sexta-feira, 10 de julho de 2009

Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafayette



A história da Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafayette tem suas origens, ainda que indiretamente, no Grêmio Literário Napoleão Reys, fundado em Queluz de Minas, entre as décadas de 20 e 30, no século passado. Era uma época de efervescência cultural na cidade que já havia sido cognominada por Nelson de Senna, no início daquela centúria, como cidade “dos livros e das flores”. A existência do Grêmio foi efêmera, mas o espírito sensível às letras e às artes em geral continuou a mover muitos queluzenses e lafaietenses, que voltaram a tentar se reunir em um sodalício na década de 80.

Passados cerca de 50 anos, o professor Alberto Libânio Rodrigues, que por meio do jornal Panorama, o qual dirigia, dava um novo impulso às manifestações culturais, começou a reorganizar a Academia Lafaietense de Letras, tendo, inclusive, começado a divulgar a biografia dos futuros acadêmicos nas páginas de seu hebdomadário e a formar a diretoria. Mas o ideal, por motivos vários, arrefeceu-se. No entanto, o professor guardou consigo o projeto e, dez anos depois, com um grupo de idealistas como ele, reorganizou o silogeu, com a denominação de Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafayette (ACLCL).

A ACLCL foi instalada em 18/09/1993, em sessão solene realizada no Teatro Municipal “Placidina de Queirós”. O evento integrou a programação oficial das comemorações do 203o aniversário da emancipação política do município. O presidente de honra da sessão foi o historiador Fenelon Ribeiro, membro do Instituo Histórico e Geográfico de Minas Gerais, empossado na cadeira 9. Naquela ocasião, foram aprovados os estatutos da entidade, elaborados por uma comissão formada por um grupo de 13 intelectuais, responsáveis pela organização da entidade. Também foram empossados 65 acadêmicos.

A princípio, a ACLCL era formada por 100 cadeiras, pois seus idealizadores desejavam que ela abrangesse todos os segmentos das ciências, letras e artes, por isso demandaria um número maior de vagas, a modelo, também, do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais. No entanto, após alguns anos, deliberou-se reduzir esse número para 80, a fim de reunir apenas os expoentes das ciências e letras que sejam, realmente, uma referência em sua respectiva área, não obstante o ideal fosse ter como paradigma a Academia Francesa, assim como o fez as academias Brasileira e Mineira de Letras, com 40 cadeiras...

A primeira diretoria ficou assim formada:

Presidente - Alberto Libânio Rodrigues
Vice-presidente - Luiz Antônio da Paz
1º secretário - Márcia Terezinha Carreira Rodrigues
2º secretário - Paulo Roberto Antunes
1º tesoureiro - Geraldo Augusto de Freitas
2º tesoureiro - Aloísio do Carmo Elói.

O conselho superior compunha-se dos seguintes acadêmicos: Antônio Francisco Pereira (presidente), Efigênia Chaves Janoni (secretária), Carlo José de Menezes, João Batista Ferreira Lima, Márcio Verdolin Hudson, Benedicto Fernandes Carlos, Edir Pires.
Participaram da comissão organizadora dos atos constitutivos da ACLCL: Alberto Libânio Rodrigues, Antônio Francisco Pereira, Antônio Luiz Perdigão Batista, Benedicto Fernandes Carlos, Carlo José de Menezes, Carlos Elói Castro Trajano, Dimas da Anunciação Perrim, Fenelon Ribeiro, Geraldo Augusto de Freitas, Hortência Hudson Vilela, Márcio Verdolin Hudson e Zeni de Barros Lana.

O primeiro membro efetivo empossado por ocasião da fundação foi a acadêmica Avelina Maria Noronha de Almeida, que, na ocasião, recebeu o título de “Madrinha dos Poetas Lafaietenses”, representado por um diploma especial que lhe foi entregue durante a solenidade.

De acordo com os estatutos, são os objetivos da ACLCL:

- Promover e difundir as ciências humanas, letras e artes;
- Promover reuniões e eventos lítero-musicais, seminários e encontros nas áreas pertinentes às suas atividades;
- Exposições de arte (pintura, escultura, fotos etc.);
- Incentivar e colaborar, na medida do possível, com o incremento ao teatro, música, jograis e outras atividades afins;
- Promover cursos e concursos literários;
- Colaborar com todos os esforços particulares e oficiais que visem ao aperfeiçoamento constante do nosso idioma;
- Apoiar as manifestações culturais de Lafaiete e de outros municípios, que envolvam os interesses dos sócios da entidade nas cidades em que eles estejam residindo;
- Manter intercâmbio cultural com entidades congêneres;
- Outras atividades literárias e culturais.

A ACLCL promove as reuniões ordinárias sempre no último sábado de cada mês, às 15h, em sua sede, na Casa de Cultura “Gabriella Mendonça”. Também são promovidas, mensalmente, uma Reunião de Estudos, cada uma com um tema específico, bem como as sessões solenes em ocasiões especiais, como no aniversário de fundação, a 18 de setembro, e no final do ano, quando são premiados os vencedores do Concurso Literário Internacional Prêmio Cidade de Conselheiro Lafaiete.

A sede da ACLCL abriga uma biblioteca contendo, principalmente, trabalhos dos acadêmicos e de seus patronos. A este acervo se juntaram outros, por doação, como o do Monsenhor José Sebastião Moreira, do Dr. Luís Bonifácio Lafayette de Andrada e do fundador Prof. Alberto Libânio Rodrigues. Também na sala-sede da entidade está o arquivo com as pastas dos acadêmicos, contendo documentos e trabalhos vários, e a galeria de fotos dos patronos das cadeiras.

Os membros

As categorias de membros da entidade são: membros efetivos, aqueles que ocupam uma determinada cadeira; membros correspondentes, os que residem fora de Lafaiete; membros eméritos, concedido àquelas pessoas que se destacam pela qualidade de sua obra ou atuação no meio cultural, mas que, por algum motivo, estão impedidas de cumprir com as disposições estatutárias, mas mantêm uma relação de cordialidade com a ACLCL, engrandecendo-a mais e mais.

Atividades diversas

Desde a sua fundação, a ACLCL desenvolve diversos projetos. Alguns tiveram execução temporária, outros se mantêm até hoje, como o das Academias Mirins criadas nas escolas. A proposta é incentivar o hábito de leitura nos alunos e a produção literária. Hoje, esse projeto já dá bons frutos, graças à dedicação da acadêmica Lêda Maria Augusta Vieira de Faria, que não mede esforços, mesmo com as limitações que a saúde lhe impõe. Na Escola Estadual “Professora Maria Augusta Noronha”, por exemplo, já foram quatro edições da antologia “Escrevendo com a alma”, com trabalhos dos alunos. Nessas escolas realizam-se, também, as Olimpíadas Literárias, surpreendendo, a cada ano, com um número maior de livros lidos por eles, que são argüidos sobre as obras.

Esse projeto nas escolas fortaleceu-se, mais ainda, após o lançamento do Movimento Caravelas. Idealizado pelos acadêmicos Avelina Maria Noronha de Almeida e Carlo José de Menezes, a declaração assinada em 1999 propunha a inserção, na grade curricular do ensino fundamental ou médio, do estudo da Literatura Mineira. O projeto foi muito bem recebido nos meios intelectuais de Minas, no entanto, a Assembléia Legislativa de Minas Gerais não atentou pela sua importância e logo o resumiu a um “adendo” à matéria de Literatura geral que já existia no currículo.

Diversas datas históricas marcantes são lembradas pela Academia, em suas reuniões e publicações, como o aniversário de nascimento ou de morte dos patronos das cadeiras ou de algum vulto célebre. Vários livros de acadêmicos também foram lançados durante as festividades da entidade. Há também a promoção de uma Exposição Bienal Temática de Pintores Lafaietenses, reunindo os nomes expressivos das artes plásticas na cidade.

A ACLCL, promovendo a difusão dos acadêmicos e escritores lafaietenses, mantém a publicação do Informativo Caravelas e apóia a edição da antologia “Lafaiete em Prosa e Verso”, desde 1994, onde publica-se o Anuário da Academia, com as principais efemérides. Sempre que possível, apóia também a publicação de outras obras, tendo já realizado a do poema épico “Queluzíadas”, de autoria do Prof. Alberto Libânio Rodrigues, que canta, em versos decassílabos (a exemplo de Camões), a história de Conselheiro Lafaiete, desde os tempos de Carijós e Queluz. Sua publicação foi comemorativa no cinqüentenário de seu nascimento, em 2004.

Assim, a ACLCL dá continuidade aos trabalhos, inspirada na gesta de seus fundadores, tendo como norte a promoção e difusão das ciências e das letras, soando aos ouvido de seus membros a sonoridade poética do canto que envolve as suas armas: Labore scriptisque ad immortalitatem.

Fonte:
Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafayette

Autores Premiados nos Prêmios Sesc de Literatura



2008

O momento mágico

Trata do tema solidão, a partir da reflexão de um homem de 88 anos que deseja a morte, mas não é contemplado com ela. Ao analisar seu passado, o personagem fica ainda mais deprimido e procura então provar a si mesmo que ainda está vivo.

Márcio Ribeiro Leite

Médico e psicoteraupeta, o baiano Márcio Ribeiro Leite usou seus trabalhos clínicos e observação de idosos como inspiração para o romance O momento mágico, escrito em dois meses. Bastante ligado a família, o autor de 51 anos se declara um escritor intimista e garante que, após a premiação, vai se dedicar mais a carreira literária.

2008

Mentiras do Rio

Os contos mostram dois lados da vida na cidade do Rio de Janeiro: o cotidiano de um lugar bonito com pessoas interessantes, e a tensão da violência do mesmo dia a dia.

Sergio Leo de Almeida Pereira

Nascido no Rio de Janeiro, em 1963, Sergio Leo é jornalista desde 1983, formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e especialista em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Escreveu Mentiras do Rio a partir de experiências pessoais e profissionais da época em que viveu no Rio de Janeiro. Atualmente, mora em Brasília e trabalha como repórter especial e colunista do Valor.

2007

Beijando Dentes

A coletânea de contos aborda como tema central a incomunicabilidade entre as pessoas. A partir de cenas e falas banais do cotidiano, o autor faz um exame das tensões nos relacionamentos humanos, por gênero ou geração.

Maurício Fiorito de Almeida

Maurício nasceu em Campinas, em 1982. Formou-se em Antropologia pela Unicamp. É co-autor das peças Transparências da carne e No meio da Noite.

2007

Zé, Mizé, Camarada André

A história trata da independência de Angola e das experiências de um jornalista brasileiro no país, narradas a partir da vivência do autor na África, entre 1978 e 1980.

Sergio Guimarães

Nascido em Santo Anastácio, São Paulo, em 1951, Sérgio Guimarães é representante do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em Honduras, e vive entre São Paulo e Tegucigalpa, em Honduras. Professor por formação, deixou de lado a carreira acadêmica em 1978 para viver em Angola, trabalhando pela Unesco, de onde tirou experiência para escrever seu livro.

2006

Correio litorâneo

Apesar de abordarem os mais diferentes universos, os contos de Correio litorâneo estão amarrados em torno de notícias de jornal, o que lhes dá uma rara unidade temática. No caso, um jornal fictício, com o mesmo nome do livro.

Nereu Afonso da Silva

Nascido em 1970, em São Paulo, Nereu é formado em Filosofia pela USP. Foi um dos Doutores da Alegria (palhaços em hospitais).

2006

Casa entre Vértebras

Preso em sua habitação, um homem com a mente em redemoinho rumina cartas nunca escritas, esboça angustiado um labirinto de ideias e assombrações. Seus temas: solidão, infância, amor, memória, morte, loucura, religião.

Wesley Peres

Escritor e psicanalista, Wesley nasceu em Goiânia em 1975. Idealizador e colunista da Revista Ruído Branco. Participou da programação da Folia Literária do SESC Paraná em setembro de 2007.

2005

A secretária de Borges

A narrativa gira em torno das franjas de uma mudança drástica por parte dos personagens. Como no conto O divórcio, em que uma mulher sente em plenitude a potencialidade de sua nova situação. Outro conto em que a personagem feminina passa por uma arrepiante mudança de opinião – na verdade, quase uma mudança mais radical de postura – é o bem-humorado Tatuado no braço.

Lúcia Bettencourt

Lúcia lançou em 2008 seu segundo livro de contos Linha de sombra. Professora de português-literatura, Lúcia foi a primeira vencedora do Prêmio SESC na categoria contos.

2005

Hoje está um dia morto

Ficção que trata de um tema bastante comum na vida moderna: a falta de utopias da qual decorre a ausência de perspectivas existenciais. Os personagens Jean e Fabiana retratam de maneira muito autêntica a juventude brasileira, nas suas dúvidas, aspirações e conflitos.

André de Leones

Nascido em Goiânia, em 1980, André lançou em 2008 seu segundo livro, desta vez de contos, intitulado "Paz na Terra entre os monstros"

2004

As netas da Ema

Em uma narrativa que mistura sonhos, realidade, lembranças do passado e flashes do cotidiano, Eugenia Zerbini conta a história de uma mulher que, depois de ser assaltada na rua e ver a morte de perto, se põe a refletir, obsessivamente, sobre a vida que lhe foi devolvida.

Eugenia Zerbini

Nascida em São Paulo, Eugenia contribui para o site Digestivo Cultural e mantém o blog As nestas da Em@. Escreve atualmente a biografia romanceada da imperatriz Teresa Cristina, mulher de Pedro II.

2003

Santo Reis da Luz Divina

O romance é um painel épico que alia romance histórico e saga familiar. A trama começa no Rio de Janeiro ao tempo da Guerra do Paraguai e termina nos anos 90, no Paraná. Nessa trajetória entrecruzam-se famílias que vão formar o grande encontro das migrações, no sul do país.

Marco Aurélio Cremasco

Paranaense, Cremasco vive em Campinas, São Paulo, e é professor de Engenharia Química da Unicamp. Seu romance foi indicado ao Prêmio Jabuti em 2005. Em 2007 lançou o livro de contos Histórias prováveis, pela Editora Record

Fonte:
http://www.sesc.com.br/premiosesc/

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Trova XL

Antonio Brás Constante (Escrevendo sobre a Morada da Escrita)

Pintura de Iaman Maleki
Se o livro é a casa do escritor, seu universo é nômade e segue itinerante pelas feiras dos livros. Feiras que voam como pássaros livres ao sabor dos ventos, e que anualmente vem nos visitar, esperando por nossa vinda, para que junto com seus filhos textuais possamos alçar nossa mente ao infinito e também voar.

O que é o livro senão uma expressão do ser e do viver, viver e respirar, respirar e sentir, sentir e amar. Seja através do toque dos olhos nos símbolos desenhados no papel, como se eles dançassem em um baile, ou da visão tácita ao se deslizar a ponta dos dedos que acariciam folhas em Braille. Formas diferentes de sorver a literatura, ambas unidas pelo mesmo saber e sabor, transmitidos pela leitura.

Do concreto se erguem as cidades, das palavras se constroem os livros, e ambos se encontram nas feiras dedicadas a leitura. Jovens cidades centenárias, com problemas de gente grande (por exemplo, escrever é tão viciante quanto viver, a droga é que muitos preferem as drogas), e que são feitas de ferro e famílias, vidro e vida, aço e amizade, cimento e sonhos, tudo mesclado em mil fragmentos, e impulsionada por milhares de corações.

Pelas veias desses lugares onde repousam nossos lares, andamos rumo ao futuro, muitas vezes esquecendo que somos parte do presente onde se trilham os caminhos que poderão melhorar ou piorar o seu semblante, e que isto depende de nós e de nossos semelhantes. Somos moradores de seu ventre, e nele tantas vezes descansamos, e ao acordar continuamos nossa história, que se torna parte da memória de nossa cidade.

Neste contexto, aqui transcrito em forma de texto, quando percebermos o poder que temos na existência e na vida das localidades onde moramos, e que atos singelos como partilhar de eventos tão belos como as feiras do livro, podem vir a transformar nossos caminhos. Prestigiar tais acontecimentos torna-se mais do que uma manifestação social, sendo um gesto de amor.

Somos pessoas divididas por faixas e trilhos, muros e cercas, individualismo e medo, mas quando nos vemos unidos, formamos um povo com centenas, milhares e até milhões de seres vivos e pensantes. A partir daí começamos a ter a noção da força que podemos ter como sociedade, e de que conseguiríamos fazer até o céu tremer e o chão flutuar com o poder de nossa união.

Cada um de nós é uma letra, nossas famílias formam as palavras, nossos círculos de amizades criam frases, e todas estas frases compõem a cidade onde moramos. As feiras do livro são chances de nos encontrarmos com nossos semelhantes, enquanto nos perdemos no salutar hábito da leitura. E a leitura é alimento que não sacia, ao contrário, ela instiga o apetite do leitor, tornando-o um devorador assíduo de textos, recheados de palavras, temperados com novas idéias e, em muitos casos, adoçados com pitadas de poesia e humor.

Ao terminar de escrever este texto, tendo o frio como companheiro, quis dar minha contribuição não apenas como escritor, mas como cidadão, transformando sentimentos em palavras. Espero que estas palavras tragam a tona à energia que reside dentro de você, conduzindo-o até os livros que esperam por sua chegada de páginas abertas.

Fonte:
Colaboração do autor

Curso de Férias (Técnicas de Contar Histórias)



CURSO DE FÉRIAS
Técnicas de Contar Histórias

Que tal incrementar seu repertório, seus recursos e suas técnicas de contar histórias?
Venha aprender como tornar o momento da leitura um momento mágico e inesquecível para as crianças.

Data: 25 de julho de 2009
Horário: 14:00 às 18:00
Valor: R$ 50,00
Local: Rua Ana Carmela Jurado Ferro, 93
Jardim Emilia - Sorocaba

Público alvo:
Professores de Educação Infantil e Fundamental;
Contadores de Histórias;
Catequistas;
Universitários e
Voluntários .

Objetivos:
Ampliar e incrementar o repertório e recursos de contar histórias;
Conteúdo do programático:
Dicas para o sucesso da contação de Histórias (como contar, como escolher uma história, entonação de voz, postura, que recurso utilizar).
Confecção de fantoches (meias, sucatas, dobraduras, objetos, desenhos)

Fontes:
Colaboração de Douglas Lara
Leitura Viva

Laureano Barros: O homem que fugiu com uma biblioteca


Ele planejava tudo. Era organizado, previdente e perfeccionista. Inflexível com a verdade, a liberdade, a independência, o rigor e a pontualidade, exigia-os de si e dos outros. Laureano Barros tinha, portanto, poucos amigos, mas bons. Antes de morrer, fez uma lista das únicas cinco pessoas que deveriam ser avisadas. Arnaldo Sousa era uma delas.

Costumavam combinar encontros, para conversar. Arnaldo, de 46 anos, que é poeta e professor de Filosofia, conduzia até ao portão da Quinta da Fonte da Cova. Estacionava e esperava no carro, olhando para o relógio, até três minutos antes da hora que tinham marcado. Era esse o tempo exato que levava a chegar, a passo, à porta da casa. Cronometrara-o escrupulosamente. Só então saía. Era um dos contratos que tinham, ao longo de mais de 20 anos de amizade: pontualidade absoluta. Outro era sobre as "datas obrigatórias": era proibido desejar Feliz Natal no dia de Natal, ou dar os parabéns no dia do aniversário. Nessa data, também não se ofereciam presentes.

Outro contrato era a sinceridade. Nunca estariam um com o outro se não o desejassem. Quando fosse preciso dizer não, di-lo-iam sem receio.

Um dia, Arnaldo teve vontade de apresentar Laureano a um psiquiatra seu amigo, que o visitava em Ponte da Barca. Há muito que falava a Zeferino do velho colecionador de livros Laureano Barros, a pessoa que mais admirava no mundo. Telefonou para a quinta e explicou a sua intenção, cheio de entusiasmo. "Posso levá-lo?"

"Não." Arnaldo poderia ter perguntado porquê, mas ficou satisfeito. Respeitar a vontade do amigo era uma obrigação contratual.

"Não quer saber por que eu disse 'não'?", concedeu Laureano.

"Não, não quero saber. Disse 'não' e isso basta-me."

"Mas eu quero explicar-lhe: é que eu não tenho interesse em conhecer mais ninguém."

Resposta implacável. Mas ao mesmo tempo a chave para uma certeza auspiciosa: quando Laureano dissesse "sim", a sua vontade seria genuína.

Recebia Arnaldo para almoçar, com toda a formalidade e etiqueta. Sentava-o a seu lado, mandava servir os pratos que sabia serem os seus prediletos. Ficavam na sala a conversar, durante cinco, seis horas. A empregada, a sr.ª Mariquinhas, entrava apenas quando Laureano tocava a campainha. Por vezes, no Verão, almoçavam na cozinha. Aí, Arnaldo reparou que Laureano lhe oferecia sempre a cadeira onde ele próprio se costumava sentar, em frente à porta, que dava para as árvores da quinta. Uma vez perguntou-lhe e Laureano explicou a razão: "Porque tu és poeta, e os poetas devem ver a natureza."

Falavam de todos os assuntos: literatura, política, filosofia, ciência, a vida e a morte, a amizade e o amor. Laureano era especialista em tudo. Amava a razão, a oratória e o contraditório. Esmiuçava os temas até às últimas consequências. No fim, quando Arnaldo chegava a casa, não era raro ter já vários telefonemas do amigo, que entretanto se lembrara de mais uma achega, mais um argumento. Ligava-lhe e ficavam mais umas horas a debater um pormenor qualquer. Não havia matérias irrelevantes. Todas eram dignas de elucubração e polêmica. A escolha do nome de um cão, por exemplo.

Após uma tarde de discussão, decidiram chamar Preto a um novo cachorro da quinta, por causa das manchas escuras que apresentava no pêlo. À noite, porém, Laureano telefonou a Arnaldo. Mudara de idéias. Ali perto, explicou, estavam hospedados, devido às obras da barragem do Alto Lindoso, alguns trabalhadores africanos. Poderiam ficar ofendidos quando ouvissem chamar pelo cão, que acabaria por ser batizado simplesmente como P, já que, segundo vários livros da especialidade consultados por Laureano, os canídeos só fixam a primeira consoante do nome.

Outro contrato, que também foi cumprido: Arnaldo, que durante algum tempo foi diretor do jornal da terra, não deixaria que O Povo da Barca desse a notícia da morte de Laureano, quando ocorresse.

A juventude

Foi quando foi viver para o Porto, para frequentar o liceu, que o jovem Laureano Barros começou a comprar livros. Frequentava os alfarrabistas e iniciou uma coleção, tal como fazia com os paliteiros, bengalas, relógios, louças, antiguidades ou alfaias agrícolas. Mas ao contrário de toda a traquitana que sempre gostou de trazer para casa, aos livros ergueu uma fidelidade. Não os vendia, não desistia nem se esquecia deles. Começou a acumulá-los na moradia que o pai lhe comprou para se instalar na cidade, na Foz, continuou a ampliar a coleção enquanto viveu nessa casa com a primeira mulher, Leonor, e depois quando se divorciou dela e das seguintes. De cada vez que se separava da mulher com quem vivia (e foram mais mulheres do que os três casamentos), deixava-lhe tudo: a casa, os móveis, as antiguidades. Mas levava consigo a biblioteca. Eram livros de Matemática, de Filosofia, de Botânica, mas acima de tudo de Literatura Portuguesa, e, cada vez mais, volumes curiosos e raros, obras pouco conhecidas, primeiras edições. Por alguns autores tornou-se obcecado e comprava tudo. Depois estendeu a obsessão a todos os escritores. Comprava e lia, várias vezes, os livros de Camilo, Eça, Pessoa, Torga. Sempre teve insônias, e passava-as a ler. Dono de uma memória prodigiosa, sabia páginas e páginas de cor. Perdia horas a arrumar os livros, a manuseá-los, a acariciá-los.

Para ele, eram um salvo-conduto contra a efemeridade de tudo o resto. E também contra a desilusão, como se nada, além dos livros, estivesse à altura dos padrões de excelência que estabeleceu. Do grau de pureza que cedo definiu para a sua vida.

Tendo concluído a licenciatura em Matemática com alta classificação, Laureano foi logo convidado, com 21 anos, para assistente de Rui Luís Gomes, um dos professores mais prestigiados da Faculdade de Ciências do Porto. A bela colega Leonor Moreira obtivera, no secundário, a segunda melhor classificação a Matemática (19) e ele (que teve 20) casou com ela, quando eram ambos estudantes no curso de Matemática da Faculdade de Ciências. Teriam três filhos: Carlos, Rui e Margarida, futuros médico, arquiteto e professora de Matemática.

Mas Rui Luís Gomes era um antifascista incorrigível. Em 1947, a seguir a vários episódios pouco felizes com a PIDE, foi expulso da faculdade, juntamente com outros dois matemáticos, José Morgado e, claro, o reto e incorruptível Laureano Barros, após terem enviado ao Governo uma carta protestando contra a prisão de uma aluna.

Desempregado, Laureano, então com 26 anos, montou uma sala de explicações, em frente ao mercado do Bolhão. Durante mais de 20 anos, viveu disso e pouco mais. Os rendimentos das propriedades familiares de Ponte da Barca, quando chegavam, convertiam-se imediatamente nalguma edição rara de Camilo ou Eça. O mesmo acontecia com as poucas remessas de Angola, onde o pai entretanto se estabelecera e constituíra outra família. Qualquer dinheiro extra era aplicado em extravagâncias bibliófilas, que incluíam, por exemplo, contratar um estudante para lhe catalogar a biblioteca.

Foi o primeiro emprego de Alexandre Outeiro. Laureano Barros pagava ao jovem de Ponte da Barca a estadia numa pensão, mais um salário simbólico, para ele passar os dias a fazer fichas dos livros no T2 que, depois de se divorciar pela segunda vez, arrendara na Rua de Sá da Bandeira. Alexandre cumpria o seu horário de trabalho sozinho no apartamento, mas por volta do meio-dia recebia um telefonema de Laureano convidando-o para o almoço num restaurante, onde passaria a refeição a falar-lhe de livros, cultura e aventuras.

Alexandre ficou a saber, maravilhado, como Laureano, que nunca foi comunista, deu guarida, na casa da Foz, ao militante comunista na clandestinidade Rogério de Carvalho, ou como se encontrou, a meio da noite, num pinhal em Vila do Conde, com a linda militante clandestina do PC Cândida Ventura, que ele não conhecia, para lhe passar uma pasta com documentos secretos. Ou ainda como numa aldeia chamada S. Martinho da Anta havia um velho olmo negro, descrito por Miguel Torga...

Nesta altura já Laureano e Alexandre eram amigos, e davam passeios de vários dias pelo Norte do país, a convite de Laureano, que pagava comidas e dormidas, mas no carro de Alexandre, porque o outro nunca teve carta de condução. Mesmo assim, Alexandre sabia que tinha de chegar ao encontro com o amigo à hora exata que haviam marcado. Se atrasasse um minuto, Laureano era capaz de, zangado, ir sem abrir a boca do Porto a Braga. "Ele exagerava", admite Alexandre Outeiro, que é hoje diretor de uma delegação da Caixa Geral de Depósitos em Gaia. "E sabia que exagerava. Mas era assim. Um homem de um rigor extremo, em tudo o que fazia."

A biblioteca

Depois do 25 de Abril de 1974, Rui Gomes da Silva regressou do exílio no Brasil para ser nomeado reitor da Universidade do Porto. A primeira coisa que fez foi convidar Laureano para dar aulas na Faculdade de Ciências. Relutante, ele aceitou, mas, por discordar dos arbitrários saneamentos de professores, demitiu-se meses depois. Ainda voltou às explicações e lecionou num colégio, mas não se adaptou à balbúrdia da época e, após a morte do irmão, Joaquim, em 1976, mudou-se definitivamente para Ponte da Barca. Ia no terceiro casamento, com a professora de Francês Maria José Caleijo, que continuou a viver no apartamento de Sá da Bandeira. Os livros, esses, viajaram com Laureano. Agora, que herdara a casa grande da família, tinha espaço para eles.

Primeiras edições de Fernão Mendes Pinto, Camões, Vieira, Verney, Eça, Pessoa, Antero ou António Nobre, obras juvenis de Guerra Junqueiro, Torga ou José Gomes Ferreira, edições raras de poetas quinhentistas de Ponte da Barca - a biblioteca começou a crescer em majestade, a tornar-se maior do que si própria, misteriosa e imortal, exigindo reverência e devoção. Laureano foi ficando solitário. Ninguém sabe ao certo porquê.

Laureano Alves, primo de Laureano Barros, acha que ele se tornou um homem desiludido. "Passava muito tempo sozinho, embora adorasse conversar." O comportamento dos outros entristecia-o. Principalmente o dos mais comprometidos com o mundo. Por isso foi cortando elos. Recusou tudo o que lhe ofereceram. Foi convidado para professor catedrático da Faculdade de Ciências, como se tivesse lecionado durante todo o tempo desde a expulsão, em 1947. Não achou justo. Aceitou o cargo de diretor da Escola Secundária de Ponte da Barca, mas por pouco tempo. Segundo uma investigação que instaurou, descobriu serem falsos os atestados médicos que uma professora apresentava para faltar às aulas. Como ela não foi demitida, alegadamente por ter amizades no Ministério da Educação, Laureano pediu a reforma. Mais uma vez, recusou que lhe fosse contado o tempo de serviço desde a sua expulsão da Função Pública, como tinha direito, pelo que ficou com uma pensão miserável.

"Para ele, tudo tinha de ser perfeito", explica o primo.

Não facilitava. Essa era provavelmente a razão por que, sendo um amante da literatura, não escrevia. "O que fizesse teria de ser perfeito. Até uma carta, demorava semanas a escrevê-la. Esse perfecionismo paralisava-o. E, no entanto, escrevia muito bem." Também terá sido por causa do perfecionsmo e obsessão pela verdade que não conseguiu manter nenhum casamento, explica um amigo. Não suportava situações menos que perfeitas, e não conseguia mentir: de cada vez que tinha uma infidelidade, contava logo, o que acabava por levar à separação. Mas continuou amigo de todas as ex-mulheres.

A última, Maria José Caleijo, foi companheira até à sua morte, durante 45 anos, apesar de tudo. A certa altura, por imperativos de coerência, divorciaram-se, embora tivessem continuado juntos.

A solidão

Laureano isolou-se em Ponte da Barca, onde passaria os últimos 30 anos de vida. Fugia das pessoas, e ao mesmo tempo procurava-as. Os outros surgiam-lhe como entidades algo imateriais e o encontro com eles não raro o fazia sentir-se perdido.

Para não se desiludir, preferia por vezes manter à distância aqueles de quem gostava, ignorando a crueldade da atitude. Quando Margarida, a filha, regressou de Inglaterra, onde, muito jovem, fora fazer o doutoramento em Matemática, Laureano fez tudo para que ela não o fosse visitar. Tinha medo que ela tivesse voltado muito esquerdista, e que se zangassem à primeira discussão. Fizera tudo, aliás, para que ela não seguisse Matemática, receando que não conseguisse. Margarida empenhou-se em mostrar que ele estava enganado, concluindo a licenciatura com média de 17.

Talvez cultivasse o relacionamento com os que se prestavam a ser amigos imaginários, metáforas de si próprios. Dizem os psicólogos que os colecionadores compulsivos sofrem de incapacidade de lidar com os outros. Se isso é verdade, os livros, metáforas perfeitas da vida, são a coleção ideal do filantropo solitário.

No entanto, Laureano tornou-se amigo de pessoas que admirava. Lagoa Henriques, Óscar Lopes, Costa Gomes, que foi seu colega de faculdade. O general era visita regular da Quinta da Fonte da Cova, até quando foi Presidente da República (Laureano chegou a enviar-lhe uma carta criticando-o pelas cedências aos comunistas), e o mesmo acontecia com vários intelectuais e artistas, alguns bem pouco convencionais, como Luís Pacheco ou Eugénio de Andrade. Nestes, o austero e rígido Laureano apreciava a liberdade e a capacidade de surpreender. Mas mais tarde ou mais cedo a tolerância levava à colisão.

Eugénio passava grandes temporadas na quinta. Sentia-se em casa e dava largas às suas muitos próprias jovialidade e loucura. Mas quando a mãe de Laureano morreu, não mostrou grande consternação, explicando simplesmente que não gostava de funerais.

Uma vez, numa festa, Laureano apresentou-lhe uma personalidade de Ponte da Barca, um sujeito baixo e gordo que sorria de deferência para com o poeta. Eugénio apertou-lhe a mão - "Muito prazer!" - mas ao mesmo tempo disse para o lado, alto e bom som: "Isto é um homem ou é um cagalhão?"

Foi de mais. Laureano cortou com ele relações, que só viria a reatar, décadas depois, pouco antes da morte do amigo.

A vida na quinta

Em Ponte da Barca, Laureano era amado e odiado, e retribuía ambos os sentimentos. As eminências locais tinham a noção de ter ali uma personalidade de craveira nacional, e tentavam aproveitar-se, oferecendo-lhe cargos e medalhas. Laureano nunca aceitou, alegando que nada fizera pela terra, o que não podia ser mais verdade.

Limitava-se a ser um exemplo, o que nem sempre era devidamente apreciado. Para desconforto de muita gente, a legalidade fiscal era uma das obsessões de Laureano. Quase uma doença. Pagava tudo antes do tempo e até mais do que devia, para não correr o risco de errar. Não admitia a mínima batota. Nas transações de propriedades, era comum assinar-se a escritura por um valor inferior ao real, para pagar menos imposto. Laureano recusava-se, o que lhe impediu alguns negócios. Mas não cedia. Uma vez, quis vender uma das terras da família por 100 mil euros. O comprador aceitava o preço, desde que se fizesse escritura por 10 mil. Laureano fez um acordo: pagaria ele próprio o montante do imposto de transação correspondente a 90 mil euros, que era devido ao outro. Foi aceite e o negócio fez-se.

Intransigente em relação à dignidade das pessoas, Laureando comia com os seus trabalhadores à mesma mesa, o que muitos consideravam esquisito.

Foi também o primeiro, na região, a fazer descontos para a reforma e segurança social dos trabalhadores. Os outros agricultores sentiram-se prejudicados com este precedente e nomearam um representante para interceder junto de Laureano. Quando aquele chegou à quinta sugerindo, com falinhas mansas, que o "senhor doutor", pelo menos, descontasse para a segurança social apenas um dia ou dois, e não a semana inteira, foi corrido com insultos.

A Quinta da Fonte da Cova era um oásis de legalidade. E de alguma loucura também.

Os "meninos"

O patrão achava que devia iniciar os empregados no mundo da bibliofilia e da cultura. Lia para eles, convocava-os para sessões temáticas nos aposentos por onde se distribuía a biblioteca: a sala, a salinha, o quartinho ou mesmo a saleta. Por vezes, anunciava-lhes que iam dar um passeio. Chamava então Arlindo, o seu taxista de serviço, e partiam para um tour literário pelas aldeias do Gerês. No fim, jantavam todos no Restaurante Elevador, no Bom Jesus de Braga. Previamente informado, o gerente reservava uma mesa num recanto discreto, para que o grupo (de "secretários", como Laureano os apresentava) não assustasse os clientes normais do luxuoso restaurante. E lá iam, o Nelinho, o Carlos, o Nuno, o Gi e todos os jornaleiros da quinta, incluindo o lenhador José Corga, que carecia de uma indicação especial à cozinha do restaurante. Corga era um fenômeno: só comia batatas (em dias de festa, com bacalhau - era a sua única concessão), mas não em doses normais. Precisava de um prato especial, de Viana, onde coubesse "meia quarta" (o equivalente a três quilos) de batatas cozidas. Repudiava, aliás, a idéia de que alguém conseguisse comer mais do que ele.

Laureano, que se maravilhava com os prodígios da Natureza, gostava de encorajar e exibir este apanágio do empregado. Por isso, no Elevador, o senhor Corga tinha direito ao seu prato especial de batatas.

O "senhor" Corga. Laureano tratava toda a gente por "senhor". Até um pobre que ia lá a casa levar a carne do talho merecia sempre um "Obrigado, senhor Manuel". Para o Nelinho, isto era pura magia. Nunca tinha visto nada assim. Laureano tinha o estranho poder de elevar as pessoas. De transformar um zé-ninguém num senhor.

"O doutor foi a pessoa mais honesta e culta que conheci à face da terra", diz Manuel Rocha, a quem Laureano chamava Nelo, ou Nelinho, que hoje tem 36 anos, mas está na quinta desde criança. "Ele para mim era tudo. Sempre pensei: com este homem, não preciso de mais nada."

Nelo era uma das várias crianças que trabalhavam ou habitavam na Quinta da Fonte da Cova, tais como o seu irmão, Carlos, o Nuno Leitão ou o Moisés Cerqueira (conhecido como o "Gi"), ou os sobrinhos mulatos de Laureano (filhos dos seus meios-irmãos de Angola), que lá iam passar férias.

O pai de Nelo fora jornaleiro na quinta. Levava-o para lá na época da apanha da maçã, trabalho que requeria gente pequena e leve. Mas um dia emigrou para França e deixou com o "doutor" os filhos, Nelo e Carlos. O "doutor Manuel" e o "engenheiro Carlos", como Laureano passou a designá-los, celebrando o talento para a conversa de um e o jeito de mãos do outro.

Carlos, com efeito, acabaria por arranjar emprego como mecânico de máquinas, e passou a ir à quinta apenas às quartas-feiras, almoçar. Nelo continuou a viver lá, até à morte de Laureano, no ano passado. Encarregava-se de vários trabalhos na quinta, mas também tomava conta da biblioteca e, acima de tudo, tornou-se discípulo, amigo e confidente do patrão. "Nelinho, hoje o dia já está ganho, vamos conversar", chamava Laureano. "Nelinho, comprei um livro novo, vamos vê-lo". E Nelo interrompia o trabalho na quinta, sentava-se na salinha. "Isto, Nelinho, fica só entre nós. Não sai daqui", dizia-lhe Laureano, depois de contar uma visita a um alfarrabista ou a um leilão para adquirir um certo livro raro.

Nelo percebera que a biblioteca se tornara muito valiosa, e não convinha que isso constasse. Era um segredo que guardava. "Nelinho, hoje vamos tirar os livros daquela prateleira. Vamos vê-los." Ou então: "Vai ali à saleta, à segunda prateleira da estante do meio, encostada à janela, tira o terceiro livro a contar do lado norte para sul. Abre na página 153..."

Nelo abria e Laureano, da outra sala, começava a dizer o texto de cor, excertos enormes de Camilo ou Pessoa. Conhecia ao pormenor cada um dos seus livros e sabia exatamente onde se encontrava.

Um dia, Nuno Leitão, que trabalhou na quinta mas depois estudou Informática de Gestão, ofereceu-se para catalogar toda a biblioteca em computador. Laureano agradeceu, mas não precisava: tinha os ficheiros todos na cabeça.

Nuno chegou a viver na Fonte da Cova, mas acabou por ir estudar, encorajado por Laureano. O "Gi", que foi criado na quinta, sairia para casar e arranjar emprego como serralheiro.

A família dele, muito pobre, vivia numa casa em frente. Eram oito irmãos, que cedo se fizeram aos caminhos do fracasso ou do crime. Para lhe dar um futuro alternativo, a mãe de "Gi" pô-lo a viver na quinta, aos seis anos.

Ele e o Nelo, bem como o Carlos e o Nuno, eram como filhos de Laureano. Os seus "meninos", dizia ele. Todos falam do "doutor", hoje, com incondicional afeto e uma orgulhosa emoção. A exaltação quase fanática, possessiva, de quem sente ter tocado uma esfera superior da existência. "Faço questão de ser como ele, na minha vida", diz o Nelinho. "Em cada situação, penso: se o senhor doutor fosse vivo, faria assim. E tento fazer igual."

Não é fácil entender que tipo de influência Laureano exerceu sobre os espíritos destes jovens. Mas basta falar um pouco com eles para perceber que ainda lhe estão submetidos. Têm uma transparência comovente no olhar, que nos faria confiar-lhes a própria vida, sem hesitação.

Não que Laureano tenha sido condescendente com eles. Mas talvez por isso mesmo. "Gi" não teve uma relação fácil com o "doutor", que se zangava, e lhe batia, se ele chegava tarde a casa. Para o punir, mandava a Mariquinhas cozinhar favas com carne, o prato que "Gi" detestava. Uma vez, por ele ter ido ver as cheias do rio e não comparecer a horas no trabalho, deu-lhe uma bofetada. "Gi" fugiu para casa dos pais. No dia seguinte, Laureano telefonou-lhe a pedir que voltasse.

Acima de tudo, irritava-se por o seu "menino" não levar os estudos a sério. Ele ia, no entanto, concluir com êxito o secundário, não tivesse Laureano, que era na altura diretor da escola, irrompido pela reunião de professores, expressamente para não os deixar aprovar o "Gi". "Eu estou com ele em casa e vejo que ele não estuda", garantiu o diretor. "Gi" chumbou e foi trabalhar como serralheiro. Mas não ganhava o suficiente e teve de emigrar para Andorra, porque o "doutor", com os seus rígidos princípios, se recusou a meter uma cunha para lhe arranjar um emprego.

Já o Nelo não quis continuar os estudos, nem empregar-se, para ficar com Laureano. "No meu íntimo, eu sentia que não podia deixar o doutor. Achava que ele precisava de mim", explica o Nelo, que ainda continua na quinta, sem saber que ela vai ser vendida. "A minha filosofia de vida era: enquanto o doutor for vivo, eu fico com ele."

Parece que os dois competem pela maior dedicação a Laureano. "Gi" conta que passou muitos Natais sozinho com ele, quando nem os filhos o vinham visitar. E que, pouco antes da sua morte, era ele quem lhe dava banho.

Nelo e "Gi" contam cheios de vaidade estas compassivas intimidades, como se defendessem um fundamental patrimônio humano.

Laureano dissera à empregada: "Maria, se eu morrer, chama os meninos, para virem ajudar." Foi nessa altura que escreveu a lista de quem deveria ser avisado e as regras para o funeral, que incluíam ser enterrado sem caixão, sem discursos e sem cerimônia religiosa, de preferência na quinta (vontade que, obviamente, não pôde ser cumprida).

Nos últimos tempos de vida, aliás, depois de ter ficado doente, Laureano começou a preocupar-se com a posteridade. Não teve nenhuma fraqueza religiosa - manteve-se agnóstico até ao fim - mas passou a tomar disposições. Uma delas fora o divórcio com Maria José Caleijo, para não causar aos filhos problemas com a herança. Margarida, aliás, que só soube pelos jornais do casamento do pai, foi convidada formalmente para um almoço de divórcio.

Depois, Laureano doou todos os bens aos filhos. Quis poupá-los a burocracias e eventuais contendas. Organizado e precavido como era, passou os últimos anos a preparar o seu desaparecimento. Distribuiu as casas e os terrenos pelos três filhos, mas a sua grande preocupação eram, obviamente, os livros.

"Este ficará para a minha filha", ia dizendo ao Nelinho, "esta coleção para o Carlos...", mas à medida que se aproximava do fim, e ia perdendo o interesse por tudo exceto pelos livros, apercebia-se também de que os filhos não queriam a biblioteca. Pensou em várias soluções - doar as obras a uma instituição, criar uma fundação (idéia do filho Carlos). Mas nenhuma lhe agradou. Por fim, deixou de pensar no assunto. Mergulhou numa estranha apatia, uma inconsciência meticulosa e desesperada, que apenas aos seus "meninos" era visível. E os fazia sofrer.

Como pôde aquele homem que tudo calculava e tudo prevenia ter cometido um erro tão grosseiro? No seu afã de tudo medir pela beleza dos livros, de sublimar neles os seus dias e o seu futuro, nunca lhe passou pela cabeça que a biblioteca pudesse não ser eterna.

Mas não deixou, mesmo sabendo (e decerto aceitando) que em breve tudo aquilo seria vendido em leilão, de folhear, tratar e acariciar os seus livros, com a leveza confiante com que uma criança diz adeus a quem ama. A mesma com que, pouco depois, as mãos grossas e calejadas do "Gi" lhe seguraram o rosto que partia.

Fonte:
Colaboração de Douglas Lara sobre artigo de autoria de Paulo Moura, em 5 de julho de 2009, para o jornal Público.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Trova XXXIX

Leon Tolstói (Os Tres Eremitas)



Um arcebispo e seus vários assessores estão fazendo uma viagem de navio. Quando é avistada uma pequena ilha no horizonte, um pescador conta a outros passageiros sobre três velhos eremitas que ali vivem. Segundo o pescador, os eremitas são santos, servos abençoados por Deus com miraculosos poderes.

Interessado, o arcebispo pede mais informações ao pescador, que descreve como é peculiar a aparência dos três anciãos, com suas longas barbas e cabelos brancos. O arcebispo pergunta ao capitão do navio sobre a existência dos tais “santos” e o capitão afirma que não passam de três “imbecis que não intendem nada e são mudos como os peixes do mar”. Ainda assim, curioso para conhecê-los, o arcebispo pede que desembarquem na pequena ilha.

O capitão tenta fazer o arcebispo mudar de idéia, mas, em troca de dinheiro, modifica o curso do navio. Em pouco tempo, o navio é ancorado nas proximidades da ilha. Um barco a remo é baixado ao mar e o arcebispo e levado à praia por alguns remadores. Lá, com o auxílio de um pequeno telescópio, o arcebispo avista os três velhos sobre uma grande rocha.

O arcebispo vai até os eremitas e pede que eles lhe contem como é que demonstram sua devoção, de que forma oram a Deus. O mais velho deles informa que eles apenas repetem uma simples prece: “Vós sois três. Nós somos três. Tenha piedade de nós.”

O arcebispo acha engraçada a prece tão simples dos eremitas. Citando a Sagrada Escritura, ele se esforça para ensinar aos três o “Pai Nosso”. Diversas vezes, os velhos repetem a oração e, com dificuldade, acabam por aprendê-la.

Ao anoitecer, o arcebispo despede-se dos velhos e volta para o navio. Ele está muito orgulhoso de si mesmo, agradecendo a Deus por ter tido a chance de ensinar àqueles homens tão simples a maneira certa de rezar.

Quando a ilha já está bem distante no horizonte, o arcebispo repara numa luz que vem se aproximando do navio. O arcebispo fica confuso, sem saber do que se trata. Finalmente, o capitão consegue enxergar. São os três eremitas que estão correndo sobre as águas do mar em direção ao barco.

Toda a tripulação pára para ver o evento milagroso. Quando os três velhos chegam perto do barco, um deles explica que esqueceram parte da prece que o arcebispo tinha ensinado e queriam recordá-la.

O arcebispo fica maravilhado com o que está vendo e diz ao mais velho dos eremitas que a prece que costumavam dizer já estava perfeita para Deus. Felizes, os três santos retornam para sua ilha, caminhando despreocupados sobre as águas.

Paulo Mendes Campos (Poesias)


NESTE SONETO

Neste soneto, meu amor, eu digo,
Um pouco à moda de Tomás Gonzaga,
Que muita coisa bela o verso indaga
Mas poucos belos versos eu consigo.
Igual à fonte escassa no deserto,
Minha emoção é muita, a forma, pouca.
Se o verso errado sempre vem-me à boca,
Só no peito vive o verso certo.
Ouço uma voz soprar à frase dura
Umas palavras brandas, entretanto,
Não sei caber as falas de meu canto
Dentro de forma fácil e segura.
E louvo aqui aqueles grandes mestres
Das emoções do céu e das terrestres.

CAMAFEU

A minha avó morreu sem ver o mar. Suas mãos, arquipélago de nuvens,
Matavam as galinhas com asseio; o mar também dá sangue quando o peixe
Vem arrastado ao mundo (o nosso mundo); no entanto no mar é muito diferente.
As gaivotas, mergulhando, indicam o caminho mais curto entre dois sonhos
Mas minha avó era feliz e doce como um nome pintado em uma barca.
Sua ternura eterna não temia a trombeta do arcanjo e o Dies lrae:
Sentada na cadeira de balanço, olhava com humor os vespertinos.
Sua figura pertenceu à terra, porém o mar, rainha impaciente,
0 mar é uma figura de retórica. No porto de Cherburgo, há muitos anos,
Ouvi na cerração o mar aos gritos, mas minha avó jamais ergueu a voz:
Penélope cristã, enviuvada, fazia colchas de retalhos fulvos.
0 mar é uma louça que se parte contra as penhas, enquanto minha avó
Fechava a geladeira com um jeito suave, anterior às geladeiras.
Igual ao mar, os dedos da manhã a despertavam num rubor macio;
Pelo seu corpo quase centenário a invisível vaga do sol se espraiava,
A carne se aquecia na torrente dos constelados glóbulos do sangue,
As pombas aclamavam outro dia da crônica do mundo (o nosso mundo)
E de uma criatura que se orvalha em suas bodas com a terra dos pássaros
Matutinos, das frutas amarelas, da rosa ensangüentando de vermelho
0 verde, o miosótis, o junquilho, e em tudo um rumor fresco de águas novas,
Um verdejar de abóboras, pepinos, um leite grosso e tenro, e minha avó
Com tímida alegria indo, vindo, a prever e ordenhar um dia a mais,
Assim como as abelhas determinam mais 24 horas de doçura.
E enfim no litoral destes brasis, o mar afogueado amando a terra
Com seu amor insaciável, dando um mundo ao mundo (o nosso mundo)
E a gravidade intransigente do mistério. Mas minha avó morreu sem ver o mar.

BALADA DO AMOR PERFEITO

Pelos pés das goiabeiras,
pelos braços das mangueiras,
pelas ervas fratricidas,
pelas pimentas ardidas,
fui me aflorando.

Pelos girassóis que comem
giestas de sol e somem,
por marias-sem-vergonha,
dos entretons de quem sonha
fui te aspirando.

Por surpresas balsaminas,
entre as ferrugens de Minas,
por tantas voltas lunárias,
tantas manhãs cinerárias,
fui te esperando.

Por miosótis lacustres,
por teus cântaros ilustres,
pelos súbitos espantos
de teus olhos agapantos,
fui te encontrando.

Pelas estampas arcanas
do amor das flores humanas,
pelas legendas candentes
que trazemos nas sementes,
fui te avivando.

Me evadindo das molduras
de minhas albas escuras,
pelas tuas sensitivas,
açucenas, sempre-vivas,
fui me virando.

Pela rosa e o rosedá,
pelo trevo que não há,
pela torta linha reta
da cravina do poeta,
fui te levando.

Pelas frestas das lianas
de tuas crespas pestanas,
pela trança rebelada
sobre o paredão do nada,
fui te enredando.

Pelas braçadas de malvas,
pelas assembléias alvas
de teus dentes comovidos,
pelo caule dos gemidos
fui te enflorando.

Pelas fímbrias de teu húmus,
pelos reclames dos sumos,
sobre as umbelas pequenas
de tuas tensas verbenas,
fui me plantando.

Por tuas arestas góticas,
pelas orquídeas eróticas,
por tuas hastes ossudas,
pelas ânforas carnudas,
fui te escalando.

Por teus pistilos eretos,
por teus acúleos secretos,
pelas úsneas clandestinas
das virilhas de boninas,
fui me criando.

Pelos favores mordentes
das ogivas redolentes,
pelo sereno das zínias,
pelos lábios de glicínias,
fui te sugando.

Pelas tardes de perfil,
pelos pasmados de abril,
pelos parques do que somos,
com seus bruscos cinamomos,
fui me espaçando.

Pelas violas do fim,
nas esquinas do jasmim,
pela chama dos encantos
de fugazes amarantos,
fui me apagando.

Afetando ares e mares
pelas mimosas vulgares,
pelos fungos do meu mal,
do teu reino vegetal
fui me afastando.

Pelas gloxínias vivazes,
com seus labelos vorazes,
pela flor que se desata,
pela lélia purpurata,
fui me arrastando.

Pelas papoulas da cama,
que vão fumando quem ama,
pelas dúvidas rasteiras
de volúveis trepadeiras
fui te deixando.

Pelas brenhas, pelas damas
de uma noite, pelos dramas
das raízes retorcidas,
pelas sultanas cuspidas,
fui te olvidando.

Pelas atonalidades
das perpétuas, das saudades,
pelos goivos do meu peito,
pela luz do amor perfeito,
Vou te buscando.

EPITÁFIO

Se a treva fui, por pouco fui feliz.
Se acorrentou-me o corpo, eu o quis.
Se Deus foi a doença, fui saúde.
Se Deus foi o meu bem, fiz o que pude.
Se a luz era visível, me enganei.
Se eu era o só, o só então amei.
Se Deus era a mudez, ouvi alguém.
Se o tempo era o meu fim, fui muito além.
Se Deus era de pedra, em vão sofri.
Se o bem foi nada, o mal foi um momento.
Se fui sem ir nem ser, fiquei aqui.

Para que me reflitas e me fites
estas turvas pupilas de cimento:
se devo a vida à morte, estamos quites.

TESTAMENTO DO BRASIL

Que já se faça a partilha.
Só de quem nada possui
nada de nada terei.
Que seja aberto na praia,
não na sala do notário,
o testamento de todos.
Quero de Belo Horizonte
esse píncaro mais áspero,
onde fiquei sem consolo,
mas onde floriu por milagre
no recôncavo da brenha
a campânula azulada.
De São João del-Rei só quero
as palmeiras esculpidas
na matriz de São Francisco.
Da Zona da Mata quero
o Ford envolto em poeira
por esse Brasil precário
dos anos vinte (ou twenties),
quando o trompete de jazz
ruborizava a aurora
cor de cinza de Chicago.
Do Alto do Rio Negro
quero só a solidão
compacta como o cristal,
quero o índio rodeando
o motor do Catalina,
quero a pedra onde não pude
dormir à beira do rio,
pensando em nós-brasileiros
- entrelaçados destinos -
como contas carcomidas
de um rosário de martírios.
De Lagoa Santa quero
o roxo da Sexta-feira,
quero a treva da ladeira,
os brandões da noite acesa,
quero o grotão dos cajus,
onde surgiu uma vez
no breu da noite mineira
uma alma doutro mundo.
Da porta pobre da venda
de todos os povoados
quero o silêncio pesado
do lavrador sem trabalho,
quero a quietude das mãos
como se fossem de argila
no balcão engordurado-.
Ainda quero da vila
ira que se condensa,
dor imóvel e dura
como um coágulo no sangue.
Da Fazenda do Rosário
quero o mais árido olhar
das crianças retardadas,
quero o grito compulsivo
dos loucos, fogo-pagô
de entardecer calcinado,
a névoa seca e o não,
o não da névoa e o nada.
Da cidade da Bahia
quero os pretos pobres todos,
quero os brancos pobres todos,
quero os pasmos tardos todos.
Do meu Rio São Francisco
quero a dor do barranqueiro,
quero as feridas do corpo,
quero a verdade do rio,
quero o remorso do vale,
quero os leprosos famosos,
escrofulosos famintos,
quero roer como o rio
o barro do desespero.
Dos mocambos do Recife
quero as figuras mais tristes,
curvadas mal nasce o dia
em um inferno de lama.
Quero de Olinda as brisas,
brisas leves, brisas livres,
ou como se quer um sol
ou a moeda de ouro
quero a fome do Nordeste,
toda a fome do Nordeste.
Das tardes do Brasil quero,
quero o terror da quietude,
quero a vaca, o boi, o burro
no presépio do menino
que não chegou a nascer.
Dos domingos cor de cal
quero aquele som de flauta
tão brasileiro, tão triste.
De Ouro Preto o que eu quero
são as velhinhas beatas
e a água do chafariz
onde um homem se dobrou
para beber e sentiu
a pobreza do Brasil.
Do Sul, o homem do campo,
matéria-prima da terra,
o homem que se transforma
em cereal, vinho e carne.
Do Rio quero as favelas,
a morte que mora nelas.
De São Paulo quero apenas
a banda podre da fruta,
as chagas do Tietê,
o livro de Carolina.
Do noturno nacional
quero a valsa merencórea
com o céu estrelejado,
quero a lua cor de prata
com saudades da mulata
das grandes fomes de amor.
Do litoral feito luz
quero a rude paciência
do pescador alugado.

Da aurora do Brasil
- bezerra parida em dor -
apesar de tudo, quero
a violência do parto
(meu vagido de esperança).
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Paulo Mendes Campos (28 Fevereiro 1922 – 1 Julho 1991)



Paulo Mendes Campos nasceu a 28 de fevereiro de 1922, em Belo Horizonte - MG, filho do médico e escritor Mário Mendes Campos e de D. Maria José de Lima Campos. Começou seus estudos na capital mineira, prosseguiu em Cachoeira do Campo (onde o padre professor de Português lhe vaticinou: "Você ainda será escritor") e terminou em São João del Rei.

Começou os estudos de Odontologia, Veterinária e Direito, não chegando a completá-los. Seu sonho de ser aviador também não se concretizou. Diploma mesmo, gostava de brincar, só teve o de datilógrafo. Muito moço ainda, ingressou na vida literária, como integrante da geração mineira a que pertence Fernando Sabino e pertenceram os já falecidos Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino, João Ettiene Filho e Murilo Rubião. Em Belo Horizonte, dirigiu o suplemento literário da Folha de Minas e trabalhou na empresa de construção civil de um tio.

Veio ao Rio de Janeiro, em 1945, para conhecer o poeta Pablo Neruda, e por aqui ficou. No Rio já se encontravam seus melhores amigos de Minas — Sabino, Otto, e Hélio Pellegrino. Passou a colaborar em O Jornal, Correio da Manhã (de que foi redator durante dois anos e meio) e Diário Carioca. Neste último, assinava a "Semana Literária" e, depois, a crônica diária "Primeiro Plano". Foi, durante muitos anos, um dos três cronistas efetivos da revista Manchete.

Admitido no IPASE, em 1947, como fiscal de obras, passou a redator daquele órgão e chegou a ser diretor da Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.

Em 1951 lança seu primeiro livro, "A palavra escrita" (poemas).

Casou-se, nesse mesmo ano, com Joan, de descendência inglesa, tendo tido dois filhos: Gabriela e Daniel.

Buscando meios de sustentar a família, Paulo Mendes Campos foi repórter e, algumas vezes, redator de publicidade

Foi, também, hábil tradutor de poesia e prosa inglesa e francesa — entre outros Júlio Verne, Oscar Wilde, John Ruskin, Shakespeare, além de Neruda, tendo enriquecido sua experiência humana em viagens à Europa e à Ásia.

Em 1962, experimentou ácido lisérgico, acompanhado por um médico. Relatou sua experiência em artigos publicados na revista "Manchete", depois reproduzidas em "O colunista do morro" e em "Trinca de copas", seu último livro. Disse que a droga abriu "comportas" e ele se deixou invadir pelo "jorro caótico"do inconsciente até sentir o peso e a nitidez das palavras que produziam um "milagre da voz". E completava: "A comparação não presta, mas por um momento eu era uma espécie de São Francisco de Assis falando com o lobo. O lobo também sabe que amor com amor se paga".

Em 1967, em seu livro "Hora do Recreio", escreveu:


Autobiografia

1922 - Semana de Arte Moderna, revolta do Forte de Copacabana, morte do Papa, o rei entrega o poder a Mussolini. Nada tenho com tudo isso: simplesmente nasço.

1923 - Morre o Rui, Stalin assume a chefia do poder soviético, putch de Hitler em Munique. Eu nada disse, nada me foi perguntado.

1924 - Revolução em São Paulo, estado de sítio. Dou para quebrar minhas mamadeiras, após o ato de esvaziá-las. O califado turco entra pelo cano.

1925 - Começo a ver o diabo dançando em torno de meu berço;e gosto.

1928 - Carmona, presidente de Portugal; Hiro-Hito, imperador do Japão. Ganho um par de botinas e durmo abraçado a elas.

1927 - Com o nome de Charles Lindbergh, atravesso o Atlântico pilotando o Spirit of Saint Louis.

1928 - Antônio de Oliveira Salazar torna-se precocemente ministro das finanças portuguesas; perco na Rua Tupis uma prata de dois mil-réis.
1929 - Craque na bolsa de Nova Iorque. Pulo do bonde em movimento na rua da Bahia, esborracho-me no chão, um Ford último modelo consegue parar em cima de mim, e quase não fico para contar a história.

1930 - Revolução: mesmo com fratura dupla no braço, dou o melhor de mim ao lado das tropas rebeldes e, logo após, ao lado das tropas legalistas. Na caixa d'água da Serra leio 0 Barão de Münchausen.

1931 - A Inglaterra deixa o padrão ouro, Afonso XIII deixa o trono espanhol. Eu, Robinson Crusoé, naufrago no Pacífico, chego a uma ilha cheia de ilustrações coloridas e me torno amigo de Sexta-Feira.

1932 - Revolução de São Paulo. Luto na Mantiqueira, tremendo de frio e de coragem; não tenho muita certeza se morro ou não.

1933 - Morre dentro da banheira o Presidente Olegário Maciel. O Padre Coqueiro vem dizer que as aulas estão suspensas por motivo de luto nacional. Viva Olegário Maciel! Fujo da casa paterna, materna, fraterna, mochila nas costas, em busca dos índios de Mato Grosso; regresso ao atingir as terras da Mutuca, hoje subúrbio de Belo Horizonte.

1934 - Hitler é Führer do Reich; eu não sei se sou Winetou ou Mão de Ferro.

1935 - Mussolini ataca a Abissínia; ataco e defendo no time da divisão dos médios como centro-médio.

1936 - Morre George V, viva Eduardo VIII, que renuncia, sobe ao trono George VI. Ganho com alegria o bilhete azul do colégio.

1937 - O golpe do Estado Novo me pega de surpresa, quando subo as escadas da capela do outro colégio para a benção do Santíssimo e uma prática chatíssima de Frei Mário.

1938 - Os japoneses tomam Cantão; no Hotel Espanhol, São João del-Rei, os bacharelandos do Ginásio de Santo Antônio tomam vinho Gatão e recitam um ditirambo de Medeiros de Albuquerque (estava no florilégio do compêndio): "Bebe! e se ao cabo da noite escura, / Hora de crimes torpes, medonhos, / Varrer-te acaso da mente os sonhos, / Cerra os ouvidos à voz do povo! / Ergue teu cálice, bebe de novo!" Foi o que fizemos.

1939 - Começo a guerra.

1940 - Caio com a França.

1941 - Não sou mais eu: 1) sou como o rei de um país chuvoso; 2) sou uma nuvem de calças; 3) sou 350; 4) sou triste e impenetrável como um cisne de feltro. E assim por diante.

1942 - Atingido pelo mal do século (XVIII), mato-me no Parque Municipal. Meu nome é Werther.

1943 - Venço a batalha de Stalingrado.

1944 - Maquis.

1945 - Tomo o noturno mineiro e me mudo para o Rio, acabo com a ditadura.

1946 - 1955 – Yo era un tonto.

1956 - 1960 - Lo que hé visto me ha hecho dos tontos.

1961 - Subo no espaço sideral, dou uma volta em torno da Terra na primeira nave cósmica tripulada por um ser humano. Depois desço no Bico de Lacre, bar dos mentirosos e sonhadores, e digo: "O Mundo é azul.”

(Publicado no livro “Hora do Recreio”, Editora Sabiá/1967, pág. 07, relançado em 1976 com o título de “Rir é o Único Jeito (Supermercado)”, Editora Tecnoprint S.A. – Rio de Janeiro, pág. 11).

Cético, sem perder a ternura, jamais fez concessões e tinha horror à vulgaridade, fosse ela temática ou vernacular. A perplexidade humana é devassada em sua poesia; sua prosa é penetrante, algumas vezes cheia de bom humor.

Paulo Mendes Campos faleceu na cidade do Rio de Janeiro no dia 1° de julho de 1991, aos 69 anos de idade.

Em 1999 foi homenageado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro: tem seu nome uma pequena praça que fica no cruzamento das ruas Dias Ferreira, Humberto de Campos e General Venâncio Flores, no Leblon.

Um de seus livros, publicado pela Editora do Autor, teve esta apresentação, que bem define o escritor:

"Homem em quem o gosto das leituras requintadas e as orgias silenciosas do pensamento não estragaram ao prazer e a emoção dos encontros com o povo e com a vida de todo dia, Paulo Mendes Campos faz, na leveza de suas crônicas, páginas que vencem o efêmero pela sua qualidade literária e pela sua autêntica vibração humana".


Bibliografia:

A Palavra Escrita, poesia, 1951
Forma e Expressão do Soneto, antologia, 1952
Testamento do Brasil, poesia, 1956
O Domingo Azul do Mar, poemas, Rio de Janeiro, 1958
Páginas de Humor e Humorismo, antologia, ampliada e reeditada em 1965 sob o título Antologia Brasileira de Humorismo.
O Cego de Ipanema, crônicas, 1960
Homenzinho na Ventania, crônicas, 1962
O Colunista do Morro, crônicas, 1965
Testamento do Brasil e Domingo Azul do Mar (poemas - edição conjunta), 1966
Hora do Recreio, crônicas, 1967
O Anjo Bêbado, crônicas, 1969
Trinca de Copas, 1984
Rir é o Único Jeito (Supermercado), (Reedição de Hora do Recreio, com novo título - livro de bolso).
O Amor Acaba - Crônicas Líricas e Existenciais , Rio de Janeiro, 1999.
Cisne de Feltro - Crônicas Autobiográficas , 2000.
Alhos e Bugalhos , 2000.
Brasil brasileiro — Crônicas do país, das cidades e do povo, 2000.
Murais de Vinícius e outros perfis , 2000.
O gol é necessário — Crônicas esportivas , 2000.
Artigo indefinido , 2000.
De um caderno cinzento — Apanhadas no chão , 2000.
Balé do pato e outras crônicas , 2003.
A volta ao mundo em 80 dias - Tradução e adaptação do livro de Julio Verne, 2004.
Quatro histórias de ladrão, 2005.

Fonte:
Releituras

Antonio Lobo Antunes (Os Trocos do Amor)



Se não te faz diferença fica mais um bocadinho que não me estou a sentir bem, qualquer coisa no coração, acho eu, que de vez em quando pára (não estou a brincar, pára mesmo) deixo de respirar, vem-me um aperto aqui, na garganta, de maneira que é um favor que te peço, só um favor, não imagines que há alguma coisa por trás, juro que não há nada por trás, dá-me mais segurança se te sentares aí uns minutos para o caso de ser preciso chamar os bombeiros, os médicos, sei lá, como não consigo pegas tu no auscultador e pronto e depois vais à vida que não tenho nada com isso, descansa que não te incomodo com telefonemas ou esperas, aquilo de me encontrar com a tua mulher foi uma vez sem exemplo, a discussão, a cena, tu envergonhadíssimo

- Por amor de Deus acabem com as partes gagas, por amor de Deus acabem com as partes gagas

juro pela minha mãe que não se repete e a minha mãe também não anda muito católica da tensão e dos rins portanto já vês, não há motivo para alarmes, só te peço que fiques até isto acalmar, se não acreditas em mim vê-me o pulso, nem se encontra pois não, estava mais certa que não se encontrava, carrega com o dedo para dentro, experimenta no outro braço que pode suceder que o sangue deste entupido, experimenta nos dois braços ao mesmo tempo, experimenta no peito a ver se a máquina trabalha, não ao meio, parvo, ninguém tem a máquina ao meio, do lado esquerdo, por cima do cima do soutien e do vestido é difícil, espera que eu te baixe a alça, estes soutiens almofadados também não ajudam, enfia a mão lá dentro mas livra-te de te aproveitares e conta-me se bate, já te disseram que estás cheio de cabelos brancos meu Deus, onde arranjaste tantos cabelos brancos em seis meses, quando eu tomava conta de ti nem um para amostra, cabelos brancos, rugas, papos nos olhos, até eras bonito e agora velho, olha a mãozinha dele a aproveitar-se, tornaste-te um velho abusador, se calhar trazes fotografias de criaturas nuas na carteira, malandro, aguenta os cavalos que o fecho do soutien está a magoar-me nas costas, vê se consegues desapertá-lo, não é para a esquerda é para a direita seu tonto, falta um colchete, que desajeitado, dantes desapertavas que era uma limpeza e hoje nem acertas com ele, mais abaixo, não, mais acima, aí mesmo, obrigada, oxalá não me tenhas arranjado uma marca na pele, uma ferida, sempre fui tão sensível e diz-me com franqueza, não me mintas tu que passaste a vida a mentir, se o coração bate ou não bate, bate num fiozito aposto, qual forte, não tenho força para mandar cantar um cego, aí vens tu com as aldrabices, não há cura possível, qual forte, qual forte e qual gemido seu cretino, nem um som deitei, a que propósito me punha a gemer, diz lá, tira a manápula depressa antes que me zangue contigo, não ouviste pois não, deste em surdo também para além de velho e feio, tira a manápula depressa foi o que eu mandei, antes que me zangue contigo e o que é isso no joelho, festinhas, andamos a brincar ou quê, estás a ver se as meias são caras, é isso, claro que não são collants, não uso collants olha o saloio, collants usam as lêndeas com quem tu deves sair, por acaso estas meias têm liga aderente de renda com flores encarnadas, sempre gostei da mistura do preto com o encarnado e cuidadinho que me custaram um balúrdio, percebe-se logo pelo toque aliás, não percebes pelo toque meu vadio e depois quase opacas já viste, aprende o que é uma senhora elegante tu que de certeza te habituaste a sopeiras, aprende o que é uma senhora elegante, anda, aprende o que é lingerie de bom-gosto, aí está o coração a parar de novo, não te levantes ainda, tem paciência, aguenta, se te apetece beijar-me os joelhos beija desde que não me deixes sozinha sem energia para os bombeiros, os médicos, este suspiro foram os pulmões a morrerem, não te passe pela cabeça que um joelho me comove, não comove, na barriga sim ou no ombro, no joelho nem visto, o que é isso seu atrevido, quietinho, mencionei a barriga e o ombro como exemplos, não para cócegas, houve um tempo em que percebias de carícias, e agora, pelos vistos, só percebes de cócegas, o que tens andado a fazer, parvalhão, que nem de uma carícia em condições és capaz, mais devagar, mais de leve, assim não vamos lá, recomeça, não te espevites a meter os dentes, sem dentes por enquanto, a boca, a pontinha da língua até que eu um arrepio, foi melhor, insiste, é preciso ensinar tudo, que gaita, o que as pessoas esquecem, faz uma pausa que o coração me parou, respeita a minha saúde por favor tu que não respeitas nada, tenho mãe, tenho uma sobrinha a estudar, tudo isso custa dinheiro entendes e adivinha quem paga, se não adivinhas informo-te que é aqui a idiota, quem tu querias que fosse, sou uma fraca, uma ingênua, o outro ombro vá, onde é que eu ia, ia que sou uma fraca, uma ingênua, o mundo inteiro faz de mim gato-sapato a começar por ti, toma cuidado que me trilhaste a coxa, pronto, recomeça e não me venhas com o paleio do divórcio, o paleio que dormes noutro quarto lá em casa, cala-te, quando muito meu amor e pronto, quando muito fofinha, sou fofinha não sou, sabe-te bem não sabe, passa do ombro ao pescoço, aproxima-te da nuca, aproxima-te da orelha, o lóbulo primeiro e o resto depois, que raio de calças as tuas com o fecho-éclair empenado, para os chichis que problema, encravaste isto tudo, deixa-te estar quietinho que eu resolvo, tenho mais jeito que tu, não respires com tanta gana que me assustas, não digas palavrões que me enervas, guarda-os para as tuas amigas que se fingem excitar com ordinarices, comigo é como deve ser, com ternura, sou um bebé, uma menina, uma coisinha frágil e doce, repete-me ao ouvido que sou uma coisinha frágil e doce, deita-me no sofá mas lento, mas calmo e chega aqui coisinha frágil e doce, diz à tua menina que a adoras, ao teu bebé, ao teu rebuçado, diz ao teu rebuçado que o adoras e se fores à casa de banho ante de te ires embora não me molhes o chão, parti a esfregona e não estou para andar de gatas com um pano que a minha coluna já não é o que era e não fica cá ninguém para me massagear as costas com creme.”

Fontes:
http://pisares.blogspot.com/2007/10/os-trocos-do-amor.html
Imagem = http://cantinhodumaalma.blogs.sapo.pt

António Lobo Antunes (1942)



António Lobo Antunes (Lisboa, 1 de Setembro de 1942) é um escritor e psiquiatra português.

Proveniente de uma família da alta burguesia, licenciou-se em Medicina e especializou-se em Psiquiatria. Exerceu a profissão no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, dedicando-se desde 1985 exclusivamente à escrita. A experiência em Angola na Guerra do Ultramar como Tenente e Médico do Exército Português durante vinte e sete meses (de 1971 a 1973) marcou fortemente os seus três primeiros romances.

Em termos temáticos, a sua obra prossegue com a tetralogia constituída por A Explicação dos Pássaros, Fado Alexandrino, Auto dos Danados e As Naus, onde o passado de Portugal, dos Descobrimentos ao processo revolucionário de Abril de 1974, é revisitado numa perspectiva de exposição disfórica dos tiques, taras e impotências de um povo que foram, ao longo dos séculos, ocultados em nome de uma versão heróica e epopeica da história. Segue-se a esta série a trilogia Tratado das Paixões da Alma, A Ordem Natural das Coisas e A Morte de Carlos Gardel – o chamado «ciclo de Benfica» –, revisitação de geografias da infância e adolescência do escritor (o bairro de Benfica, em Lisboa). Lugares nunca pacíficos, marcados pela perda e morte dos mitos e afetos do passado e pelos desencontros, incompatibilidades e divórcios nas relações do presente, numa espécie de deserto cercado de gente que se estende à volta das personagens.

Antunes começou por utilizar o material psíquico que tinha marcado toda uma geração: os enredos das crises conjugais, as contradições revolucionárias de uma burguesia empolgada ou agredida pelo 25 de Abril, os traumas profundos da guerra colonial e o regresso dos colonizadores à pátria primitiva. Isto permitiu-lhe, de imediato, obter um reconhecimento junto dos leitores, que, no entanto, não foi suficientemente acompanhado pelo lado da crítica. As desconfianças em relação a um estranho que se intrometia no meio literário, a pouca adesão a um estilo excessivo que rapidamente foi classificado de «gongórico» e o próprio sucesso de público, contribuíram para alguns desentendimentos persistentes que se começaram a desvanecer com a repercussão internacional (em particular em França) que a obra de António Lobo Antunes obteve.

Ultrapassado este jogo de equívocos, tornou-se um dos escritores portugueses mais lidos, vendidos e traduzidos em todo o mundo. Pouco a pouco, a sua escrita concentrou-se, adensou-se, ganhou espessura e eficácia narrativa. De um modo impiedoso e obstinado, esta obra traça um dos quadros mais exaustivos e sociologicamente pertinentes do Portugal do século XX.

A sua obra prosseguiu numa contínua renovação linguística, tendo os seus romances seguintes (Exortação aos Crocodilos, Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura, Que Farei Quando Tudo Arde?, Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo), bem recebidos pela crítica, marcando definitivamente a ficção portuguesa dos últimos anos.

Em 2007 foi distinguido com o Prêmio Camões, o mais importante prêmio literário de língua portuguesa. Em 2008 foram-lhe atribuídas, pelo Ministério da Cultura francês, as insígnias de Comendador da Ordem das Artes e das Letras francesas.

Lobo Antunes foi militante da Aliança Povo Unido, por alguns meses, em 1980.

Muitos dos livros de Antunes referem ou reportam-se a todo o processo de passagem do fim do Estado Novo até à implantação da Democracia. O fim da Guerra Colonial, o fim de um mundo burguês marcado por valores conservadores e retrógrados. Os problemas de mudança social rápida no 25 de Abril de '74 e, consequentemente, a instabilidade política vivida em Portugal. Esse processo de passagem é espelhado nas relações familiares. Regra geral aparecem nos romances deste autor famílias disfuncionais em que o indivíduo está a perder os seus referentes, em que a comunicação é ou nula ou superficial entre os seus membros. Regra geral os anti-heróis dos seus romances são pessoas que exercem profissões liberais oriundos de «boas famílias».

Estilo

Densidade

Antunes tem uma escrita densa. O leitor tem algum esforço de leitura porque, por exemplo, não é raro haver mudanças de narrador e assim o leitor tem tendência a «perder o fio à meada». No entanto apesar de não ser um autor que opte por uma escrita fácil (ou facilitista) constitui um fenómeno de vendas e é muito lido internacionalmente, especialmente na Europa Continental.

Mudança de narrador

Na esteira de James Joyce ou de The Sound and the Fury de Faulkner, o narrador é por vezes trocado, como se o ponto de vista saltasse de personagem em personagem. Isto dá uma qualidade de caleidoscópio ao desenrolar da narrativa.

Obsessividade

Os livros de Antunes são muito obsessivos e labirínticos dando um tom geral de claustrofobia e paranóia às suas obras. Apesar disso as suas obras apresentam uma diversidade linguística notável.

Sintagmas nominais complexos

Ocorre muitas vezes numa descrição ou pensamento do que está a acontecer a um personagem aparecerem sobrepostos tanto o que está "realmente" a acontecer como uma realidade imaginária. Outros processos típicos são sintagmas nominais complexos como por exemplo "cachoeira dos pulmões". Aqui os substantivos (S1 de S2) não funcionam da maneira habitual em que S2 atribui propriedades sobre S1 ("copo de água"; água está a especificar o conteúdo do copo) mas funcionando este sintagma como uma metáfora ou como uma comparação. (assim esta imagem seria descrita num português mais habitual como "os pulmões fazendo barulho como uma cachoeira"). Em As Naus, um velho cego tem "olhos lisos de estátua"; em Manual dos Inquisidores, uma luneta é descrita como sendo "um tubo de inventar planetas".

Simultaneidade

Tipicamente ocorrem várias descrições simultâneas, tanto físicas como de pensamentos. É habitual uma realidade do passado estar misturada com uma realidade do presente. No meio de um diálogo serem inseridos diálogos imaginários ou do tempo passado. Estes processos são usados com maestria por este autor resultando efeitos de grande valor literário.

Prêmios literários

Prêmio Franco-Português, 1987 ("Cus de Judas") (Prêmio instituído pela embaixada de França em Lisboa, no valor de duzentos mil escudos e atribuído a obras traduzidas para a língua francesa nos últimos cinco anos.)
Grande Prêmio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, 1985 ("Auto dos Danados")
Prêmio Melhor Livro Estrangeiro publicado em França, 1997 ("Manual dos Inquisidores ")
Prêmio Tradução Portugal/Frankfurt, 1997 ("Manual dos Inquisidores")
France-Culture ("A Morte de Carlos Gardel")
Prêmio de Literatura Europeia do Estado Austríaco, 2000
Prêmio União Latina , 2003
Prêmio Ovídio da União dos Escritores Romenos, 2003
Prêmio Fernando Namora, 2004
Prêmio Jerusalém, 2005
Prêmio Camões, 2007[1]
Prêmio José Donoso, 2008, atribuído pela Universidade de Talca, Chile

O autor não tinha pressa em ser publicado no Brasil e conclui: "Não sei, certa impressão de que meus livros seriam muito criticados... e eu venho do Brasil." O avô de Lobo Antunes, também António, era de Belém, onde o escritor começou a ler os clássicos brasileiros José de Alencar, Aluísio Azevedo, Machado de Assis, Monteiro Lobato.

Obras

De sua autoria
Memória de Elefante (1979)
Os Cus de Judas (1979)
A Explicação dos Pássaros (1981)
Conhecimento do Inferno (1981)
Fado Alexandrino (1983)
Auto dos Danados (1985)
As Naus (1988)
Tratado das Paixões da Alma (1990)
A Ordem Natural das Coisas (1992)
A Morte de Carlos Gardel (1994)
Crônicas (1995)
Manual dos Inquisidores (1996)
O Esplendor de Portugal (1997)
Livro de Crônicas (1998)
Olhares 1951-1998 (1999) (co autoria de Eduardo Gageiro)
Exortação aos Crocodilos (1999)
Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura (2000)
Que farei quando tudo arde? (2001)
Segundo Livro de Crônicas (2002)
Letrinhas das Cantigas (edição limitada, 2002)
Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo (2003)
Eu Hei-de Amar Uma Pedra (2004)
História do Hidroavião (conto, reedição 2005)
D'este viver aqui neste papel descripto: cartas de guerra ("Cartas da Guerra", 2005)
Terceiro Livro de Crônicas (2006)
Ontem Não Te Vi Em Babilônia (2006)
O Meu Nome é Legião (2007)
O Arquipélago da Insônia (2008)
Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar? (a ser publicado em 2009)

Fonte:

Arthur Conan Doyle (Através do véu)



Ele era um fronteiriço enorme, cabeludo e de rosto sardento, descendente direto de uma tribo dada ao roubo de gado em Liddesdale. Apesar de sua descendência, era um cidadão tão sensato e sóbrio quanto podia se desejar, vereador em Melrose, presbítero da Igreja e presidente da seção local da Associação Cristã de Moços. Seu nome era Brown – e se via impresso como “Brown and Handiside”, sobre as grandes mercadorias da rua principal. Sua esposa, Maggie Brown, era Armstrong antes de se casar, e vinha de uma velha família de camponeses nos ermos de Teviothead. Era de baixa estatura, moreninha e possuía olhos negros, além de um temperamento estranhamente nervoso para uma mulher escocesa. Não se podia encontrar maior contraste entre o homem grande e trigueiro e a pequena mulher morena, porém ambos eram da terra, até onde podia alcançar a memória.

Um dia – era o primeiro aniversário de seu casamento – eles saíram juntos para ver as escavações do Forte Romano em Newstead. Não era um lugar particularmente pitoresco. Da ribanceira norte do Tweed, exatamente onde o rio forma uma curva, estende-se uma rampa suave de terra arável. Através desta corriam os valos dos escavadores, expondo, aqui e ali, velhos trabalhos de pedra, indicando os alicerces das antigas muralhas. Havia sido um lugar enorme, pois o acampamento possuía cinqüenta acres de extensão e o forte, quinze. De qualquer modo, tudo era fácil para eles, uma vez que o Sr. Brown conhecia o fazendeiro proprietário da terra. Sob sua direção, passaram uma longa tarde de verão inspecionando as valas, as covas, as muralhas e toda a estranha variedade de objetos que esperavam ser transportados para o Museu de Antigüidade de Edimburgo. A fivela de um cinturão de mulher havia sido desenterrada naquele mesmo dia e o fazendeiro estava discorrendo sobre isto, quando seus olhos se fixaram no rosto da Sra. Brown.

Sua boa senhora acha-se cansada, disse ele. Talvez seja melhor descansar um pouco antes de continuar.

Brown olhou para a esposa. Ela estava pálida, certamente, e seus olhos escuros, luminosos e estranhos.

O que é Maggie? Cansada? Acho que é hora de regressarmos.

Não, não, John, continuemos. É maravilhoso. Igual a um país de sonho. Tudo parece estar tão chegado e perto de mim. Quanto tempo os romanos permaneceram aqui, Sr. Cunningham?

Longo tempo, senhora. Se a senhora visse as covas de lixo das cozinhas, compreenderia que levaria muito tempo para enchê-las.

E por que eles partiram?

Bem, senhora, por todos os sinais, partiram porque tiveram de o fazer. O povo das vizinhanças não podia suportá-los mais, por isso levantaram-se e queimaram o forte. Pode ser a marca de fogo nas pedras.

A mulher estremeceu ligeiramente.

Uma noite feroz... horrível, disse ela. O céu devia estar vermelho aquela noite... e estas pedras cinzentas também.

Sim, acho que se encontravam rubras, disse seu marido. É uma coisa estranha, Maggie, e talvez fossem suas palavras que a ocasionasse; mas pareço ver este incidente mais claro do que jamais vi qualquer coisa em minha vida. A luz brilhava na água.

Sim, a luz brilhava na água. E a fumaça agarrava-se à garganta. E todos os selvagens estavam gritando.

O velho fazendeiro começou a rir.

A senhora escreverá uma história acerca do velho forte, disse ele. Eu o tenho mostrado a mais de um indivíduo, mas nunca ouvi explicação tão clara. Algumas pessoas têm o dom.

Haviam bordejado a margem do fosso, e um poço abria sua boca à direita deles.

Aquele poço possui 14 pés de profundidade, disse o camponês. Imaginem o que retiramos do fundo? Bem, era somente o esqueleto de um homem com uma lança ao lado. Penso que a empunhava quando morreu. Ora, como pode um homem com uma lança achar-se num buraco destes? Não estava enterrado, porque eles queimavam seus mortos. Que conclui disso, senhora?

Ele saltou ao fundo para livrar-se dos selvagens, disse a mulher.

Bem, é plausível e um dos professores de Edimburgo não poderia apresentar melhor explicação. Gostaria que estivesse aqui, senhora, para responder às nossas dificuldades. Aqui está o altar que encontramos semana passada. Há uma inscrição. Disseram-me que é latim que significa que os homens deste forte agradecem a Deus por sua segurança.

Examinaram a velha pedra gasta. Havia dois VV largos e profundamente entalhados, no topo.

Que significam estes dois VV, perguntou Brown.

Ninguém sabe, respondeu o guia.

Valeria Victrix, disse a senhora, suavemente. Seu rosto se encontrava mais pálido que nunca, os olhos muito distantes, como quem observa pelas passagens obscuras das abóbadas dos séculos.

Que é isto? perguntou o marido, asperamente.

Ela estremeceu como alguém que acorda de um sono.

Acerca de que falávamos? perguntou.

Destes VV na pedra.

Não há dúvida de que é somente o nome da legião que erigiu o altar.

Sim, mas você lhe deu um nome especial.

Realmente? Que absurdo! Como poderia eu saber qual era o nome?

Você disse algo... Victrix, suponho.

Acho que estava conjecturando. Este lugar me dá o sentimento singular de não ser eu própria, mas outra pessoa.

Sim, é um lugar misterioso, disse seu marido, olhando ao redor com uma expressão quase de medo em seus olhos cinzentos e agressivos. Também sinto isto. penso que somente lhe desejaremos boa noite, Sr. Cunningham, e regressaremos a Melrose.

Nenhum deles pôde sacudir a estranha impressão que lhes havia sido deixada, pela visita às escavações. Era como se algum miasma houvesse subido daquelas valas úmidas e passado ao sangue deles. Toda a tarde permaneceram silenciosos e pensativos, mas os poucos comentários que faziam mostravam que o mesmo objeto ocupava a mente de cada um. Brown passou a noite sem repouso na qual teve um sonho estranho e bem concatenado, tão vívido que ele acordou transpirando e tremendo como um cavalo amedrontado. Tentou descrevê-lo à sua mulher quando se sentaram para o lanche, de manhã.

Foi a coisa mais clara, Maggie, disse ele. Nada que me aconteceu quando acordado tem sido mais claro do que isto. sinto-me como se estas mãos estivessem pegajosas de sangue.

Conte-me devagar, disse ela.

Quando começou eu estava numa encosta. Encontrava-me deitado no chão. Este era áspero e havia moitas de urzes. Tudo ao meu redor era somente escuridão, mas eu podia ouvir o sussurro das respirações dos homens. Afigurava-se uma grande multidão em ambos os lados ao meu redor, mas não podia ver ninguém. Às vezes, havia um baixo tinido de aço, e então um número de vozes sussurrava “Silêncio!”. Eu tinha uma clava nodosa na mão e esta era guarnecida de pontas de ferro na extremidade. Meu coração batia rapidamente, e eu sentia que pairava um momento de grande perigo. Uma vez deixei cair minha maça, e as vozes todas ao meu redor ordenaram na escuridão “Silêncio!”. Apoiei minha mão no chão e toquei o pé de outro homem deitado à minha frente. Havia outros ao meu alcance de ambos os lados. Mas não disseram nada.

Então todos começamos a nos mover. A encosta inteira parecia estar rastejando para baixo. Existia um rio no sopé e uma ponte de madeira com arcos altos. Além da ponte viam-se muitas luzes – tochas numa muralha. Os homens rastejantes dirigiam-se todos em direção à ponte. Não houve som de espécie alguma, porém uma quietude aveludada. Então ouviu-se um grito na escuridão, o brado de um homem que era apunhalado no coração, subitamente. Aquele único grito elevou-se durante um momento e depois ouviu-se o rugir de mil vozes furiosas. Eu estava correndo. Todos corriam. Uma luz vermelha brilhou e o rio tornou-se uma faixa rubra. Podia ver meus companheiros agora. Eram mais demônios do que homens, figuras ferozes vestidas de peles, com o cabelo e a barba caindo em torrentes. Estavam todos furiosos de raiva, saltando enquanto corriam, as bocas abertas, os braços em agitação, a luz vermelha batendo em seus rostos. Corri também, e gritei maldições como os demais. Então ouvi um grande estralejar de madeira que soube que as paliçadas tinham caído. Percebi um silvo alto em meus ouvidos e eu me achava consciente de que as flechas voavam ao meu redor. Caí no fundo de um valo e vi uma mão estendida de cima. Segurei-a e fui puxado. Olhamos para baixo e vimos homens prateados segurando suas lanças para o alto. Alguns dos nossos saltaram sobre as pontas. Nós os seguimos e matamos os soldados antes que pudessem desenterrar as lanças dos corpos novamente. Eles gritavam alto em uma língua estrangeira, mas não tivemos misericórdia. Caminhamos sobre eles como uma onda, e os espezinhamos para baixo da lama, pois eram poucos e o número dos nossos infindável.

Encontrei-me entre edifícios e um destes estava incendiado. Vi as chamas ressaindo através do telhado. Corri e achei-me só entre os edifícios. Alguém cruzou correndo à minha frente. Era uma mulher. Segurei-a pelo braço e segurando-lhe o queixo, voltei seu rosto a fim de que a luz do fogo o iluminasse. Quem você pensa que era, Maggie?

A esposa umedeceu os lábios secos.

Era eu, disse ela.

Ele olhou para ela, surpreso.

É certo seu palpite, disse. Sim, era exatamente você. Não simplesmente parecida, você compreende. Era você, você própria. Eu vi a mesma alma nos seus olhos amedrontados. Você parecia branca e formosa, maravilhosa à luz do fogo. Eu tinha somente um pensamento na cabeça – levá-la para longe comigo; conservá-la toda para mim no meu lar em algum lugar nas colinas. Você arranhou meu rosto. Levantei-a sobre o ombro e procurei achar um caminho para fora da luz do edifício em chamas e de retorno à escuridão.

Então aconteceu a coisa que relembro mais que tudo. Você está doente, Maggie. Devo parar? Meu Deus! você tem no rosto o mesmo olhar que possuía a noite passada no meu sonho. Você gritou. Ele veio correndo à luz do fogo. Sua cabeça estava desprotegida; seu cabelo era negro e encaracolado; e ele tinha uma espada nua na mão, curta e larga, pouco maior que uma adaga. Ele lançou-se contra mim, mas tropeçou e caiu. Segurei-a com uma das mãos, e com a outra...

Maggie havia saltado, ficando de pé, com feições contraídas.

Marcus! Gritou ela. Meu belo Marcus! Oh, seu animal! Fera! bruto! Houve um estardalhaço de xícaras de chá, quando ela caiu para a frente, sobre a mesa, inconsciente.

Nunca falam daquele incidente isolado e estranho em sua vida de casados. Por um instante, a cortina do passado tinha sido afastada, e algum estranho lampejo de uma vida esquecida tinha sido mostrado a eles. Mas o véu caiu, para nunca mais levantar-se. Vivem em seu círculo estreito – ele na sua loja, ela no lar – e não obstante horizontes mais novos e amplos formaram-se vagamente em torno deles, desde aquela tarde de verão no fragmentado Forte Romano.

Fontes:
Scribd
Imagem = Oficina de Idéias e Ideais