flor, o lanço esburacado
Do muro, e o líquen nele, e a avenca, e o luzidio
Lacrau, que salta, e vira, e já volta ao desvio;
O cão ganindo; e a um canto, à esquerda, ao longe, o prado;

Bambus em renque, em meio o caminho, e no espaço,
Longe do morro, ao fundo, a casa; e no terraço
Sobre o jardim, talhando o ar cintilante, a imagem

De um anjo, - um áureo nimbo à coma, o olhar humano
Como jamais pintou Corregio ou Ticiano:
Quem, levando-a, apagou a esplêndida paisagem...

ALMA VIÚVA

És uma alma viúva e perturbada:
Foi-te a paixão um vento de passagem,
Que indo, lançou do céu na tua imagem
Luxos da noite e jóias da alvorada.

A flor de amor, macia e perfumada,
Não foi de oásis, foi de uma miragem;
Anda por ti, como um rumor de aragem
A um rosal, que deu rosas, pendurada.

Teu negro olhar... o teu olhar esconde
Lasciva flauta de dois tubos, onde
Pã tocara, cantando a selva em coro.

Dentro, o desejo, como instável onda,
Dorme fremendo, quando alguém o sonda,
Como um leão ao sol nas garras d'ouro.

UMA PRINCESA ANTIGA

Tem a grandeza antiga e peregrina
Das mulheres da Bíblia, e da Odisséia:
Anda, fala, aparece... e se imagina
Ou Palas ou Judite ou Diana ou Rea.

Mas quando ao campo os passos seus destina,
Sua estatura avulta: - então é Dea:
Jove, para a espiar da azul cortina,
Deixa os deuses no Olimpo em assembléia.

Juno descora... E ela no cercado,
Numa das mãos erguendo os seus vestidos,
Com outra lança às aves pão cortado,

E vê de longe, entre os capins crescidos,
O velho boi de Homero, um boi malhado
De passo tardo e chifres retorcidos.

O MAL DA VIDA

Amor, pois, é a esplêndida loucura,
E a miséria de um sol que nos invade?
Caiu alguém aos pés da formosura
Que lhe não deixe aos pés razão, vontade?

Este delírio vem da eternidade,
Vem de mais longe, eu sei: - quem o procura
Acha-o mais velho do que Deus: quem há-de
Fugir do mal da vida por ventura?

E o amor é o mal que acaba em paraíso;
E para dar-nos céus num só lampejo
Basta-lhe um pouco, um nada é-lhe preciso:

De sonhos d'oiro e luz calça o desejo:
E então, de dia, em rosa abre o seu riso,
E em ampla estrela, à noite, abre o seu beijo...

CAPRICHO DE SARDANAPALO

"Não dormi toda a noite! A vida exalo
Numa agonia indômita e cruel!
Ergue-te, ó Radamés, ó meu vassalo!
Faço-te agora amigo meu fiel...

Deixa o leito de sândalo... A cavalo!
Falta-me alguém no meu real dossel...
Ouves, escravo, o rei Sardanapalo?
Engole o espaço! É raio o meu corcel!

Não quero que igual noite hoje em mim caia...
Vai, Radamés, remonta-te ao Himalaia,
Ao sol, à lua... voa, Radamés,

Que, enquanto a branca Assíria aos meus pés acho,
Quero dormir também, feliz, debaixo
Das duas curvas dos seus brancos pés!..."

IN HER BOOK

Ela andou por aqui; andou. Primeiro,
Porque há traços de suas mãos; segundo,
Porque ninguém, como ela, tem no mundo
Este esquisito, este suave cheiro.

Livro, de beijos meus teu rosto inundo,
Porque dormiste sob o travesseiro
Em que ela dorme o seu dormir, ligeiro
Como um sono de estrela em céu profundo.

Trouxeste dela o odor de uma caçoula,
A luz que canta, a mansidão da rola
E esse estranho mexer de etéreos ninhos...

Ruflos de asas, amoras dos silvedos,
Frescuras d'água, sombras e arvoredos
Dando seca aos rosais pelos caminhos...

PRIMEIRA MISSA NO BRASIL
(a Vítor Meireles)

Céu transparente, azul, profundo, luminoso;
Montanhas longe, encima, à esquerda, empoeiradas
De luz úmida e branca; o oceano majestoso
À direita, em miniatura; as vagas aniladas

Coalham naus de Cabral; mexem-se inda ancoradas;
A praia encurva o colo ardente e gracioso;
Fulge a concha na areia a cintilar; grupadas
As piteiras em flor dão ao quadro um repouso.

Serpeja a liana a rir; a mata se condensa,
Cai no meio da tela: um povo estranho a eriça;
Sobre o altar tosco pau ergue-se em cruz imensa.

Da armada a gente ajoelha; a luz golfa maciça
Sobre a clareira; e um frade, ao ar, que a selva incensa,
Nas terras do Brasil reza a primeira missa.

A POESIA

O que é poesia, Helena? O céu invade,
E tudo une e desune e tudo enfeixa;
E tudo mete em sonorosa endeixa,
E tudo quanto foi, e inda ser há de.

É a voz de Deus, o som da tempestade:
Dá músicas ao mar, amor à queixa:
E ela em seu manto embrulha os sóis, e deixa
A ira enleá-la, e é cheia de bondade.

Embala o berço, e faz dançar a boda:
Mesmo ao trágico empresta os seus encantos:
Dá voz sublime à ventania douda.

É de existência dor, sorriso, prantos:
E a grande, a rica natureza toda
Luz, freme, goza, sofre, haure em seus cantos...

EXTRA MUROS

A tarde de ontem!... Longe da cidade,
Eu a esperava à porta do Passeio:
Quando via ir chegando um carro: — há de,
Pensava, ser o carro em que ela veio.

Não era. — Então ficava em novo enleio:
Cada momento era uma eternidade;
E entre a esperança, a dúvida, o receio,
Que inquietação, que angústia, que ansiedade!

Mas de repente o rápido ginete
Estaca, o faéton pára, as longas clinas
Sacode o pônei fino e cor de leite:

Sai a deusa: o sol ri, e das colinas
Rola-lhe ao pés a luz, como um tapete
Que ela esgarça na ponta das botinas...

A ÁGUIA

A águia negra, num vôo, de repente
Fura o céu, desprendida da montanha,
E parece levar em feixe ardente
Luz, que às garras metálicas apanha.

Afronta o sol, provoca-o frente a frente,
Deixa as nuvens atrás, remonta em sanha...
E volta irada, triste e lentamente,
Por ver tão longe a luminosa aranha.

Liso, e em foto o areal, como um espelho
Amplo, se estende ao seu olhar vermelho...
Vermelho, como a espuma dos vulcões:

Desce; e por desenfado ao bico enorme,
Enquanto um grupo de gazelas dorme,
Folga arrancando os olhos aos leões.

A PRIMEIRA LÁGRIMA

Quando a primeira lágrima caindo,
Pisou a face da mulher primeira,
O rosto dela assim ficou tão lindo
E Adão beijou-a de uma tal maneira,

Que anjos e Tronos pelo espaço infindo
Qual rompe a catadupa prisioneira,
As seis asas de azul e d'ouro abrindo,
Fugiram numa esplêndida carreira.

Alguns, pousando à próxima montanha,
Queriam ver de perto os condenados
Da dor fazendo uma alegria estranha.

E ante o rumor dos ósculos dobrados,
Todos queriam punição tamanha,
Ansiosos, mudos, trêmulos, Pasmados..

QUE VOS DARIA?

Se tiverdes um dia um capricho, senhora,
Um capricho, um delírio, uma vontade enfim,
Não exijas o carro azul que monta a Aurora
Nem da estrela da tarde o plaustro de marfim;

Nem o mar, que murmura e aí vai por mar em fora
Nem o céu d'outros céus, elos de céu sem fim,
Que se isso fosse meu, já vosso, há muito, fôra.
Fôra vosso o que é grande e anda em torno de mim...

Mostrásseis num só gesto ingênuo, um só desejo...
O universo que vejo e os outros que não vejo
Sofreriam por vós vosso último desdém.

Que faríeis dos sóis, grãos vis de areias d'ouro
Mulher! Pedi-me um beijo e vereis o tesouro
Que um beijo encerra e o amor que um coração contém.
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Luís Delfino (1834 – 1910)


Luís Delfino dos Santos nasceu em Desterro, Ilha de Santa Catarina, Brasil, e 1834 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1910. Político e poeta brasileiro, considerado “o segundo poeta mais importante de Santa Catarina, superado apenas por Cruz e Sousa.”

Filho de Tomás dos Santos e de Delina Vitorina dos Santos. Casou com Maria Carolina Puga Garcia dos Santos, consórcio do qual nasceu, entre outros, Tomás Delfino dos Santos. Irmão de José Delfino dos Santos.

Morou em sua cidade natal até os dezesseis anos de idade. Mudou-se então para o Rio de Janeiro, onde se formou em medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1857

Sua poesia, de rima e métrica perfeitas, era publicada freqüentemente na maioria dos jornais e revistas da sua época, o que o fez conhecido e amado como poeta. Foi eleito pelos colegas escritores "Príncipe dos Poetas Brasileiros" em 1898. Foi chamado também de "Victor Hugo brasileiro".

Sua obra é imensa - escreveu mais de cinco mil poemas - e foi publicada em quatorze livros, por seu filho, Tomás Delfino dos Santos, entre 1926 e 1943. Sua poesia vai do romantismo ao parnasianismo, passando pelo simbolismo. A perfeição na rima em métrica dá cadência e musicalidade à obra de Luís Delfino. O amor e a mulher eram seus temas preferidos.

"Foi ele um verdadeiro obsessionado pelo mito da beleza, da sensualidade, da idealizada companhia feminina, cantando o amor com toda a sua força e com todas as suas formas de atração...", analisa Lauro Junkes. E é justamente Lauro Junkes, que estuda a obra e a vida de Luiz Delfino há mais de vinte anos, que organiza e publica dois volumes - "Poesia Completa - Sonetos" e "Poesia Completa - Poemas Longos", totalizando mais de mil e trezentas páginas, reunindo toda a poesia conhecida do poeta, resgatada dos livros que o filho de Delfino editou.

Já havia feito sua estréia literária, em 1852, com a publicação do conto O Órfão do Templo, na revista carioca Beija-Flor. Em 1859 tornou-se membro da Academia Filosófica, associação literária que reunia acadêmicos de Medicina e médicos. Entre 1861 e 1881 colaborou nos periódicos Revista Popular, Diário de Rio de Janeiro, A Estação e Gazetinha. O poema mais famoso de sua primeira fase poética, A Filha d´África, foi publicado em 1862, na Revista Popular. Em 1885, foi eleito o maior poeta vivo do Brasil, em concurso da revista A Semana. Foi colaborador, em 1886, da revista A Vida Moderna, e entre 1898 e 1904, dos periódicos simbolistas Vera-Cruz, A Meridional, Revista Contemporânea e Rosa-Cruz.

Seus livros de poesia só foram editados postumamente; entre eles estão Algas e Musgos (1927), Íntimas e Aspásias (1935) e Imortalidades (1941).

É patrono da Academia Santoamarense de Letras.

Foi senador por Santa Catarina no início da República Velha.

Fontes:
– Jornal de Poesia. http://www.jornaldepoesia.jor.br/
http://pt.wikipedia.org/
http://www.antoniomiranda.com.br/
http://www.itaucultural.org.br/

Folclore do Paraná (A Lenda da Gralha Azul)



(ao final, vocabulário em ordem alfabética de algumas palavras do texto)

Pois foi à fazenda dos Pinheirinhos que veio ter um dia o Fidêncio Silva, homem de grandes negócios, com casa matriz em Curitiba e filial em Ponta Grossa. Havia muito já que não experimentava descanso daquela agitação comercial em que vivia e a necessidade de um repouso prolongado tornara-se-lhe cada vez mais patente.

Ora, Fidêncio Silva era parente afastado da esposa de José Fernandes. Assim, logo que pensou em descanso, lembrou-se dos Pinheirinhos, longe daquele bulício de transações e onde o clima não podia ser mais saudável.

E não tardou que estivesse a sorver em largos haustos, com evidente contentamento, o ar puro e varrido da campanha guarapuavana.

José Fernandes recebeu-o fidalgamente, como costumava fazer para todos que traziam uma certa importância de responsabilidades. Pôs os Pinheirinhos à disposição do seu hóspede pelo tempo que desejasse: um, dois, três meses e mais se lhe aprouvesse. Ali teria plena liberdade; quando não quisesse sair nas ocasiões de rodeio, poderia ficar em casa, a uma sombra do pomar, folheando qualquer livro da sua biblioteca quase totalmente agrária, mas que possuía, também, alguma literatura. E passeios igualmente não faltariam: um dia voltearia um rincão; outro iria às terras de planta, levando espingarda para espantar algum tateto; hoje faria uma caçada de anta mais para o sertão ou sairia a passarinhar pelos capões; amanhã correria a vizinhança, ouvindo prosa de caboclos; e até pescaria, se quisesse., poderia fazer no Picuiry, três léguas sertão adentro. Dessa maneira não havia como não corressem agradabilíssimos os trinta dias que Fidêncio Silva pretendia passar nos Pinheirinhos. E assim foi.

Um domingo depois do almoço, saiu à caça com o fazendeiro. Bem municiados, espingardas suspensas pelas bandoleiras ao ombro, entranharam-se os dois por extenso e tapado capão, “querência certa de muito veado, cutia e quati” - afirmava o José Fernandes.

Mas a sua asserção foi logo posta em cheque pela evidência dos fatos: os caçadores não viam um só animalzinho que merecesse chumbo grosso, embora já tivessem andado muito. Passaram então a sondar a ramagem, na esperança de divisar algum pássaro de saborosa carnadura. Em certo momento Fidêncio Silva parou e fez um sinal de silêncio ao companheiro. Depois, engatilhou, apressado, a arma e firmou pontaria, visando a fronde de retorcida guabirobeira. O fazendeiro procurou a caça, erguendo o olhar para a direção indicada pelo cano da espingarda. Súbito, um tremor sacudiu-lhe o corpo, e, de um pincho, esteve ele ao lado de Fidêncio Silva. Mas já era tarde: o rebôo do tiro perdia-se molemente pelas quebradas da mata, soturno, a evocar tristeza naquela quietude frouxa de um mormaço estonteante. A expressão condoída da fisionomia do José Fernandes durou pouco e de todo desapareceu ao ruflar das asas ligeiras esgueirando-se assustadiças por entre as tramadas franças. O atirador errara o alvo e, boquiaberto, todo interrogação, estacava os olhos no fazendeiro, que, ainda com a mão no cano da arma, que pretendera desviar antes do tiro partir, desafogava um longo suspiro de satisfação.

- Meus parabéns!, foram as primeiras palavras de José Fernandes, entre irônicas e zombeteiras.

- Parabéns!?, exclamou, ainda mais intrigado, o Fidêncio Silva.

- Então não merece cumprimentos o caçador que erra tiro em gralha azul? Renovo-os: toque nestes ossos!

E estendeu a destra.

- Quero compreender as suas palavras, mas creia, não posso atinar com o porquê de seu arrebatamento de há pouco. Não matar com carga de chumbo um pássaro do tamanho dessa gralha, concordo que seja péssimo atirador; porém...

- Não. Não o censurei por errar. Muito pelo contrário: apresentei-lhe os meus sinceros parabéns.

Confundido, meio envergonhado, o Fidêncio Silva confessou:

- O amigo tem, então, duas coisas para explicar-me.

- Uma só, uma só. Emendou logo o fazendeiro. Há coerência entre as minhas palavras e a anterior atitude. Eu lhe conto tudo. Sente-se aí nesse tronco caído e escute-me.

O negociante obedeceu maquinalmente. Depois tirou de um lenço e pôs-se a enxugar o suor que lhe escorria pelo rosto, enquanto que, largando o corpo preguiçosamente sobre a trançada grama, José Fernandes foi falando assim:

- Era no inverno, quinze anos atrás. Havia muita seca e o gado caía de magro. Certa tarde montei o cavalo e saí a costear banhados e percorrer sangas, na esperança de salvar alguma criação que porventura se atolasse ao saciar a sede. Levava comigo uma velha espingarda de ouvido, que sempre me acompanhava, porque naquele tempo não poupava graxaim que encontrasse pelo campo, a negociar leitões e carneirinhos. Pois bem, regressava para casa., vagaroso, o pensamento nos grandes prejuízos que a seca estava ocasionando, quando vi um bando de gralhas azuis descer à beira de um capão, entre numeroso grupo de pinheirinhos. Para afugentar, ainda por pouco, a minha tristeza, acrescida pelo fato de ter naquela volteada encontrado mais duas reses estraçalhadas pelos corvos, resolvi dar caça àqueles animaizinhos. Aproximei-me cauteloso, apeando a respeitosa distância. Não muito longe, deti-me à sombra de um pinheirinho e contemplei, por instantes, o bando. Eram poucas as gralhas, e notei que revolviam o solo com o bico.

Fazer pontaria e puxar gatilho foi obra de um momento. Mas, ai! Que horrível o segundo que se lhe seguiu: a espoleta estraçalhou-se e vários estilhaços, de mistura com resíduos da pólvora, vieram dar em cheio em meu rosto. Tonteei, bambearam-se-me as pernas e caí sobre a macega.

Quanto tempo estive desacordado, não lhe sei dizer. Antes, porém, de recuperar os sentidos, quando o sol já se encobria por trás da mata, um pesadelo fabuloso, qual uma história de fadas, gravou-se-me na memória. Revi-me de arma em punho, pronto para fazer fogo. Quando o fiz, iluminou-se o alvo e, aberta as asas brilhantes, o peito a sangrar, veio ele de manso, se achegando a mim. Os pés franzinos evitavam os sapés esparsos pelo chão e o andar esbelto tinha qualquer coisa de divino. Dardejante o seu olhar, estremeci ante aquela figura de ave e deixei cair a arma. Estático já, estarreci ao ouvir os sonoros e compreensíveis sons que aquele delicado bico soltava naturalmente.

Dizia a gralha: “És um assassino! Tuas leis não te proíbem matar um homem? E quem faz mais do que um homem não vale pelo menos tanto quanto ele? Eu, como humilde avezinha, entoando a minha tagarelice selvagem como o marinheiro entoa o seu canto de animação na véspera de praticar seus feitos, faço elevar-se toda essa floresta de pinheiros; bordo a beira das matas com o verdor dessas viçosas árvores de ereção perfeita; multiplico, à medida de minhas forças, o madeiro providencial que te serve de teto, que te dá o verde das invernadas, que te engorda o porco, que te locomove dando o nó de pinho para substituir o carvão-de-pedra nas vias férreas. E ignoras como eu opero!... Vem. Acompanha-me ao local onde me interrompeste o trabalho, para aprenderes o meu doce mister. Vês? Ali está a cova que eu fazia e, além, o pinhão já sem cabeça, que eu devia nela depositar com a extremidade mais fina para cima. Tiro-lhe a cabeça porque ela apodrece ao contato da terra e arrasta à podridão o fruto todo, e planto-o de bico para cima a fim de favorecer o broto. Vai. Não sejas mais assassino. Esforça-te, antes, por compartilhar comigo nesta suave labuta.”

A gralha desapareceu e eu voltei à razão.

Levantei-me a custo e fui ter ao local escavado pelas aves, uma das quais jazia com o peito manchado de sangue, ao lado de um pinhão já sem cabeça. Admirado, verifiquei a certeza da visão: mais adiante cavouquei com as mãos a terra revolvida de fresco e descobri um pinhão com a ponta para cima e sem cabeça.

O José Fernandes fez uma pausa e depois concluiu, mal encobrindo a sua alegria:

- Aí está, caro Fidêncio, como vim a ser um plantador de pinheiros. Quero valer mais que um homem: quero valer uma gralha azul!
===================
Vocabulário
Capões
=Trechos pequenos de mata arbórea em meio a um campo; pequeno bosque.
Franças = Copa da árvore.
Graxaim = cachorro-do-mato, de cor pardo-cinzenta, com focinho e garganta negros, que se alimenta de pequenos animais, frutos, insetos etc.
Guabirobeira =Nome comum a várias árvores e arbustos frutíferos, da fam. das mirtáceas. Do tupi ï'wawe'rawa.
Guarapuavana = da cidade de Guarapuava (PR).
Haustas = absorções, consumos.
Macega = (RS) Arbusto rasteiro que cresce nos campos de má qualidade.
Pincho = salto, pulo.
Querência = (MG e RS), Local de criação ao qual os animais se apegam por instinto.
Rebôo = repercussão do som.
Sangas =Córregos que secam facilmente; escavação funda produzida num terreno por chuvas ou correntes subterrâneas.
Tateto = (Rio Grande do Sul). O mesmo que cateto; porco do mato.

Fontes:
– CASCUDO, Câmara. Lendas Brasileiras. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000
– Enciclopédia Aulete Digital.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Machado de Assis (Entre Santos)



QUANDO EU ERA capelão de S. Francisco de Paula (contava um padre velho) aconteceu-me uma aventura extraordinária.

Morava ao pé da igreja, e recolhi-me tarde, uma noite. Nunca me recolhi tarde que não fosse ver primeiro se as portas do templo estavam bem fechadas. Achei-as bem fechadas, mas lobriguei luz por baixo delas. Corri assustado à procura da ronda; não a achei, tornei atrás e fiquei no adro, sem saber que fizesse. A luz, sem ser muito intensa, era-o demais para ladrões; além disso notei que era fixa e igual, não andava de um lado para outro, como seria a das velas ou lanternas de pessoas que estivessem roubando. O mistério arrastou-me; fui a casa buscar as chaves da sacristia (o sacristão tinha ido passar a noite em Niterói), benzi-me primeiro, abri a porta e entrei.

O corredor estava escuro. Levava comigo uma lanterna e caminhava devagarinho, calando o mais que podia o rumor dos sapatos. A primeira e a segunda porta que comunicam com a igreja estavam fechadas; mas via-se a mesma luz e, porventura, mais intensa que do lado da rua. Fui andando, até que dei com a terceira porta aberta. Pus a um canto a lanterna, com o meu lenço por cima, para que me não vissem de dentro, e aproximei-me a espiar o que era.

Detive-me logo. Com efeito, só então adverti que viera inteiramente desarmado e que ia correr grande risco aparecendo na igreja sem mais defesa que as duas mãos. Correram ainda alguns minutos. Na igreja a luz era a mesma, igual e geral, e de uma cor de leite que não tinha a luz das velas. Ouvi também vozes, que ainda mais me atrapalharam, não cochichadas nem confusas, mas regulares, claras e tranqüilas, à maneira de conversação. Não pude entender logo o que diziam. No meio disto, assaltou-me uma idéia que me fez recuar. Como naquele tempo os cadáveres eram sepultados nas igrejas, imaginei que a conversação podia ser de defuntos. Recuei espavorido, e só passado algum tempo, é que pude reagir e chegar outra vez à porta, dizendo a mim mesmo que semelhante idéia era um disparate. A realidade ia dar-me cousa mais assombrosa que um diálogo de mortos. Encomendei-me a Deus, benzi-me outra vez e fui andando, sorrateiramente, encostadinho à parede, até entrar. Vi então uma cousa extraordinária.

Dois dos três santos do outro lado, S. José e S. Miguel (à direita de quem entra na igreja pela porta da frente), tinham descido dos nichos e estavam sentados nos seus altares. As dimensões não eram as das próprias imagens, mas de homens. Falavam para o lado de cá, onde estão os altares de S. João Batista e S. Francisco de Sales. Não posso descrever o que senti. Durante algum tempo, que não chego a calcular, fiquei sem ir para diante nem para trás, arrepiado e trêmulo. Com certeza, andei beirando o abismo da loucura, e não caí nele por misericórdia divina. Que perdi a consciência de mim mesmo e de toda outra realidade que não fosse aquela, tão nova e tão única, posso afirmá-lo; só assim se explica a temeridade com
que, dali a algum tempo, entrei mais pela igreja, a fim de olhar também para o lado oposto. Vi aí a mesma cousa: S. Francisco de Sales e S. João, descidos dos nichos, sentados nos altares e falando com os outros santos.

Tinha sido tal a minha estupefação que eles continuaram a falar, creio eu, sem que eu sequer ouvisse o rumor das vozes. Pouco a pouco, adquiri a percepção delas e pude compreender que não tinham interrompido a conversação; distingui-as, ouvi claramente as palavras, mas não pude colher desde logo o sentido. Um dos santos, falando para o lado do altar-mor, fez-me voltar a cabeça, e vi então que S. Francisco de Paula, o orago da igreja, fizera a mesma cousa que os outros e falava para eles, como eles falavam entre si. As vozes não subiam do tom médio e, contudo, ouviam-se bem, como se as ondas sonoras tivessem recebido um poder maior de transmissão. Mas, se tudo isso era espantoso, não menos o era a luz, que não vinha de parte nenhuma, porque o lustres e castiçais estavam todos apagados; era como um luar, que ali penetrasse, sem que os olhos pudessem ver a lua; comparação tanto mais exata quanto que, se fosse realmente luar, teria deixado alguns lugares escuros, como ali acontecia, e foi num desses recantos que me refugiei.

Já então procedia automaticamente. A vida que vivi durante esse tempo todo, não se pareceu com a outra vida anterior e posterior. Basta considerar que, diante de tão estranho espetáculo, fiquei absolutamente sem medo; perdi a reflexão, apenas sabia ouvir e contemplar.

Compreendi, no fim de alguns instantes, que eles inventariavam e comentavam as orações e implorações daquele dia. Cada um notava alguma cousa. Todos eles, terríveis psicólogos, tinham penetrado a alma e a vida dos fiéis, e desfibravam os sentimentos de cada um, como os anatomistas escalpelam um cadáver. S. João Batista e S. Francisco de Paula, duros ascetas, mostravam-se às vezes enfadados e absolutos. Não era assim S. Francisco de Sales; esse ouvia ou contava as cousas com a mesma indulgência que presidira ao seu famoso livro da Introdução à Vida Devota.

Era assim, segundo o temperamento de cada um, que eles iam narrando e comentando. Tinham já contado casos de fé sincera e castiça, outros de indiferença, dissimulação e versatilidade; os dois ascetas estavam a mais e mais anojados, mas S. Francisco de Sales recordava-lhes o texto da Escritura: muitos são os chamados e poucos os escolhidos, significando assim que nem todos os que ali iam à igreja levavam o coração puro. S. João abanava a cabeça.

— Francisco de Sales, digo-te que vou criando um sentimento singular em santo: começo a descrer dos homens.

— Exageras tudo, João Batista, atalhou o santo bispo, não exageremos nada. Olha — ainda hoje aconteceu aqui uma cousa que me fez sorrir, e pode ser, entretanto, que te indignasse. Os homens não são piores do que eram em outros séculos; descontemos o que há neles ruim, e ficará muita cousa boa. Crê isto e hás de sorrir ouvindo o meu caso.

— Eu?

— Tu, João Batista, e tu também, Francisco de Paula, e todos vós haveis de sorrir comigo: e, pela minha parte, posso fazê-lo, pois já intercedi e alcancei do Senhor aquilo mesmo que me veio pedir esta pessoa.

— Que pessoa?

— Uma pessoa mais interessante que o teu escrivão, José, e que o teu lojista, Miguel...

— Pode ser, atalhou S. José, mas não há de ser mais interessante que a adúltera que aqui veio hoje prostrar-se a meus pés. Vinha pedir-me que lhe limpasse o coração da lepra da luxúria. Brigara ontem mesmo com o namorado, que a injuriou torpemente, e passou a noite em lágrimas. De manhã, determinou abandoná-lo e veio buscar aqui a força precisa para sair das garras do demônio. Começou rezando bem, cordialmente; mas pouco a pouco vi que o pensamento a ia deixando para remontar aos primeiros deleites. As palavras paralelamente, iam ficando sem vida. Já a oração era morna, depois fria, depois inconsciente; os lábios, afeitos à reza, iam rezando; mas a alma, que eu espiava cá de cima, essa já não estava aqui, estava com o outro. Afinal persignou-se, levantou-se e saiu sem pedir nada.

— Melhor é o meu caso.

— Melhor que isto? perguntou S. José curioso.

— Muito melhor, respondeu S. Francisco de Sales, e não é triste como o dessa pobre alma ferida do mal da terra, que a graça do Senhor ainda pode salvar. E por que não salvará também a esta outra? Lá vai o que é.

Calaram-se todos, inclinaram-se os bustos, atentos, esperando. Aqui fiquei com medo; lembrou-me que eles, que vêem tudo o que se passa no interior da gente, como se fôssemos de vidro, pensamentos recônditos, intenções torcidas, ódios secretos, bem podiam ter-me lido já algum pecado ou gérmen de pecado. Mas não tive tempo de refletir muito; S. Francisco de Sales começou a falar.

— Tem cinqüenta anos o meu homem, disse ele, a mulher está de cama, doente de uma erisipela na perna esquerda. Há cinco dias vive aflito porque o mal agrava-se e a ciência não responde pela cura. Vede, porém, até onde pode ir um preconceito público. Ninguém acredita na dor do Sales (ele tem o meu nome), ninguém acredita que ele ame outra cousa que não seja dinheiro, e logo que houve notícia da sua aflição desabou em todo o bairro um aguaceiro de motes e dichotes; nem faltou quem acreditasse que ele gemia antecipadamente pelos gastos da sepultura.

— Bem podia ser que sim, ponderou S. João.

— Mas não era. Que ele é usurário e avaro não o nego; usurário, como a vida, e avaro, como a morte. Ninguém extraiu nunca tão implacavelmente da algibeira dos outros o ouro, a prata, o papel e o cobre; ninguém os amuou com mais zelo e prontidão. Moeda que lhe cai na mão dificilmente torna a sair; e tudo o que lhe sobra das casas mora dentro de um armário de ferro, fechado a sete chaves. Abre-o às vezes, por horas mortas, contempla o dinheiro alguns minutos, e fecha-o outra vez depressa; mas nessas noites não dorme, ou dorme mal. Não tem filhos. A vida que leva é sórdida; come para não morrer, pouco e ruim. A família compõe-se da mulher e de uma preta escrava, comprada com outra, há muitos anos, e às escondidas, Por serem de contrabando. Dizem até que nem as pagou, porque o vendedor faleceu logo sem deixar nada escrito. A outra preta morreu há pouco tempo; e aqui vereis se este homem tem ou não o gênio da economia, Sales libertou o cadáver...

E o santo bispo calou-se para saborear o espanto dos outros.

— O cadáver?

— Sim, o cadáver. Fez enterrar a escrava como pessoa livre e miserável, para não acudir às despesas da sepultura. Pouco embora, era alguma cousa. E para ele não há pouco; com pingos d'água é que se alagam as ruas. Nenhum desejo de representação, nenhum gosto nobiliário; tudo isso custa dinheiro, e ele diz que o dinheiro não lhe cai do céu. Pouca sociedade, nenhuma recreação de família. Ouve e conta anedotas da vida alheia, que é regalo gratuito.

— Compreende-se a incredulidade pública, ponderou S. Miguel.

— Não digo que não, porque o mundo não vai além da superfície das cousas. O mundo não vê que, além de caseira eminente educada por ele, e sua confidente de mais de vinte anos, a mulher deste Sales é amada deveras pelo marido. Não te espantes, Miguel; naquele muro aspérrimo brotou uma flor descorada e sem cheiro mas flor. A botânica sentimental tem dessas anomalias. Sales ama a esposa; está abatido e desvairado com a idéia de a perder. Hoje de manhã, muito cedo, não tendo dormido mais de duas horas entrou a cogitar no desastre próximo. Desesperando da terra, voltou-se para Deus; pensou em nós, e especialmente em mim que sou o santo do seu nome. Só um milagre podia salvá-la; determinou vir aqui. Mora perto, e veio correndo. Quando entrou trazia o olhar brilhante e esperançado; podia ser a luz da fé, mas era outra cousa muito particular, que vou dizer. Aqui peço-vos que redobreis de atenção.

Vi os bustos inclinarem-se ainda mais; eu próprio não pude esquivar-me ao movimento e dei um passo para diante. A narração do santo foi tão longa e miúda, a análise tão complicada, que não as ponho aqui integralmente, mas em substância.

— Quando pensou em vir pedir-me que intercedesse pela vida da esposa, Sales teve uma idéia específica de usurário, a de prometer-me uma perna de cera. Não foi o crente, que simboliza desta maneira a lembrança do benefício; foi o usurário que pensou em forçar a graça divina pela expectação do lucro. E não foi só a usura que falou, mas também a avareza; porque em verdade, dispondo-se à promessa, mostrava ele querer deveras a vida da mulher — intuição de avaro; — despender é documentar: só se quer de coração aquilo que se paga a dinheiro, disse-lho a consciência pela mesma boca escura. Sabeis que pensamentos tais não se formulam como outros, nascem das entranhas do caráter e ficam na penumbra da consciência. Mas eu li tudo nele logo que aqui entrou alvoroçado, com o olhar fúlgido de esperança; li tudo e esperei que acabasse de benzer-se e rezar.

— Ao menos, tem alguma religião, ponderou S. José.

— Alguma tem, rnas vaga e econômica. Não entrou nunca em irmandades e ordens terceiras, porque nelas se rouba o que pertence ao Senhor; é o que ele diz para conciliar a devoção com a algibeira. Mas não se pode ter tudo; é certo que ele teme a Deus e crê na doutrina.

— Bem, ajoelhou-se e rezou.

— Rezou. Enquanto rezava, via eu a pobre alma, que padecia deveras, conquanto a esperança começasse a trocar-se em certeza intuitiva. Deus tinha de salvar a doente, por força, graças à minha intervenção, e eu ia interceder; é o que ele pensava, enquanto os lábios repetiam as palavras da oração. Acabando a oração, ficou Sales algum tempo olhando, com as mãos postas; afinal falou a boca do homem, falou para confessar a dor, para jurar que nenhuma outra mão, além da do Senhor, podia atalhar o golpe. A mulher ia morrer... ia morrer... ia morrer... E repetia a palavra, sem sair dela. A mulher ia morrer. Não passava adiante. Prestes a formular o pedido e a promessa não achava palavras idôneas, nem aproximativas, nem sequer dúbias, não achava nada, tão longo era o descostume de dar alguma cousa. Afinal saiu o pedido; a mulher ia morrer, ele rogava-me que a salvasse, que pedisse por ela ao Senhor. A promessa, porém, é que não acabava de sair. No momento em que a boca ia articular a primeira palavra, a garra da avareza mordia-lhe as entranhas e não deixava sair nada. Que a salvasse... que intercedesse por ela...

No ar, diante dos olhos, recortava-se-lhe a perna de cera, e logo a moeda que ela havia de custar. A perna desapareceu, mas ficou a moeda, redonda, luzidia, amarela, ouro puro, completamente ouro, melhor que o dos castiçais do meu altar, apenas dourados. Para onde quer que virasse os olhos, via a moeda, girando, girando, girando. E os olhos a apalpavam, de longe, e transmitiam-lhe a sensação fria do metal e até a do relevo do cunho. Era ela mesma, velha amiga de longos anos, companheira do dia e da noite, era ela que ali estava no ar, girando, às tontas; era ela que descia do teto, ou subia do chão, ou rolava no altar, indo da Epístola ao Evangelho, ou tilintava nos pingentes do lustre.

Agora a súplica dos olhos e a melancolia deles eram mais intensas e puramente voluntárias. Vi-os alongarem-se para mim, cheios de contrição, de humilhação, de desamparo; e a boca ia dizendo algumas cousas soltas, — Deus, — os anjos do Senhor, — as bentas chagas, — palavras lacrimosas e trêmulas, como para pintar por elas a sinceridade da fé e a imensidade da dor. Só a promessa da perna é que não saía. Às vezes, a alma, como pessoa que recolhe as forças, a fim de saltar um valo, fitava longamente a morte da mulher e rebolcava-se no desespero que ela lhe havia de trazer; mas, à beira do valo, quando ia a dar o salto, recuava. A moeda emergia dele e a promessa ficava no coração do homem.

O tempo ia passando. A alucinação crescia, porque a moeda, acelerando e multiplicando os saltos, multiplicava-se a si mesma e parecia uma infinidade delas; e o conflito era cada vez mais trágico. De repente, o receio de que a mulher podia estar expirando, gelou o sangue ao pobre homem e ele quis precipitar-se. Podia estar expirando. Pedia-me que intercedesse por ela, que a salvasse...

Aqui o demônio da avareza sugeria-lhe uma transação nova, uma troca de espécie dizendo-lhe que o valor da oração era superfino e muito mais excelso que o das obras terrenas. E o Sales, curvo, contrito, com as mãos postas, o olhar submisso, desamparado, resignado, pedia-me que lhe salvasse a mulher. Que lhe salvasse a mulher, e prometia-me trezentos, — não menos, — trezentos padre-nossos e trezentas ave-marias. E repetia enfático: trezentos, trezentas, trezentos...

Foi subindo, chegou a quinhentos, a mil padre-nossos e mil ave-marias. Não via esta soma escrita por letras do alfabeto, mas em algarismos, como se ficasse assim mais viva, mais exata, e a obrigação maior, e maior também a sedução. Mil padre-nossos, mil ave-marias. E voltaram as palavras lacrimosas e trêmulas, as bentas chagas, os anjos do Senhor... 1.000 — 1.000 — 1.000. Os quatro algarismos foram crescendo tanto, que encheram a igreja de alto a baixo, e com eles, crescia o esforço do homem, e a confiança também; a palavra saía-lhe mais rápida, impetuosa, já falada, mil, mil, mil, mil ... Vamos lá, podeis rir à vontade, concluiu S. Francisco de Sales.
E os outros santos riram efetivamente, não daquele grande riso descomposto dos deuses de Homero, quando viram o coxo Vulcano servir à mesa, mas de um riso modesto, tranqüilo, beato e católico.

Depois, não pude ouvir mais nada. Caí redondamente no chão. Quando dei por mim era dia claro. .. Corri a abrir todas as portas e janelas da igreja e da sacristia, para deixar entrar o sol, inimigo dos maus sonhos.
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Vocabulário:
Orago = Santo que dá nome a uma capela ou templo
Anojado = que toma nojo por falecimento de algum parente próximo; que está de luto. Triste, desgostoso.
Dichote = dito picante; gracejo, zombaria.
Nobiliário = Relativo ou pertencente à nobreza.
Aspérrimo = superlativo de áspero.
Expectação = o mesmo que expectativa.
Rebolcava = debatia-se.

Fontes:
– ASSIS, Machado de. Várias Histórias. São Paulo: Escala Educacional, 2008.
– Dicionário Caudas Aulete.
– Imagem = http://evangelizacao.blogspot.com

domingo, 15 de março de 2009

TROVAqui - Nova Revista do Portal CEN (Cá Estamos Nós)


TROVAqui

É uma nova Revista do CEN , dedicada à Trova e aos Trovadores.

Editor: Carlos Leite Ribeiro

Arte Final de IARA MELO

Tema para o mês de Março de 2009 :

“Trova da Vida”
(só em Língua Portuguesa)

Convite a todos:
Autores, Colaboradores, Leitores e Amigos do CEN

Prazo máximo para a entrega dos trabalhos: 27 de Março de 2009

Só deve enviar um trabalho (trova) e em corpo de e.mail sem formatação
(em assunto, digitar TROVA)

E.mail para receber os trabalhos leiteribeiro@netcabo.pt

Com os meus cumprimentos

Carlos Leite Ribeiro
(Presidente do Portal CEN – “Cá Estamos Nós”)

Fonte:
Portal CEN.
http://www.caestamosnos.org/Revista_TROVAqui/index.html

Concurso de Trovas da UBT Campos dos Goytacazes - RJ

Chafariz Belga (Campos dos Goytacazes)
TEMA CONHAQUE

LÍRICAS E FILOSÓFICAS

Incrementando os instantes
partilhados por nós dois
melhor que um conhaque, antes,
é um conhaque depois
José Ouverney

Conhaque faz muito bem:
rega e anima o coração.
Porém cuidado: convém
beber com moderação.
Neiva Fernandes

Nasce em "Cognac"a a bebida
cai no gosto prazenteiro...
e hoje pode ser servida
nas taças do mundo inteiro.
Vanda Fagundes Queiroz

Envelhecido e tristonho,
tão longe da mocidade,
bebo na taça do sonho
o conhaque da saudade.
Elen de Novais Félix

Centenário do Toquino,
festa de grande emoção,
brindamos com drinque fino
seu conhaque de alcatrão.
Carlos Augusto Souto de Alencar.

HUMORÍSTICAS

Conhaque no aperitivo,
conhaque na sobremesa...
- É assim que o velhinho, ativo,
mantém a velinha acesa!
Antônio Augusto de Assis

Foi tão grande o benefício
daquele conhaque a dois,
que eu fui lembrar-me do início
só nove meses depois!.
Rodolpho Abbud

O conhaque, é bem verdade,
levanta mesmo a moral
daqueles que estão na idade
de bandeira a meio pau.
Bessant

Pôs um conhaque no copo
e falou à companheira:
Após bebê-lo eu já topo
fazer qualquer brincadeira.
Amael Tavares da Silva

Após uma talagada
de conhaque tal bebum
viu dois postes na calçada,
mas, na verdade...era um!
Dilma Ribeiro Suero

PREMIAÇÕES NO DIA 30 DE MAIO
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Fontes:
Colaboração de A. A. de Assis
Imagem =
http://antigo.mafiadolixo.com

sábado, 14 de março de 2009

Caldeirão Poético de Todos os Brasis




ACRE

Jorge Tufic
A ORIGEM DA NOITE

A Noite era um fantasma que se repartia
entre a luz e a escuridão.

Um lado desse fantasma era escuro e feio.
O outro lado era claro e bonito.

Nãmi, era como se chamava o dono da Noite.

Os grilos teciam as folhagens do sono
enquanto o pássaro japu tratava de afastar,
com seu bico,
as cortinas da madrugada.

Antes de dar a Noite a seus netos,
Nãmi comeu ipadu e fumou olé-o (cigarro).

O resto dessa estória ninguém sabe,
porque uma parte dela ficou com a Gente da Noite
e a outra parte ficou com a Gente do Dia.
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ALAGOAS

Lêdo Ivo
O PASSARINHO MORTO

A santidade do mundo me aparece
sob a forma assustada de um esquilo
que me contempla entre arbustos.
Devo esta aparição ao deus que me criou
e me faz notar o miúdo e o insólito.
A poeira na asa da borboleta
E a chuva radiosa.
Abaixo-me e agarro o passarinho morto
que nem a neve soube guardar.
Por que o mataste, ó deus do frio
que, na noite de Nova Iorque, une a homem e mulher.
Como uma formiga, espero que o comboio passe
para atravessar
os trilhos sangrados pela ferrugem.
E, cristaleiro, amo o que o tempo fez
sem que fosse preciso ferir ou insultar:
vaga na prancha podre de um navio
ou o fulgir de um diamante.
A essa forma de perfeição, luminosa e fria,
é que aspiro às vezes quando, no banco de um parque,
vejo o passarinho morto
ou, homem, sou o esquilo que os esquilos
vêm olhar com surpresa.
Aos céus que guardam o granizo e a saraiva,
peço isenção de selo funerário.
Mas como esse deus mouco me ouviria?
Com seus olhos vazados, de que modo
me enxergaria? E as folhas caem, desbotadas, e o outono
é vento e podridão.
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AMAPÁ

Paulo Tarso Barros
MEUS OLHOS FALAM TÃO POUCO

Às vezes,
por corpo eu tenho o Universo
e o meu coração
torna-se uma estrela.
Por isso
não decifro as sombras
ocultas pelas coisas;
Por isso sou triste
e os meus olhos falam tão pouco
a linguagem do silêncio.
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AMAZONAS

Anibal Beça
ESPELHO

Para fechar sem chave a minha sina
Clara inversão da jaula das palavras
As vestes da sintaxe que componho
De baixo para cima é que renovo.

Escancarando um solo transmutado
Para o sol da surpresa nas janelas
Ao mesmo pouso de ave renascida
Do fim regresso fera não domada.

Na duração que escorre nessa arena
Lambendo vem a pressa em que me aposto>
Nessa voragem, vaga um mar de calma

Que me alimenta os ossos da memória.
Sobrada sobra, cinza dos minutos,
O que sobrou de mim são essas sombras.
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BAHIA

Rui Mascarenhas
DEVER DE CASA

À Marilena

Eles me ensinaram o que sentir e como sentir!
Me ensinaram o que pensar e como pensar!
Ensinaram o que dizer e como dizer!
O que fazer e como fazer!

...me ensinaram tudo errado!
De modos que eu me tornei parvo e preguiçoso
Me calaram aos poucos
E assim que fiquei mudo,
Me tomaram o corpo!
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CEARÁ

Nilto Maciel
SE ME CHAMARES FOGO

Se me chamares fogo
eu te labaredas.

Se me quiseres água
eu te correntezas.

Se me julgares vento
eu te tempestades.

Se me disseres pedra
eu te porcelanas.

Se me chamares chão
eu te profundezas.

Se me quiseres noite
eu te estrela Vésper.

Se me julgares pássaro
eu te vendavais.

Se me disseres corvo
eu te Allan Poe.

Se me chamares serpe
eu te paraíso.

Se me quiseres corda
eu te Tiradentes.

Se me julgares diabo
eu te tentações.

Se me disseres anjo
eu te candelabros.

Se me chamares deus
eu te eternidade.

Se me quiseres louco
eu te poesia.

Se me julgares santo
eu te crucifixos.

Se me disseres vida
eu te funerais.

Se me chamares mito
eu te tecelões.

Se me quiseres pródigo
eu te ancestrais.

Se me julgares hoje
eu te amanhã.

Se me disseres sempre
eu te nunca mais.

Se me chamares vem
eu te seguirei.
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DISTRITO FEDERAL

Pedro Gontijo
AINDA QUE QUEIRA PERDER-ME

Faça com a clareza dum beijo
que não mente, atrasa ou faz-de-conta
e só compraz a que apronta a alma

Perca-me baixinho, melhor, em silêncio
De beijo calado
Não faça lampejo, não dê volta e meia
Tome o ensejo firme e perene
obstinada

A nada permita que não me faça perder
Decidida, fatalmente perca-me
Invariável, eternamente perca-me
Faça-me perder, num repente, sem que eu perceba
e me arrependa.
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ESPÍRITO SANTO

Geir Campos
INVENTÁRIO

Esta epiderme há muitos muitos anos
me cobre: guarda algumas cicatrizes,
outras não lembra mais, e até mistura
uns caminhos da infância a outros de agora.

As unhas não direi que são as mesmas
com que o seio nutriz terei vincado:
são mais duras, mais feias e mais sujas
— pois nem sempre de amor e entrega foi
o chão em que plantei, colhi nem sempre.

Se os dentes não gastei, gastei meus olhos
entrevendo paisagens, vendo coisas,
cegando-me ante sésamos de sombra.

A alma apanhou demais e vai pejada,
mas vão leves as mãos cheias de nada
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GOIÁS

Cora Coralina
SOU RAIZ

Sou raiz, e vou caminhando
sobre as minhas raízes tribais.

Velhas jardineiras do passado ...
Condutores e cobradores, vós me levastes de mistura
com os pequenos e iletrados, pobres e remendados ...
Destes-me o nível dos humildes em tantas lições de vida.
Passante das estradas rodageiras, boiadeiros e comissários,
aqui fala a velha rapsodia.
Escuto na distância o sonido augusto do berrante que marca
o compasso das manadas que vão pelas estradas.
O mugido, o berro, o chamado da querência, a aguada,
o barreiro salitrado, a solta, o curral, a porteira,
a tronqueira, o cocho, o moirão, a salga, o ferro de marcar,
rubro, esbraseado. A castração impiedosa.
Eu sou a gleba e nada mais pretendo ser.
Mulher primária, roceira, operária, afeita à cozinha,
ao curral, ao coalho, ao barreleiro, ao tacho.
Seguro sempre nas mãos cansadas a velha candeia
de azeite veletudinária e vitalícia do passado.

Viajei nas velhas e valentes jardineiras
do interior roceiro, suas estradas de terra,
lameiros e atoleiros, seus heróicos e anônimos condutores
e cobradores, práticos, sabidos daqueles motores desgastados,
molas e lataria rangentes.
Santos milagreiros eram eles. Onde estarão?
Viajei de par com os humildes que tanto me ensinaram.

Viajantes das velhas jardineiras, meus vizinhos
das estradas viaje iras ...
Meus trabalhadores: Manoel Rosa, José Dias, Paulo, Manoel,
João, Mato Grosso, plantadores e enxadeiros, meus vizinhos sitiantes,
onde andarão eles?
Andradina, Castilho, J aboticabal, comissários e boiadeiros, tangerinos,
esta página é toda de vocês.
Fala de longe a velha rapsodia.
---------------------------

MARANHÃO

Antonio Miranda
O JOVEM NA LIVRARIA
(um memorial)

De pé, lendo na livraria.
Nas proximidades, os bondes
confluindo no Tabuleiro da Baiana;
marmiteiros na direção de grotões
com valões a céu aberto;
trens trepidando e perdendo-se
nas penumbras ignotas e tristes
de um desterro suburbano.

De pé, lendo na livraria.
La fora, analfabetos e letrados
revezando-se no espaço
sem solução à vista:
Brasil, país do futuro!
(Escuro, muro, desconjuro.)
Transeuntes, ambulantes
e uma elite na livraria.

Senhores nos botecos, goles
de café, “lotações”; ainda havia
batedores de carteira, malandros,
funcionários públicos (barnabés)
pelos institutos de previdência.
O garoto, de pé, na livraria
lendo Drummond, Bandeira,
vindo do bairro mais distante.

Brasil, afinal, Campeão do Mundo!
Sorrisos sem dentes, salário mínimo,
programas de auditório, carnaval.
Mundo mundo, vasto mundo, eu não
me chamo Raimundo, mas Antonio,
flébil, esguio, com dinheiro apenas
para o pastel e o ônibus; os livros
eram leitura de livraria, de pé.

O pai, barnabé; a mãe, costureira.
De pé, lendo na livraria: Drummond,
Cabral, Bertrand Russell, e algo mais.
Um fragmento de Baudelaire, um pedaço
de Aimé Cesaire, frase de Nietzsche.
“-Que livros você quer levar, meu jovem?”
Pensou: “nenhum”. Gostaria, mas não podia.
Lá fora, tantos outros como ele.

Personagens sem olhos, sem boca.
Massas humanas movendo-se
anônimas; bacharéis luzindo anéis.
“A vida como ela é”, do Nelson Rodrigues.
Vedetes de teatro de revista, Ibrahim Sued.
Miss Brasil não falava inglês
e já imitavam jazz e rock
e a bossa-nova queria ganhar o mundo!

E o garoto, de pé, na livraria.
“Pode levar os livros que quiser, sem pagar”.
(...) “Sim, isso mesmo, jovem, os livros
que quiser: dois, dez, à vontade”.
Quis correr, encabulado, assustado.
“Uma pessoa viu-o lendo, e emocionou-se:
(...) Um magistrado, um homem abastado.”
(...) Deixou crédito aberto a seu favor...”

“Machado de Assis? Jorge Amado?
Menotti del Picchia? Sartre? Camus?”
“O que quiser, o que consiga levar!”
(...) Na estante de casa havia livros
emprestados da biblioteca pública.
Sorte que havia bibliotecas públicas!!!
Levou para casa o J. C. de Melo Neto
e a filosofia difusa de Lin Yutang.
.......................................................
Outros livros seguiu adquirindo
por conta própria: tantos, tantos!
E ali está, de pé, na livraria,
outro jovem suburbano lendo um livro!!!
-------------------------------------------

MATO GROSSO

Ronaldo de Castro
A ÁGUA

A água corre
a distância cilíndrica
e num jato frio morre
na boca nívea da pia

A esponja mineral
do canteiro chupa a água
O esgoto é sepultura
das águas desta cidade
que lavam ruas e sexos
e a sede matam também

Pluvial ou água clorada
a água líquida informe
são as formas diluídas
de sorrisos naufragados

Quando o gelo é água dura
engarrafada é pileque
no rio é casa de peixe
no céu é nuvem eqüestre
no mar pode ser salitre

Água água sempre água
deslizante fugidia
água benta batizando
água suja intoxicando
água quente e água fria

Já que a seca é falta d´água
matando plantas e bichos
a humanidade é pau-d´água

Água água sempre água
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MATO GROSSO DO SUL

Keila Mattiole Sousa
INTENÇÕES

Lá adiante um pé de bocaiúva
junta seu cacho baixinho com guavira.
E onde céu tem precedência,
água branca de mata arroja ímpeto
e desce como assobio de saci.
Maritaca sossobra de asa e grito
como criança mijada.
Tudo combina de cor e entre-cor
graça e abandono de mato
como beleza bondade e mistério
de mulher apaixonada.
Zoró de tudo, vento brinca
de esconde-esconde com século.
No aroma dos longes,
criatura-homem se apequena.
Não sabe se ser de bem com coisa feita.
E sofre com dor-de-mágoa quando pasma.
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MINAS GERAIS

Bruno Grossi
DESILUSÃO

Os ventos da era doce sagrada
Trazem lembranças do fastio.
Os sinos tocam às seis da tarde
E eu me deito no jazigo.
As cores do meu corpo,
Os brilhos dos meus olhos
São cartas que se despedem
Do revoar da vida,
Como um velho suicídio
Ou um corpo iluminado.
Um sonho transfigurado
Com um cheiro podre.
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PARÁ

Olga Savary
UMA CENA

Vês acordada como em sonho
o sonho mau tal fosse belo
— o belo horror do real
que nem consciência nítida
ou lúcida, clara, exata,
não como é visto sol a pino
ou através da água,
como quem vê dentro do mar
ou através de um vidro fosco,
mais, no fundo de um espelho,
não o que mostra a imagem
mas aquele que a deforma
inteiro fora de foco.

OUTRA CENA

Sentada estavas quando ele entrou
seguido de uma princesa ou uma serpente.
Só sabes que teu rosto não mudou
mas em turvo mudou-se o transparente
riso de antes, pesados os gestos.
Viraste uma mulher que acordada
e de frente vê um sonho mau
se sonho e distante já nem sente
e que já não amando é como se amasse
e, perdido o amor, é como se o tecesse.
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PARAÍBA

Celso Japiassu
AURORA

Dormi entre assassinos,
juntei minha voz ao coro dos mendigos.
Ouvi o agouro das aves
prenunciando a náusea.

Em pleno verão, entoei a musica do inverno
e mergulhei no assombro.
Nenhum disfarce encobriu a voz
que anunciava o grito.

Aurora lancinante aspergia a escuridão
de uma noite eterna, absoluta.
Pássaros grasnaram o anúncio
de horror e fome.

Nossos estigmas traduziam
a face da doença - a dor
de sonhos massacrados -
a dor.
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PARANÁ

Emiliano Perneta
VENCIDOS

Nós ficaremos, como os menestréis da rua,
Uns infames reais, mendigos por incúria,
Agoureiros da Treva, adivinhos da Lua,
Desferindo ao luar cantigas de penúria?

Nossa cantiga irá conduzir-nos à tua
Maldição, ó Roland? ... E, mortos pela injúria,
Mortos, bem mortos, e, mudos, a fronte nua,
Dormiremos ouvindo uma estranha lamúria?

Seja. Os grandes um dia hão de cair de bruço ....
Hão de os grandes rolar dos palácios infetos!
E gloria à fome dos vermes concupiscentes!

Embora, nós também, nós, num rouco soluço,
Corda a corda, o violão dos nervos inquietos
Partamos! inquietando as estrelas dormentes!
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PERNAMBUCO

Solano Trindade
TEM GENTE COM FOME

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
pra dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Piiiii

estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

Mas o freio do ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuu
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PIAUÍ

Alvaro Pacheco
PRECISADOS

precisamos desses tóxicos
desse som dessa fumaça
desse medo intemporal
integrado no artifício
de nosso contentamento:

precisamos desse tempo
diluído em nossa alma:
precisamos esquecer.

precisamos nos matar
nessa mesma ecologia
de uma alma poluída
e da carne imergida
em abstrusa euforia.

precisamos desse sonho
circulando em nossos nervos
precisamos desse sangue
encobrindo nossos olhos
precisamos da sentença
e de como evitá-la:
precisamos desses fatos
para neles sancionar
todo o tempo improrrogável.
-------------------------------------

RIO DE JANEIRO

Affonso Romano de Sant' Anna
EPITÁFIO PARA O SÉCULO XX

1.
Aqui jaz um século
onde houve duas ou três guerras
mundiais e milhares
de outras pequenas
e igualmente bestiais.
2.
Aqui jaz um século
onde se acreditou
que estar à esquerda
ou à direita
eram questões centrais.
3.
Aqui jaz um século
que quase se esvaiu
na nuvem atômica.
Salvaram-no o acaso
e os pacifistas
com sua homeopática
atitude
-nux vômica.
4.
Aqui jaz o século
que um muro dividiu.
Um século de concreto
armado, canceroso,
drogado,empestado,
que enfim sobreviveu
às bactérias que pariu.
5.
Aqui jaz um século
que se abismou
com as estrelas
nas telas
e que o suicídio
de supernovas
contemplou.
Um século filmado
que o vento levou.
6.
Aqui jaz um século
semiótico e despótico,
que se pensou dialético
e foi patético e aidético.
Um século que decretou
a morte de Deus,
a morte da história,
a morte do homem,
em que se pisou na Lua
e se morreu de fome.
7.
Aqui jaz um século
que opondo classe a classe
quase se desclassificou.
Século cheio de anátemas
e antenas,sibérias e gestapos
e ideológicas safenas;
século tecnicolor
que tudo transplantou
e o branco, do negro,
a custo aproximou.
8.
Aqui jaz um século
que se deitou no divã.
Século narciso & esquizo,
que não pôde computar
seus neologismos.
Século vanguardista,
marxista, guerrilheiro,
terrorista, freudiano,
proustiano, joyciano,
borges-kafkiano.
Século de utopias e hippies
que caberiam num chip.
9.
Aqui jaz um século
que se chamou moderno
e olhando presunçoso
o passado e o futuro
julgou-se eterno;
século que de si
fez tanto alarde
e, no entanto,
-já vai tarde.
10.
Foi duro atravessá-lo.
Muitas vezes morri, outras
quis regressar ao 18
ou 16, pular ao 21,
sair daqui
para o lugar nenhum.
11.
Tende piedade de nós, ó vós
que em outros tempos nos julgais
da confortável galáxia
em que irônico estais.
Tende piedade de nós
-modernos medievais-
tende piedade como Villon
e Brecht por minha voz
de novo imploram. Piedade
dos que viveram neste século
per seculae seculorum.
--------------------------------

RIO GRANDE DO NORTE

Lisbeth Lima de Oliveira
POUSIO

Meu corpo repousa
assim como a terra arada,
desenhada para o plantio.

Entre uma safra e outra,
meu corpo repousa e te espera paciente,
enquanto escolhes as sementes.

Quando vens, é sol.
Mas a terra fica molhada.
E quando tudo parece árido
me encantas outra vez.

E meu corpo se acostuma
com chuvas de verão.
com temperamento sazonal.
-----------------------------------

RIO GRANDE DO SUL

Carlos Nejar
CONTATO

Não contratei com a vida.
O que ela me liga
é uma conquista de viver,
é uma fúria aprendida,
mas que gosta de ventar em mim.

Nunca segui cláusulas,
normas de existir.
Deixo que outros as cumpram
ou descumpram,
em artigo de morte ou vício.
Deixo que os contratantes
tentem apanhar a vida
em desídia;
ou busquem leva-la
aos ombros, na garupa
dos próprios escombros.

Não contratei com a vida.
Se ela me deu temores, desespero,
não me queixo, nem combato.
Não uso a legítima defesa
para impedir seu parto;
que ela nasça em mim,
cresça e se desfaça

Culpa não tenho
deste amor em desgraça,
deste amor sem casamento,
padrinhos, festas oficiais
e oferendas.

Não contratei;
o estado de graça
é castigá-la
com merecimento,
desamarrá-la das horas,
matá-la em nós.
E continuar vivendo.
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RONDONIA

José Valdir Pereira
ENQUANTO...SE...

Enquanto os meus olhos não enxergarem o meu próximo e a beleza da natureza;
enquanto o meu coração estiver fechado à ternura e à singeleza de uma amizade sincera e duradoura;
enquanto as minhas mãos ficarem encolhidas;
enquanto as minhas palavras não levarem alegria e felicidade por onde eu estiver ou andar;
enquanto a minha riqueza significar a pobreza de outrem;
enquanto os meus passos espelharem o medo à verdade, à angustia da solidão, à fuga do passado, à insegurança no presente e à incerteza do futuro,
não me permitam a que eu continue habitando este inferno existencial.
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SANTA CATARINA

Fátima Venutti
INCÓGNITA

Incógnita esta tua chegada
De repente, fez-se o azul.
A clarear meus dias nublados
A emoldurar-me nas noites abissais
A degustar de mim
O resgate dos versos derramados
Na soleira do meu tempo

Incógnito desejo
Que embora distante estejas
Íntimo almejado são teus beijos madrigais
Na ânsia deste novo que principia
Respiro e navego no teu aroma,
Êxtase guardado sob o véu da tua ternura

Calada e distante, confesso
Meu vislumbre por sobre a tua vinda
A rechear-me os dias, já azulados,
Com outra incógnita:
O germinar deste amor
Que agora respira em mim.
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SÃO PAULO

Eunice Arruda
AS PRAIAS

As praias brancas
desertas
cansaram-se dos beijos do mar
Elas
estendem-se agora
preguiçosas
lânguidas
perdidas na rotina branca
das areias
As praias estão exaustas
dos afagos
do mar
Por isso elas são frias
e fazem castelos
em suas areias:

para o tempo passar
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SERGIPE

Gizelda Santana de Morais
PELA RUA

Caminho pela rua...
quantos destinos cruzam-se comigo,
quantas vidas diferentes de outras vidas,
quantas faces diferentes de outras faces...

Vou passando por muitos
(enquanto eles também passam por mim)
e perscruto seus gestos, seus modos, seus olhares.

Vejo gente sorrindo,
vejo gente cansada,
gente altiva, gente humilde, gente triste...
não vejo alguém chorando,
mas, quanta gente choraria o pranto
guardado, se não fosse a vergonha
de chorar pela rua.

Na rua passa tudo, passam todos
passa a noite, o silêncio, o barulho,
até os mortos passam pela rua.
E suas casas, suas luzes, suas pedras
também olham, perscrutam e testemunham
a tudo e todos que passam
pela rua.
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TOCANTINS

Pedro Tierra
A HORA DOS FERREIROS

Quando o sol ferir
com punhais de fogo
e forja
a exata hora dos ferreiros,
varrei o pó da oficina
e a mansidão dos terreiros,
libertai a alma dos bronzes
e dos meninos
desatada em som
e nessa aguda solidão
que em ondas se apazigua
— ponta de espinho antigo —
na carne
do coração.

Convocai enxadas,
foices, forcados, facões,
grades, cutelos, machados,
a pesada procissão dos ferros
afeitos ao rigor da terra
e da procura
e, por fim, as mãos,
resignadas,
multiplicadas no cereal maduro.

Mãos talhadas em silêncio
e ternura,
que plantam a cada dia
sementes de liberdade
e colhem ao fim da tarde
celeiros de escravidão.

Esgotou-se o tempo de semear
e inventou-se a hora do martelo.
Retorcei na bigorna outros anelos
e a força incandescente deste mar
de ferros levantados.

Esgotou-se o tempo de consentir
e pôs-se a andar
a multidão dos saqueados
contra os cercados do medo.

Homens de terra
e relâmpago!
Convertei em fuzis vossos arados,
armai com farpas e pontas
a paz de vossas espigas!

Fontes:
http://www.antoniomiranda.com.br/
http://alcinea-cavalcante.blogspot.com/