quarta-feira, 13 de maio de 2009

Lima Barreto (Um Que Vendeu a Sua Alma)



A anedota que lhe vou contar, tem alguma cousa de fantástica e pareceria que, como homem de meu tempo, eu não devia dar-lhe crédito algum. Entra nela o Diabo e toda a gente de certo desenvolvimento mental está quase sempre disposta a acreditar em Deus, mas raramente no Diabo.

Não sei se acredito em Deus, não sei se acredito no Diabo, porque não tenho as minhas crenças muito firmes.

Desde que perdi a fé no meu Lacroix; desde que me convenci da existência de muitas geometrias a se contradizerem nas suas definições e teoremas mais vulgares; desde então deixei que a certeza ficasse com os antropologistas, etnólogos, florianistas, sociólogos e outros tolos de igual jaez.

A horrível mania da certeza de que fala Renan, já a tive; hoje, porém, não. De modo que posso bem à vontade contar-lhes uma anedota em que entra o Diabo.

Se os senhores quiserem acreditem; eu, cá por mim, se não acredito, não nego também.

Narrou-me o amigo: — Certo dia, uma manhã, estava eu muito aborrecido a pensar na minha vida. O meu aborrecimento era mortal. Um tédio imenso invadia-me. Sentia-me vazio. Diante do espetáculo do mundo, eu não reagia. Sentia-me como um toco de pau, como qualquer coisa de inerte.

Os desgostos da minha vida, os meus excessos, as minhas decepções, me haviam levado a um estado de desespero, de aborrecimento, de tédio, para o qual. em vão, procurava remédio. A Morte não me servia. Se era verdade que a Vida não me agradava, a Morte não me atraía. Eu queria outra Vida. Você se lembra do Bossuet, quando falou por ocasião de M.lle de la Vallière tomar o véu ? Respondi: — Lembro-me.

— Pois sentia aquilo que ele disse e censurou: queria outra vida.

E então só me daria muito dinheiro.

Queria andar, queria viajar, queria experimentar se as belezas que o tempo e o sofrimento dos homens acumularam sobre a terra, despertavam em mim a emoção necessária para a existência, o sabor de viver.

Mas dinheiro! — como arranjar? Pensei meios e modos: Furtos, assassinatos, estelionatos — sonhei-me Raskólnikoff ou cousa parecida. Jeito, porém, não havia e a energia não me sobrava.

Pensei então no Diabo. Se ele quisesse comprar-me a alma? Havia tanta história popular que contava pactos com ele que eu, homem céptico e ultramoderno apelei para o Diabo, e sinceramente! Nisto bateram-me a porta. — Abri.

— Quem era ?

— O Diabo.

— Como o conheceste ? — Espera. Era um cavalheiro como qualquer, sem barbichas, sem chavelhos, sem nenhum atributo diabólico. Entrou como um velho conhecimento e tive a impressão de que conhecia muito o visitante. Sem cerimônia sentou-se e foi perguntando: "Que diabo de spleen é esse?" Retorqui: " A palavra vai bem mas falta-me o milhão." Disse-lhe isso sem reflexão e ele sem se espantar, deu umas voltas pela minha sala e olhou um retrato. Indagou: "E tua noiva?" Acudi: "Não. É um retrato que encontrei na rua. Simpatizei e..." "Queres vê-la já?" perguntou-me o homem. "Quero" , respondi. E logo, entre nós dois sentou-se a mulher do retrato. Estivemos conversando e adquiri certeza de que estava falando com o Diabo. A mulher foi-se e logo o Diabo inquiriu: "Que querias de mim?" "Vender-te minha alma", disse-lhe eu.

E o diálogo continuou assim : Diabo — Quanto queres por ela? Eu — Quinhentos contos.

Diabo — Não queres pouco.

Eu — Achas caro? Diabo — Certamente.

Eu — Aceito mesmo a cousa por trezentos.

Diabo — Ora ! Ora ! Eu — Então, quanto dás? Diabo — Filho. não te faço preço. Hoje, recebo tanta alma de graça que não me vale a pena comprá-las.

Eu — Então não dás nada? Diabo — Homem! Para falar-te com franqueza. simpatizo muito contigo, por isso vou dar-te alguma cousa.

Eu — Quanto? Diabo — Queres vinte mil-réis ? E logo perguntei ao meu amigo: — Aceitaste? O meu amigo esteve um instante suspenso, afinal respondeu: — Eu... Eu aceitei.

A Primavera, Rio, julho 1913.

Fontes:
Domínio Público.
Imagem = http://mortesubita.org

Lima Barreto (13 Maio 1881 – 1 Novembro 1922)

Afonso Henriques De Lima Barreto nasceu em 13 maio de 1881 no Rio de Janeiro e faleceu em 1o de novembro de 1922 na mesma cidade. Iniciou os seus estudos primários com sua mãe, que era professora.

Aos 7 anos de idade, morrendo sua mãe, entra para a escola pública. Ingressa posteriormente no Liceu Popular Niteroiense, matriculando-se em seguida no Colégio Pedro II, onde se bacharelou em Ciências e Letras. Este curso foi custeado pelo Visconde de Ouro Preto, seu padrinho de batismo. Em 1903, por ocasião da loucura de seu pai, teve de abandonar a Escola Politécnica no terceiro ano, para assumir os deveres de chefe-de-família.

Foi professor particular e depois funcionário público na Diretoria do Expediente da Secretaria da Guerra, deixando estas funções em virtude da desordenada boêmia a. que se entregara, o que lhe arruinou prematuramente a saúde, tom indisfarçáveis reflexos em sua carreira literária. Colaborou assiduamente na imprensa carioca.

Candidato à Academia Brasileira de Letras, obtém apenas dois votos. De dezembro de 1919 até fevereiro do ano seguinte, Lima Barreto esteve novamente em tratamento no Hospício Nacional. Candidato ao prêmio da Academia com a "Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sã", obtém menção honrosa. Faleceu, no Rio de Janeiro, vítima de colapso cardíaco.

Escreveu:
"Recordações do Escrivão Isaías Caminha" (1909); "0 Triste Fim de Policarpo Quaresma" (1915); "Numa e a Ninfa" (1915); "Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá", (1919); "Histórias e Sonhos", (1922), etc. Deixou inéditos vários trabalhos, edição póstuma: - "Os Bruzundangas", 'Magatelas", "Mágoas e Sonhos do Povo", "Clara dos Anjos" (1948). Permanecem ainda sem editor o seu "Diário Intimo" e "Feiras e Mafuás". Suas Obras Completas foram reunidas em 17 volumes.

Para compreendermos perfeitamente a posição de Lima Barreto relativamente aos seus escritos, necessário será situá-lo dentro da história. Aos sete anos, assistiu com seu pai à assinatura da Lei Áurea e às festas populares da Abolição, retendo na memória a imagem daquela imensa multidão que aguardava a liberdade, a figura da Princesa Isabel e a visão dos carros do Imperador. Contudo, guardou uma figura triste e penosa da proclamação da República, um ano mais tarde quando seu pai foi desligado da "Tribuna Liberal", passando por sérias dificuldades.

Algum tempo depois, consegue novo emprego, graças ao Ministro da Justiça, Cesário Alvim, seu conhecido de longos anos. A partir deste episódio, compreendemos a atitude inconformista do autor de Policarpo Quaresma, com o Visconde de Ouro Preto, último baluarte do Império agonizante, e que justamente foi o autor da desgraça do pai. Lima Barreto foi amanuense do Ministério da Guerra, assíduo freqüentador de botequins, alcoólatra, com várias passagens pelo Hospício, enfim um homem fora da sociedade.

Apesar de tudo, foi o grande escritor, considerado o "romancista da Primeira República", pois reflete em seus romances os principais acontecimentos do novo regime. Penetrou fundo na ambiência de toda uma época, revelando totalmente sua mentalidade, o seu substrato social e humano. Grande maximalista, enalteceu ardorosamente a Revolução Russa de 1917. Como espiritualista, baseou sua experiência literária nas doutrinas de Taine e Brunetikre.

Lima Barreto é considerado como um dos nossos maiores ficcionistas de todos os tempos, teve uma vida frustrada, cheia de desenganos e desilusões. Criou-se em uma colônia de alienados onde seu pai era funcionário. Tentou formar-se em engenharia mas teve que desistir do curso e contentar-se com um cargo de escrevente em uma secretaria de Estado.

Escritor e jornalista não conseguiu em vida a consagração e o reconhecimento de seu valor. E consumiu-se na bebida, dipsomaníaco incorrigível, aos quarenta e poucos anos. Os contos; e romances principalmente, são que fizeram de Lima Barreto o grande escritor que ele é, pois neles estão retratados os subúrbios do Rio de Janeiro.

0 subúrbio carioca é mesmo a sua grande paisagem, que ele sentiu mesmo como poucos e como poucos descreveu. É preciso ressaltar, nele o crítico dos costumes, por vezes sarcástico e impiedoso quando retrata e Interpreta certos meios como nas páginas das "Memórias do Escrivão Isaías Caminha" e ainda no "Triste Fim de Policarpo Quaresma".

Fontes:
http://virtualbooks.terra.com.br/
http://pt.wikipedia.org/

Murilo Mendes (Cristais Poéticos)



Gilda

Não ponha o nome de Gilda
na sua filha, coitada,
Se tem filha pra nascer
Ou filha pra batisar.
Minha mãe se chama Gilda,
Não se casou com meu pai.
Sempre lhe sobra desgraça,
Não tem tempo de escolher.
Também eu me chamo Gilda,
E, pra dizer a verdade
Sou pouco mais infeliz.
Sou menos do que mulher,
Sou uma mulher qualquer.
Ando à-toa pelo mundo.
Sem força pra me matar.
Minha filha é também Gilda,
Pro costume não perder
É casada com o espelho
E amigada com o José.
Qualquer dia Gilda foge
Ou se mata em Paquetá
Com José ou sem José.
Já comprei lenço de renda
Pra chorar com mais apuro
E aos jornais telefonei.
Se Gilda enfim não morrer,
Se Gilda tiver uma filha
Não põe o nome de Gilda,
Na menina, que não deixo.
Quem ganha o nome de Gilda
Vira Gilda sem querer.
Não ponha o nome de Gilda
No corpo de uma mulher.
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O filho do século

Nunca mais andarei de bicicleta
Nem conversarei no portão
Com meninas de cabelos cacheados
Adeus valsa "Danúbio Azul"
Adeus tardes preguiçosas
Adeus cheiros do mundo sambas
Adeus puro amor
Atirei ao fogo a medalhinha da Virgem
Não tenho forças para gritar um grande grito
Cairei no chão do século vinte
Aguardem-me lá fora
As multidões famintas justiceiras
Sujeitos com gases venenosos
É a hora das barricadas
É a hora da fuzilamento, da raiva maior
Os vivos pedem vingança
Os mortos minerais vegetais pedem vingança
É a hora do protesto geral
É a hora dos vôos destruidores
É a hora das barricadas, dos fuzilamentos
Fomes desejos ânsias sonhos perdidos,
Misérias de todos os países uni-vos
Fogem a galope os anjos-aviões
Carregando o cálice da esperança
Tempo espaço firmes porque me abandonastes.
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Cantiga de Malazarte

Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,
ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casas penduradas na terra,
tiro os cheiros dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as consciências,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
não posso amar ninguém porque sou o amor,
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste à Criação
e que bole em todas as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo.
Nada me fixa nos caminhos do mundo.
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Cartão postal

Domingo no jardim público pensativo.
Consciências corando ao sol nos bancos,
bebês arquivados em carrinhos alemães
esperam pacientemente o dia em que poderão ler o Guarani.
Passam braços e seios com um jeitão
que se Lenine visse não fazia o Soviete.
Marinheiros americanos bêbedos
fazem pipi na estátua de Barroso,
portugueses de bigode e corrente de relógio
abocanham mulatas.

O sol afunda-se no ocaso
como a cabeça daquela menina sardenta
na almofada de ramagens bordadas por Dona Cocota Pereira.
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As lavadeiras

As lavadeiras no tanque noturno
Não responderam ao canto da sibila.

“Lavamos os mortos,
Lavamos o tabuleiro das idéias antigas
E os balaústres para repouso do mar...
Nele encontramos restos de galeras,
Quem nos desviará do nosso canto obscuro?
Nele descobrimos o augusto pudor do vento,
O balanço do corpo do pirata com argolas,
Nele promovemos a sede do povo
E excitamos a nossa própria sede...”

As lavadeiras no tanque branco
Lavam o espectro da guerra.
Os braços das lavadeiras
No abismo noturno
Vão e vêm.
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Montanhas de Ouro Preto
A Lourival Gomes Machado

Desdobram-se as montanhas de Ouro Preto
Na perfurada luz, em plano austero.
Montes contempladores, circunscritos,
Entre cinza e castanho, o olhar domado

Recolhe vosso espectro permanente.
Por igual pascentais a luz difusa
Que se reajusta ao corpo das igrejas,
E volve o pensamento à descoberta

De uma luta antiqüíssima com o caos,
De uma reinvenção dos elementos
Pela força de um culto ora perdido,

Relíquias de dureza e de doutrina,
Rude apetite dessa cousa eterna
Retida na estrutura de Ouro Preto.
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Poesias: Canção do Exílio, Somos Todos Poetas e A Tesoura de Toledo: http://singrandohorizontes.blogspot.com/2009/01/murilo-mendes-poesias-avulsas.html
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Fonte:
Jornal de Poesia. http://www.jornaldepoesia.jor.br/

Murilo Mendes (13 Maio 1901 – 13 Agosto 1975)

Murilo Monteiro Mendes (Juiz de Fora, 13 de maio de 1901 — Lisboa, 13 de agosto de 1975) foi um poeta brasileiro, expoente do modernismo brasileiro.

Médico, telegrafista, auxiliar de guarda-livros, notário e Inspetor do Ensino Secundário do Distrito Federal. Foi escrivão da quarta Vara de Família do Distrito Federal, em 1946. De 1953 a 1955 percorreu diversos países da Europa, divulgando, em conferências, a cultura brasileira. Em 1957 se estabeleceu em Roma, onde lecionou Literatura Brasileira. Manteve-se fiel às imagens mineiras, mesclando-as às da Sicília e Espanha, carregadas de história.

Obras
Iniciou-se na literatura escrevendo nas revistas modernistas Terra Roxa, Outras Terras e Antropofagia.

Os livros Poemas (1930), História do Brasil (1932) e Bumba-Meu-Poeta, escrito em 1930, mas só publicado em 1959, na edição da obra completa intitulada Poesias (1925-1955), são claramente modernistas, revelando uma visão humorística da realidade brasileira. Tempo e Eternidade (1935) marca a conversão de Murilo Mendes ao catolicismo. Nesse livro, os elementos humorísticos diminuem e os valores visuais do texto são acentuados. Foi escrito em colaboração com o poeta Jorge de Lima. Nos volumes da fase seguinte, Poesia em Pânico (1938), O Visionário (1941), As Metamorfoses (1944) e Mundo Enigma (1945), o poeta apresenta influência cubista, superpondo imagens e fazendo o plástico predominar sobre o discursivo. Poesia Liberdade (1947), como alguns outros livros do poeta, foi escrito sob o impacto da guerra, refletindo a inquietação do autor diante da situação do mundo.

Em 1954, saiu Contemplação de Ouro Preto, em que Murilo Mendes alterou sua linguagem e suas preocupações, reportando-se às velhas cidades mineiras e sua atmosfera. Daí por diante, o poeta lançou-se a novos processos estilísticos, realizando uma poesia de caráter mais rigoroso e despojado, como em Parábola (1946-1952) e Siciliana (1954-1955), publicados em Poesias (1925-1955).

As caracteristicas desse período atingem sua melhor realização no livro Tempo Espanhol (1959). Em 1970, Murilo Mendes publicou Convergência, um livro de poemas vanguardistas. Murilo Mendes também publicou livros de prosa, como O Discípulo de Emaús (1944), A Idade do Serrote (1968), Livro de memórias e Poliedro (1972). Ao morrer, em Lisboa, deixou inéditas várias obras.

Prêmios recebidos
Prêmio Graça Aranha, pelo livro Poemas.
Prêmio Internacional de Poesia Etna-Taormina, 1972.
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Isabel Vasconcellos (O Médico e o Marketing)


Era uma vez um médico que se sentia plenamente realizado com a sua carreira. Desde muito pequeno ele sabia que queria ser médico. A vocação já nascera com ele, vinda sabe-se lá de onde, já que o nosso Dr. Artur era filho de um humilde alfaiate e de uma costureira. Muito as máquinas do atelier de costura, que funcionava na sala da residência de seus pais, trabalharam para conseguir pagar as despesas de Artur na faculdade. O curso foi feito na Universidade pública, mas mesmo assim, Artur não tinha tempo para trabalhar, enquanto todos os seus irmãos, na sua idade, já trabalhavam, havia enormes despesas com livros e o inevitável ciúme dos irmãos que acreditavam que os pais estavam dando à Artur privilégios que eles próprios não tinham.

Mas, no fundo, todos respeitavam, na família, a extrema dedicação de Artur. Ele, é verdade, tivera a sorte de freqüentar escolas públicas (grupo municipal e ginásio estadual) numa época – fim dos anos 50 e começo dos 60 – em que o ensino nessas instituições era realmente bom em São Paulo e, por isso, e também porque se matara de tanto estudar, ele conseguira entrar na Faculdade de Medicina da USP.

Artur formou-se em 1971. Durante o seu curso, enquanto muitos dos seus colegas reservavam algum tempo para as atividades políticas que estavam, então, na moda, ele só fazia estudar. Ainda conseguiu cavar uma bolsa de estudos num curso de inglês (em troca de divulgar o tal curso entre os seus colegas de universidade) e, antes de se formar, era tão fluente em inglês quanto em português. Isso, é claro, foi muito útil para, mais tarde, as suas viagens ao Exterior, onde participava de importantes congressos médicos.

Sim, porque Artur fez uma brilhante carreira acadêmica. Formou-se com distinção, foi o melhor residente de sua turma e, embora fascinado pelos muitos mistérios que a medicina ainda não decifrara no corpo humano, e, por isso mesmo, tentado a especializar-se em oncologia, acabou virando ginecologista, intrigado pela capacidade reprodutiva das mulheres e pelo preço que as fêmeas pagavam por essa capacidade.

Mas, embora um sucesso nos serviços de saúde pública onde trabalhou e outro sucesso na faculdade onde passou a dar aulas, Artur era um desastre financeiro e político. Mal sabia se defender das armadilhas, que seus colegas invejosos de sua competência, criavam para ele. E no seu humilde consultório de bairro, acabava levando altos calotes, dada a sua generosidade e a sua compreensão para a dificuldade financeira das pacientes. Quando, no Brasil, começavam a proliferar os convênios, por deficiência do próprio sistema público de saúde, Artur credenciou-se em todos e, em breve, em seu consultório, só existiam clientes de grupos médicos (que pagavam uma miséria por consulta) e mulheres muito pobres, a quem ele atendia de graça. Suas noites eram dedicadas à pesquisa e ao estudo e ele só podia freqüentar os congressos internacionais quando convidado pelos laboratórios da indústria farmacêutica. Isto, aliás, era um prato cheio para os seus colegas acadêmicos e invejosos, que começaram a acusá-lo de ser um “vendido” para a Indústria. Só que essa estratégia não convencia muita gente pois o pobre Dr. Artur continuava levando uma vida muito modesta, andando num carro mais velho que ele, clinicando num consultório modesto de bairro, vestindo ternos puídos e calças jeans da década de sessenta. Os salários recebidos na saúde pública beiravam o ridículo, o que ele recebia do consultório também bastante ridículo, o que salvava um pouco era a remuneração de sua docência universitária, mas ele torrava tudo em livros e ajudando a família.

Assim, enquanto muitos de seus colegas enriqueciam e montavam chiques consultórios nos jardins e em outros bairros nobres da cidade, o Prof. Dr. Artur vivia mergulhado naquela simplicidade franciscana.

Mas as suas pacientes... ah, estas o adoravam. Enfrentavam longas esperas na sala de recepção de seu consultório, lendo revistas velhas e capengas de tanto serem manuseadas, para ter o privilégio de seus cuidados. Ele sempre atrasava as consultas. Porque queria ouvir. E ouvia, as condições de vida, os dramas pessoais, as frustrações e as ambições de suas pacientes. Porque ele, quanto mais estudava e aprendia, mais acreditava que a saúde é um tripé: o físico, o emocional e o social. Assim, não via suas pacientes apenas como um corpo, um útero, um par de ovários. Mas procurava ir muito mais fundo, compreendendo como o psicológico e o social estariam atuando no físico.

Teve poucas namoradas. Tinha pouco tempo para elas, muito pouco tempo, e elas logo se cansavam e iam procurar alguém mais dedicado.

Quando, no fim dos anos oitenta, surgiram os primeiros computadores domésticos, ainda muito caros, Artur gastou todo o seu salário de dois meses na faculdade para conseguir um e, um par de anos depois, era um dos primeiros brasileiros, fora das instituições universitárias, a ter acesso à Internet domesticamente.

Um dia, no meio dos anos 90, recebeu um convite para participar de um programa de TV. Artur ia recusar. Achava uma bobagem ir à televisão. Mas a produtora do programa conseguiu convencê-lo, dizendo que professores sérios como ele poderiam prestar um grande serviço aos telespectadores através de uma informação decente sobre saúde.

Foi.

No dia seguinte o telefone de seu consultório estava congestionado. Milhares de mulheres queriam se consultar com ele. A secretaria pirou. Contou a ele que ouvira de muitas delas coisas como o seguinte: “Eu dobro o valor da consulta pra você me arrumar um horário com ele e ainda te levo um presente”.

Dr. Artur, em vez de ficar contente com aquele súbito sucesso, ficou profundamente deprimido. Então bastava aparecer na TV e ele se tornaria um médico reconhecido e disputado pelas pacientes? Ora, isso não tinha sentido. O que importava ao nosso herói era o acúmulo de conhecimento científico, pelo qual ele tanto lutara nas últimas décadas.

Para o público, porém, quem aparecia na TV era o melhor. O público, um pouco ingenuamente, tinha a tendência de acreditar que a televisão só levasse ao ar aqueles profissionais de alto gabarito e conhecimento. No caso do Dr. Artur, isso era verdade. Mas muitas vezes não era. Muitas vezes o produtores de TV levavam quem estivesse mais próximo deles por qualquer razão ou quem tivesse contratado a melhor assessoria de imprensa.

Mas agora ele estava num dilema. Nunca se recusara a atender ninguém. Como atender, no entanto, todas aquelas centenas de mulheres que ligavam sem parar para o consultório?

A secretária lhe deu a solução:

- Doutor, o senhor mesmo disse que os ginecologistas recém formados não têm, muitas vezes, a oportunidade de montar um consultório. Por que o senhor não convida alguns deles para vir trabalhar aqui e assim o senhor divide as consultas com eles.

- Mas estas pacientes novas querem se consultar com o médico que elas viram na Tv e este sou eu.

- Bobagem – respondeu a secretária – Em todas as clínicas dirigidas por médicos famosos, desses que vivem aparecendo na mídia, as pacientes são atendidas pelos médicos assistentes e ficam muita satisfeitas. Quando o médico famoso aparece durante a consulta, então, elas quase desmaiam de emoção. O senhor precisava fazer a mesma coisa. Ficaria rico e – aqui ela deu um risinho maroto – poderia aumentar o salário da sua secretária.

- Como é que você sabe de tudo isso?

- Vejo nas revistas.

O que animou o Dr. Artur foi a possibilidade, afinal, de ajudar os colegas recém formados e, inclusive, continuar de uma certa maneira a ensiná-los, através de sua própria experiência. Montou uma pequena clínica e contratou mais 3 médicos. Mas esta também ficou insuficiente quando, pela segunda vez, ele aceitou ir ao programa de TV. Três anos depois o nosso modesto Dr. Artur era fonte disputada pelos jornalistas de rádio e televisão. Montou uma clínica enorme, com 15 médicos além dele e adquiriu também modernos equipamentos para poder realizar os exames necessários lá mesmo, tendo contratado também os médicos e técnicos para a realização dos exames. Ficou rico, quase milionário e pôde comprar o carro esporte de seus sonhos. Havia uma fila de mulheres se oferecendo, loucas para casar com o médico famoso e rico. No entanto, jamais se casou e jamais deixou de atender suas pacientes pobres. Quando as ricas eram atendidas pelos assistentes e acreditavam que o famoso doutor só atendesse as ainda mais ricas que elas, ele estava atendendo de graça...

Mas, no meio médico, nos anos seguintes, quando alguém citava o Dr. Artur, sempre havia outro alguém para dizer:

- Ah, esse, além de vendido pra indústria, é apenas uma grande marqueteiro.

Fonte:
http://www.isabelvasconcellos.com.br/
Montagem da imagem = José Feldman

Isabel Vasconcellos (13 Maio 1951)


Isabel Vasconcellos (SãoPaulo, 13 de maio de 1951) é uma escritora e apresentadora de televisão brasileira. Especializada na análise da condição social da mulher e em saúde feminina, seus livros tratam destes temas mas são também entremeados de contos de ficção.

Em seus programas de televisão, realizados na Gazeta, Record e Rede Mulher, entrevistou líderes feministas e alguns dos maiores médicos acadêmicos do Brasil.

Biografia

Isabel de Almeida Vasconcellos é a filha caçula e temporona de Alfredo Fomm de Vasconcellos (1908-1987) e de Wanda Gonçalves de Almeida Vasconcellos (1912-2007). Seu pai era cinematografista e foi pioneiro em técnicas de cinema 16mm no Brasil. Sua mãe era modista.

Um de seus irmãos, Ronaldo Alvan (1936-2004) foi pioneiro da televisão brasileira e atuou nas maiores redes televisivas.

Isabel aprendeu a filmar, fotografar e revelar fotografias com apenas 8 anos de idade. Começou a escrever muito cedo, mas só publicou livros a partir de 2000.

Começou a carreira como repórter e fotógrafa de um jornal de bairro, escreveu crônicas assinadas para um jornal de grande circulação entre 1977 e 1984. Foi redatora publicitária e estreiou na televisão em 1985. De lá para cá, realizou 780 programas sobre a condição da mulher e 1.427 sobre a saúde feminina.
A partir de 2007, apresenta o programa "Só Saúde" na primeira TV por Internet do Brasil: a All TV .

Produção literária
2000, Histórias de Mulher, Editora Scortecci
2002, 50 Anos da Rosa, Editora Universal
2003, A Menstruação e Seus Mitos, Editora Mercuryo
2005, Sexo Sem Vergonha, Soler Editora
2006, Todas as Mulheres São Bruxas, Editora Segmento
2007, Depressão na Mulher (co-autoria com Kalil Duailibi), Editora Segmento

Fonte:
http://pt.wikipedia.org/

Roger Zelazny (O Senhor Da Luz)


Os seus seguidores chamavam-lhe Mahasamatman e diziam que era um deus. Ele, porém, preferia deixar de lado “Maha” e “atman” e intitulava-se Sam. Nunca pretendeu ser um deus, mas também nunca o negou – A ação deste livro decorre muito depois da morte da Terra; um punhado de homens num planeta colonizado alcançou o domínio da tecnologia. Com ela, adquiriram a imortalidade e poderes divinos e governam o seu mundo como os deuses do panteão hindu. Kali, Deusa da Destruição; Yama, Senhor da Morte; Krishna, deus da Luxúria. Aquele que foi Siddhartha e é agora Mahasamatman, Subjugador dos Demónios, Senhor da Luz, luta contra todos eles. Esta obra de Roger Zelazny, coloca uma questão interessante. E se através da tecnologia, uma vez que se esta for muito superior torna-se indistinguível da magia, os homens se transformarem em Deuses e governarem o mundo. Será que são deuses, ou as suas fraquezas humanas virão à superfície e estarão refletidas nos seus actos. Qual a distinção entre o divino e o mortal? Além de ser uma introdução muito interessante ao panteão hindu, relativamente pouco conhecido na cultura ocidental, este livro apresenta as dúvidas que um homem que não quer ser deus têm. Se fossem vocês e tivessem a possibilidade de se tornarem deuses, recusariam? Abarcando todo um vasto período na história deste mundo, desde a adoração profunda de massas ignorantes pelos seus deuses, até à tomada de consciência de um povo ajudada pelo homem que não quis ser deus, este livro deixa-nos importantes questões sobre a religião, o divino, o sagrado, e a forma como encaramos estas questões agora e no passado.

Um verdadeiro clássico da literatura de ficção cientifica, galardoado com o Prémio Hugo.

Fontes:
http://www.netsaber.com.br/resumos/

Roger Zelazny (13 Maio 1937 – 14 Junho 1995)



Zelazny nasceu em Euclid, Ohio, EUA, a 13 de maio de 1937, filho único do imigrante polonês Joseph Frank Zelazny e irlandesa-americana Josephine Flora Sweet.

Na escola secundária, Roger era o editor do jornal escolar e participou do Clube de Escrita Criativa. No outono de 1955, ele começou a freqüentar a Western Reserve University e graduado como bacharel em inglês, em 1959. Ele foi aceito para Columbia University em Nova Iorque e especializou-se no drama Elizabethano Jacobeano, se formando com um mestrado em 1962. Entre 1962 e 1969 ele trabalhou para a Administração de previdência social norte-americana em Cleveland, Ohio e então, em Baltimore, Maryland que gastava as noites escrevendo ficção científica.

Ele progrediu de contos a noveletas para novelas e finalmente para trabalhos compridos de romance por 1965. No dia 1 de maio de 1969, ele abandonou tudo para se tornar um escritor de tempo integral, e depois disso concentrou-se em escrever romances para manter a renda dele. Durante este período, ele era um sócio ativo de voz ativa na Baltimore Science Fiction Society no qual os sócios incluíam outros escritores como Jack Chalker, Joe e Jack Haldeman entre outros.

Zelazny esteve duas vezes casado, com Sharon Steberl em 1964 (e divorciado, nenhuma criança) e Judith Alene Callahan, em 1966. Roger e Judy tiveram dois filhos, Devin e Trent, e uma filha, Shannon. Na hora da morte dele, Roger e Judy estavam separados e ele estava vivendo com a notável escritora Jane Lindskold.

Seu primeiro fanzine surgiu como parte um da história " Conditional Benefit", considerando que a primeira publicação profissional dele e a venda foi o conto de fantasia "Mr. Fuller's Revolt"(1954). Como um escritor profissional, os trabalhos de estréia dele foram a publicação simultânea de " Passion Play e " Horseman!" . Passion Play foi escrito e vendido primeiro. A primeira história dele para chamar a atenção era " A Rose for Ecclesiastes ", publicada em The Magazine of Fantasy and Science Fiction.

Roger Zelazny também era sócio dos Swordsmen and Sorcerers' Guild of America (SAGA), um grupo de escritores de Fantasia Heróica fundado nos anos sessenta, alguns dos quais os trabalhos eram colocados em antologias em Lin Carter's Flashing Swords! anthologies.

Zelazny morreu em Santa Fé, México, em 14 de junho de 1995, com 58 anos, de câncer coloretal. Outras fontes indicaram câncer do pulmão incorretamente.
Tradução = José Feldman

Kathleen Jamie (13 Maio 1962)


Kathleen Jamie é poeta escocesa, de Currie, Edimburgo, na Escócia.

Seu primeiro livro foi Black Spiders (Aranhas Pretas), publicado em 1982. Considerada uma das poetisas contemporâneas mais talentosas no Reino Unido , ela ganhou o Forward Poetry Prize, em 2004, pela poesia The Tree House (A Casa da Árvore). Outros livros de poesia incluem The Queen of Sheba (A Rainha de Sheba) em 1994, The Way We Live (1987), Jizzen (1999), A Flame in Your Heart (Uma Chama Em Seu Coração), e The Autonomous Region (A Região Autônoma). Constantemente, a escritura dela é centrada em uma observação íntima de, e empatia com, a natureza. Em 2005 ela publicou, com grande aclamação crítica, uma coleção de escritas de não-ficção, Findings.

Ela contribuiu e co-editou várias antologias, inclusive The Glory Signs: New Writing Scotland (Os Sinais de Glória,: Nova Escrita Escocesa) , vol 16 (1998). Ela é atualmente uma Conferencista de meio período em Escrita Criativa na Escola de Inglês na Universidade de St. Andrews, e vive em Fife.
(tradução = José Feldman)

Wallace Breem 13 Maio 1926 - 12 Março 1990)



Wallace Wilfred Swinburne Breem (1926–1990) era bibliotecário britânico e escritor, Bibliotecário e Guardião de Manuscritos da Inner Temple Law Library até a aua morte, mas talvez mais amplamente conhecido pelos seus romances históricos , inclusive Eagle in the Snow(1970).

À idade de 18, Breem entrou na Escola de Treinamento dos Oficiais do Exército Indiano , e em 1945 era comissionado como oficial do exército no Corpo de Guias, um destacamento de elite do Exército Indiano.

Depois da separação de Índia em 1947, Breem voltou à Inglaterra e celebrou uma variedade de trabalhos que incluíram operário em um curtume, assistente para um cirurgião veterinário, e cobrador de alugueis no Lado Oriental de Londres. Ele uniu o pessoal de Inner Temple Library eventualmente em Londres, em 1950.
Breem era um sócio fundador de BIALL (Associação britânica e irlandesa de Bibliotecários Jurídicos), e várias vezes ocupou os escritórios de Secretário, Tesoureiro, Presidente, Vice-presidente, e Presidente naquela organização.

Escritas de Non-ficção
Breem fez muitas contribuições notáveis a trabalhos de bolsa de estudos, inclusive o Manual de Cargo de bibliotecário jurídico, a Bibliografia de Literatura inglesa de New Cambridge, e documentos vários, relatórios, artigos.

A Sketch of the Inner Temple Library
Bibliography of Commonwealth Law Reports (1991)

Romances
Eagle in the Snow (1970, )
A Filha do Delegado (1975)
O Leopardo e o Abismo (1978 ).
(tradução José Feldman)

Daphne Du Maurier (Rebecca)



Resumo

No clássico de Daphne du Maurier, suspense romântico, o novo narrador é definido por seu sentido de desejo. É este sentido de insuficiência que lhe dá características distintas e lhe faz ser original. Como obedece desejos, perde seu sentido de identidade, tornando se o mesmo que um espectro. Está colocado então de maneira que, enquanto supera finalmente o fantasma, o viúvo de Rebecca, Manderley se queima.

Isto explica também sua irritação ao revelar que o Maxim matou sua primeira esposa.
Nietzsche escreve em seu ensaio sobre a moralidade do mestre e do escravo, todos estes instintos que não acabam, voltando sempre ao seu interior, transformando a substância da alma. É então, esta insuficiência do narrador que lhe dá até mais identidade. Começa seu talhe como o companheiro da pretensiosa Sra. Pick-up Funnk, cujo objetivo e interesse é ver o Maxim rico. Descreve sua posição como inferior e subserviente à ela. Sua cegueira subseqüente para Maxim é tão forte quanto a curiosidade de Pick-up Funnk. Diz-se sentido com o novo, e inexperiente com si próprio. Embaraçado em se livrar de Pick-up Funnk e Maxim, porque a vê em um papel maternal (e conseqüentemente por sua própria reflexão).

No segundo capítulo de Rebecca, o narrador atesta a mudança que ocorreu dentro dela, porque consegue cumprir o seu destino. Diz que supõe que sua dependência dela o fêz forte. Anota como diferente ficou da menina tímida que veio antes a Manderly.

Vai então saber comparar seu perfil anterior com a figura de Rebecca, desta figura que veio substituir. O narrador faz esta transição de empregada a patroa negligente, superação da Sra. Pick-up Funnk, no mesmo recipiente em que põe o fantasma do Maxim.

Excerto do livro Rebecca (Capítulo I)

À Noite Passada sonhei que tinha ido novamente a Manderley. Pareceu-me ter ficado por algum tempo diante do portão de ferro, fechado a cadeado. Chamei, no meu sonho, pelo porteiro; não obtive resposta; espiando com mais atenção por entre os varões ferrujentos, vi que a portaria estava deserta.

Nenhuma fumaça na chaminé; as janelazinhas se abriam numa atitude de tristeza infinda. Então, como acontece nos sonhos, senti-me de súbito possuída de poderes sobrenaturais, e transpus, qual um espírito, aquela barreira. O caminho serpenteava à minha frente, com as mesmas curvas de outrora; à medida que avançava, porém, notei mudança; mais estreito e descuidado; não era mais o caminho que tínhamos conhecido. Fiquei perplexa a princípio, sem nada compreender; e só quando tive de baixar a cabeça para não roçar um galho de árvore percebi o que acontecera. A Natureza havia reconquistado os seus direitos, e pouco a pouco, na sua maneira insidiosa, ia abafando o caminho. A vegetação invasora triunfava. Plantas sombrias e rebeldes sobre ele debruçavam seus ramos. As faias de troncos lisos e esbranquiçados, crescidas muito próximas umas das outras, entrelaçavam a galharia, fechando-se em abóbada sobre a minha cabeça. E havia ainda outras árvores que eu não reconhecia: carvalheiras atarracadas, olmos tortuosos, emersos da terra silenciosa em conjunto com outras plantas que me pareciam monstruosas e de que eu não tinha recordação.

O caminho de outrora transformara-se em simples trilha, com o pedregulho desaparecido sob a invasão de musgos e grama. Galhos rasteiros embaraçavam-me a marcha; raízes nodosas pareciam garras macabras... Dispersos aqui e ali, em meio a essa vegetação desordenada, eu reconhecia arbustos que nos tinham servido de marcos em nosso tempo; criaturas de beleza e graça, famosas hortênsias de tufos azuis. Como nada lhes houvesse embaraçado o desenvolvimento, asselvajaram-se, tornaram-se primitivas, elevando-se a alturas incríveis, mas sem flores, de folhagem sombria e feia como a das parasitas anônimas que ao lado cresciam. Mais e mais, agora para leste, depois para oeste, desdobrava-se a simples trilha que fora outrora o nosso caminho. Sumia-se às vezes, para ressurgir de novo de sob um tronco deitado, ou para além de pequenos brejais criados pelas chuvas do inverno. E nunca me pareceu tão longa a distância, como se as milhas também se houvessem multiplicado. E a senda conduzia provavelmente a algum ermo labirinto selvagem, não mais à casa que eu tinha em vista. Não obstante, dei de súbito com ela: o crescimento louco da vegetação ocultara-ma até o último momento. Entreparei. Meu coração palpitava acelerado; um ardor nos olhos impedia-me as lágrimas.

Ali estava Manderley, nossa Manderley, reservada e silenciosa como sempre; a pedra gris rebrilhava ao luar do meu sonho; nas vidraças refletiam-se o terraço e o gramado verde... O Tempo não quebrara a perfeita simetria daqueles muros, nem o encanto daquele sítio maravilhoso — jóia no côncavo da mão de alguém.

O terraço erguia-se a cavaleiro do gramado que se projetava até o mar; voltando-me pude ver o lençol prateado, tão calmo sob o olhar da lua, de uma placidez de lago que os ventos não perturbam. Não havia ondas para encrespar aquele mar de sonho, nem nuvens a obscurecerem o suave palor do céu. Olhei de novo para a casa: embora permanecesse inviolada, como se a tivéssemos deixado na véspera, o jardim em torno obedecera à lei da jângal, como sucedera com o caminho. Os rododendros elevaram-se a cinqüenta pés de altura, enlaçados a outras plantas, em estranho conúbio com arbustos sem nome, pobre ralé a arrastar-se-lhes humildemente sobre o raizame.

Um lilazeiro se unira a uma faia; e para ligá-los ainda mais intimamente, a hera maldosa — eterna inimiga da graça — enroscara-se à volta deles. Começava a hera a preponderar naquele jardim perdido, com os longos tentáculos avançando sobre a relva, rumo à casa. Plantas invasoras, vindas de sementes muito tempo adormecidas sob as árvores, viçavam agora, desgraciosamente, em companhia da hera; sugeriam a forma de ruibarbos gigantes emersos da relva macia outrora pintalgada de narcisos. Urtigas por toda parte — a vanguarda do exército. Cobriam o terraço, espalhavam-se pelas alamedas do jardim e, frouxas, encostavam-se até às janelas da casa. Sentinelas descuidadas, pois suas fileiras tinham sido rompidas em
muitos pontos pelas plantas loucas que ali exibiam a sua vulgaridade. Cheguei até o terraço, pois as urtigas não constituem obstáculo a quem sonha — no meu encantamento nada podia deter-me. O luar tem grande influência sobre a imaginação, mesmo a imaginação de quem sonha. E ali, queda e silenciosa, eu juraria não ser a casa uma concha morta, mas um ser que respirava, que palpitava de vida como outrora. A luz coava-se pelas vidraças, as cortinas balouçavam-se com suavidade no relento da noite, e lá na biblioteca a porta estaria entreaberta como a deixáramos, com o meu lenço sobre a mesa, ao lado do vaso com rosas do outono.

O quarto trairia a nossa presença. Livros, um número já lido do The Times. Cinzeiros, um toco de cigarro; sobre as cadeiras, almofadas denunciando a pressão de nossas cabeças; tições envoltos de cinza branca na lareira, ainda mornos. E Jasper, o nosso querido Jasper, estirado sobre o tapete, de cauda erguida ao perceber os passos do seu senhor. Uma nuvem erradia velou a lua, mão de sombra a cobrir um rosto. Com o desaparecer da lua foi-se-me a ilusão; as
luzes das janelas se apagaram. A casa fizera-se concha vazia, sem alma, sem suspiros ou evocações do passado. Um túmulo, a casa; nossos sofrimentos e temores sepultos em ruínas. Impossível a ressurreição. Não me viriam pensamentos amargos, quando em minhas horas de insônia evocasse Manderley. Pensaria na mansão como ela o fora.

Teria recordações do jardim-das-rosas no estio, dos pássaros a cantarem pela manhã. Do chá sob o castanheiro, do murmúrio do mar subindo até nós. Lembrar-me-ia do Vale Feliz e do lilazeiro em flor. Essas coisas eram permanentes, não podiam esvair-se nunca. Eram memórias felizes. Tudo isto resolvi eu no meu sonho, enquanto a sombra velava o rosto da lua. Porque, como é comum entre os que sonham, eu sabia estar sonhando.

Achava-me, na realidade, a centenas de milhas dali, em terra estranha, e acordaria dentro de poucos segundos num pequeno quarto de hotel, consolador justamente pela falta de ambiente. E daria um suspiro, e me espreguiçaria, e ao abrir os olhos ficaria admirada de ver brilhar o sol num céu metálico, tão diferente do meigo luar do meu sonho... O dia se estenderia diante de nós, longo sem dúvida, sem acontecimentos, mas impregnado de certa quietude, duma tranqüilidade feliz que dantes não conhecêramos. Não falaríamos sobre Manderley, eu não contaria o meu sonho. Porque Manderley não era mais nossa. Manderley não mais existia.

Fontes:
Daphne Du Maurier. Rebecca. Abril Cultural.
http://www.netsaber.com.br/resumos/
Imagem = http://kennebunkfreelibrary.wordpress.com/

Daphne du Maurier (13 Maio 1907 – 19 Abril 1989)



Daphne du Maurier (Londres, 13 de maio de 1907 — Cornwall, 19 de abril de 1989) foi uma escritora britânica.

Era filha de Gerald Du Maurier, famoso ator inglês, e neta de George Du Maurier, escritor de renome, autor de Trilby e Peter Ibbetson.

Daphne foi criada e educada dentro do lar, segundo os padrões comuns às famílias abastadas da época. Aos dezoito anos viajou para Paris, onde permaneceu durante seis meses, aprendendo a língua e literatura francesa. Na adolescência, escrevia contos e poemas, revelando influências de Katherine Mansfield, Mary Webb e Guy de Maupassant.

Em 1931 publicou o seu primeiro romance, The Loving Spirit (O Espírito Amante), que foi muito bem aceite pela critica. Foi por causa desse primeiro livro que conheceu seu futuro marido, Frederick Arthur Montague Browning, jovem oficial do exército inglês que, impressionado com o romance, quis conhecer a autora. Apaixonaram-se e casaram em 1932, passando a viver numa elegante casa de campo em Hampshire. Em Hampshire, continuou a escrever seus romances, a maioria deles best-sellers românticos que lhe trouxeram fama e fortuna.

Ao longo de sua carreira, escreveu mais de vinte obras, entre as quais se destacaram: Jamaica Inn (Uma Taberna na Jamaica), em 1936; Rebecca, em 1939, uma deliciosa história de amor e mistéio que já vendeu mais de um milhão de exemplares; The King's General (O General do Rei), em 1946; e The Parasites (Os Parasitas), em 1949, dentre outros.

Nos últimos anos de vida, deixando de lado os temas basicamente sentimentais, procurou desenvolver outros gêneros. Assim, dentro da ficção científica, escreveu o conto The Birds (Os Pássaros), onde as aves se organizam e questionam o domínio do homem sobre a natureza, e The House on the Strand (O Espião do Passado), onde utiliza o tema da viagem através do tempo.

Grande parte da sua obra foi adaptada para o cinema, principalmente pelo mestre do suspense Alfred Hitchcock, que filmou Jamaica Inn, The Birds e Rebecca, pelo qual ganhou um Oscar de melhor argumento adaptado.

Daphne du Maurier foi nomeada Dama do Império Britânico. Faleceu aos 81 anos de idade e, conforme seu desejo, foi cremada e suas cinzas foram jogadas nas colinas próximas a sua casa.

Rebecca guarda muitas semelhanças com um romance brasileiro publicado quatro anos antes: A Sucessora, de Carolina Nabuco, obscuro livro que só ganhou notoriedade por ocasião de uma adaptação em forma de telenovela exibida pela Rede Globo em 1978.

Bibliografia
Ficção
The Loving Spirit (1931)
I'll Never Be Young Again (1932)
Julius (1933)
Jamaica Inn (1936)
Rebecca (1938)
Happy Christmas (1940) (conto)
Come Wind, Come Weather (1940) (coleção de contos)
Frenchman's Creek (1941)
Hungry Hill (1943)
The Years Between (1945)
The King's General (1946)
September Tide (1948)
The Parasites (1949)
My Cousin Rachel (1951)
The Apple Tree (1952)
Mary Anne (1954)
The Scapegoat (1957)
Early Stories (1959)
The Breaking Point (1959)
Castle Dor (1961)
The Birds and Other Stories (1963) (republicação de The Apple Tree)
The Flight of the Falcon (1965)
The House on the Strand (1969)
Not After Midnight (1971) (short story collection, AKA Don't Look Now[17])
Rule Britannia (1972)
"The Rendezvous and Other Stories" (1980) (short story collection)

Não-Ficção
Gerald (1934)
The du Mauriers (1937)
The Young George du Maurier (1951)
The Infernal World of Branwell Brontë (1960)
The Glass-Blowers (1963)
Vanishing Cornwall (1967)
Golden Lads (1975)
The Winding Stairs (1976)
Growing Pains -— the Shaping of a Writer (1977)
Enchanted Cornwall (1989)

Fontes:
http://en.wikipedia.org/
http://pt.wikipedia.org/
Foto = http://www.cornwall-calling.co.uk/

Bruce Chatwin (13 maio 1940 – 18 janeiro 1989)


Nascido em Sheffield, Inglaterra a 13 de maio de 1940, e falecido em Nice, França, a 18 de janeiro de 1989,era um promissor especialista em arte moderna da Sotheby's de Londres quando decidiu abandonar a carreira para seguir uma vida nômade, em viagens e aventuras que relatou em vários livros. Morreu em 1989.

Bruce Chatwin, um escritor-viajante, numerava as páginas de cada caderno novo, escrevia seu nome e pelo menos dois endereços, e uma promessa de recompensa no caso de perda do seu Moleskine. “Perder meu passaporte era a menor das minhas preocupações, perder um caderno de anotações seria uma catástrofe”, dizia ele.

Chatwin, a moral em movimento
(Revista Bravo!, 01 de setembro de 2005)

É clichê dizer de um livro de não-ficção que tenha trama fluente e personagens marcantes que “se lê como romance”. Os romances do inglês Bruce Chatwin (1940-1989) se lêem como obras de não-ficção, como reportagens – de jornalismo literário, por certo – que se destacam pela quantidade e precisão das informações, pela sensação de realidade que dá ao que descreve. Isso fica muito evidente em Colina Negra, tradução de seu romance On the Black Hill, de 1983. Há um apuro visual na narrativa, uma curiosidade por todos os detalhes daquelas vidas, que um jornalista do porte de um Gay Talese assinaria com júbilo.

Não é o melhor romance de Chatwin, um especialista em arte da Sotheby’s que no início dos anos 70 abandonou seu status e, depois de também abandonar a faculdade de arqueologia, foi peregrinar pelas diversas culturas e escrever livros sobre elas, na maravilhosa tradição dos viajantes ingleses, de John Ruskin e Richard Burton, de Charles Darwin e Jan Morris, de estetas e naturalistas que fizeram da escrita seu passaporte sensível pelas fronteiras. Daí veio Na Patagônia, seu extraordinário livro sobre a busca dos fósseis de um brontossauro; O Vice-Rei de Uidá, sobre um comerciante de escravos brasileiros; e Utz, a história de um judeu em Praga que coleciona porcelanas – para citar seus três melhores livros, pela ordem de preferência, todos os quais já traduzidos pela Companhia das Letras.

Colina Negra é o relato de dois gêmeos, Lewis e Benjamin Jones, que vivem numa zona rural do País de Gales, fronteira com Inglaterra. Tal sinopse soa como um romance de Thomas Hardy, a quem, de fato, Chatwin cita, mas não espere pelos aprofundamentos psicológicos do genial autor de Tess d’Ubervilles. Chatwin percorre os 80 anos de vida dos irmãos quase como uma sucessão de vinhetas, em parágrafos curtos, sem tentar recriar diretamente os estados de ânimo, mas mostrando nas linhas e entrelinhas a influência da passagem do século sobre a vidinha daquela comunidade. Por mais que ela pretenda estar imune à história, não consegue.

Um trecho que dá boa idéia das virtudes literárias de Chatwin: “Certo dia, Lewis Jones saiu em perseguição a um carneiro fugido. Chegou a um ribeiro, próximo a uma mata de aveleiras, onde a água deslizava numa rocha. Ali havia pilhas de ossos brancos trazidos pelas enchentes de inverno. Olhando por entre as folhas, viu Rosie Fifield, de vestido azul, sentada do outro lado da ravina. Sua roupa estava secando nas moitas de tojo, e ela estava absorvida na leitura de um livro. Um menino correu até ela e colocou um botão-de-ouro sob seu queixo. ‘Por favor, Billy!’, disse ela afagando-lhe os cabelos. ‘Agora chega!’, e o menino sentou-se no chão para fazer um colar de margaridas. Lewis ficou observando-os por dez minutos, paralisado como se estivesse vendo uma raposa brincando com seus filhotes. Depois voltou para casa.” Chatwin tem um poder de descrição tamanho que primeiro sentimos o frescor de suas plantas e riachos e depois captamos o que há de travado e tenso na existência dessas pessoas; com tal contraste, com tal combinação de clima e sugestão, ele nos prende até o fim.

Há sempre um segredo nas histórias de Chatwin, um mistério tão fundamental quanto insondável, e em Colina Negra é: por que ficamos onde estamos? Os velhinhos gêmeos cresceram sem quase nunca ir a um raio de distância superior a 35 km de sua fazenda. Ora, Chatwin acreditava exatamente no oposto disso: para ele a condição humana – para citar uma expressão de um escritor que admirava, André Malraux – é o estar em movimento, libertando-se continuamente do acostumar e acomodar, pois a rotina atrofia a percepção. Por isso seu olhar se detém mais em Lewis, um sujeito rude e taciturno, que exalta a limitação de sua vida, mas simultaneamente é um admirador fanático de aviões, os quais vê cruzar o céu e apontar o invisível. Apenas o contrapõe a Benjamin, que é mais amável e tímido e exercita a imaginação de outra forma: lendo livros como os de Hardy. E um dia Benjamin é convocado para a Primeira Guerra, onde sofre humilhações: justo para ele, o mais sensível, a história abriu as portas com um chute de coturno.

Há um agudo senso de drama em Chatwin e, no entanto, ele não censura seus personagens, ainda que nos mostre uma comunidade perdida entre bebidas e missas. A chegada do automóvel, por exemplo, sinaliza o fim de um modo de existência para aquele grupo de camponeses. Chatwin, porém, não demoniza o progresso, como seria ao gosto das culturas periféricas; nos dá inclusive a brecha para pensar que, se aquelas pessoas não tivessem tanto medo do novo, poderiam lidar melhor com ele. A bela seqüência da morte de sua mãe, por exemplo, mostra ao mesmo tempo seu sofrimento e sua alienação. Ela morre segurando a mão de ambos. De manhã, os gêmeos “cobriram as colméias com crepe preto, para anunciar às abelhas que a mãe se fora”. Na noite seguinte, tomaram o “banho semanal” juntos, depois vestiram os camisões que pertenceram ao pai e foram dormir em harmonia um com o outro. Chatwin escreve: “Unidos finalmente pela memória de sua mãe, esqueceram q ue toda a Europa estava em chamas”. Esses tipos de detalhes poderosos, apresentados de maneira direta, com concisão poética, só se encontram em autores como Hemingway.

Chatwin, que morreu de Aids no sul da França, sob os cuidados da mulher, era um viajante, não um turista, e correu o planeta, do Afeganistão à Patagônia, do Nepal à Austrália, com seu “moleskine” à mão (o caderno de viagens para anotações e desenhos), e como tal estava interessado na diversidade e na história, não num modelo de sociedade que seria igual em toda parte. Mas jamais se rendeu à visão antropológica que glamouriza o estranho e relativiza todos os valores; era um humanista, amante da arte e da natureza, e não um romântico desses que se negam a aceitar que nenhum cultura é perfeitamente pura. Superou a dicotomia entre colonialistas e anticolonialistas.

Assim, embora pareça tão diferente de seus outros livros, marcados por enredos exóticos e reflexões eruditas, Colina Negra é Chatwin em essência. Seu estilo oscila entre o romance e a literatura de viagem, entre vidas interiores e cenários exteriores, e seus personagens estão sempre à procura de uma explicação única, de uma chave-mestra que acabe com os dilemas e tragam o conforto da revelação. E ela nunca vem. Como uma sonata de Chopin, da famosa cena de Na Patagônia (livro já incluído entre os Penguin Classics), sua escrita tem uma tônica melancólica, ainda que na superfície uma miríade de eventos e acentos excitem a imaginação.

Fontes:
http://www.danielpiza.com.br/interna.asp?texto=1889
http://www.companhiadasletras.com.br/20anos/autores.php3?autor=Bruce%20Chatwin
http://montalvomachado.com.br/blog/?cat=15
http://en.wikipedia.org/

Alphonse Daudet (Woodstown)



O lugar era magnífico para construir uma cidade. Seria preciso, apenas, limpar as margens do rio, abatendo uma parte da floresta, da imensa floresta virgem enraizada ali desde o nascimento do mundo. Então, abrigada em volta por colinas arborizadas, a cidade desceria até o cais de um porto magnífico, instalado na foz do Rio Vermelho, a somente quatro milhas do mar.

Assim que o governo de Washington deu a concessão, carpinteiros e lenhadores puseram-se ao trabalho; mas você nunca viu uma floresta parecida. Enganchada ao solo por todos os seus cipós, por todas as suas raízes, quando nós abatíamos de um lado, ela crescia do outro, rejuvenescendo de seus ferimentos; e cada golpe de machado fazia sair brotos verdes. As ruas, os lugares da cidade recém traçados eram invadidos pela vegetação. As paredes cresciam mais devagar do que as árvores e, assim que construídas, desabavam sob o esforço das raízes sempre vivas.

Para vencer esta resistência na qual diminuíam o ferro dos machados e dos grandes machados, fomos obrigados a recorrer ao fogo. Dia e noite uma fumaça sufocante encheu a densidade das clareiras, enquanto as grandes árvores flambavam como círios. A floresta ainda tentou lutar, retardando o incêndio com enxurradas de seiva e com a frescura sem pressa de suas folhagens. Finalmente chegou o inverno. A neve caiu como uma segunda morte sobre os grandes terrenos cheios de troncos enegrecidos, de raízes consumidas. De agora em diante, poderíamos construir.

Logo uma cidade imensa, toda em madeira como Chicago, estendia-se pelas margens do Rio Vermelho, com suas grandes ruas alinhadas, numeradas, dispostas em círculo em torno das praças, sua Bolsa, seus mercados, suas igrejas, suas escolas e toda uma aparelhagem marítima de galpões, de alfândegas, de docas, de entrepostos, de canteiros de construção para os navios. A cidade de madeira, Woodstown - como a chamávamos - foi rapidamente povoada pelos ocupantes de cidades novas. Uma atividade febril propagou-se por todos os seus bairros; porém, sobre as colinas circundantes, dominando as ruas cheias de pessoas e o porto abarrotado de navios, uma massa sombria e ameaçadora se estendia em semicírculo. Era a floresta que olhava.

Ela olhava esta cidade insolente, que havia tomado seu lugar à margem do rio, e três mil árvores gigantescas. Toda Wood'stown estava feita com sua vida. Os altos mastros que se balançavam ao longe no porto, estes telhados inumeráveis abaixados uns em direção aos outros, até a última cabana do mais afastado subúrbio, ela havia fornecido tudo, mesmo os instrumentos de trabalho, mesmo os móveis, medindo seus serviços somente pelo comprimento dos galhos. Por isso que rancor terrível ela guardava contra esta cidade de ladrões!

Enquanto o inverno durou, não nos apercebemos de coisa alguma. As pessoas de Wood'stown ouviam às vezes um estralo surdo nos seus telhados, nos seus móveis. De tempos em tempos, uma parede rachava, ou o balcão de loja partia-se em dois ruidosamente. Mas a madeira nova está sujeita a esses acidentes e ninguém dava importância a isso. Entretanto, à aproximação da primavera - uma primavera súbita, violenta, tão rica de seiva que nós sentíamos sob a terra um murmúrio de fontes - o solo começou a se agitar, soerguido por forças invisíveis e ativas. Em cada casa, os móveis, as paredes inchavam, e nós víamos sobre os assoalhos longos inchaços como com a passagem de uma toupeira. Nem portas, nem janelas, nada mais funcionava. - "É a umidade, diziam os habitantes. Com o calor, isto passará".

De repente, no dia seguinte a um grande temporal vindo do mar, que trouxera o verão nos seus relâmpagos brilhantes e na sua chuva morna, a cidade ao despertar soltou um grito de estupefação. Os telhados vermelhos dos monumentos públicos, os campanários das igrejas, o soalho das casas e até a madeira das camas, tudo estava salpicado com uma cor verde, fina como o mofo, leve como uma renda. De perto, era uma quantidade de brotos microscópicos, onde já se via o enrolamento de folhas. Essa esquisitice da chuva divertiu sem inquietar; mas, antes da noite, buquês de verdura desabrochavam por tudo, sobre móveis, sobre as paredes. Os ramos cresciam a olhos vistos; levemente retidos na mão, nós os sentíamos crescer e debaterem-se como asas.

No dia seguinte, todos os apartamentos tinham o ar de estufas. Cipós acompanhavam os corrimãos da escada. Nas ruas estreitas, galhos uniam-se de um telhado a outro, recobrindo a cidade barulhenta com a sombra das avenidas florestais. Isto se tornava inquietante. Enquanto os sábios reunidos deliberavam sobre o caso da vegetação extraordinária, a multidão comprimia-se do lado de fora para ver os diferentes aspectos do milagre. Os gritos de surpresa, o rumor assombrado de todo este povo inativo dava solenidade a este estranho acontecimento. Subitamente, alguém gritou: "Olhem para floresta" e nós percebemos com terror que em de dois dias o semicírculo verdejante aproximara-se muito. A floresta tinha o ar de descer em direção à cidade. Toda uma vanguarda de espinheiros, de cipós se alongava até as primeiras casas dos subúrbios.

Então, Woodstown começou a compreender e a ter medo. Evidentemente a floresta vinha reconquistar seu lugar à margem do rio; e suas árvores, derrubadas, dispersadas, transformadas, libertavam-se para ir a frente delas. Como resistir à invasão? Com o fogo, nós nos arriscávamos a incendiar a cidade inteira. E que podiam os machados contra esta seiva que renascia sem cessar, essas raízes monstruosas atacando embaixo o solo, essas milhares de sementes voadoras que germinavam ao se abrir e faziam crescer uma árvore por tudo onde elas caíam?

No entanto, todo mundo se pôs ao trabalho corajosamente com foices, com ancinhos, com machados; e derrubaram uma grande quantidade de ramos. Mas em vão. De hora em hora a confusão de florestas virgens, onde o entrelaçamento de cipós unia entre si brotos gigantescos, invadia as ruas de Wood'stown. A partir de agora os insetos e os répteis faziam irrupção. Havia ninhos em todos os cantos, e grandes bater de asas, e massas de pequenos bicos tagarelas. Em uma noite os celeiros da cidade foram esvaziados por todas as ninhadas recém-nascidas. Em seguida, como por ironia no meio deste desastre, borboletas de todos os tamanhos, de todas as cores, voavam sobre os cachos floridos, e as previdentes abelhas, que procuravam abrigos seguros, instalavam, nos ocos destas árvores rapidamente desenvolvidas, seus favos de mel como uma prova de duração.

Vagamente, pela onda barulhenta de ramos, escutávamos os golpes surdos dos machados e dos grandes machados; mas, no quarto dia, qualquer trabalho foi reconhecido impossível. A grama estava alta demais, densa demais. Os cipós de trepadeira se enroscavam nos braços de lenhadores, reprimindo seus movimentos. Aliás, as casas tinham se tornado inabitáveis; os móveis, carregados de folhas, haviam perdido suas formas. Os tetos desabavam, transpassados pela lança dos iúcas, o longo espinho dos mognos; e no lugar de telhados esparramava-se a imensa cúpula dos carvalhos. Acabou. Tinham de fugir.

Através da rede de plantas e de galhos de árvores, que se estreitava cada vez mais, as pessoas de Woodstown apavorados se precipitaram em direção ao rio, carregando o máximo que podiam de riquezas, de objetos preciosos. Mas que dificuldade para alcançar a margem! Não havia mais cais. Nada além de gigantescos juncos. Os canteiros marítimos, onde se guardava a madeira de construção, foram substituídos por florestas de pinheiros; e no porto, cheio de flores, os novos navios pareciam ilhotas de verdura. Felizmente havia algumas fragatas blindadas sobre as quais a multidão se refugiou e de onde ela pôde ver a velha floresta unir-se vitoriosamente à floresta nova.

Pouco a pouco as árvores confundiram suas copas e, sob o céu azul e ensolarado, a enorme massa de copas se estendeu das margens do rio ao horizonte distante. Nenhum traço da cidade, nem tos tetos, nem das paredes. De tempos em tempos um barulho surdo de desabamento, último eco da ruína, ou o golpe de machado de algum lenhador enraivecido, ressoava sob a profundidade da folhagem. Depois, nada mais que o silêncio vibrante, barulhento, sussurrante, nuvens de borboletas brancas voavam em círculos sobre a margem deserta, e, ao longe, em direção ao alto mar, um navio que fugia, com três grandes árvores verdes podadas no meio de suas velas, levando os últimos emigrantes do que fora Woodstown...

(Tradução: Ana Carolina da Costa e Fonseca)
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Fontes:
http://www.bestiario.com.br/3_arquivos/Wood.html
Imagem =
http://www.historicwoodstown.org/

Alphonse Daudet (1840 – 1897)



Alphonse Daudet (Nimes, 13 de maio de 1840 - Paris, 17 de dezembro de 1897) foi um romancista, poeta e dramaturgo francês.

Biografia

Daudet nasceu em Nimes, Provença, Departamento de Bouches-du-Rhône, filho de um fabricante de tecidos e comerciante. Fez seus estudos no liceu de Lyon, mas antes de poder acabá-los, adversidades de família o obrigaram a aceitar um lugar de vigilante no colégio de Alais, para se manter. Foi esse um dos períodos mais tristes e sombrios de sua vida, que ele relatou pateticamente num das seus mais sugestivos livros, "Le Petit Chose" (1868), páginas quase inteiramente autobiográficas, em que há muito mais realidade que fantasia.

Com a ajuda do irmão, o historiador e escritor francês Ernest Louis Marie Daudet, foi para Paris aos 18 anos, inciando sua vida literária. Seu irmão contou, no livro Mon Frère et Moi, as aventuras dos dois em Paris.

Estreou com uma coletânea de versos, Les Amoureuses, em 1858, conseguindo um emprego no Le Figaro e trabalhou (1860-1865) como secretário do Duque de Morny, ministro de Napoleão III. período em que se consagrou como poeta. Nesse mesmo ano publicou em "Le Figaro" um estudo intitulado "Les gueux de province", impregnado de viva emoção, sendo do gosto dos leitores daquele periódico e assegurando-lhe no mesmo assídua colaboração.

No ano seguinte deu à publicidade um novo volume de poesias sob o título "La double conversion", que foram também muito festejadas.

Em 1862 publicou um volume de contos, Le Roman du Chaperon Rouge. Em Paris, tornou-se íntimo de Goncourt e Emile Zola.

"Lettres sur Paris" data de 1865, e embora este livro tivesse êxito, não se pode comparar ao que alcançava pouco depois "Lettres de mon moulin" (1866), que colocou Daudet entre os grandes escritores franceses de seu tempo.

Durante a guerra franco-prussiana alistou-se no exército e participou na defesa de París (1870) quando esta esteve assediada pelas tropas prussianas. Sua experiência bélica apareceu refletida em vários trabalhos seus.

Tornou-se secretário do Duque de Morny, presidente do Senado e, por problemas de saúde, viajou pela Argélia, onde se inspirou para escrever Tartarin de Tarascon, em 1872. Fez várias tentativas no teatro, mas só teve algum sucesso com L'Arlésienne, em 1872, cujo texto seria musicado por Bizet.

"Contes du lundi" apareceu em 1873, e um anos depois, "Fromont jeune et Risler ainé", uma das suas mais belas produções, romance que foi premiado pela Academia Francesa e cujo êxito em breve transpunha as fronteiras da pátria do escritor.

Em 1876, o mais realista e comovente de seus romances, e também o mais discutido, "Jack" vem afirmar ainda mais a reputação que de grande romancista já gozava Daudet.

"Le nabab" (1877) é um excelente romance de clave, que deu muito que falar e conseguiu grande ressonância quando de sua aparição. Seguiram-se-lhe o irônico "Les rois en exil" (1879), "Numa Roumestan" (1881), "L'Évangeliste" (1883 ) , " Sapho " (1884), "Tartarin sur les Alpes" (1885), "L'immortal" (1888), "Port-Tarascon" (1890), "l,a Petite Paroise" (1895), "Soutien de famille'' (1898).

Alphonse Daudet pertenceu à Academia de Goncourt desde sua fundação. Tendo uma vez rejeitado sua candidatura à Academia Francesa, o glorioso romancista abominou aquela instituição e escreveu contra ela o romance "L'Immortal", de grande alento satírico, no qual pintou bem ao vivo certos membros daquela douta casa.

Foi pai do jornalista e também escritor Léon Daudet, um monarquista, nacionalista e anti-semita, que colaborou em jornais como o Le Figaro e o Le Gaulois, entre outros.

Os últimos anos de Daudet foram amargados por pertinaz moléstia que o arrastou prematuramente no sepulcro, quando ainda podia esperar-se muito do seu talento. Este grande escritor morreu em Paris, a 16 de dezembro de 1897, vítima de uma ataxia incurável.

Características literárias

Filiou-se à escola naturalista, produzindo uma obra variada, satírica, tirando as personagens da vida parisiense. Seu estilo é cristalino, brilhante, deixando transparecer, com freqüência, os sentimentos de paixões recalcadas.

Criou o héroi Tartarin, personagem alegre e gabola, das novelas Tartarin de Tarascon e Tartarin nos Alpes.

Foi amigo de Frédéric Mistral, e pertenceu ao grupo de escritores de língua ocidental Le Félibrige, fundado em 1854, escrevendo várias composições poéticas em provençal. A lingua provençal, ou languedoc, é o idioma falado ao sul do Loire, entre o mar, os Alpes e os Pireneus, compreendendo o provençal propriamente dito, o languedocino e o gascão. A Provença foi a pátria primeira da poesia trovadoresca, em especial na Idade Média. Além de Frédéric Mistral, Roumanille, ao qual Daudet se refere em Cartas de meu Moinho, também foi um desses poetas.

Tartarin de Tarascon

Tartarin de Tarascon é a importante obra do romancista. O livro retrata personagens da vida parisiense. Tartarin vive na pequena cidade francesa de Tarascon, onde é respeitado por seus conhecimentos teóricos sobre caçadas. Certo dia, passa por Tarascon uma exposição de animais, incluindo um leão. A atitude destemida do protagonista diante do felino faz com que toda a população o instigue a ir à África caçar leões.

Fontes:
http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/AlphDaud.html
http://pt.wikipedia.org/
http://www.bestiario.com.br/3_arquivos/Wood.html
http://www.record.com.br/

terça-feira, 12 de maio de 2009

Emílio de Menezes (Trova)


A velhinha alçava a cruz…
Agonizava o Monteiro,
Ela dizia: - Jesus!…
Ele dizia:…dinheiro…

Evaristo da Veiga (Sonetos)

SONETO AO BRASIL

Minha Pátria, oh Brasil! tua grandeza
Por léguas mil imensa se dilata
Do Amazonas caudoso ao rico Prata,
Os dois irmãos sem par na redondeza:

Das tuas serranias na aspereza,
Na fechada extensão da intensa mata,
No solo prenhe d'oiro se recata
Tosca sim, mas sublime a Natureza:

Da antiga Europa os dons em ti derrama
junto dos mares a civil cultura,
Que das artes, e Indústria os frutos ama:

De teus filhos o amor mil bens te augura,
E aos lares teus a Liberdade chama:
Não: não tens que invejar maior ventura.

17 de outubro de 1821.
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SONETO AO DIA EM QUE SE DECLAROU A INDEPENDÊNCIA

Com traidoras promessas de igualdade
Mascarando mil pérfidos enganos,
Tinham tentado bárbaros tiranos
Despojar o Brasil da Liberdade.

Mas Pedro, o Nosso Herói na tenra Idade
Soube prudente desfazer seus planos:
Seu Peito Forte os iminentes danos
Afastou da horrorosa Tempestade.

Que prêmio a tantos Feitos. Neste Dia,
Em que por nos salvar do cativeiro.
À terra o Céu benéfico te envia.

O Povo, oh Pedro, Imperador Primeiro
Entre vivas Te aclama de alegria
Neste nascente Império Brasileiro.

11 de outubro de 1822.
Fonte:
VEIGA, Evaristo da. Poesias de Evaristo Ferreira da Veiga. RJ: Officinas Graphicas da Biblioteca Nacional, 1915.

Evaristo da Veiga (1799 – 1837)

Evaristo Ferreira da Veiga e Barros (Rio de Janeiro, 8 de outubro de 1799 — Rio de Janeiro, 12 de maio de 1837) foi um poeta, jornalista, político e livreiro brasileiro.

Infância e adolescência

Filho de um português mestre-escola, Francisco Luís Saturnino Veiga, chegado ao Brasil aos 13 anos, soldado miliciano na paróquia de Santa Rita, no Rio de Janeiro, depois nomeado professor régio de primeiras letras na freguesia de São Francisco Xavier do Engenho Velho. Passou a professor na rua do Ouvidor, onde abriu uma loja. Andou por Vila Rica em 1788 e 1789, deve ter conhecido alguns dos inconfidentes, pois recopiou as Cartas Chilenas de Tomás Antônio Gonzaga, publicadas meio século mais tarde por seu neto Luís Francisco da Veiga. Casou com uma brasileira, D. Francisca Xavier de Barros, nascendo três filhos, dos quais Evaristo foi o segundo. Teve grande influência sobre seus filhos, sobretudo Evaristo, ótimo estudante que no Rio de Janeiro de D. João VI aprendeu francês, latim, inglês, cursou aulas de retórica e poética e estudou filosofia. Neste período adquiriu interesse por jornalismo ao visitar as oficinas da Impressão Régia, nos porões do palácio do conde da Barca.

Quando concluiu os estudos, o pai já abrira uma livraria na rua da Alfândega e os livros que trazia da Europa tinham em Evaristo o primeiro leitor, o mais curioso. Seu projeto frustrado de partir para a Universidade de Coimbra encontrou compensação na livraria do pai.

Poeta

Autor da letra do "Hino à Independência", cuja música se deve a D. Pedro I. Conta entre os precursores do Romantismo no Brasil.

Em suas poesias mais antigas se sente a influência da escola arcádica e sobretudo de Bocage. Datam de 1811, tinha 12 anos. Um ano depois, em 1812, celebra os desastres militares dos franceses em Portugal. Aos 14 anos era um poeta português que refletia no Brasil com atraso de 20 anos o movimento da Nova Arcádia em que haviam excedido Bocage, José Agostinho de Macedo, Curvo Semedo.

Em 1817 era súdito fiel de D. João VI, um luso no Rio de Janeiro: o malogro da revolução de Pernambuco o encheu de alegria. Seus versos cantaram o casamento de D. Pedro com D. Leopoldina, os anos de S. Majestade em 13 de maio de 1819, o aniversário da aclamação do rei. Diversas poesias são dedicadas a amigos, uma característica que se manterá: primou sempre nele o sentimento da amizade. Aos vinte anos começaram a aparecer Marílias, Nises, Lílias, Isbelas mas seus sonetos, cantigas e madrigais continuam arcádicos - com ligeira influência dos mineiros.

Em 1821, porém, vivia-se no Rio de Janeiro «o ano do constitucionalismo português», como afirma Oliveira Lima em O Movimento da Independência. Ninguém podia ficar indiferente. O elemento conservador, receoso de desordens, alimentava esperança de que a chegada das novas instituições não importaria em ruptura com Portugal, pois haveria uma monarquia dual, servindo a coroa como união. Era o pensamento de Evaristo da Veiga, ilusão de que participaram muitos brasileiros. Não tardaram os constitucionalistas de Portugal a demonstrar sua incompreensão das coisas do Brasil e foram aparecendo as resoluções das Cortes que tinham como propósito estabelecer a antiga submissão colonial, embora de outra forma. Foi nesse instante que nele despertou o patriota: um soneto em 17 de outubro de 1821 é intitulado O Brasil. Outro, de fevereiro de 1822, já estigmatizava «a perfídia de Portugal».

Daí em diante vibrou com o movimento que se espalhava pelo país. Em 16 de agosto de 1822, sem ser figura saliente em nenhum acontecimento, escreveu o Hino Constitucional Brasiliense, o célebre «Brava Gente Brasileira / longe vá temor servil», etc. Compôs sete hinos, no total, entoados por milhares de bocas. O «Brava Gente» recebeu duas músicas, uma do maestro Marcos Portugal, outra do próprio Príncipe Regente D. Pedro! E como Evaristo era tímido e o príncipe notoriamente melômano, logo se lhe atribuiu a letra... Só mais tarde, em 1833, Evaristo reivindicaria a letra (os originais estão na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional).

O ato da aclamação do imperador lhe inspirou três sonetos - e outros dedicou à Liberdade, à instalação da Assembléia Constituinte, a lorde Cochrane, à fuga do general Madeira. Mas teria papel obscuro e modesto nos sucessos da Independência. Seu nacionalismo era novo, faltava-lhe paixão, e ademais não tinha posição social, era um rapaz modesto e avesso a turbulências que trabalhava no balcão da livraria do pai. Em 1821, porém, assina com pseudônimo «O Estudante Constitucional» uma réplica a panfleto anônimo contra o Brasil, intitulado Carta do Compadre de Belém, impresso em Portugal.

Cedo deixou de ser um espectador desenganado da ação do imperador. 1823 era o ano da instalação da Constituinte e o de sua dissolução por um golpe de força. Em 30 de maio ele já fala no «despotismo mascarado»... Deixou de fazer sonetos, fez hinos. Ainda publicaria em 1823 Despedida de Alcino a sua Amada, pois Alcino foi seu nome poético. Mas era poeta bastante medíocre e disso teve convicção antes de que outros lhe dissessem. Sua atividade poética foi esmorecendo, subindo apenas em 1827, ano em que se casou. Sua vocação, logo descobriria estar na política, no serviço público, na imprensa, no parlamento.

Livreiro

Morreu sua mãe em 1823 e o pai, que desejava casar-se de novo, escrupuloso e exato como era, entregou aos filhos a parte que lhes tocava na herança materna. Evaristo e João Pedro, seu irmão, abriram então uma livraria. Era empreendimento lucrativo. O país se europeizava e os livros e jornais eram os agentes dessa europeização. Em 1821 no Diário do Rio de Janeiro havia anúncios de oito lojas de livros. Datam de outubro de 1823 os primeiros anúncios da loja de Evaristo («João Pedro da Veiga & Comp»), 14 dias antes de D. Pedro I dissolver a Assembléia.

Leu tudo que vendia, formou seu pensamento, fixou-se na posição da monarquia constitucional, pois a república lhe parecia um exagero e era moderado por temperamento. Vendendo livros e fazendo cada vez menos versos passou os anos até 1827, quando, economicamente independente, se separou do irmão e estabeleceu livraria própria ao comprar a livraria e tipografia de João Batista Bompard na rua dos Pescadores nº 49.

Em 1827 casou-se com D. Ideltrudes Maria d'Ascensão, começando nova vida.

Jornalista

Em 21 de dezembro de 1827 surgiu o primeiro número de seu próprio jornal, logo famoso, o A Aurora Fluminense, que exerceu importante papel na política do Primeiro Reinado por suas tendências antilusófilas.

Os fundadores foram um jovem brasileiro cedo falecido, José Apolinário de Morais, o médico francês José Francisco Sigaud e Francisco Crispiano Valdetaro. Evaristo resolveu associar-se e passou em pouco tempo de colaborador a redator principal e finalmente único. Assinava seus artigos apenas como Evaristo da Veiga.

A imprensa do Rio de Janeiro era então detestável, pasquineira. A Gazeta do Brasil era favorável ao governo, órgão ministerial, defendendo o Gabinete de 15 de janeiro de 1827, e quem enviava seus artigos, como depois se descobriria, era Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, oficial do Gabinete Imperial, íntimo e detestável amigo de D. Pedro I. A Gazeta chamava A Aurora Fluminense de fedorenta sentina da demagogia e do jacobinismo, a Astréa de João Clemente Vieira Souto de insolente e demagógica, O Universal de Ouro Preto, de inspiração de Bernardo Pereira de Vasconcelos, de jacobino e anárquico.

Os fundadores de A Aurora Fluminense queriam linguagem imparcial, guiada pela razão e virtude, e havia para servir à liberdade constitucional um Evaristo da Veiga, imbuído de leituras francesas e inglesas, com o sonho de ver adotadas as instituições que seus autores prediletos preconizavam como indispensáveis à grandeza das nações. Uma quadrinha de versos pífios, composta por D. Pedro I, foi seu lema:

Pelo Brasil dar a vida / Manter a Constituição / Sustentar a Independência / É a nossa obrigação.

E foi seu programa o devotamento ao país, o respeito pela sua liberdade, a manutenção de sua Constituição. Os seus temas, no jornal, foram a liberdade constitucional, o sistema representativo, a liberdade de imprensa. Por isso deu apoio ao Gabinete de 20 de novembro de 1827. Mas havia assuntos de momento em que tocou, como o descalabro da instrução, a questão do crédito público. Combatia a indiferença em matéria política, sobretudo, a mais funesta de todas as enfermidades morais. Havia a mesma pregação em outros jornais liberais (o Farol, O Astro, de Minas, a Astréa), combatidos pelos jornais corcundas. Batia-se pela abolição dos morgados, extinção da Intendência de Polícia, da Fisicatura, do Desembargo, da Mesa da Consciência e da Ordem, instituições obsoletas. A oposição dos ministérios excluía escrupulosamente a pessoa do monarca, a quem tratava com deferência e até louvava. Ainda não desesperançados do imperador, os liberais queriam estimulá-lo. O imperador, porém, é que parecia ir-se distanciando do herói brasileiro que fora em 1822 e voltar-se mais para Portugal do que para o Brasil, comenta Octavio Tarquinio de Sousa. A separação entre a corrente nativista liberal e o imperador aumentou sempre, a sessão parlamentar de 1829 seria da maior agitação, o governo sempre acusado. A Aurora era o mais autorizado reduto da oposição governamental, e sua popularidade - e a de Evaristo - crescia sempre.

Quando do atentado ao jornalista Luís Augusto May, redator da A Malagueta, órgão liberal, repetição do que fora vítima em 1823, sem temor a que lhe sucedesse o mesmo, Evaristo condenou-o energicamente e continuou impassível em suas campanhas. Estavam do seu lado a Astréa, a Luz Brasileira - e do lado ministerial, o Diário Fluminense, O Analista, o Courrier du Brésil, o Jornal do Commercio. A federação era moda, havia gente que queria ir até a República. De seu lado não viriam provocações, pois em artigo de 9 de dezembro de 1829 escreveu: Nada de jacobinismos de qualquer cor que ele seja. Nada de excessos. A linha está traçada - é a da Constituição. Tornar prática a Constituição que existe sobre o papel deve ser o esforço dos liberais.

Político

Em 1830 foi eleito deputado por Minas Gerais, tendo sido reeleito até morrer. Era nome conhecido no Brasil inteiro. Deputado, continuou jornalista e foi sempre livreiro.

Aproximava-se de Bernardo Pereira de Vasconcelos, pela coincidência da posição ideológica. Na nova Câmara abundavam adeptos do liberalismo e para formar a opinião liberal do Brasil ninguém concorrera mais que Evaristo, que jamais assinara um artigo sequer, e a Aurora Fluminense, que em 1830 fora aumentada para seis páginas. Sem nunca ter saído do Rio de Janeiro, recebeu seu mandato de deputado por Minas Gerais, substituindo Raimundo José da Cunha Matos, que optara pela cadeira de Goiás. Em seu mandato tentou pôr as instituições monárquicas a serviço do grande problema brasileiro - a unidade do vasto país. Cumpria cuidar dos interesses mais vitais do povo, fomentar a indústria, sanear zonas quase inabitáveis, difundir a instrução. Batia-se pelo estreitamento das relações com as demais nações americanas, desconfiando das da Europa. Sempre assíduo, queria que os assuntos fossem discutidos com calma, nas Comissões, longe do tumulto do plenário. Opunha-se às liberalidades à custa do Tesouro: «Devemos desgostar antes aos afilhados do que à nação», dizia. Falava pouco, sem retórica, indo direto ao assunto sem divagações. Tinha qualidades raras como deputado: senso de proporções, espírito objetivo, modéstia patriótica.

Quando, trabalhado por intrigantes, D. Pedro I demitiu inopinadamente Barbacena da Fazenda, com os desenvolvimentos que se conhecem, os mais otimistas se foram convencendo de que o Brasil nunca seria um país livre com semelhante imperador. Precisamente nesse clima caiu como um raio a noticia da revolução de julho de 1830 na França, derrubando Carlos X, e recrudesceu a campanha na imprensa em favor das idéias liberais. Surgiu no Rio o jornal O Repúblico, e nenhum teria papel mais ativo para desencadear a crise. Pregava-se abertamente a federação, querendo mesmo a Nova Luz uma ´federação democrática´. Evaristo combatia-os e ao mesmo tempo os órgãos absolutistas: o Imparcial, o Diário Fluminense, o Moderador, em posição difícil de equidistância. Mas a agitação popular se alastrava. D. Pedro, mal aconselhado, resolveu ir a Minas Gerais, onde foi friamente recebido. Diz Octávio Tarquínio de Sousa que «já se apagara da imaginação popular a figura romântica do príncipe que fora o melhor instrumento da Independência

Evaristo enfrentou com destemor os dias de atentados que precederam o Sete de Abril. Foi ele o autor da representação enérgica de 17 de março de 1831 na chácara da Flora, propriedade do padre José Custódio Dias, um verdadeiro ultimato ao imperador. P. Pedro I, que chefiava em Portugal a campanha constitucionalista, se foi no Brasil distanciando de suas atitudes liberais de 1822 e a ele se foram chegando cada vez mais os portugueses aqui residentes, sendo então abandonado pelos próprios elementos moderados da política brasileira. Já estavam conspirando Evaristo, Odorico Mendes, Nicolau de Campos Vergueiro e esforçando-se por conseguir a adesão da tropa. «O dia 6 de abril seria de fato a verdadeira data revolucionária em que se verificaria a insurreição da tropa e do povo no Campo de Santana; a 7 de abril apenas se completaria a vitória liberal com a abdicação do monarca

Evaristo anuiu ao golpe quando se esgotaram as possibilidades de uma solução menos violenta, como ele próprio declarou num discurso em 12 de maio de 1832 na Câmara. Aderiu para evitar a anarquia, o desmembramento, a desunião das províncias. Evaristo correu ao Senado para dar forma legal à nova situação por meio da reunião extraordinária que elegeu a Regência provisória (o marquês de Caravelas, Nicolau de Campos Vergueiro, o brigadeiro Francisco de Lima e Silva). Coube-lhe redigir a proclamação, e o documento, nobre, nacionalizava a independência e pedia não macular a vitória com excessos. Terminava: «Do dia 7 de abril de 1831 começou a nossa existência nacional; o Brasil será dos brasileiros, e livre

Aberta a Câmara a 3 de maio, Evaristo foi escolhido para a Comissão de criação da Guarda Nacional, a ´força cidadã´, como ele chamava, que teria o importante papel de manter a ordem em todo o período regencial. Elegeu-se a 17 de junho de 1831 a primeira Regência permanente, sendo escolhidos Francisco de Lima e Silva, Costa Carvalho e João Bráulio Muniz, este representando o Norte. Evaristo teve imenso papel na elaboração da lei que a regulou.

A Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional

Ao mesmo tempo, empenhou-se pela criação de um outro instrumento de ordem, de disciplina social, de orientação política, que foi a Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional, instalada no Rio de Janeiro a 19 de maio de 1831. Inspirava-se em sua congênere paulista e teve por iniciador Antônio Borges da Fonseca, o redator de O Repúblico. Evaristo se tornou seu adepto mais fervoroso e de 1831 a 1835 a Aurora Fluminense, a tribuna da Câmara e a Sociedade se tornaram seu centro de ação diária.

Foi instrumento de ação dos moderados, e se disse, com algum exagero, que ´governou o Brasil pelo espaço de quatro anos´. Abreu Lima em História do Brasil acha que «foi em realidade outro Estado no Estado, porque sua influência era a que predominava no gabinete e nas Câmaras; e sua ação, mais poderosa que a do governo, se estendia por todos os ângulos do Império.» O grande elemento de ação da ´Defensora´ foram as representações à Câmara, ao governo, publicadas nos jornais do partido moderado desde 1º de junho de 1831.

Evaristo vinculou-se também a diversas outras sociedades e agremiações, animando-as, procurando colocá-las sob sua orientação política. Foi um dos fundadores da Sociedade de Instrução Elementar, da Sociedade Amante da Instrução, da Sociedade Filomática do Rio de Janeiro. Sua luta foi incansável, em época propícia aos excessos, pois não era o simplista que acredita no milagre das leis. Joaquim Nabuco dele dirá, em Um Estadista do Império, que quis exercer no Brasil a ditadura de sua opinião - uma opinião lúcida, desinteressada, de bom senso, serenidade e medida de proporções.

Os Andradas haviam-se logo alistado entre os descontentes,Evaristo se tornou alvo de ataques e calúnias. Em julho de 1831 era profunda a divisão dos liberais. Nomeado Feijó para a Justiça, recebeu todo o apoio de Evaristo, na Câmara e pela Aurora Fluminense mas havia grandes embaraços ao governo com a indisciplina militar, a separação entre exaltados e moderados. Evaristo era já, por consenso, o chefe do partido moderado. Formigavam apodos: ´Farroupilhas´ e ´jurujubas´ seriam os exaltados, ´chimangos´ ou ´chapéus redondos´ os moderados, ´caramurus´ os restauradores. Era moço, tinha 32 anos. A Malagueta o achava feio e menoscabava sua profissão de livreiro.

A partir de 1832 os restauradores pareciam mais perigosos do que os exaltados, o Carijó e o Caramuru iniciaram ofensiva contra o governo. Uma grave crise foi a campanha de Feijó para destituir José Bonifácio da tutoria dos filhos do imperador, cujo desfecho se daria com o malogrado golpe de 30 de julho de 1832. Membro da comissão de resposta à Fala do Trono, Evaristo fez um de seus mais longos discursos, quase de improviso, eloquente. Serviu-se também da Aurora Fluminense, enquanto o Carijó obediente a Antônio Carlos o chamava de «sanefa da Pátria, sabugo versicolor da Aurora». Em julho, a Câmara aprovou a destituição de José Bonifácio de seu posto como tutor, muito comprometido com o faciosismo dos irmãos, mas o Senado não, e Feijó pediu demissão. Os moderados já viam D. Pedro I de novo sentado no trono... Ficou decidido o golpe de Estado tramado na chácara do Padre José Custódio Dias, mas Evaristo não teve nenhuma iniciativa, nenhum entusiasmo, não deu seu assentimento nem adesão formal - instava, entretanto, por uma ´medida salvadora´ e demonstrou sua solidariedade completa, irrestrita a Feijó. Malogrado o golpe, Feijó e outros ministros saíram do governo e a Regência continuou - o bastão de líder escapou de suas mãos. No novo ministério organizado a 3 de agosto de 1832 não havia amigos seus. O Carijó chegou a escrever: "Evaristo está morto".

A reforma constitucional e a eleição de Feijó

A 30 de julho de 1832 a Aurora Fluminense publicou: " Evaristo é o mesmo homem, deputado livre, jornalista defensor da ordem púbica e homem da classe industriosa, vivendo do seu trabalho. Nunca aspirou nem procurou o poder." A 13 de setembro, Evaristo exultava com o novo ministério com Vergueiro e Honório Hermeto, e neste tinha Feijó um substituto... Voltavam ao poder os moderados e do malogro do golpe de 30 de julho resultaria a vitória do ideal que o alimentara: houve acordo para reforma constitucional que foi consubstanciada na lei de 12 de outubro de 1832. A Câmara cedeu, cedeu o Senado, o Poder Moderador foi mantido, a vitaliciedade do Senado, não prevaleceu o cunho federalista que a Câmara desejava mas o Conselho de Estado foi abolido.

Sofreu um atentado em sua livraria mesmo, a 8 de novembro de 1832. Recebeu mais de mil visitantes, desde os regentes, ministros de Estado, senadores, ao povo miúdo. Atentado de um pobre sapateiro a mando de um certo coronel Ornelas, amigo de José Bonifácio. Evaristo confessou suspeitar mais do Sr. Martim Francisco, "cuja alma rancorosa todos conhecem". O certo é que os jornais restauradores, particularmente o Caramuru, tinham seu quinhão de culpa na formação do ambiente de ódios. Em 1833 recrudesceu a campanha da imprensa, empenhada nas eleições para a legislatura 1834-1837 pois a Câmara tinha poderes para realizar a reforma constitucional. Reapareceram jornais antigos como o Brasileiro, e o Nacional, surgiram novos como o Independente, o Sete de Abril, das simpatias de Bernardo Pereira de Vasconcelos. Mas os moderados já não tinham o prestígio anterior, a campanha caramuru causara impressão - exceto na zona rural. Eram os chamados ´eleitores do campo´.

Todo o ano 1833 se consumiu na expectativa do retorno do duque de Bragança... Evaristo, convencido de que a trama restauradora era sério perigo, combateu-a, usando a Defensora, e chefiou mesmo a campanha que impediu a volta de D. Pedro, sob qualquer título, e clamava pela suspensão de José Bonifácio do lugar de tutor como ´centro e instrumento dos facciosos´. Com sua queda, passou o momento de maior tensão, tudo prometia melhorar.

A 14 de junho de 1833 entrou em discussão o projeto de reforma da Constituição. Discutiu-se inicialmente a quem competia, e a opinião de Evaristo - a competência era da Câmara - foi aprovada por enorme maioria. Depois de Bernardo Pereira de Vasconcelos, seu autor, ninguém mais do que Evaristo estudou o projeto. Declarou inicialmente que, por seu voto, não se tocaria na Constituição - mas cedia à opinião geral, às aspirações autonomistas das províncias, sem esquecer os interesses superiores da unidade nacional. Foi voto vencido na questão da temporariedade da função de Regente pois a Câmara mostrou-se mais liberal que ele, Limpo de Abreu, Paula Araújo e Vasconcelos e quase estabeleceu no Brasil uma verdadeira república provisória.

A facilidade com que se votou a reforma tinha explicação no temor à volta de D. Pedro I. Quando o ex-imperador morreu em 24 de setembro (a notícia chegou ao Rio em dezembro de 1834), a desagregação dos moderados se processou com rapidez pois nunca houve coesão partidária. Evaristo o julgou com serenidade: "não foi um príncipe de ordinária medida, existia nele o germe de grandes qualidades, que defeitos lamentáveis e uma viciosa educação sufocaram em parte. (...) Se existimos como corpo de nação livre, se a nossa terra não foi retalhada em pequenas repúblicas inimigas, onde só dominasse a anarquia e o espírito militar, devemo-lo muito à resolução que tomou de ficar entre nós, de soltar o primeiro grito de nossa Independência."

A situação política do Brasil dava sinais de persistência de divisão e indisciplina. No Rio Grande do Sul começara a guerra que ia durar dez anos, havia relução no Pará. A grande questão era a escolha do Regente único, de acordo com o Ato Adicional. O candidato de Evaristo foi Feijó, pois dele não via os defeitos e o que temia era a desordem, a anarquia, que prometia a candidatura Holanda Cavalcanti, tido como arrebatado e frenético. Fez a campanha com as mesmas agrúrias anteriores, destemido, sereno, até que a 7 de abril de 1835 votaram em todo o Brasil os eleitores, que eram seis mil, cada um com direito a sufragar dois nomes. Com as dificuldades de comunicação, os resultados chegaram morosamente - feita a apuração final a 9 de outubro, Feijó ficou em primeiro lugar (2.826 votos), Holanda Cavalcanti em segundo (2.251). Com maioria na Câmara, o «partido holandês» tentaria ainda fazer de D. Januária regente, mas nada conseguiu.

O fim da Aurora Fluminense

A eleição de Feijó foi a última demonstração do prestígio de Evaristo da Veiga. Estava afastado de Bernardo Pereira de Vasconcelos, de Honório Hermeto, de Rodrigues Torres, era combatido pelos caramurus e ainda teve a amargura de desavir-se com Feijó, regente único - por culpa sua, pensavam todos.

Em 30 de dezembro de 1835 saiu o último número de seu jornal, com oito anos de existência. Recolhia-se a uma vida que desejava tranquila, com as três filhas e a mulher. Mas não se retirou da vida pública, pois em 1836 compareceu normalmente à Câmara. Depois decidiu fechar por uns tempos sua casa na rua dos Barbonos, hoje rua Evaristo da Veiga, e em novembro partiu para Campanha, onde vivia um irmão. Voltou ao Rio a 2 de maio de 1837. Visitou Feijó, foi para cama presa de violenta ´febre perniciosa´, como diagnosticaram os médicos. Morreu a 12 de maio, repentinamente, aos 37 anos.

Apreciação

Contribuiu decisivamente para a defesa das instituições públicas, além de trabalhar para o desenvolvimento intelectual e artístico, estimulando jovens escritores.

Segundo Octávio Tarquínio de Sousa: «Sua influência nos acontecimentos políticos se fez sentir desde o aparecimento da Aurora Fluminense e ninguém mais do que ele concorreu para criar o ambiente liberal que caracterizaria os primeiros anos da Regência. (...) Evaristo não fez mais do que conformar-se com a revolução, aceitá-la como uma fatalidade.» Caixeiro sem ancestrais ilustres, gordo e deselegante, sem a ajuda de poderosos, sem dons de sedução, que nunca esteve em qualquer universidade, sem deixar o Rio, sem mencionar seu nome do jornal que escrevia, foi eleito e reeleito deputado, assumindo papel de guia e conselheiro- sem improvisação, sem imposturas. Foi jornalista, deputado, político, orientando a opinião do país porque tinha um espírito sério, probidade moral, sinceridade e, sobretudo, uma inteligência lúcida, desapego aos altos cargos, um grande desejo de servir e de ser útil.

Acadêmico

Membro do Instituto Histórico de França e da Arcádia de Roma. Patrono da cadeira nº 10 da Academia Brasileira de Letras, por escolha de seu fundador, Rui Barbosa.

Obras:
Hinos patrióticos (1877); Poesias (1915);O homem e a América (1832); redator da Aurora Fluminense, Rio de Janeiro, 1827-1835.

Fontes:
ASLAN, Nicola. Pequenas Biografias de Grandes Maçons Brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Maçônica, 1973.
Academia Brasileira de Letras.
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