terça-feira, 24 de março de 2009

Hélio Pólvora (Retrato em Preto e Branco de Graciliano Ramos)


Retrato Sem Pose Tirado de Longe

Esse Graciliano Ramos, ou Velho Graça, ou Major Graça, ou Mestre Graça, como o chamavam afetuosamente, é um fingidor. Por sentimentalismo ou vergonha, finge-se mais áspero do que é, mais espinhoso que um mandacaru. Sertanejo magro, de ombros curvos, um cigarro ardendo entre os dedos ou na boca, de roupas simples mas asseadas, mãos limpas (em todos os sentidos). Cria fama de grosseiro por causa de diálogos como estes:

— Bom dia, mestre Graça.

— Você acha, meu filho?

Ou então:

— Mestre Graça, se a situação continuar desse jeito, vamos comer merda — diz-lhe o romancista José Lins do Rego, nos tempos da ditadura de Getúlio Vargas.

— Se sobrar p’ra nós, Zé Lins. Se sobrar...

Seu romance de estréia, Caetés, ele o considera "um desastre" ou "uma encrenca". Angústia, o terceiro, é "este desastre que preparo e que terá, se aparecer um editor maluco, cinqüenta leitores do Amazonas ao Prata, talvez nem tanto". Vidas Secas tem uma "história mesquinha —um casal vagabundo, uma cachorra e dois meninos." Sua correspondência traz frases em italiano e francês. Traduz do francês e recita Le Cid, de Corneille, no original. Admira Eça de Queiroz, lê muito Machado de Assis. Conhece gramática portuguesa a fundo. Mas diz ter "uma cultura de almanaque". De vez em quando exalta-se: "Vai sair uma obra-prima, em língua de sertanejo, cheia de termos descabelados" (acerca de S. Bernardo, segundo romance). E reitera: "Foi palavreado difícil de personagens sabidos demais que arrasou a antiga literatura brasileira. Literatura brasileira uma ova, que o Brasil nunca teve literatura. Vai ter de hoje em diante" (idem).

Assim vê a atividade de escritor: "Somos uns animais diferentes dos outros, provavelmente inferiores aos outros, duma sensibilidade excessiva, duma vaidade imensa que nos afasta dos que não são doentes como nós. Mesmo os que são doentes, os degenerados que escrevem história fiada, nem sempre nos inspiram simpatia: é necessário que a doença que nos ataca atinja outros com igual intensidade para que vejamos neles um irmão e lhes mostremos as nossas chagas, isto é, os nossos manuscritos, as nossas misérias, que publicamos cauterizadas, alteradas em conformidade com a técnica" (carta à mulher Heloísa, abril de 1935).

Alfabetizou-se em casa dos pais, na fazenda, "agüentando pancada".

— Um aparte, por obséquio.

— Com que finalidade? Por quem o senhor se toma?

— Por um curioso, apenas curioso. No volume Infância o senhor se atém às memórias relevantes. Parece pensar, como Sherwood Anderson, que não existem histórias seriadas, seqüenciais. Se existem, é que houve intervenção do autor, o que pressupõe artifício. A vida é feita de raros instantes felizes e muitos transes amargos ou desgraçados.

Em Infância predomina o ácido e, em certos trechos, o travo azedo. O memorialista não está ali para emperequetar-se. A análise, tanto da família quanto das ambiências, de si próprio e dos outros, é de uma rudeza total. O senhor tinha o seu orgulho, claro, mas não nutria vaidades bestas. Imprecava principalmente contra si próprio. Era, como disse Oswald de Andrade, um mandacaru escrevendo.

Em um compêndio de achegas biobibliográficas, Moacir Medeiros de Sant’Ana refere-se aos "vários e contundentes julgamentos dos seus pais, feitos por Graciliano Ramos nas suas memórias da infância". O pai "não economizava pancadas e repreensões" e na mãe o que espantava mais "era a falta de sorriso". Por isso, Olívio Montenegro considera o livro "obra diabólica". E no seu Jornal de Crítica, Álvaro Lins afirma, constrangido: "Quando se decidiu a escrever um livro de memórias, a sensibilidade reagiu em toda a sua exacerbação: e exprimiu-se pela exteriorização daquilo que nela se gravara mais profundamente (...) Um mundo intolerável de castigos, privações e vergonhas". Sim, a memória não grava com igual nitidez as felicidades e infelicidades; o lado podre tem primazia.

A secura exata, as frases que dizem muito com grande economia de meios. É o prosador anti-ornamental numa terra em que os prosadores continuam bacharelescos, relutam em aposentar os ornatos.

Do mesmo modo que, em romances anteriores, o senhor desce ao limo das personagens, em Infância vai à borra do coração. Predominância do monólogo (até mesmo por se tratar de depoimento), palavras pesadas e mortais, que ecoam como badaladas, arrancadas que foram da carne viva dos significados, e que traduzem verdades literais.

Na formação do menino Graciliano entram muitos instrumentos de suplício: o áspero meio sertanejo no final do século passado e início do século 20; o pai comerciante e fazendeiro, tipo rude da média burguesia urbana e rural, com um perfil de patriarca que cobra obediência pronta; a mãe de poucas letras e minguado afeto. Repressão política do coronelismo tipo cabresto, enxada e voto. Repressão sexual. Repressão, sobretudo, à inteligência. A sensibilidade do menino ferida a todo instante, no relacionamento penoso com os pais, na escola, nas ruas, sofrendo o impacto da miséria ambiental. O menino cresce solitário e desconfiado, agarra-se a "migalhas de sons, farrapos de imagens"— dolorosos, todos eles. E apesar da violência do meio, plasma por dentro a sensibilidade, procura um espaço, uma expressão, enquanto por fora tece a couraça protetora.

Mesmo os que, indiferentes à beleza da arte literária, abrem Infância em busca de um documento social, decerto encontram achegas sobre a arte de martirizar crianças. Antes, arte apurada no regime patriarcal; hoje, arte nacional, de ponta a ponta, fio a pavio.
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Graciliano, Dalcídio e a Dama

Nos fundos da Livraria José Olympio Editora, na Rua do Ouvidor 110, quase esquina com Avenida Rio Branco, há um marquesão no qual poucos ousam sentar-se. É o refúgio de Graciliano Ramos, que tem o hábito de acomodar-se a um canto e cruzar as pernas magras.

Num certo fim de tarde, quando ele, lá do seu canto, dá trela ao poeta estreante Jorge Medauar, sentado no outro canto, o romancista Dalcídio Jurandir vai se aproximando. É do Pará, pertence ao Pecebão (o PC ortodoxo) e tem um jeito de camelo, com ligeira corcova. Sem cerimônia, ocupa o espaço vago no centro.

— Mestre Graça, tem um mineiro badalando muito. Um tal de Guimarães Rosa. Já leu?

— Ainda não.

— Imitador de Joyce. Em vez de Saga, pôs Sagarana no título. Quer ser o alquimista da língua.

— Ah, é?

— Li umas páginas. Não é de todo mau — condescende Dalcídio.

Pausa. O romancista paraense volta à carga:

— Mestre Graça, já leu Cyro dos Anjos?

— Não. Quem é?

— Outro mineiro. Escreve parecido com Machado de Assis.

— Nesse caso — pondera Graciliano, descruzando as pernas — eu prefiro o original.

— Apareceu também um tal de Breno Accioly. É contista lá da sua terra, das Alagoas — informa Dalcídio. —Já leu?

— Como se chama o livro?

— João Urso. Tem prefácio de Zé Lins.

— Não sou de prefácios, não gosto de arrodeios — confessa Graciliano. — Pego o cabra e leio sem intermediações.

— Mas já leu o João Urso?

— Só uns dois ou três contos.

— Pois eu não passei do primeiro — diz Dalcídio. — Uma prosa maluca, retórica. Coisa de doido.

Silêncio. Graciliano pigarreia e prepara-se para acender outro cigarro. Como ninguém toma a iniciativa da palavra, Dalcídio Jurandir ergue-se, dobrando os joelhos como fazem os camelos, e despede-se. Tem assuntos a tratar na ABI.

— Medauar — pede o velho Graça quando o vulto desaparece na porta —, vá atrás daquele safado e descubra se está falando mal de mim.

Mais ou menos nessa época, o velho regressa de uma viagem à URSS. Em Moscou, obrigaram-no a catar no chão do metrô a ponta de cigarro que ele havia atirado fora. O metrô moscovita era um espelho, brilhava. "Nós não o fizemos e limpamos para que os senhores do mundo capitalista venham sujá-lo com baganas", dissera-lhe, em tom acrimonioso, o guia.

A ida à URSS resulta num livro de impressões intitulado Viagem e que começa com uma demonstração de aborrecimento do velho Graça: ele não se sente bem na "encrenca voadora". É como chama o avião. Fumando seu cigarro no marquesão da José Olympio, vê uma senhora tremelicante de banhas e de jóias aproximar-se, toda sorridente, com um exemplar do livro para o indefectível autógrafo.

— Mestre Graciliano, assine aqui. O senhor voltou assumido da União Soviética?

— Assumido como, minha senhora?

— Ora, assumido. Assim como o André Gide.

É demais. O romancista estoura:

— Como, minha senhora? Veado?
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Pesadelo que não Acaba

"Um crime, uma ação boa dá tudo no mesmo. Afinal já nem sabemos o que é bom e o que é ruim, tão embotados vivemos", pensa Luís da Silva, narrador de Angústia, modesto funcionário público. Se vivesse hoje, mais de 60 anos depois, sua situação seria a mesma ou pior. De lá para cá, alguns indicadores sociais melhoraram, mas outros vícios, como a corrupção e a falência dos costumes, agravaram-se.

A classe média que o romance descreve, incerta e insegura, e sobrevivendo à custa de renúncias, estaria agora proletarizada. Luís luta para subir socialmente. Nordestino de origens rurais, vem de uma família outrora poderosa. São freqüentes, no fluxo memorialístico do narrador, suas lembranças do avô Trajano. Alcançou-o velho, caduco, a dormitar numa rede. Antes senhor de baraço e cutelo, assaltava a cadeia da vila para libertar cangaceiros; no final da vida, com umas reses magras na pastagem, embriagava-se e vomitava na sobrecasaca de um antigo escravo, mestre Domingos, que, por respeito, lhe suportava os destemperos.

A Graciliano Ramos não interessa o romance da decadência da aristocracia rural nordestina. É tarefa para seu contemporâneo José Lins do Rego, que enfocou principalmente os senhores de engenho. Contenta-se, em rápidas imagens repetidas pelo desespero do narrador, em transmitir do passado apenas o necessário com que exibir o desenraizamento de Luís da Silva, cujo pai vivia numa rede, a ler histórias românticas. O passado cruel condiciona a vida atual de Luís. Sente-se que o narrador é mais um Prometeu acorrentado. Ele próprio reconhece que, tivesse nascido em outro berço e recebido outra educação, seu destino seria melhor, ele pertenceria à classe dominante — a dos banqueiros, comerciantes, donos de jornais e diretores de repartição que o dominam de longe. Mas aquele passado rural de agricultores empobrecidos, vivendo dos antigos fastos, é uma marca escarlate, a marca da danação. A sensibilidade de Luís está aberta e sangra. Não há como conter o sangramento. As imagens patéticas ou trágicas assaltam-no nos sonhos e devaneios diários. Sua vida é um pesadelo econômico, um exílio social. Ele está a recordar constantemente o avô com uma cascavel enrolada ao pescoço e suplicando que a tirem; a avó que, sem conhecer o prazer sexual, paria numa cama de varas; o pai preguiçoso e violento que o atirou vezes seguidas ao rio, para ensiná-lo a nadar; um homem que se enforcou, de vergonha, porque tivera de esmolar um pão fresco que lhe foi negado; os pés disformes do pai morto sobre o marquesão sobrevoado por moscas. Cenas e imagens de pesadelo; de uma vida injusta, pobre, violenta, resultante da frágil economia do sertão habitado com o que o narrador chama "a minha raça vagabunda e queimada pela seca".

O narrador busca longe da vida sertaneja melhores condições de vida. Elas estariam no Sul — para onde emigram em geral os "descamisados", os de "pés no chão", os "sem-terra". Mas no Rio o retirante Luís da Silva, apesar dos pendores literários, sabendo escrever (aqui, no sentido da composição jornalística ou literária), com muitas leituras, conhece a solidão, o anonimato. O estabelecimento social rejeita-o. Ele está preso às engrenagens de uma sociedade então pré-capitalista (mal começara a fase de industrialização do Governo Vargas), hoje de economia globalizada, em que o dinheiro é valor supremo. Aos que nasceram bem aquinhoados, a estrada desdobra-se reta e chã; aos carentes, a dura tarefa de sobreviver. Esta é a sociedade brasileira dos anos ’30 subliminarmente descrita em Angústia, e que subsiste, em muitos aspectos piorada — daí a permanência temática do romance.

Romance "proletário", tal como o praticou Máximo Gorki, e romance de introspecção dostoievskiana. A exemplo dos humilhados e ofendidos de Dostoiévski, o destino de Luís da Silva é trágico — não somente por suas origens humildes, mas também porque há em volta dele, manietando-o, uma rede de circunstâncias restritivas. Em plena ditadura, com a renda e bem-estar concentrados na minoria privilegiada, resta aos despossuídos o sonho da revolução popular.
Um sonho bem vigiado pela polícia e sonho que, a essa altura, esvaziou boa parte de sua substância ideológica... Luís quer participar dele. Quer contribuir para a luta nas sombras por uma ordem igualitária. Ao mesmo tempo, tem de sobreviver: há o aluguel, os alimentos e remédios, ele é fustigado pelo impulso de verticalização social. Por isso se submete. No jornal, como revisor ou articulista, faz o que lhe mandam: "Escreva assim, seu Luís. Seu Luís obedecia. — Escreva assado, seu Luís. Seu Luís arrumava no papel as idéias e os interesses dos outros". Suas verdadeiras opiniões ficam para as conversas com Pimentel e Moisés, em casa, porque o café é perigoso, tipos suspeitos rondam os cafés. O intelectual Luís, um revoltado, escreve para o governo, elogia o governo. Em Vidas Secas, o vaqueiro Fabiano, depois de tomar facãozadas no lombo por ordem de um soldado amarelo, encontra-se com este na caatinga e, de facão em punho, recua e deixa-o passar: "Governo é governo".

A mesma atitude de subserviência ao poder. A diferença é que Fabiano, um bruto, sofre menos, enquanto o intelectualizado Luís recebe todas as agressões da desesperança e do repúdio social nos nervos tensos.

Nas primeiras páginas de Angústia o narrador declara-se "um molambo que a cidade puiu demais e sujou". Seu cotidiano triste divide-se entre a repartição, a banca de revisão, o café que freqüenta ocasionalmente e a casa velha, cheia de ratos, com uma criada meio surda, Vitória, que enterra no quintal as moedas do salário e conversa com um papagaio. Luís tem consciência da sua condição; nela, a tragédia, mais do que inspirada pelo passado familiar sertanejo, é um desdobramento. Sua visão de mundo é trágica porque está na sua formação, e as ações, ainda que limitadas pelo meio acanhado e opressivo, sinalizam a tragicidade. Romance naturalista, dir-se-á. Mas um naturalismo que, como o de Thomas Hardy, não se restringe ao jogo cego das forças do destino que Hardy, em Tess of the d’Urbervilles, atribui ao "President of the Immortals", citando Ésquilo. As personagens serão trágicas, no brasileiro, por herança e por uma necessidade inconsciente, intensa, de buscarem a tragicidade como forma até de explicação, justificação, sentido para a vida.

É o caso do narrador de Angústia. Cruel consigo mesmo, em comentários que chegam às raias do masoquismo, Luís da Silva atormenta-se. A princípio, diz: "Não sou um rato, não quero ser um rato". Mas não tardará a se considerar "um níquel social". Recebeu "muito coice da vida". É "uma criatura insignificante, um percevejo social..." Um rato rói-lhe as entranhas. O amor para ele é "uma coisa dolorosa, complicada e incompleta". Admite que rolou "faminto, esmolambado e cheio de sonhos" por esse mundo.

Robert H. Heilman observa, a propósito da Tess de Hardy: "Nossos egos estão ligados às nossas idéias; querem que os fatos se ajustem às idéias, do contrário nos ofendemos e tendemos, se tivermos poder para tanto, a nos tornar punitivos". Pois bem: a punição, em primeira etapa, vai para Luís da Silva, e este se humilha mais para sofrer mais, para purgar. Depois, com o aparecimento de Marina, os fados oferecem-lhe breve trégua. No seu romance de fundo de quintal com Marina — quintais cheios de lixo e plantações mesquinhas, onde um homem carrancudo e uma mulher triste trabalham com pipas e dornas —, Luís tem a impressão de descobrir o amor, quando está atraído pelo erotismo e Marina anseia apenas em sair da pobreza absoluta. De qualquer modo, é a felicidade: ele está relativamente tranqüilo, tem uns três contos de réis de economias, deseja casar-se. A idéia de casamento precipita a tragédia pessoal banhada pela tragédia social. Moça estouvada, de cabeça vazia, pensando em ostentações, Marina consome num ápice as suadas economias de Luís no enxoval e, em pleno "noivado", aceita a corte de um estranho, Julião Tavares, um parasita de discurso empolado e arrogância pavonácea. Tavares é o resumo de tudo quanto oprime Luís: dinheiro fácil, berço de ouro, prestígio social, mediocridade intelectual, poder de corromper e safar-se ileso. Gordo, cínico e esperto, Julião Tavares invade a casa de Luís, seduz Marina e distancia-se quando ela ostenta sinais de gravidez. A família submete-se: nenhuma queixa, apenas resmungos. Os humildes aprendem a vergar a espinha sob o peso dos opressores. O sedutor lança-se à conquista fácil de outras meninas pobres.

Mas o narrador de Angústia, espezinhado, traumatizado, esbulhado pela vida — este reage. É que o sofrimento atinge o ponto da exasperação, ele tem as comportas cheias de água estagnada. A fúria que antes o devastava se dirige ao opressor. Ele não tem, como Moisés, coragem de pichar muros, de distribuir "folhetos incendiários". Mas o Presidente dos Imortais lhe põe nas mãos o instrumento da vingança — uma corda. A essa altura o monólogo de Luís da Silva — o fluxo "objetivo" do inconsciente, ou seja, a linguagem da ação — se transforma em delírio. Imagens se atropelam: o cano de água é uma corda, a gravata enrola-se como corda, a cobra em volta do pescoço de Trajano é corda viva. O narrador vê-se compelido a matar Julião Tavares após a verificação de que Marina, grávida, procura parteira clandestina. No capítulo final as referências ao passado se aglomeram. É um entrechoque de lembranças. As imagens trágicas do meio rural e da vida urbana de Luís se juntam para entoar o coro da tragédia. Início e fim do romance se fecham quais pontas de um leque. Angústia é um pesadelo contínuo. O narrador pergunta: "Haverá dentro de 20 anos criaturas assim que, tendo corrido mundo, se resignam a viver num fundo de quintal, olhando canteiros murchos, respirando podridões, desejando um pedaço de carne viciada?" Sim, e em condições ainda piores.

Fonte:
http://www.vidaslusofonas.pt/graciliano_ramos.htm

Graciliano Ramos (Primeira Aventura de Alexandre)



Naquela noite de lua cheia estavam acocorados os vizinhos na sala pequena de Alexandre: seu Libório, cantador de emboladas, o cego preto Firmino e Mestre Gaudêncio curandeiro, que rezava contra mordedura de cobras. Das Dores benzedeira de quebranto e afilhada do casal, agachava-se na esteira cochichando com Cesária.

— Vou contar aos senhores... principiou Alexandre amarrando o cigarro de palha.

Os amigos abriram os ouvidos e Das Dores interrompeu o cochicho:

— Conte, meu padrinho.

Alexandre acendeu o cigarro ao candeeiro de folha, escanchou-se .na rede e perguntou:

— Os senhores já sabem porque é que eu tenho um olho torto?

Mestre Gaudêncio respondeu que não sabia e acomodou-se num cepo que servia de cadeira.

— Pois eu digo, continuou Alexandre. Mas talvez nem possa escorrer tudo hoje, porque essa história nasce de outra, e é preciso encaixar as coisas direito. Querem ouvir? Se não querem, sejam francos: não gosto de cacetear ninguém.

Seu Libório cantador e o cego preto Firmino juraram que estavam atentos. E Alexandre abriu a torneira:

— Meu pai, homem de boa família, possuía fortuna grossa, como não ignoram. A nossa fazenda ia de ribeira a ribeira, o gado não tinha conta e dinheiro lá em casa era cama de gato. Não era, Cesária?

— Era, Alexandre, concordou Cesária. Quando os escravos se forraram, foi um desmantelo, mas ainda sobraram alguns baús com moedas de ouro. Sumiu-se tudo.

Suspirou e apontou desgostosa a mala de couro cru onde seu Libório se sentava:

— Hoje é isto. Você se lembra do nosso casamento, Alexandre?

— Sem dúvida, gritou o marido. Uma festa que durou sete dias. Agora não se faz festa como aquela. Mas o casamento foi depois. É bom não atrapalhar.

— Está certo, resmungou mestre Gaudêncio curandeiro. É bom não atrapalhar.

— Então escutem, prosseguiu Alexandre. Um domingo eu estava no copiar, esgaravatando unhas com a faca de ponta, quando meu pai chegou e disse:

— "Xandu, você nos seus passeios não achou roteiro da égua pampa?" E eu respondi: — "Não achei, nhor não." — "Pois dê umas voltas por aí, tornou meu pai Veja se encontra a égua." — "Nhor sim." Peguei um cabresto e saí de casa antes do almoço, andei, virei, mexi, procurando rastos nos caminhos e nas veredas. A égua pampa era um animal que não tinha agüentado ferro no quarto nem sela no lombo. Devia estar braba, metida nas brenhas, com medo de gente. Difícil topar na catinga um bicho assim". Entretido, esqueci o almoço e à tardinha descansei no bebedouro, vendo o gado enterrar os pés na lama. Apareceram bois, cavalos e miunça, mas da égua pampa nem sinal. Anoiteceu, um pedaço de lua branqueou os xiquexiques e os mandacarus, e eu. me estirei na ribanceira do rio, de papo para. o ar, olhando o céu, fui-me amadornando devagarinho, peguei no sono, com o pensamento em Cesária. Não sei quanto tempo dormi, sonhando com Cesária. Acordei numa escuridão medonha. Nem pedaço de lua nem estrelas, só se via o carreiro de Sant'lago. E tudo calado, tão calado que se ouvia perfeitamente uma formiga mexer nos garranchos e uma folha cair. Bacuraus doidos faziam às vezes um barulho grande, e os olhos deles brilhavam como brasas. Vinha de novo a escuridão, os talos secos buliam,as folhinhas das catingueiras voavam. Tive desejo de. voltar para casa, mas o corpo morrinhento não me ajudou. Continuei deitado, de barriga para cima, espiando o carreiro de Sant'lago. e prestando atenção ao trabalho das formigas. De repente. conheci que bebiam água ali perto. Virei-me, estirei o pescoço e avistei lá embaixo dois vultos malhados, um grande e um pequeno, junto da cerca do bebedouro. A princípio não pude vê-los direito, mas firmando a vista consegui distingui-las por causa das malhas brancas. — "Vão ver que é a égua pampa, foi o que eu disse. Não é senão ela. Deu cria no mato e só vem ao bebedouro de noite." Muito ruim o animal aparecer .àquela hora. Se fosse de dia e eu tivesse uma corda, podia laçá-lo num instante. Mas desprevenido, no escuro, levantei-me azuretado, com o cabresto na mão, procurando meio de sair daquela dificuldade. A égua ia escapar, na certa. Foi aí que a idéia me chegou.

— Que foi que o senhor fez? perguntou Das Dores curiosa.

Alexandre chupou o cigarro, o olho torto arregalado, fixo na parede. Voltou para Das Dores o olho bom e explicou-se:

— Fiz tenção de saltar no lombo do bicho e largar-me com ele na catinga. Era o jeito. Se não saltasse, adeus égua pampa. E que história ia contar a meu pai? Hem? Que história ia contar a meu pai, Das Dores?

A benzedeira de quebranto não deu palpite, e Alexandre mentalmente pulou nas costas do animal:

— Foi o que eu fiz. Ainda bem não me tinha resolvido, já estava escanchado. Um desespero, seu Libório, carreira como aquela só se vendo. Nunca houve outra igual. O vento zumbia nas minhas orelhas, zumbia como corda de viola. E eu então... Eu então pensava, na tropelia desembestada: — "A cria, miúda, naturalmente ficou atrás e se perde, que não pode acompanhar a mãe, mas esta amanhã está ferrada e arreada." Passei o cabresto no focinho da bicha e, os calcanhares presos nos vazios, deitei-me, grudei-me com ela, mas antes levei muita pancada de galho e muito arranhão de espinho rasga-beiço. Fui cair numa touceira cheia de espetos, um deles esfolou-me a cara, e nem senti a ferida: num aperto tão grande não ia ocupar-me com semelhante ninharia. Botei-me para fora dali, a custo, bem maltratado. Não sabia a natureza do estrago, mas pareceu-me que devia estar com a roupa em tiras e o rosto lanhado. Foi o que me pareceu. Escapulindo-se do espinheiro, a diaba ganhou de novo a catinga, saltando bancos de macambira e derrubando paus, como se tivesse azougue nas veias. Fazia um barulhão com as ventas, eu estava espantado, porque nunca tinha ouvido égua soprar daquele jeito. Afinal subjuguei-a, quebrei-lhe as forças e, com puxavantes de cabresto, murros na cabeça e pancadas nos queixos, levei-a. para a estrada. Ai ela compreendeu que não valia a pena teimar e entregou os pontos. Acreditam vossemecês que era um vivente de bom coração? Pois era. Com tão pouco ensino, deu para esquipar. E eu, notando que a infeliz estava disposta a aprender, puxei por ela, que acabou na pisada baixa e num galopezinho macio em cima da mão. Saibam os amigos que .nunca me desoriento. Depois de termos comido um bando de léguas naquele pretume de meter o dedo no olho, andando para aqui e para acolá, num rolo do inferno, percebi que estávamos perto do bebedouro. Sim senhores. Zoada tão grande, um despotismo de quem quer derrubar o mundo — e agora a pobre se arrastava quase no lugar da saída, num chouto cansado. Tomei o caminho de casa. O céu se desenferrujou, o sol estava com vontade de aparecer. Um galo cantou, houve nos ramos um rebuliço de penas. Quando entrei no pátio .da fazenda, meu pai e os negros iam começando o ofício de Nossa Senhora. Apeei-me, fui ao curral, amarrei o animal no mourão, cheguei-me à casa, sentei-me no copiar. A reza acabou lá dentro, e ouvi a fala de meu pai: — "Vocês não viram por aí o Xandu?" — "Estou aqui, nhor sim, respondi cá de fora" — "Homem, você me dá cabelos brancos, disse meu pai abrindo a porta. Desde ontem sumido!" — "Vossemecê não me mandou procurar a égua pampa?" —"Mandei, tornou o velho. Mas não mandei que você dormisse no mato, criatura dos meus pecados. E achou roteiro dela?" — "Roteiro não achei, mas vim montado num bicho. Talvez seja a égua pampa., porque tem malhas. Não sei, nhor não, só se vendo. O que sei é que é bom de verdade: com umas voltas que deu ficou pisando baixo, meio a galope. E parece que deu cria: estava com outro pequeno." Aí a barra apareceu, o dia clareou. Meu pai, minha mãe, os escravos e meu irmão mais novo, que depois vestiu farda e chegou a tenente de polícia, foram ver a égua pampa. Foram, mas não entraram no curral: ficaram na porteira, olhando uns para os outros, lesos, de boca aberta. E eu também me admirei, pois não.

Alexandre levantou-se, deu uns passos e esfregou as mãos, parou em frente de mestre Gaudêncio, falando alto, gesticulando:

— Tive medo, vi que tinha feito uma doidice. Vossemecês adivinham o que estava amarrado no mourão? Uma onça-pintada, enorme, da altura de um cavalo. Foi por causa das pintas brancas que eu, no escuro, tomei aquela desgraçada pela égua pampa.

Fonte:
RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros heróis. 44.ed. RJ: Record, 2003.

Graciliano Ramos (Um amigo em talas)



O meu antigo companheiro de pensão Amadeu Amaral Júnior, um homem louro e fornido, tinha costumes singulares que espantavam os outros hóspedes.

Para falar com propriedade, aquilo não era exatamente pensão, mas isto não tem importância: com um pouco de esforço podíamos admitir que estávamos numa pensão de gente bem comportada. Bocejávamos em demasia, contávamos as pessoas que subiam ou desciam um morro próximo, dormíamos cedo e recebíamos com regularidade a visita do gerente do estabelecimento, o major Nunes, ótima criatura que deixou o cargo por lhe faltar o espírito do negócio.

Amadeu Amaral Júnior vestia-se com sobriedade: usava uma cueca preta e calçava medonhos tamancos barulhentos. Fora isso, o que tinha em cima do corpo era a barba, economicamente desenvolvida, uma barba enorme. Parecia um troglodita. Alimentava-se mal, espichava-se na cama, roncava o dia inteiro e passava as noites acordado, passeando, agitando o soalho, o que provocava a indignação dos outros pensionistas. Quando se cansava, sentava-se a uma grande mesa ao fundo da sala e escrevia o resto da noite. Leu um tratado de psicologia e trocou-o em miúdo, isto é, reduziu-o a artigos, uns quarenta ou cinqüenta, que projetou meter nas revistas e nos jornais e com o produto vestir-se, habitar uma casa diferente daquela e pagar ao barbeiro.

Mudamo-nos, separamo-nos, perdemo-nos de vista. Creio que os artigos de psicologia não foram publicados, pois há tempo li este anúncio num semanário: "Intelectual desempregado. Amadeu Amaral Júnior, em estado de desemprego, aceita esmolas, donativos, roupa velha, pão dormido. Também aceita trabalho”.

O anúncio não produziu nenhum efeito, é o que meses depois, nos declara Amadeu Amaral Júnior: "Minha situação continua preta. Reitero o apelo às almas bem formadas: dêem de comer a quem tem fome, uma fome atávica, milenária. Dêem-me trabalho." E, catalogando as suas habilidades: "Escrevo poesias, crônicas, contos (policiais, psicológicos, de aventura, de terror, de mistério), novelas, discursos, conferências. Sei inglês, francês, italiano, espanhol e um bocado de alemão. Dêem-me trabalho pelo amor de Deus ou do diabo."

De literato brasileiro não conheço página mais sincera e razoável que essa. Ao ler o pedido de roupa velha e pão duro, fiquei meio escandalizado, mas refletindo, confessei publicamente que o meu velho companheiro procedia com acerto. E agora, completamente solidário com ele, admiro a exposição que nos faz das suas aptidões e lamento que não as utilizem.

É evidente que Amadeu Amaral Júnior conhece bem o nosso mercado literário e apregoa as mercadorias mais próprias para o consumo: discursos, contos policiais, de aventura, de terror e de mistério. Julgo que vive sem ocupação por não haver falado antes nisso.

O meio cento de artigos redigidos naquelas noites de insônia encalhou certamente na redação, preterido pelas novelas de arrepiar cabelos. Indignado, Amadeu Amaral Júnior oferece de novo os seus préstimos ao editor, afirmando que também sabe compor histórias policiais, de aventura, de terror e de mistério, que arrancam lágrimas e se vendem regularmente.

A maneira como pede trabalho, pelo amor de Deus ou do diabo, revela que o escritor está impaciente e talvez não escrupulize em pôr a sua pena a serviço de qualquer dessas duas entidades, o que não admira, pois Amadeu é jornalista.

Muita gente se espanta com o procedimento desse amigo. Não sei por quê. Os fabricantes anunciam os seus produtos e os sujeitos desempregados costumam, desde que há jornais, dizer neles para que servem. Por que apenas o articulista, precisamente o indivíduo capaz de arrumar umas linhas com decência, deve calar-se e roer chifres?

Eu por mim acho que Amadeu Amaral Júnior andou muito bem. Todos os jornalistas necessitados deviam seguir o exemplo dele. O anúncio, pois não. E, em duros casos, a propaganda oral, numa esquina, aos gritos. Exatamente como quem vende pomada para calos.

Fonte:
RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. 21. ed. RJ: Record, 2005.
Capa do livro = Sebo do Messias

Lino Vitti (Castelo de Poesias)



VELEIRO DO AMOR

Coração - débil barco aventureiro -
pelo oceano do amor, toma cautela.
Pode surgir um vendaval traiçoeiro
que te arrebate e te estrçalhe a vela.

Perscruta o rumo. Sobre o mar inteiro
se prepare talvez árdua procela.
Busca horizontes claros, meu veleiro,
onde o sol brilha e o mar não se encapela.

Não te faças ao largo em demasia
que vem a noite horrenda e a treva zas
queira roubar-te a luz que te alumia.

E então sem rumo, sem farol, sem paz
quiçá não possas mais voltar um dia
à mensa praia que deixaste atrás.

FLORINDO CORAÇÕES

Veja o belo jardim como anda florescido
tanta roseira em flor sonhando com perfumes!
Um verdadeiro céu de estelíferos lumes
estilhaçado em chão de vidro derretido.

Em flores transformou-se a montanha de estrumes
dado vida ao odor tristonho e ressequido.
Convidados da noite a um banquete subido
são insetos que vêm e luzem vagalumes.

Veja as rosas que estão clamando por olhares,
por sorrisos de quem bem perto delas passa,
por beijos de manhãs e céus crepusculares.

Deixemos repousar a vista generosa
nesse encanto floral da roseira que é graça
fundindo em coração cada botão de rosa.

SER MONTANHA

Anseio do infinito, oh! cósmica montanha,
que buscas nesse afã silente, e pétreo, e vão?
Queres talves deter, numa invasão estranha,
esse pálio estelar luzindo em profusão?

Vais abraçar o sol? Impossível façanha!
Beijar, quem sabe,a lua em toques de emoção?
E quando o temporal em chuva e vento banha
o mundo, não te faz bater o coração?

Quando vejo surgir, no horizonte , o teu porte
qual vontade do pó de se elevar à altura
fugindo desta terra onde comanda a morte,

um profundo desejo a erguer-se me acompanha:
quero ser como tu, fugir desta clausura
e não ser nada mais que uma simples montanha.

MINHA ESCOLA

Eu não sou o poeta dos salões
de ondeante, basta e negra cabeleira.
Não me hás de ver, nos olhos, alusões
de vigílias, de dor e de canseiras.

Não trago o pensamento em convulsões,
de candentes imagens, a fogueira.
Não sou o gênio que talvez supões
e nem levo acadêmica bandeira.

Distribuo os meus versos quais moedas
que pouco a pouco na tua alma hospedas,
raras, como as esmolas de quem passa.

Vou porém me sentir feliz um dia
se acaso alguém vier render-me a graça
de o ter feito ricaço de poesia.

TAPERA

Torce o caminho manso e entre pedras percorre
agarrando-se, ansioso, à encosta da colina.
sobe-se um pouco e olhar curioso descortina
a paisagem feral da tapera que morre.

Reina a desolação e a tristeza domina
tudo, restos mortais. A luz do sol socorre
piedosmente, a flux,como um bálsamo, e escorre
sobre a ferida em flor dessa bela ruína.

Tetos a desabar, muros em derrocada,
ascercas pelo chão, porteiras vacilantes,
pompeando os ervaçais na casa abandonada.

Cadáveres, e só, da rica habitação
onde floriu, feliz, o grande senhor d´antes,
dos tempos memoriais da negra escravidão.

AO PASSAR DO VENTO

Quando tremula a fronde ao passar de uma brisa
é um sorriso floral dos galhos verdejantes;
quando às águas do lago um leve sopro alisa,
como a sorrir também, felizes e arquejantes;

quando às flores, sem nome, uma aura que desliza
beija e afaga a sonhar doces sonhos distantes;
quando às nuves no céu azul canta e suaviza
numa glória de sol e brilhos coruscantes;

eu cismo e vejo bem que os harpejos que passam
unidos pelo amor, pelo amor se entrelaçam,
e, alegres, todos vão com modos galhofeiros,

mostrando a nosso olhar, talvez muito cansado,
toda a beleza que há no vento tresloucado,
no sublime correr dos ventos passageiros.

FLOR SEM NOME

É uma flor, nada mais que uma flor que se abre
da carícia solar à glória luminosa.
Rubra, sangrando em luz, balouçando radiosa
- coraçãozinho triste espetado num sabre .

À noite, na penumbra, em suste se entreabre
para do orvalho ter lágrima silenciosa.
E quando o dia vem, vestido de cinabre,
entrega-lhe, a sorrir, a essência vaporosa.

Flor humilde do campo, orfãozinha ajoelhada,
de mãos postas em prece , à beira dos caminhos,
vestidinho vermelho a esmolar, a esmolar...

Ela pede somente, escondida e enjeitada,
o afago de quem passa, um pouco de carinho,
o beijo imaculado e longo do luar.

POETA À ANTIGA

Quando o enxergam passar - passos pequenos,
a face magra, quieto, entristecido -
lançando às vezes , no ar, mudos acenos
em gestos de abraçar o indefinido;

Quando o enxergam passar(e o seu ouvido
não atende aos insultos dos terrenos)
todos, num quase acento comovido,
dizem:"deve ser louco, mais ou menos..."

Um dia (nem eu sei como se deu)
conversamos...Contou-me todo o seu
viver, cheio de angústias e revezes...

É poeta!...Arrependo-me dizê-lo
pois eu sei que dirão, agora, ao vê-lo:
-"Poeta?... Então é louco duas vezes!"

NOITE CAMPESTRE

Noite de estio. Na fazenda.Espicho,
cansadíssimo, o corpo langue ao longo
do leito,e, levemente, sem capricho,
por qualquer devaneio a mente alongo.

Insônia.Beliscões de carrapicho,
businadas sutís de pernilongo...
Trissam grilose inquieto camundongo
rói aqui, fuça ali, rasgando lixo.

O quarto, uma fornalha. Estalam vigas;
pelo telhado rufla uma asa tonta.
descem guinchos diabólicos de briga...

Fora, no pez da noite,andam fantasmas;
súa estrelas o céu, de ponta a ponta,
piam corujas nas distâncias pasmas!

VELHO CASARÃO

Casarão - mausoléu glorificado-
a entesourar recordações mediúnicas.
Rotas paredes - testemunhas únicas -
da história milenar do seu passado.

Solitário solar de horror povoado,
de duendes e fantasmas de alvas túnicas.
O chão ressuma ainda ondas budúnicas
e há um cavo estalar de ossos no assoalhado.

No silêncio da noite o casarão
revive pelos velhos aposentos
os dramalhões brutais da escravidão.

E quando entre os desvãos do amplo telhado
ganem soturnamente, os longos ventos
são gemidos de um negro chicoteado.
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Fotomontagem por José Feldman, em cima de imagem (Castelo) de http://www.pititi.com

Entrevista com o Príncipe dos Poetas de Piracicaba, Lino Vitti



A Academia Piracicabana de Letras outorgou a este nobre escritor da terra o título honorífico de "Príncipe dos Poetas de Piracicaba". Sua obra contempla mais de quatro décadas dedicadas à poesia, especialmente os sonetos. Bafejado pelos ensinamentos de sábios sacerdotes em colégio de formação religiosa, recebeu extraordinária formação literária que lhe propiciou enveredar pelo caminho da poesia, da crônica, dos contos, do jornalismo, havendo editado de 1959 até 2001 sete livros de poesia.

Aos 86 anos, Lino Vitti tem orgulho do título. Saudosista assumido, vive num amplo sobrado com Doratirtes, companheira de 57 anos que lhe deu sete filhos. Mas não despreza as novas tecnologias e usa o computador. Nessa entrevista, ele abre o coração e conta o que o emociona e o que o choca no mundo de hoje.

A PROVINCIA - Vale a pena ser poeta?

Lino Vitti - Penso que vale a pena, e muito. A prova são os sete livros de minha lavra. O prim eiro, "Abre-te Sésamo", publiquei quando ainda era moço. Depois vieram "Alma Desnuda", "Sinfonia Poética", "Piracicaba, minha terra", "Sonetos mais amados", "Plantando contos e colhendo rimas" e "Antes que as estrelas brilhem", esse último de 2001.

O que representa o título "Príncipe dos poetas piracicabanos"?

Ah, isso é uma coisa que me dá o maior orgulho! Recebi da Academia Piracicabana de Letras, em 1978, e para mim representa uma compensação aos meus longos anos dedicados à poesia.

Quando o senhor começou com a poesia?

Aos 15 anos, quando era seminarista, no Seminário Santa Cruz, em Rio Claro. Lá era proibido praticar poesia, redigir ou pensar tudo o que estivesse relacionado a ela. Mas em certa ocasião apareceu um clérigo de outra congregação, chamado Antonio dos Santos, e que era poeta. Ficou para mim essa divisão entre teologia e poesia. Escondido de outros padres, aprendi todas as técnicas da poesia.

Por isso o senhor desistiu do seminário?

Na verdade eles me mandaram embora. No pátio havia uma fiquiera e uma folha despencou do alto. Comentei com meu colega que estava me sentindo assim. Mas na hora passou um padre que tomava conta da gente e foi o que bastou para chamar meu pai. Ele pediu para que eu saísse pois não tinha certeza da minha vocação.

O senhor se arrepende de ter desistido ou de ter passado um tempo lá?

Nem uma coisa nem outra. Eu realmente não tinha vocação para sacerdote, mas devo aos padres tudo o que aprendi, tudo relacionado à cultura. Eles formam homens.

Como era a formação de um jovem naquele tempo?

Era a mais ampla possível. Eu aprendi latim, francês, italiano, e tive noções de grego.

E a disciplina, como era?

Era rígida a ponto de um seminarista não pode tocar outro colega com as mãos.

Tanta rigidez tem um lado positivo e um negativo?

De forma nenhuma. A rigidez só tem lado positivo, você tem de ser rígido em tudo.

Essa rigidez estaria em falta na educação de hoje?

Penso que sim. Acho que a educação está muito liberada, acho que no fundo os jovens sentem falta de mais rigidez.

O que o senhor acha da Igreja Católica atual?

Ela acompanhou muita coisa, mas em algumas se manteve, o que tem de ser. As pessoas que se dizem mais liberais não querem aceitar que existem certas coisas que são imutáveis na alma humana. A Igreja não pode aceitar o pecado, o divórcio, o homossexualismo.

Mas a Igreja não precisa se modernizar?

Pra que? Ela não tem obrigação de fazer isso. Sua obrigação é com a crença, com o sagrado. Quem tem de se adaaptar a ela é o fiel, ele é quem tem de seguir o que a Igreja determina.

Mas a Igreja não está perdendo fiéis por ser imutável?

A Igreja não visa coisas materiais, ela visa o lado espiritual. Ela não tem de aceitar o divórcio, ela tem de manter o casamento.

Há quantos anos o senhor mantém seu casamento?

Estou casado com Dorairtes, que é professora aposentada, há 57 anos. Temos sete filhos, seis moças e um rapaz, 15 netos e uma bisneta. Realmente é um vínculo indissolúvel.

O que é preciso para ser um bom poeta?

Em princípio, a poesia é um dom natural. Mas eu penso que escrever poesia não é só fazer quadrinhas ou estrofes que tenham métrica, rimadas ou em versos livres. A poesia é uma maneira de transmitir o que está dentro da pessoa de uma maneira elevada, de uma forma incomum. O bom poeta deve ser, acima de tudo, um observador profundo da natureza humana.

O que a modernidade trouxe de bom para o homem?

Trouxe coisas ótimas como as inovações científicas, as novas manifestações culturais. Esse é seu lado bom. Por outro lado, tem seu lado negativo quando se entrega ao abuso do sexo, do crime, da moral, da justiça, e até do abuso do amor.

O que choca o senhor hoje em dia?

Essas coisas que acabei de falar me entristecem. O que me choca é a política. Porque, em vez de cumprir aquilo para o qual foram eleitos, os ilustres representantes da política nacional aproveitam-se de seu mandato para abusar do povo.

O que Piracicaba representa para o senhor?

É meu berço e berço a gente não discute, a gente ama. sei que hoje a cidade tem muitos problemas como violência e falta de policiamento, mas isso existe em todo o lugar.

Santana deve ter um lugar reservado nesse ano, não é?

Claro. Nasci em Santana em 16 de janeiro de 1920 e lá aprendi tudo o que sei. Vivi uma vida campestre, no meio da mata virgem, no meio das lavouras de milho e dos cafezais. Aramva arapuca para passarinho, pegava peixe na beira do rio, colhia maracujá na capoeira. Tudo isso desapareceu e em seu lugar colocaram canaviais que acabaram com a mata, os pássaros, os bichos, as frutas, os peixes. É triste para mim, que sou poeta, ver como santana perdeu a poesia!

Fonte:
A Província.

Carlos Moraes Junior (Caldeirão Poético de Piracicaba)


VIOLÕES

Como são tristes os acordes
dos violões em serenata,
que atravessam as madrugadas,
na tentativa de responder
os enigmas da tristeza,
que a simples vivência não pode,
nem em sonho, resolver.
Como são nostálgicas
as mensagens dos violões,
que ensinam os amantes
a enfrentarem com galhardia
o desespero e o sofrimento
de um amor que já acabou...
Como são doces as cantigas
de amor dos violões,
estas que ensinam os jovens
a prudentemente esperar,
do amor estranhas mazelas,
ao invés de tolas venturas
e de sonhos de realização...

A RIMA BOA

Quero encontrar a rima boa
para poder, enfim, terminar
com chave de ouro esta loa
que um dia irá me consagrar...
Quero a rima que o povo entoa,
no dia a dia do seu falar,
para compor um versinho a toa,
que um dia irá me consagrar...
Quero ver como é que soa
esta rima que encontrar,
para que ela seja a coroa
que um dia irá me consagrar...
Quero a rima que apregoa
a mercadoria a se liquidar,
ou então, aquela que povoa
o sonho que irá me consagrar...

A SORTE NAS CARTAS

A sorte nas cartas,
a sorte lançada,
o futuro,
o passado
a vida e o nada...
A verdade das cartas,
a mistificação do poder,
a vidência,
a eficiência,
os estertores da Ciência!
Combinações nas cartas,
naipes e números,
figuras, segredos,
o impossível de ocorrer!
A morte nas cartas,
a morte marcada,
o destino, o carma,
a volta à vida passada,
correndo contra o relógio
para dizer coisas escondidas
e ditar regras, direções,
leis e idiossincrasias,
impossíveis de aceitar...

AOS ABRAÇOS COM A VIDA

Na tela amarela
está quem por mim vela,
aos abraços com a vida insurgida.
E a cela, a trela
em mim esculpidas,
não eram belas
nem sinceras como ela.
Aos abraços com a vida
a bela é dela,
e é também dela
a vela amarela construída
de macela e tela,
de cor pálida e singela.
Aos abraços com a vida
ela é a tela
onde se pintam
as histórias de amor,
que abraçadas
com a vida se entretecem...
E dela a vida zomba,
como aquela vela,
pois não é feliz
quem sofre
por causa das tramas
da vida que acontecem.

CANSAÇO

Sentir o tempo passar
sem ter nada para fazer,
é o mesmo que tomar veneno
e deitar-se para morrer...
Ver a vida sem alegria,
sentir o cansaço de vivê-la,
é o mesmo que querer felicidade
sem nunca ser capaz de tê-la.
Sentir o cansaço de ser
na vida apenas uma imagem,
é o mesmo que estar no retrato,
é o mesmo que mandar mensagem
algures para as estrelas,
na esperança de encontrar alguém
onde, há milênios se sabe,
não pode existir ninguém!

CRIANÇAS

Fecha os olhos!
Deixa que te beije,
deixa que te olhe bem...

Talvez a noite
que te impede de ver
seja a mesma noite
que trago dentro de mim.

Querida...
Talvez sejamos jovens para amar,
mas o nosso amor,
esse amor não é criança!

Fechemos os olhos...
Somos crianças
sonhando com um amor
que talvez termine
quando voltares a ver...

FLOR DO CLÃ

Ai! Quão vão és, má dor que não faz bem
E não me dás só vez de sol e paz.
Ai! Quão chã és, tal dor que só me vem
Pra ser tão rés, e ser a que me faz

O fã do fim, do fel dum só que tem
Na cruz o mal, o sal, o pó, o gás,
Da luz sem par, sem lar, que é o zen
Da flor do clã, que só a dor me traz.

Ai! Flor do clã, que a fé não quer me dar,
Nem quer ser gen do dom que é a foz
Da mãe da luz sem fim, que é um lar.

Ai! Flor do clã, que a rir vem ter a nós
Bem cá na mão, pra ter a lei de par
E ser o fim da luz, que não tem voz...
-------

Carlos Moraes Junior (1948)


Carlos Moraes Júnior, nascido em Tatui/SP em 16/12/48, aposentado da Prefeitura Municipal, onde exerceu, de forma efetiva, o cargo de Agente Fiscal de Rendas, jornalista e contabilista, Presidente do Clube dos Escritores Piracicaba, entidade sem fins lucrativos. declarada de Utilidade Pública, pela Lei 4265/97.

Casado com a empresária Maria Clarice Alves da Silva Moraes, proprietária da firma Coopia Datilografia e Serviços Editoriais, que mantém a revista Clube dos Escritores , publicação mensal por assinatura.

Manteve no ar durante cinco anos o programa radiofônico Clube dos Escritores pela Rádio FM Municipal, e durante um ano, no jornal O Diário , a página literária Clube dos Escritores .

Ministra cursos de Redação, de Técnicas de Redação, de Poética Contemporânea e de Criatividade em Prosa e Verso, desde 1992, em convênio com a Delegacia de Ensino de Piracicaba e com a Prefeitura Municipal.

Realizou oficinas de literatura alternativa, e uma Exposição de Literatura Alternativa na Casa do Povoador, sendo o pioneiro neste tipo de literatura na cidade.

Durante mais de 30 anos dedicou-se à crítica literária, sendo que assinou nos jornais locais e de algumas cidades do interior colunas literárias como Literatura e Livros .

Como jornalista profissional assinou durante mais de cinco anos a coluna diária Temática e a coluna semanal Mobral em Revista no Jornal de Piracicaba.

Foi ainda repórter, colunista e revisor de todos os jornais da cidade.

Como gerente de promoção da Eletroradiobraz S/A, criou a mensagem de encerramento do expediente de todas as lojas da rede.

Como Relações Públicas da Comissão Municipal do Mobral, criou a frase-tema da Campanha de Alfabetização do Mobral de 1975.

Escreve para o Jornal de Piracicaba na página 2 e assina, junto com o filho, desde 1989, diariamente, as Palavras Cruzadas daquele matutino.

Participou da Bienal Internacional do Livro de 1988

Nos últimos dez anos é responsável e editor do Informativo do Clube dos Escritores. Atualmente é Editor Chefe do jornal “Gazeta Regional”, que circula em Piracicaba e região, e articulista de vários sites na Internet e nos jornais “Jornal de Piracicaba” e “Tribuna Piracicabana”.

Prêmios:
- I Festival de Poesias do JUBA [1969], “Poesia em p minúsculo”,
- Semana Cultural da Sociedade Prudente de Morais, “A Nova Vida”, poesia e “Impressionismo”, conto, [1969],
- II Festival de Poesias do Interact Clube de Piracicaba, “Tema Caótico”, poesia, [1970],
- I Happening de Literatura da Escola de Música de Piracicaba, 1º. Prêmio, contos “A estória da praça estranha”, [1975],
- II Happening de Literatura da Escola de Música de Piracicaba, lº. Prêmio, contos “A saga do beco dos seis outeiros”, [1976],
- II Concurso de Poesias da Ação Cultural da Prefeitura Municipal de Piracicaba, poesia, “Vietnã”, [1979]
- III Happening de Literatura da Escola de Música de Piracicaba, 2º. Prêmio, contos “Irmã Helga vai à guerra”, [1982],
- Medalha de Mérito Cultural 'José Bonifácio de Andrada e Silva',

Participação:
Membro fundador da Academia Piracicabana de Letras,
Membro da Ordem Nacional dos Escritores,
Membro da Ordem Nacional dos Bandeirantes,
Membro da Academia Paulistana da História,
Membro da União Brasileira de Trovadores,
Membro da União Brasileira de Escritores,
Membro da Academia Brasileira de Ciências Mentais e
Membro do Sindicato dos Escritores Profissionais do Estado de São Paulo.

Publicações:
Temática , crônicas (1974/1976/1978),
Nem tambores, nem clarins , crônicas e poesias (1975/1976).
De literatura alternativa
Coleção Jubileu (1986), Série Ouro e Série Prata (1987), Série Vermelha (1988), Série Branca (1989), Série Amarela (1990/91), Série Verde (1992), Série Azul (1993), e Serie Marrom (1994),
Coletâneas
Coletânea Clube dos Escritores (1992), organizador,
Coletânea Força Motriz (1993), organizador e
Poetas Piracicabanos 1900-1970 , pesquisa histórica.

Fontes:
http://www.geocities.com/SoHo/Lofts/1418/carlosmjr.htm
http://www.poetasdelmundo.com/

segunda-feira, 23 de março de 2009

Maria Antônia Canavezi Scarpa (Um lugar comum)


Há um tempo ainda, antes do sol se por
e fico diante do mar, vigiando o rumo das ondas,
o lado escuro da tarde,o fogo brando que queima
por uma pequena distância..
onde os olhos podem encontrar, o seu lugar comum

Tenho a impressão, que a suavidade da brisa,
provoca em mim uma sonolência,
dissipando a angústia, do meu coração
deixando-a partir para o alto mar
lúcida e transparente
ao sabor do sopro constante, dos ventos eólios

Guardo meu riso de alegria tensa,
numa garrafa dourada e jogo-a ao mar...
desejando, que ela se vá até os próximos rochedos
que desmaiam nas ilhas solitárias
e se aloje ali, entre os arrecifes

De vez em quando, sento na areia morna
acompanhando as estrelas que chegam,
para brilhar no meu pequeno mundo
rastreando cada segundo,
cada minuto do meu sonhar

Quando anoitecer e os pássaros marinhos
se esconderem junto as pedras, vou ter com eles
isolada... meio trêmula de medo, pelas tempestades
que hoje não irão acontecer.
Solitária aqui ou ali, percebo que sou pouco inteligente,
às alternativas que busco,de ir até você

São sempre as mesmas...o pensamento...os sonhos...
já que estamos, tão longe um do outro...
só me resta, deitar o meu cansaço teimoso,
fechar os olhos e chegar no seu lugar comum,
sem encontrar o que estava procurando
===

domingo, 22 de março de 2009

Gesson Álvares de Magalhães (Caldeirão Literário: Rondônia)

"FIM...É A VIDA?"

Andando a passos trôpegos, moroso,
cambaleando até, olhar sem brilho.
Figura venerável de um idoso
cansado de seguir um longo trilho.

Foi menino, foi jovem vitorioso,
as forças consumiu sem empecilho
E agora espera receber ditoso
o amor e o carinho de seu filho.

Quando, porém, os louros da vitória
Deseja desfrutar entre crianças
que agora poderiam diverti-lo
Nem mesmo vai contar-lhe uma histótia,
pois anda triste, só, sem esperanças
nos frios corredores de um asilo."
PORTO VELHO ONTEM E HOJE

1.
Se Amizael cantou-te como infante,
Se o Bolívar cantou teu tempo antigo,
Se Cândido cantou-te como amante,
Deixa que eu fale apenas como amigo.

2.
És, Porto Velho, muito diferente
Daqueles dias que já vão distantes,
Quando morava aqui bem pouca gente
E não tinhas em ti, tantos migrantes.

6.
É muita gente e carros circulando
Numa loucura insana e infernal.
O progresso chegou, modificando
Tua estrutura e teu potencial.

7.
As tuas ruas não são mais aquelas !
E se a alma do Cândido, animada,
Tentar, à noite, passear por elas,
Corre o perigo de ser assaltada.

9.
Hoje, teus bairros somam-se às dezenas,
E com eles, os grandes desafios
De controlar, lutando a duras penas,
A poluição de igarapés e rios.

10.
Até o velho Madeira está em perigo!
O Candeias, o Garça, o Jamari,
Que te viram nascer e que contigo,
Viveram o progresso até aqui.

13.
Queremos, Porto Velho, que tu cresças,
Que sejas linda, que tenhas futuro,
Mas tememos que logo te pareças
Com um montão de lixo ou um monturo.

14.
Que teus filhos e aqueles que aqui vêm,
Pensem menos no ouro e mais em ti.
Que te tratem melhor do que ninguém
E façam sempre o melhor aqui.

16.
Que voltes logo a ser bonita e humana.
Que o Bolívar, o Cândido e o Misa
Possam de novo, após a luta insana,
Dormir tranquilos sob atua brisa.

17.
E eu, que também por ti fui adotado,
Possa ver-te crescer com galhardia,
E meus filhos e netos, sem cuidado,
Vivam em ti, na paz e na harmonia.
===============================

Fonte:
Academia de Letras de Rondônia. http://acler.josevaldir.com/

Gesson Álvares de Magalhães (1934)



Cadeira n.2 da Academia de Letras de Rondônia, cujo patrono é Ary Macedo.

Gesson nasceu na cidade baiana de Santana dos Brejos, no dia 12 de outubro de 1934, o último dos nove filhos do casal Propércio Álvares Pereira e Francisca Flora de Magalhães. Aprendeu a ler aos quatro anos de idade, com sua cunhada, que era professora.

Sempre curtiu verdadeira paixão pelas letras, tendo feito seu primeiro poema aos onze anos de idade, quando estava na quarta série, em Goiânia, estado de Goiás, para onde a família se mudou no ano de 1946.

Iniciou o curso primário na Bahia, tendo ainda de esperar alguns anos, pois era muito novo quando chegou o momento de ir para a escola oficial, tendo concluído em 1946, em Goiânia, na Escola Adventista, cuja professora chamava-se Edy Souza.

Depois de concluir o primário, parou por alguns anos, tendo voltado a estudar no Ginásio Adventista Campineiro, (hoje Unasp III), localizado em Hortolândia, Estado de São Paulo. Fez ali, o curso de Admissão ao Ginásio, iniciando a primeira série ginasial no ano de 1950. Em 1953, concluiu o curso ginasial, ocasião em que foi orador da turma de formandos.

É Adventista do Sétimo Dia de berço, tendo sido batizado no dia 3 de dezembro de 1949, no Ginásio Adventista Campineiro, aos 15 anos de idade.

Em 8 de dezembro de 1955, casou-se com a senhorita Ivete Gomes, natural de Arapongas, Estado do Paraná, depois de um namoro que se iniciou no Ginásio Adventista Campineiro. Desse consórcio, nasceram três filhos: Íverson, que vive hoje em Porto Velho, Sonete, que é cantora gospel e mora em Washington, nos Estados Unidos e Soníver, que também reside nesta capital. Tem oito netos, três bisnetos e uma filha adotiva, Joice.

Iniciou o Curso Médio em Goiânia, no Instituto de Educação de Goiás, tendo sido, naquele ano, o único aluno do sexo masculino. Isso o fez desistir de fazer o curso Normal, (hoje Magistério).

Residiu em 1956 em Araguari, Minas Gerais, onde nasceu seu primogênito, Íverson.

Em 1957, reiniciou o Curso Médio de Contabilidade no Colégio Adventista Brasileiro, (hoje Unasp I), localizado na capital paulista, tendo concluído no Colégio Doze de Outubro, em Santo Amaro, também na capital paulista.

Residiu e trabalhou em São José dos Campos e em Registro, no Estado de São Paulo e na Capital, São Paulo, onde nasceram sua filha e seu filho caçula.

Em 1967, mudou-se para o Paraná, tendo residido na cidade de Goioerê por um ano e depois na cidade de Mariluz, onde residiu por treze anos.

Nesse ínterim, fez faculdade de Letras em Jandaia do Sul, no Estado do Paraná, tendo concluído no ano de 1972.

Em 1980, exatamente no dia 31 de julho, chegou a Porto Velho, onde vive até hoje.

Aqui, iniciou sua vida profissional como Vice-Diretor do Colégio Estudo e Trabalho, tendo sido depois nomeado como diretor da Escola Carmela Dutra, que foi transformada em Instituto de Educação no ano de sua gestão. Foi Chefe de Gabinete da Secretaria de Cultura, Esporte e Turismo, quando era secretário o Dr. Vitor Ugo. Quando se iniciaram os trabalhos da Assembléia Legislativa, foi assessor do Deputado Amizael Silva, que foi relator da Constituição do Estado, tendo sido presidente da Comissão de Sistematização da Constituinte, tanto da primeira como da segunda.

Foi também presidente da comissão que revisou as duas versões da Constituição do Estado, (1982 e 1989). Atuou como assessor na elaboração da lei orgânica dos seguintes municípios: Guajará-Mirim, Cerejeiras, Pimenta Bueno e Nova Brasilândia do Oeste, tendo participado da revisão da lei orgânica de Porto Velho. Em 1991, saiu da Assembléia Legislativa e retornou à Secretaria de Estado da Educação, onde exerceu os cargos de Revisor, Assessor e Chefe de Gabinete.

Membro do Conselho Estadual de Educação, tendo exercido os cargos de Vice-Presidente e Presidente daquele órgão. Professor de Língua Portuguesa na Escola Estudo e Trabalho, na Unir e na Faculdade de Tecnologia e Ciências – Fatec, onde ministrou a aula inaugural, em 1995. Enquanto lecionava na Unir, fez pós-graduação em Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica em Belo Horizonte - MG. e em Metodologia do Ensino Superior, na própria UNIR, em Porto Velho.

Membro da União Brasileira de Escritores, seção de Rondônia, da Academia Rondoniense de Educação e fundador da Academia de Letras de Rondônia, onde exerceu o cargo de Secretário-Geral.

Eleito como Conselheiro do Conselho Fiscal da Academia de Letras de Rondônia, cujo mandato expirou em janeiro de 2009.

Obras publicadas:
- Adejos de minh’alma – livro de poesias, publicado em Rondônia.
- Alguma Cousa – ganhador do Concurso realizado por ocasião do centenário de nascimento de Vespasiano Ramos, 1º lugar dentre 49 obras concorrentes.
Publicou ainda diversos artigos e crônicas em jornais e revistas e colaborou em antologias, tais como: Porto Velho em Prosa e Verso e outras.

Títulos

Membro Efetivo da Casa do Poeta – São Paulo
Membro da União Brasileira de Escritores-Seção de Rondônia
Membro da Academia Rondoniense de Educação
Cidadão Constituinte de Guajará-Mirim
Amigo da Educação, concedido pelo Conselho Estadual de Educação de Rondônia.
Constituinte Emérito, concedido pela Assembléia Constituinte de Rondônia.

Fonte:
Academia de Letras de Rondônia. http://acler.josevaldir.com/

Sylvia Plath (Teia de Poesias)



OVELHAS NO NEVOEIRO

As colinas descem sobre a brancura.
Pessoas ou estrelas
Olham-me tristemente, desaponto-as.

O comboio deixa o traço da sua respiração.
Oh lento
Cavalo cor da ferrugem,

Cascos, guizos de dor —
Toda a manhã a
Manhã tem vindo a escurecer,

Uma flor posta de lado.
Os meus ossos ganham imobilidade. Campos
Distantes suavizam o meu coração.

Ameaçam
Deixar-me entrar para um paraíso
Onde não há estrelas, não há pais, secreta água.
In “Ariel”
Tradução de Fernanda Borges

EU QUERO, EU QUERO

De boca aberta, o deus recém-nascido
imenso, calvo, embora com cabeça de criança,
gritou pela teta da mãe.
Os vulcões secos estalaram e cuspiram,

a areia esfolou o lábio sem leite.
Gritou então pelo sangue paterno
que agitou a vespa, o tubarão e o lobo
e veio engendrar o bico do ganso.

De olhos secos, o inveterado patriarca
ergueu seus homens de pele e osso:
farpas sobre a coroa de fio dourado,
espinhos nas hastes sangrentas da rosa.

(In “Pela Água” - Assírio & Alvim)
(Tradução de Maria de Lourdes Guimarães)

PELA ÁGUA

Um lago negro, um barco negro, duas pessoas negras em papel recortado.
Para onde vão as árvores negras que bebem aqui?
As suas sombras devem cobrir o Canadá.

Das flores aquáticas sai filtrada uma luz tênue.
As suas folhas não querem que nos apressemos:
São circulares e sem relevo, cheias de conselhos obscuros.

Mundos frios agitam se com os remos.
O espírito da escuridão está em nós, está nos peixes.
Um ramo submerso ergue uma mão pálida em despedida;

as estrelas abrem se entre os lírios.
Não ficas cego com a mudez de tais sereias?
Este é o silêncio das almas já perturbadas.

CONTUSÃO

A cor aflui ao local, púrpura e baça.
O resto do corpo está sem cor,
a cor da pérola.

Numa cavidade da rocha
o mar sorve obsessivamente,
uma concavidade, o centro de todo o mar.

Do tamanho de uma mosca,
a marca do destino
rasteja pela parede.

O coração fecha se,
o mar retira se,
os espelhos estão velados.

PAPOULAS EM JULHO

Pequenas papoulas, pequenas chamas do inferno,
Vocês não fazem mal?

E tremeluzem. Não posso tocar vos.
Ponho as minhas mãos entre as chamas. Nada queima.

E fico exausta ao olhar vos
A tremeluzir assim, pregueadas e de um vermelho vivo, como a pele de uma
boca

Uma boca que acabou de sangrar.
Pequenas bainhas ensaguentadas!

Há fumos que não posso tocar.
Onde está o vosso ópio, essas cápsulas que dão náuseas?

Se eu pudesse esvair me em sangue, ou dormir –
Se a minha boca pudesse casar com uma ferida assim!

Ou se os vossos venenos pudessem penetrar em mim, nesta cápsula de vidro,
Para me entorpecerem e aquietarem.

Mas sem cor. Sem cor nenhuma.

NÓDOA NEGRA

A cor converge para esse sítio, de um arroxeado mortiço.
O resto do corpo fica todo descolorido,
De cor pérola.

Numa gruta cavada na rocha
O mar suga obsessivamente
Uma cavidade, o ponto central de todo o mar.

Do tamanho de uma mosca
A marca do destino
Arrasta se pela parede abaixo.

O coração fecha se,
O mar recua,
Os espelhos são tapados.

PALAVRAS
Golpes
De machado na madeira,
E os ecos!
Ecos que partem
A galope.
A seiva
Jorra como pranto, como
Água lutando
Para repor seu espelho
Sobre a rocha
Que cai e rola,
Crânio branco
Comido pelas ervas.
Anos depois, na estrada,
Encontro
Essas palavras secas e sem rédeas,
Bater de cascos incansável.
Enquanto do fundo do poço, estrelas fixas
Decidem uma vida.
–––––––––––––––-

Alfred Lichtenstein (Poeta do Expressionismo Alemão)

Crepúsculo

Um rapaz gordo brinca com um lago.
O vento ficou preso em arvoredo.
O céu, de ar tresnoitado e de tom vago,
Parece que tirou pintura, a medo.

Dois coxos tortos, dobrados, de muleta,
Arrastam se pelo campo em cavaqueio.
Enlouquece talvez louro poeta.
Um cavalinho tropeça num seio.

O gordo está colado ao guarda vento.
Um jovem vai ao bordel em visita.
Calça as botas um palhaço cinzento.
Cães praguejam, carro de bebé grita.

(1911)

O PASSEIO

Tu, não aguento mais
esses quartos imóveis e as áridas ruas,
e o rubro sol das casas,
a infame repugnância de todos
os livros há muito folheados.

Vem, precisamos sair da cidade
para bem longe.
Vamos deitar-nos na
grama suave.
Vamos, ameaçados e sem ajuda,
contra o absurdamente grande,
mortalmente azul, brilhante céu,
levantar olhos encovados e apáticos,
desencantadas e desgastadas mãos."
(1913)

––––––––––––––––––––––––––-
Sobre o Autor
Alfred Lichtenstein, um dos vultos do expressionismo alemão, nasceu em 1889 em Berlim. Fez o curso de Direito em Berlim e se doutorou em 1913 com um trabalho sobre legislação teatral. No mesmo ano, foi enviado como miliciano, por um ano, para Munique e pouco tempo depois partiu para a frente da guerra. Morreu em combate em Vermandevillers, perto de Reims, em 25 de Setembro de 1914, com apenas 25 anos.

Os poemas póstumos de Lichtenstein, confiados a Kurt Lubasch em Berlim, foram destruídos durante a segunda guerra mundial, à exceção de 4 cadernos manuscritos, de oleado, que foram doados à Universidade de Berlim pela mulher de Lubasch, depois da morte deste e por desejo do mesmo.

Lichtenstein gritava na sua poesia a desproporção do mundo em tempo de guerra. No meio de um mundo de quotidiano cinzento e amarelado, de cenas de família e tardes de domingo, entravam as perversões, os manicômios, as anatomias. E mostrava a sua raiva entrechocando esses dois mundos nos seus poemas.
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Fontes:
Luís Gaspar. http://www.truca.pt/ouro.html
http://www.expressionismo.pro.br/cita.html
Foto = http://www.ebooks-library.com/
Imagem = http://www.baixaki.com.br/

Expressionismo

Kirchner (Natureza Morta)
Até onde se sabe, a palavra "expressionismo" foi empregada, pela primeira vez, em 1850, pelo jornal inglês Tait's Edinburgh Magazine evocando, em artigo anônimo, uma "escola expressionista" de pintura moderna.

Em 1880, Charles Rowley pronunciou em Manchester uma conferência sobre a pintura contemporânea, identificando uma corrente "expressionista" de artistas que procuravam exprimir suas paixões.

Em 1878, no romance The Bohemian, de Charles de Kay, um grupo de artistas referiam-se a si próprios como "expressionistas". Mais tarde, em 1901, o pintor Julien-Auguste Hervé expôs no Salão dos Independentes em Paris oito quadros seus, nada expressionistas, sob o título Expressionnismes. Em 1910, o marchand Paul Cassirer declarou, diante de um quadro de Max Pechstein, que aquilo não era mais impressionismo, mas "expressionismo".

Em 1911, durante a 22ª sessão da Berliner Sezession ("Secessão de Berlim"), Wilhelm Worringer chamou de "expressionista" a vanguarda estrangeira ali exposta - Braque, Dérain, Dufy e Picasso, entre outros -, e o termo "expressionismo" passou a ser associado à nova pintura belgo-francesa. Logo os teóricos e críticos Herwarth Walden, Walter Heymann, Louis de Vauxcelles, Paul Fechter e Paul Ferdinand Schmidt, assim como o poeta Kurt Hiller, passaram a chamar de "expressionista" toda arte moderna oposta ao impressionismo.

Com a verificação de que o verdadeiro expressionismo disseminava-se na Alemanha, na Áustria, na Hungria e na Tchecoslováquia, o termo tornou-se uma referência para a arte cujas formas não nasciam diretamente da realidade observada, mas de reações subjetivas à realidade. Atualmente, é considerada "expressionista" qualquer arte onde as convenções do realismo sejam destruídas pela emoção do artista, com distorções de forma e cor. De fato, a deliberada deformação das formas, o sacrifício do discurso ao essencial, a captação de um mundo em frangalhos, a preocupação com a doença e a morte, a sublimação da loucura em contrastes e dissonâncias, o gosto pelo insólito e a visão de um absurdo que tira para sempre a alegria de viver são comuns a todos os escritores modernos que atingiram os limites da expressão, desde Georg Büchner, August Strindberg, Franz Kafka, Arthur Schnitzler e Frank Wedekind, até Elias Canetti, Samuel Beckett, Eugène Ionesco, Fernando Arrabal e Dario Fo.

Na pintura, já os chamados românticos idealistas, como o suíço Arnold Böcklin e o alemão Franz von Stuck, criavam naturezas carregadas de mistério, pathos e simbolismo; nos quadros de Caspar David Friedrich, a paisagem parece esmagar o homem, fixado como uma figurinha perdida na vastidão da natureza - campo, mar, geleiras, montanhas.

Precursor direto do expressionismo, Vincent Van Gogh criou plantas que expressavam seu atormentado mundo interior. Antes de tornar-se pintor, via-se como o figueiro estéril da parábola bíblica. Mais tarde, para dar forma à sua luta contra "as pequenas misérias da vida", projetou-se na imagem de uma planta cujas raízes agarram-se ao solo, enquanto o vento as vai arrancando. No máximo de sua arte, quando descobriu o sol "em toda sua glória", identificava-se com um girassol, fixando velas acesas no chapéu, para pintar à noite, desenhando girassóis murchos quando caía em depressão.

Por fim, depois de romper com Gauguin, seu melhor amigo, pintou ciprestes contorcidos como tochas vivas. Outro anunciador do movimento foi o norueguês Edvard Munch, com uma visão de horror: "Eu caminhava com dois amigos - o sol se pôs, o céu tornou-se vermelho-sangue - eu ressenti como que um sopro de melancolia. Parei, apoiei-me no muro, mortalmente fatigado; sobre a cidade e do fiorde, de um azul quase negro, planavam nuvens de sangue e línguas de fogo: meus amigos continuaram seu caminho - eu fiquei no lugar, tremendo de angústia. Parecia-me escutar o grito imenso, infinito, da natureza". Reconhece-se, nessa visão, a origem de O Grito ("Der Schrei", 1893), onde um homem, deformado pelo próprio espasmo, expressa em seu corpo uma angústia que envolve a paisagem, enquanto ao fundo dois homens de fraque e cartola afastam-se, indiferentes, como se nada estivesse acontecendo. E não apenas nessa imagem, como em toda a obra de Munch, que estropiou dois dedos da mão esquerda com um tiro, depois de romper com a noiva, a angústia da morte que percorre toda sua obra antecipa os horrores que destruiriam, para sempre, a belle époque instalada sobre o vulcão dos nacionalismos que se acirravam.

O grito de Munch ecoou na Alemanha, onde o expressionismo floresceu por uma série de condições propícias. Como o país industrializava-se rapidamente dentro de estruturas sociais conservadoras, os jovens artistas reagiam pelo exagero e a deformação contra códigos morais anacrônicos e repressivos. A ordem do mundo afigurava-se diabólica aos intelectuais e artistas mais sensíveis, que se reuniam, em Berlim, no Café des Westens ("do Ocidente") ou no Grössenwahn ("Megalomania"), "locais de debates, leituras e desavenças que poderiam durar minutos ou anos". O grito também ecoou em Dresden e Munique, e em Viena, Praga e Budapeste: nessas cidades onde a velha cultura se dissolvia rapidamente junto com as estruturas imperiais, literatos, pintores e gravuristas fundaram um sem-número de revistas, cabarés e grupos de nomes bombásticos.

Uma das primeiras associações foi a Die Neue Gemeinschaft ("A Nova Comunidade"), da qual participavam os filósofos Gustav Landauer e Martin Buber, adeptos da filosofia romântica do retorno à natureza como condição para o nascimento do Novo Homem, exercendo forte influência nos poetas Else Lasker-Schüler e Ludwig Rubiner. Em 1904, Herwarth Walden criou o grupo Verein für die Kunst ("Sociedade pela Arte"), que organizava animados saraus, dos quais participava o escritor Alfred Döblin.

Em 1905, em Dresden, um grupo de artistas - Ernst Ludwig Kirchner, Fritz Bleyl, Erich Heckel e Karl Schmidt-Rottluff, entre outros - fundaram Die Brücke ("A Ponte"), partilhando o interesse pela arte primitiva - ligada à vida coletiva e ao trabalho anônimo - exposta no Museu Etnográfico daquela cidade: até 1913, quando o grupo se dissolveu, os artistas da Brücke não assinavam suas obras, repartindo estúdio e material de trabalho, vivendo a guilda anônima sonhada por Van Gogh. Suas obras chocavam pelas formas contrastantes, contornos simplificados, dissonância tonal e textura dinâmica. O manifesto do grupo conclamava a jovem geração a criar e viver com liberdade. Procurando perder-se numa força exterior transcendente, opunham às potências dominantes entidades abstratas com as quais se identificavam: a natureza, o infinito, o além. A procura do imaterial, do outro mundo que se escondia por trás das aparências, era sustentada por um sentimento religioso levado às raias do misticismo.

Desde 1906 morando num pequeno castelo que havia adquirido, Alfred Kubin criava composições a partir de faíscas luminosas, fragmentos de cristais e conchas, pedaços de carne e pele, folhas e outros objetos, em pinturas abstratas que materializavam suas lembranças e seus pesadelos. Repercutiam entre os jovens artistas as idéias bergsonianas que Wilhelm Worringer defendeu em Abstraktion und Einfühlung (1907), de que a subjetividade é a base da arte e a intuição o elemento fundamental da criação; seguindo esse caminho, eles suprimiam as formas instituídas para atingir "as coisas que estão por trás das coisas", em efusões selvagens, demoníacas.

Em 1909, inaugurando o teatro expressionista, o pintor Oskar Kokoschka montou sua peça Mörder, Hoffnung der Frauen ("Assassino, Esperança das Mulheres") no Wiener Kunstschau, provocando violento tumulto; era o primeiro texto teatral a distorcer radicalmente a linguagem tal como os artistas plásticos distorciam as formas e reinventavam as cores, com omissão de trechos de sentenças e embaralhamento arbitrário da ordem das palavras. Logo os novos poetas passaram a evocar imagens sinistras, entre gemidos lancinantes e exclamações sincopadas.

Ainda em 1909, Wassily Kandisnky, Franz Marc e Gabrielle Münter, dissidentes da Sezession, fundaram a Neue Künstlervereinigung.

Em 1910, o escritor Herwarth Walden lançou o periódico Der Sturm ("A Tempestade"), pretendendo "destruir a estrutura lógica da língua, que encobre a verdade das coisas para exprimir em gritos profundos a substância do Universo". Em Berlim, Kurt Hiller fundou o Neopathetisches Kabarett ("Cabaré Neopatético").

Em 1911, formou-se a Neue Sezession; contra a onda revolucionária, Carl Vinnen publicou o manifesto chauvista Protesto dos artistas alemães, assinado por 120 artistas, todos medíocres. Não se podia mais deter a expressão da nova sensibilidade: em Munique, a Neue Künstlervereinigung promoveu a primeira exposição do grupo Der Blaue Reiter ("O Cavaleiro Azul"), fundado por Kandinsky, Marc e Paul Klee, que com cores luminosas, planos dinâmicos e contornos suaves, tentavam recriar os pontos de vista da criança, do primitivo, do paranóico, do camponês, do animal. O escritor Kurt Hiller fundou Der Neue Club ("O Novo Clube"), e pela primeira vez aplicou o termo "expressionismo" associado à literatura; decretando a inferioridade dos estetas tradicionais, afirmou: "Nós somos expressionistas".

Em 1912, Ludwig Rubiner, evocando o poder subversivo do poeta e sua capacidade de fazer explodir as estruturas, atacou a política em nome da Santa Ralé: "Não. Eu não estou sozinho. Embora isto não seja uma prova. Quem somos nós? Quem são os camaradas? Prostitutas, poetas, gigolôs, colecionadores de objetos perdidos, ladrões de ocasião, mandriões, amantes em meio a um abraço, loucos de Deus, bêbados, fumantes inveterados, desempregados, comilões, vagabundos, assaltantes, chantagistas, críticos, dorminhocos. Biltres. E, por instantes, todas as mulheres do mundo. Somos os rejeitados, os restolhos, os desprezados. Somos aqueles que são sem trabalho, inaptos ao trabalho, aqueles que recusam o trabalho. Não queremos trabalhar, porque é devagar demais. Somos imunes à doutrina do progresso; para nós, ele não existe. Acreditamos no milagre... acreditamos que nossos corpos, de repente, sejam devorados em chamas pelo espírito ardente... Procuramos raios de fogo na nossa memória, a vida toda... atropelamo-nos atrás de toda cor, queremos invadir espaços alheios, queremos penetrar em corpos estranhos... O que importa, agora, é o movimento. A intensidade e a vontade de catástrofe".

Werner Haftmann aconselhou os artistas a se tornarem homens psiquicamente desequilibrados. Por toda parte testemunhavam-se arrebatamentos, derramamentos; em toda parte ressoavam "incontroláveis gritos de dor".

Em 1913, formou-se a Freie Sezession como alternativa à agonia dos conservadores e as manifestações expressionistas começaram a multiplicar-se na Alemanha.

No inverno de 1916, Conrad Felixmüller organiza expressionistischen Soiréen ("saraus expressionistas") em seu ateliê. O mundo das artes debate as novas tendências: futurismo, cubismo, abstracionismo e expressionismo, este já difamado como um "negroidismo primitivo". O pacifismo é sua principal bandeira política. As idéias humanistas de Tolstói, reverberadas nos romances de Berta Lask e Leonhard Frank, artigos anti-guerra de Franz Pfemfert e Franz Mehering e panfletos do Spartakus lidos por Alfred Kurella causavam sensação. As idéias deviam ser transformadas em ações. Exigia-se que as idéias se transformassem em ações, que a poesia e a pintura se engajassem. Hermann Bahr populariza o movimento com seu livro Expressionismus. E já desencantados com o mundo, os expressionistas radicalizam sua busca de sentimentos universais, o sentido internacionalista, o sonho de uma Europa unida e fraterna e as idéias de vida comunitária, optando pela revolução socialista.

Em abril de 1917, um grupo da tendência revolucionária Liga Espartaquista do SPD, entre cujos líderes encontravam-se Haasse e Kautsky, fundaram o USPD (Unabhängige Sozialdemokrätische Partei Deutschlands - Partido Social Democrata Independente da Alemanha), criando organismos culturais, à maneira dos comitês de operários e soldados, agindo através de conferências, manifestos, panfletos e exposições. A rebelião dos filhos contra os pais eclodiu no drama expressionista Der Sohn ("O Filho", 1914), de Walter Hasenclever, onde o Filho, por ter apenas preocupações metafísicas, fracassava nos exames que lhe prometiam um futuro; em punição, o Pai cortava-lhe a mesada, prendendo-o em casa até os 21 anos. A peça, contudo, não ia muito longe: a revolta do Filho impotente contra o Pai que detinha o poder conservava um fundo edipiano; levado pelo Amigo a um baile onde a juventude protestava contra o mundo dos adultos e ameaçava levar os pais aos tribunais, o Filho descobria o sexo com uma mulher, sentindo-se potente a ponto de ameaçar o Pai com um revólver. O drama só tirava sua força da apresentação do conflito.

Mas o expressionismo radicalizou-se rapidamente, e logo os artistas voltaram-se contra os mestres, o exército, o imperador, todas as autoridades estabelecidas, prestando solidariedade a todos os oprimidos. Lutavam para restaurar a plenitude do ser humano, propondo uma transformação substancial de valores. Muito desse impulso libertário e apocalíptico do expressionismo devia-se à ascendência judaica de boa parte de seus artistas e escritores. A vivência de uma condição minoritária levava-os a questionar os próprios fundamentos da sociedade. Segundo Heinrich Berl, "para o judaísmo, o expressionismo foi a hora de seu renascimento espiritual".

O humanismo subversivo do expressionismo assustava os liberais, que não conseguiam desfazer-se de seu nacionalismo atávico: depois de encontrar-se com o expressionista Carl Sternheim, Romain Rolland registrou em seu Journal ("Diário", 1915): "É ouvindo falar de tais pessoas que se dá conta de que os judeus são bem um perigo nacional: tanto os piores quanto os melhores; os piores, destruindo a pátria, os melhores querendo nela reconstruir uma cidade mais ampla".

Se essa reação íntima vinha de um escritor que publicamente combatia o anti-semitismo, pode-se imaginar a virulência das reações às reivindicações do expressionismo por parte dos nacionalistas mais ferrenhos.

Em 1912, o filósofo francês Alain cantava a guerra como uma mística, uma epopéia, uma juventude e uma embriaguez, afirmando que são os justos, os sábios e os poetas que melhor a fazem. Decretada a Primeira Guerra Mundial, ele se alistou como voluntário, escolhendo o posto da artilharia pesada. Mesmo depois da guerra, Alain preservou um alto conceito da carnificina, declarando: "A guerra é a missa do homem... a celebração do humano no homem, já que os animais mais ferozes só atacam para preservar suas vidas", razão pela qual "todos os homens dignos deste nome correm para a guerra ao primeiro chamado".

Também em 1914, Thomas Mann afirmou ser a guerra "uma purificação da cultura"; recordando a posição de seu criador à época, Hans Castorp partia alegre e saltitante para o campo de batalha no final de A Montanha Mágica ("Der Zauberberg", 1924), a conflagração assumindo os ares de uma libertação do círculo vicioso das partidas e retornos dos tuberculosos ao sanatório.

Também na Itália de 1915, o futurista Marinetti proclamava: "A guerra é a única higiene do mundo", incitando o povo a participar da matança. Celebração do humano, purificação da cultura ou higiene do mundo, a guerra era saudada com entusiasmo pelos jovens nacionalistas, cantada em verso e prosa por poetas, intelectuais e artistas, vista pelos filósofos como uma necessária queima de energia masculina acumulada, energia cuja verdadeira natureza permanecia obscura, produzindo em alguns visionários expressionistas, como Else Lasker-Schüler, Albert Ehrenstein, Georg Trakl, Jakob von Hoddis, Alfred Lichtenstein ou Franz Werfel, visões transpassadas de horror.

O pacifismo não encontrava qualquer respaldo popular: apenas uma minoria de políticos - como Heinrich Lammasch, que se voltou contra a política guerreira do Partido Católico - posicionava-se contra a guerra. Com sua eclosão, a maioria dos alemães engajou-se voluntariamente. Também para muitos judeus essa foi a ocasião de provar sua fidelidade à pátria: cerca de 12.000 soldados judeus caíram pela Alemanha na Primeira Guerra. Mas será em vão que, mais tarde, combatendo o anti-semitismo dos partidos políticos, a Reichsbund jüdischer Frontsoldaten ("Liga dos Soldados Judeus do Front do Império") lembrará essa estatística, a mais dramática prova de sua assimilação. Tal era a força do mito nacionalista do sangue que mesmo alguns intelectuais judeus deixaram-se impregnar pelo biologismo: nos encontros sionistas da Alemanha de 1910, Hugo Salus recitava uma Lied des Blutes ("Canção do Sangue"), e logo Martin Buber proporia aos sionistas buscar no sangue seu radicalismo, defendendo Jean-Richard Bloch igualmente o princípio biológico: "O sangue é a duração na comunidade dos vivos, dos mortos e dos não-nascidos. Ele forma a substância de nosso ser, a razão de nosso eu, cada inconcebível histórica (ou melhor biológica) memória, que nos ligou a toda cadeia de nossos antepassados, com seus caracteres e seus destinos, com suas ações e sofrimentos, com suas vivências, grandezas e misérias".

Marcado pelos conceitos social-darwinistas da época, o discurso sionista reproduzia-o em pequena escala, substituindo a história pela biologia, a liberdade pelo destino, a educação pelo sangue, a razão pelo mito, o movimento da consciência pelos fluxos do inconsciente. O discurso libertário, pacifista e universalista da vanguarda engajada era considerado tanto pelos nacionalistas anti-semitas quanto, em menor escala, pelos sionistas radicais, uma provocação insuportável. E a provocação era mesmo tremenda. Quando o socialista Friedrich Adler assassinou o Ministro-presidente Stürgkh, em protesto contra a guerra, Karl Kraus, autor do drama expressionista Os Últimos Dias da Humanidade, festejou-o como herói e conseguiu impedir sua execução através de uma campanha desencadeada por sua revista, Die Fackel ("A Tocha", 1899-1936, da qual ele foi, a partir de 1912, o único redator, escrevendo 922 números). O povo só perdeu o gosto pela guerra quando as notícias de derrota no front começaram a chegar e, com elas, a fome.

Em 1917, numa tentativa revisionista, Conrad Felixmüller e Felix Striemer criaram o grupo Der Neue Kreis ("O Novo Círculo"), renegando o pathos do movimento: "Descartemos os passos falsos das expressões psicológicas incompreensíveis". Propunham, em seu lugar, um Synthetischen Kubismus ("cubismo sintético"): "As formas dos objetos permanecem fiéis no sentido material - quer dizer, sem sintomas de transformação, como sol, luz, ar; nunca são portadores de disposições da alma ou de sentimentos. Incessante significação, expressão do ser. A matéria madeira permanece madeira, pedra permanece pedra, cal - cal, cabelo - cabelo, etc. O sentimento somente quando ele for constante. Quando não permanecer apenas como recheio. Quando for existência".

Outra ala do expressionismo abraçou o socialismo como proposta política definida. Considerando-se adolescentes apocalípticos em rebelião contra todos os absurdos, especialmente o da guerra, muitos expressionistas engajaram-se na militância política, distanciando-se dos futuristas, que idolatravam a a civilização técnica. Walter Gropius escreveu que o expressionismo era "uma revolta contra a máquina e tudo o que ela representa de repressivo".

Como observou Luiz Carlos Daher, os expressionistas viam a metrópole como um inferno, a máquina como um Moloch e o robô como um sinistro Golem moderno; se para os futuristas o progresso técnico prometia uma vida liberta dos sentimentalismos passadistas, para os expressionistas o homem encontrava-se alienado num universo estranho e diabólico; a alegria e o vitalismo futuristas chocavam-se com a visão do caos percebida pelos expressionistas; e se para os futuristas a guerra era fonte de exaltação e prazer, os expressionistas legaram seu pacifismo aos sobreviventes da conflagração, depois de sofrê-la na carne: como tantos outros, os pintores Franz Marc, August Macke e Egon Schiele, os poetas Alfred Lichtenstein, Ernst Stadler e August Stramm morreram no front; ao dele retornar, o escritor Ernst Toller organizou com Kurt Eisner o movimento pacifista, e em seu drama Masse Mensch ("Homem-Massa"), a heroína preferia morrer antes que aceitar ser libertada da prisão através do assassínio de um dos guardas.

Com total desprezo pela política, Franz Werfel clamou por um levante mundial da amizade contra a devastação do mundo. Em seus poemas, René Schickele condenava a violência, quer viesse dos contra-revolucionários ou dos próprios revolucionários, que sempre acabavam traindo a verdadeira revolução humana.

Espírito prático, Wilhelm Michael propôs a formação de um Congresso Internacional de Intelectuais: cada país elegeria seus poetas, escritores, artistas, sábios e pacifistas e os encarregaria de representá-los. Estes formariam o primeiro Parlamento da Comunidade Universal, reunindo-se a cada ano num país diferente para conferenciar sobre as possibilidades de educar os povos no sentido da amizade e do combate ao ódio, destruindo, sob o fogo do espírito e do amor, o bloco de violência e injustiça que o mundo civilizado representava.

Kurt Hiller foi mais longe e sugeriu a formação de um Partido dos Intelectuais, com o objetivo de conquistar o Paraíso na Terra; seu programa incluía a supressão da guerra; reformas econômicas para garantir o mínimo vital a todo cidadão; ajuda aos desempregados e aos criadores; liberação sexual com o reconhecimento da homossexualidade; racionalização da procriação; abolição da pena de morte; proteção do indivíduo diante do crescente poderio da psiquiatria; transformação das escolas de ensino em escolas de pensar; combate contra as Igrejas e os Parlamentos; estabelecimento de uma aristocracia do espírito; liberdade total de expressão.

Os expressionistas organizaram-se para a revolução fundando, em novembro de 1918, o Novembergruppe ("Grupo de Novembro"), do qual participavam Walter Gropius, Bruno Taut, Heinrich Campendonk e Rudolf Belling, instituindo um Conselho de Trabalho para a Arte. Em dezembro, os espartaquistas e outros grupos revolucionários fudaram o Partido Comunista Alemão, reivindicando todo o poder para os comitês de operários e soldados; mas, após violenta repressão e assassinato dos líderes Karl Liebkenecht e Rosa Luxemburgo por oficiais de direita, uma Assembléia Constituinte, instalada em 19 de janeiro de 1919, elegeu uma maioria conservadora de social-democratas para governar a República de Weimar.

Reagindo à contra-revolução, Hugo Zehder fundou o grupo Dresdner Sezession 1919 e a revista Neue Blätter für Kunst und Dichtung ("Novas Folhas para a Arte e a Poesia"), denunciando a tentativa de apropriação burguesa das formas expressionistas em inócuas "preciosidades engraçadinhas", propondo a retomada do caráter revolucionário e profético do movimento: "Inicialmente cantaremos algumas curtas e claras 'canções para sacudir'. Pois queremos sempre ser muito engraçados e expulsar com o riso aqueles que nos cercam com suas sombrias astúcias: mesmo andando na ponta dos pés, não nos alcançarão".

E protestando contra o esmagamento da revolução, o encenador Leopold Jessner criou uma encenação tão subversiva de Wilhelm-Tell ("Guilherme Tell", 1919) que os atores quase não conseguiram levá-la até o fim. Na noite de estréia, o tumulto reinava na sala, o público dividido entre os esquerdistas que aplaudiam e os direitistas que gritavam "Judeus vigaristas!". Kortner entrava no meio da peça, no papel do sádico Geßler. Mas antes disso, Jessner aproximou-se dele e indicou que, diante daquele tumulto, nem precisava entrar. Mas seu assistente, Albert Florath, aproximou-se, bêbado, e disse: "Vista-se, continuamos a representar. Sob qualquer condição." Os protestos abafaram suas palavras. Alguns atores abandonaram o palco, querendo desistir. Florath os caçava e os obrigava a voltar. Quando a gritaria cresceu, Jessner pediu cortina, a qual desceu até a metade. Florath insistiu: "Deixe pelo menos Kortner enfrentá-los!"

O crítico de teatro Siegfried Jacobson debatia-se furiosamente com a galeria. Espectadores exaltavam-se. Julius Bab pulava da poltrona e gritava. Em meio ao caos, Florath fez subitamente a cortina erguer-se. O golpe produziu um inesperado silêncio. A representação continuou. Mas quando Kortner, vestido e maquiado de vermelho, subiu ao palco, o barulho recomeçou. Arrasado, Jessner previu o fim. Mas o ator Albert Bassermann fez uma cena tão comovente que levou o público às lágrimas. Atrás do palco, Florath dançava de alegria. Logo a tormenta retornou, para atingir o clímax. Esgotado, Bassermann abandonou o palco. Mas teve que voltar para contracenar com Kortner. Com suas vozes possantes, os dois monstros sagrados conseguiram aplacar a gritaria. Só a intervenção da polícia permitiu o prosseguimento da peça. A horda anti-semita foi evacuada e Kortner e Bassermann puderam ser aclamados.

A revolta expressionista não se limitava, contudo, às agitações sociais, atingindo dimensões metafísicas, e até cósmicas. O manifesto de 1919 de Lothar Schreyer sintetizou a radicalização final: "Uma mulher compreendeu que para nada lhe serve usar seus encantos e a isso renuncia. Um outro sabe que a Igreja não faz de ninguém um cristão e recusa batizar seu filho. Um outro vê os malefícios da imprensa a soldo da sociedade e se abstém de lê-la. Tais são os primeiros passos do homem que se afasta do mundo antigo. Vêm em seguida os atos decisivos pelos quais ele o rejeita, o aniquila e o esquece em sua pessoa. Afastar-se radicalmente, interiormente e exteriormente, do mundo antigo e de suas instituições - sociedade, família, Estado, Igreja, arte, ciência, moral e cultura - é a condição da liberdade no mundo novo. A hora das decisões chegou para todos. Todos aqueles que compreenderam que o mundo antigo é um Calvário devem tomar suas responsabilidades. Somos de novo responsáveis pelo destino do mundo: da morte do antigo e do nascimento do novo. É agora que tudo se decide. É agora que nasce o Homem Novo".

Depois de passar das artes plásticas e da arquitetura para a literatura e o teatro, o expressionismo agora estava maduro para chegar ao cinema, e sua primeira realização foi O Gabinete do Dr. Caligari (Das Kabinett des Dr. Caligari", 1919), de Robert Wiene, que marcou época, seguido de Da Aurora à Meia-noite ("Von Morgens bis Mitternacht, 1920), de Karl Heinz Martin, que nem chegou a ser lançado. Toda uma nova linguagem cinematográfica será desenvolvida a partir das premissas perturbadoras do caligarismo. A nova indústria de entretenimento, que empresários e artistas em boa parte de origem judaica edificaram na Alemanha, iria agora transformar-se com a infusão de novas formas e valores, transformando o cinema numa verdadeira tribuna de propaganda da arte moderna, e sobretudo do recente legado das artes plásticas e da arquitetura, da literatura e do teatro expressionistas. Aqui o expressionismo encontrou um terreno fértil, ainda aberto a todo tipo de experimentação. Aí os expressionistas puderam criar um mundo tridimensional sustentado apenas por sua própria fantasia, realizando, ainda que dentro dos limites estreitos daquela arte de massa, a maior de todas as suas revoluções estéticas.

De fato, a produção da imagem expressionista em movimento constituirá a idade de ouro do cinema mudo alemão: o triunfo da fantasia em plena crise econômica, quando as massas arruinadas pela desvalorização da moeda não pensavam senão em consumo e diversão. Com a implantação do Plano Dawes, que estabilizou momentaneamente a economia corroída, diminuindo o desemprego e aumentando a produção e os salários, o que favoreceu os partidos de centro e de direita, a indústria do cinema retornou à velha estética do realismo.

Gustav Hartlaub, diretor do Museu de Manheim, criou, em 1924, o termo "Nova Objetividade", para designar essa nova tendência da arte alemã. Logo o realismo triunfará no cinema com a introdução do som e a adoção oficial de estéticas realistas pelos regimes totalitários, que irrompem na década de 30 desterrando as vanguardas modernas na União Soviética e na Alemanha, difamadas como "protofascistas" pelos comunistas e como "degeneradas" pelos nazistas. Sob a influência de Georg Lukàcs, os primeiros historiadores da arte moderna tenderão a ignorar o expressionismo, a despeito de sua grande produção literária e artística: Paul Raabe registrará 2.300 títulos de livros expressionistas de 347 autores, em todos os gêneros, além de 37.000 colaborações literárias e gráficas em 110 periódicos.

Milhares de obras plásticas e projetos arquitetônicos e dezenas de filmes completam esse legado imenso e ainda pouco conhecido: o continente expressionista ainda espera ser redescoberto e devidamente valorizado.

Fontes:
Texto extraído de: Luiz Nazário, A Revolta Expressionista, in As Sombras Móveis. Belo Horizonte: Editora da UFMG/midia@rte, 1999. Revisto e ampliado especialmente para http://www.expressionismo.pro.br/express02.html . Belo Horizonte, 2001.
Pintura = http:// http://www.colegiosaofrancisco.com.br/