sábado, 12 de dezembro de 2009

Jerônimo Mendes (História da Poesia Universal – Breve Relato ) Parte I



Nadamos, dia a dia, num rio de desilusões e somos efetivamente entretidos com casas e cidades no ar, com as quais os homens à nossa volta são enganados. Mas a vida é uma sinceridade.

Que nos seja fornecida a cifra e, se as pessoas e coisas são partituras de uma música celestial, que possamos ler os acordes. Fomos lesados em nossa razão; no entanto, houve homens que gozaram uma existência rica e afim. O que eles sabem, sabem para nós.

Em cada nova mente transpira um novo segredo da natureza ; nem pode a Bíblia ser dada por completa até que nasça o último grande homem ”
.
RALPH WALDO EMERSON


CONCEITO DE POESIA

Ao longo do desenvolvimento da monografia foi difícil encontrar alguma citação ou autor que tenha apresentado qualquer definição precisa de poesia sem demonstrar uma ponta de preocupação com a importância da interpretação por parte do leitor. O conceito de poesia, se acreditamos que podemos conceituá-la, é coisa bem diversa do conceito do verso, razão pela qual pude ler e avaliar inúmeros poemas expressos tanto em verso como em prosa. Segundo Wanke (1985), "Tratados têm sido escritos procurando definir poesia, o que demonstra dificuldade do entendimento ”.

Uma das mais abrangentes e interessantes definições de Poesia encontrada ao longo da pesquisa foi, certamente, a de William Wordsworth, poeta inglês do século passado, que disse, no prefácio de suas Baladas Líricas : “Poesia é a emoção novamente colhida (ou recolecionada) em tranquilidade ”.

Nesta definição, a Poesia aparece do ponto de vista não do leitor, mas do poeta, ou seja, a poesia é olhada pelo que a faz, o que, realmente nos interessa. E nos mostra os elementos básicos da coisa: primeiro, o poeta demonstra claramente suas sensações, sentindo-as, e só depois, tranqüilo, ele se lembra do que sentiu e as coloca em palavras, para transmiti-las. Guilherme de Almeida (1890-1969), um dos mais lúcidos poetas, tentou definir Poesia por exclusão, dizendo que “Poesia não é a rosa” . E explicava :

“E não é mesmo. Se Poesia fosse a rosa, para que o canteiro ? ... Poesia é terra. Separada desta, será apenas verso, pedaço, coisa amputada que murcha, apodrece, acaba ” .

Outra definição importante a considerar, vêm do Príncipe dos Poetas Brasileiros, Olavo Bilac, acrescentando a seguinte equação : “ A rosa está para a Terra assim como a Poesia está para o homem ” .

Mas o homem considerado em suas funções mais altas, ou seja, o som, a idéia expressa, a emoção transmitida, o deleite da leitura e até, em alguns casos, a forma das palavras - como o pintor utiliza as cores, o escultor as formas, o músico os sons harmoniosos, etc.

Todo o artista tem sua matéria-prima, seu instrumental, sua tecnologia. O escultor tem, como matéria-prima, o mármore, o gesso, a areia, o ferro-velho, etc. E é com eles que trabalha, para produzir seu produto, a escultura. O pintor tem as tintas, as cores, que manipula com o pincel, os dedos, a espátula, na tela, no papel, na parede - onde expõe seu produto com enorme satisfação após acabado. O músico dispõe do som dos instrumentos musicais - alguns muito estranhos, convenhamos - que combina ou descombina para apresentar seu produto, a música.

A palavra, matéria-prima do poeta, é o mais nobre dos materiais de que o homem dispõe. A palavra nasceu com a civilização e só com ela morrerá. O homem sem a palavra não é o homem. Para que possa aprender a pensar, a criança tem de aprender a entender e a manejar as palavras de sua língua. As próprias línguas são reflexos do grau de civilização do povo que as domina e o mesmo ocorre com a poesia. Novamente citamos Wanke (1985) :

“ Quando, através de um trabalho com a palavra, escrito ou falado, o artista consegue transmitir sentimento, fazer com que o leitor, o ouvinte se sinta comovido, sublimado, arrebatado, terá ele atingido a Poesia : aquela emoção recolhida pelo poeta Worsworth em um momento, e depois fixada, em outra ocasião - agora tranqüila - para seus leitores ”.

Sem falsa modéstia, avaliei, no curto período em que me propus a estudar a arte poética, que a Poesia de que estamos falando até aqui, sempre com inicial maiúscula, é uma qualidade subjetiva inerente a uma composição feita com palavras.

Infelizmente, se compararmos as diversas interpretações das mais diferentes correntes poéticas, cada qual tenta enaltecer e fazer vingar a própria definição, mas acabam-se criando confusões com as acepções diversas do mesmo vocábulo e, assim, temos que o termo Poesia significa, também, uma composição feita de versos.

O que causa maiores problemas ainda é que, além de uma Poesia não conter absolutamente Poesia, um trecho em prosa pode perfeitamente ser Poesia pura. A Rosa-Poesia carece de ser alimentada pela Terra-Homem através da seiva da emoção da palavra. Daí uma tendência, surgida especialmente entre os modernistas e os da geração de 45, de se abandonar a palavra Poesia na acepção de produto versificado para, neste caso, adotar só a palavra poema.

Uma Poesia pode ser um amontoado de versos feitos intencionalmente sem Poesia e pode até acontecer que o poeta, pensando estar compondo Poesia - comunicação de sentimentos - está apenas fazendo um bestialógico, o que pudemos comprovar facilmente entre muitos poetas herméticos ou rebuscados.

Em nossa pesquisa, ninguém melhor do que Geir Campos, tradutor e professor universitário brasileiro, cita tantos autores e definições interessantes, de pura reflexão, a fim de enriquecer o estudo e o conceito de Poesia, embora, admitamos, não se pode atribuir um texto como verdadeiramente único e absolutamente ideal para quaisquer dos autores citados, apesar de, entre eles, termos muitos dos maiores nomes da Poesia de todos os tempos :

Poesia é, antes de tudo, comunicação, efetuada por palavras apenas, de um conteúdo psíquico (afetivo-sensório-conceitual), aceito pelo espírito como um todo, uma síntese ” e o definidor explica ainda que “nesse conteúdo anímico predominará às vezes o sensório, outras vezes o afetivo, outras o conceitual, pois o poeta, ao expressar-se nunca transmite puros conceitos, quer dizer, nunca transmite conceitos sem mescla de sensorialidade ou sentimentalidade ” (Bousono in Campos, 1975).

Poesia é a arte de excitar a alma”(Hardenberg in Campos, 1975).

Toda verdadeira poesia é uma visão de mundo”( Eliot in Campos, 1975 ).

Poesia são as melhores palavras em sua melhor ordem ” (Coleridge in Campos, 1975 ).

Ao fundirmos os três últimos conceitos, o próprio Campos (1975) faz uma espécie de liga conceitual de elevado teor filosófico-literário, com um enfoque individual, um enfoque social e um enfoque estético da arte poética : “ Poesia é a arte de excitar a alma com uma visão de mundo através das melhores palavras em sua melhor ordem ”, uma conceituação ampla e capaz de abranger inclusive as experiências de todas as escolas poéticas.

Outro estudioso, Robert de Souza, em Un Débat sur La Poésie, tenta resumir o pensamento poético do Abade Henri Brémond, grande poeta e estudioso da literatura francesa, em seis itens :

1) Todo poema deve suas características essenciais a uma espécie de realidade unificadora e misteriosa; 2) não basta, nem é necessário, ler poeticamente um poema, para captar-lhe o sentido, uma vez que existe certo encantamento obscuro e independente do significado das palavras; 3) poesia não pode se reduzir a um discurso prosaico, pois constitui um meio de expressão que ultrapassa as formas comuns da prosa; 4) poesia é uma espécie de música e ao mesmo tempo não é apenas música, pois age como uma espécie de condutor de corrente pelo qual se transmite a natureza íntima da alma; 5) é a encantação que proporciona a comunicação inconsciente do estado de alma em que se encontra o poeta até o momento em que se manifesta por idéias e sentimentos, momento esse que se revive confusamente lendo o poema; 6) a poesia é uma espécie de magia mística semelhante ao estado de oração ” .

Se recorrermos ao dicionário, teremos uma definição formal de Poesia, mas nunca a definição que nos agrade ou que corresponda à realidade que buscamos. Faz muito mais sentido e causa maior conforto as definições embevecidas de imaginação e lirismo, como as que acabamos de mencionar anteriormente no texto.

Silveira Bueno (1996), em seu Minidicionário da Língua Portuguesa, define : “ Poesia - arte de escrever em verso; composição poética; inspiração; o que desperta sentimento do belo ” .

E muitas outras definições podemos encontrar pelo caminho da pesquisa, de diferentes épocas, escolas, autores e adeptos da literatura, portanto, conforme citado por Wanke anteriormente, de difícil entendimento. Homem e poesia, Poesia e vida, vida e arte estão intimamente ligados, não há como separá-los, mesmo porque os conceitos se confundem.

Somos testemunhas da influência da Poesia desde os primeiros séculos até hoje, pois a Poesia esteve presente em todas as épocas, em todos os povos, em todos os dias e assim deve permanecer por milhares de anos. Vejamos esta máxima de Emerson ( 1994), retirada do seu livro Ensaios : “ A vida pode ser um poema lírico ou uma epopéia, bem como um poema ou um romance ”.

Até onde o entendimento nos permitiu alcançar, concordamos que a Poesia requer inspiração, sensibilidade, vibração de nervos e sentimento. É pura imaginação e poucos foram os privilegiados ao longo dos séculos, talvez mais em séculos anteriores onde ela foi praticada com afinco, dedicação e pureza de espírito.

Seu conceito é amplo e ao mesmo tempo restrito, depende da perspectiva do leitor. Como diria Maiakovski, célebre poeta russo do início do século : “ A Poesia começa onde existe uma tendência ” .

O FLORESCER DA POESIA

1. OS PRIMEIROS POETAS

Poeta, do grego poietes, significava autor. Era o indivíduo que compunha a letra e a música dos dramas, das epopéias (Exposição de feitos grandiosos, narrados pelos poetas antigos) e dos cantos sentimentais. “ Hoje chamamos poeta ao escritor que compõe versos, é o literato que pensa por meio de imagens ” (Macedo, 1979).

De acordo com os registros oficiais, a Poesia ganhou impulso e teria começado a existir como expressão de arte na primavera de 534 a.C., na Grécia antiga, época em que as primeiras tragédias foram encenadas, por decreto oficial, no Festival de Dioniso, em Atenas.

A tragédia grega, pelo que apuramos ao longo da pesquisa nos poucos livros que se propõem a desvendar o assunto, era mais do que um entretenimento público promovido pelo governo para distrair a multidão, e mais do que um ritual em honra ao Deus Dioniso (Deus da fertilidade e criatividade, segundo a mitologia grega), a quem os gregos tanto louvavam.

Reconhecidamente, ela assinalou o florescimento de uma arte cujas raízes se estendem pelo menos até a Idade do Bronze (Período pré-histórico compreendido entre 3.500 e 3.000 a.C., quando o bronze era o principal material utilizado para fabricação de armas e utensílios). Tanto no conteúdo como na forma, a Poesia se revelou a expressão completa da essência de um povo.

Os temas das tragédias eram mitológicos, extraídos da numerosa coleção de histórias existentes nas epopéias e nos hinos de Homero e seus sucessores.

Todos os que se dizem um pouco conhecedores do assunto sabem que nos antigos e familiares relatos da Ilíada e Odisséia (Considerados os maiores poemas épicos da Grécia antiga) encontravam-se todos os tipos de personagens; suas aventuras, seus amores e dilemas espelhavam todas as possíveis situações humanas.

Homero, principal poeta da antiga literatura grega, parece ter vivido 700 a.C., provavelmente na área jônica (Atualmente Turquia Ocidental). A tradição diz que era cego e que pode ter cantado para as cortes reais da mesma forma que os bardos cantam no seu poema Odisséia. Não se sabe quanto suas palavras originais correspondem aos textos hoje disponíveis, mas parece claro que a base do poema, assim como a da sua Ilíada, foi oral.

Ao mesmo tempo, suas obras, como as conhecemos atualmente, apresentam uma unidade impressionante, apesar de serem muito longas. A Ilíada concentra-se em uma série de episódios conectados um com o outro durante o sítio de Tróia.

A Odisséia, que pode ter sido escrito por um outro autor, conta as perambulações de um dos líderes gregos, Ulisses (Odisseu), em Tróia, durante o longo e atribulado retorno a seu reino de Ítaca.

A Ilíada, enquanto relata a inimizade entre Aquiles e Agamenon, incorpora muito da mitologia em dez anos da guerra de Tróia; as fortes cenas de lutas são ofuscadas por suaves quadros da vida cotidiana.

Da mesma forma, na Odisséia, o relato sobre o retorno de Ulisses a Ítaca e a vingança sobre os pretendentes de sua mulher são colocados no cenário mais amplo da volta dos heróis gregos, oferecendo muitos detalhes a respeito de outras fases da vida de Ulisses em Tróia e em outros locais.

A Ilíada e Odisséia são consideradas os maiores poemas épicos da Grécia Antiga. A época em que receberam sua forma final é controversa, mas pode ter sido no final do século 7 a.C..

A estrutura dos versos e a disposição dos cânticos são o resultado de uma longa tradição oral rapsódica que contava histórias e lendas da era heróica da Grécia, no final do período micênico; mas eles também contém elementos que podem ser posteriores a este período.

Os maiores poetas trágicos (ou os mais conhecidos) - Ésquilo, Sófocles, Eurípedes - explicitavam os personagens e as situações para as audiências, relevando-lhes a própria condição humana.

Eram comuns, entre os intelectuais admiradores da Poesia na época, dilemas dignos de estudo e investigação em todas as peças encenadas : Que tipo de escolha tem os seres humanos em sua existência ? Como os indivíduos podem entender a ambigüidade no mundo e conviver com o fato de que ele é, ao mesmo tempo, bom e mau, protetor e cruel, agressivo e amável ? Os poetas trágicos exploravam a fundo as questões mais simples do cotidiano e transformavam-nas em peças teatrais que arrastavam multidões.

Mas eles não foram os primeiros a explorar os mitos. Gerações de poetas líricos haviam moldado a língua grega em versos de incomparável beleza (mais adiante veremos alguns trechos desses poemas).

As formas poéticas eram tão familiares para os gregos quanto para os mitos; os poemas sempre eram declamados em público e nunca escritos para leitores solitários. Os próprios versos eram musicais, com ritmos diferentes em cada tipo de poema e apropriados para cada ocasião, intimamente ligados à dor ou alegria do poeta. Embora declamassem também em banquetes e reuniões íntimas, os poetas alcançavam fama e fortuna nas disputas promovidas em festivais religiosos.

Paramentados e engrinaldados, eles participavam de diversas competições: de rapsódia, nas quais declamavam versos, em geral, épicos, sem acompanhamento musical; de citaródia, isto é, a declamação individual com acompanhamento de lira; e de canto coral, para o qual os poetas treinavam tanto os cantores quanto os dançarinos.

As competições eram realizadas em toda Grécia - em Delfos, em Esparta, em Olímpia -, exceto, até o início do século VI a.C., em Atenas. Os poetas foram levados para lá por Psístrato e seus filhos; as competições de rapsodos foram introduzidas lá durante as festividades panatenaicas. E foi em Atenas, numa época de agitação política e ameaça externa, que ocorreu a síntese representada pela tragédia.

Segundo a lenda, o responsável por tal síntese foi o poeta Tépsis de Icária, que teve a idéia de introduzir um ator para servir de contraponto ao coro. O ator representava mascarado, o que era uma inovação surpreendente para a época e estimulava a curiosidade e imaginação da população : ele não declamava seus próprios versos, mas era alguém que personificava outra pessoa, mas terminava por arrebatar todas as glórias.

Tépsis venceu o primeiro concurso de dramaturgia realizado no Festival de Dionísos, mas de suas obras restam apenas fragmentos. A amplitude da tragédia grega pode ser vista nas obras de seus sucessores. Esses poetas competiam não apenas nos festivais atenienses, mas também por toda a Grécia. Eles levaram adiante a inovação de Tépsis e introduziram outros atores em suas peças. Também orquestraram os diferentes ritmos e formas dos poetas líricos - as rapsódias, as citaródias e os coros - em obras únicas, harmonias que cantavam as paixões do coração humano, semelhante hoje ao que podemos admirar em óperas, músicas românticas impregnadas de poesia pura, capazes de remeter o mais cruel dos homens ao mundo da imaginação e fantasia por conta da sua própria fragilidade.

Os palcos eram no início muito simples; o público sentava-se em degraus de pedra em volta da orquestra. As apresentações eram durante o dia, ao ar livre.

Os poetas apresentavam três tragédias (geralmente sobre temas diferentes) e uma peça satírica, mais leve. Poucos se atreviam a apresentar peças que sustentassem, de alguma forma, posições contrárias às imposições do governo ou algo semelhante, não muito diferente de algum tempo em nosso país. Ofereciam-se prêmios ao melhor poeta e o vitorioso recebia uma coroa de hera (Planta típica da época, símbolo da união e do casamento ( deusa do casamento)).

Podemos avaliar a presença maciça da poesia na cultura dos habitantes da Grécia antiga e, muito provavelmente, de outros que também se deslocavam até as cidades onde as peças, mescladas à poesia, eram encenadas.

Era comum na época, reunião de um grupo de pessoas em torno de algum poeta de plantão, disposto a iniciar uma declamação digna de apreciação mesmo sob forte pressão dos olheiros do governo oficial que temiam vulgarizar a poesia, motivo pelo qual, inclusive, as competições e mesmo eventos de simples apresentações, obedecerem a um rígido cronograma oficial. Se a poesia, aliada ao teatro, foi tão importante para a época em que os estudos da arte eram levados a sério, por prazer e gosto, cabe-nos questionar a razão, 2.500 anos depois, pela qual a poesia não conseguiu sustentar a mesma importância, embora resista à indiferença dos editores preocupados mais com o título do que o conteúdo nos tempos atuais.

Os jônicos (Povo da Ásia Menor, habitante das margens do Mar Mediterrâneo (Turquia)) também se distinguiram pela elegância de sua cerâmica e, não menos importante, pela sua poesia, demonstrando uma profunda compreensão dos prazeres e desapontamentos da vida, expressa nas odes (Poesia sentimental caracterizada pela elevação de pensamento e entusiasmo) de Safo, a poetisa do amor que viveu na ilha de Lesbos.

Alceu, poeta da mesma ilha, provavelmente foi o que melhor resumiu o espírito da cultura jônica. “ Traga-me vinho ” , solicitava, “ vinho e verdade ” . Os relatos são obscuros, mas, ainda na Grécia antiga, conta-se que o poeta ático Tepsis era também um amante da arte de representar e teria dado o passo decisivo ao colocar um ator em cena, cujo papel era conduzir o diálogo com o coro.

O ateniense Ésquilo teria colocado o segundo e Sófocles, o terceiro ator, unindo assim, a simplicidade da poesia e o mágico poder da representação. A união das duas especialidades da arte deu origem ao que se chamou na época de teatro grego. Embora o público dedicasse maior admiração pelo conjunto da representação, as cenas não seriam possíveis de se realizar sem os declamadores, ou seja, um completava o outro para promover o encanto da população e arrastar multidões onde quer que houvesse encenação. Elegias (Lamento ou canto fúnebre, acompanhado com som de uma flauta), sátiras e canções de amor para cantores solo; hinos, peãs (Na versificação greco-latina, o Metro ou Pé formado por 4 sílabas, sendo uma longa e três breves.) e cantos processionais para coros - tudo isso foi legado pelos poetas líricos da Grécia aos dramaturgos atenienses.

Cada tipo de verso tinha sua própria forma. Todos partilhavam da rica herança da mitologia. Notamos que a mitologia era o principal motivo da maioria dos poemas da época, com seus personagens heróicos e misteriosos, recheados de feitos e proezas inimagináveis para os dias de hoje.

Infelizmente, apenas uma pequena parte da produção desses poetas líricos foi preservada - o suficiente para revelar a variedade de seus estilos e personalidades, de costumes e preferências da época.

Excepcional dentre eles foi Safo, nascida em Lesbos no século VII a.C., tanto por ser mulher quanto por seu gênio delicado. Platão, filósofo grego, a chamou de décima musa. Safo era famosa por suas canções de amor e por seu deleite com a natureza, revelado em poemas como o dedicado à estrela vespertina, cujo teor fazemos questão de transcrever :

ESTRELA VESPERTINA

Estrela da Tarde
Tu és a pastora da tarde,
Vésper, e trazes para casa
tudo o que a Aurora dispersou.
Trazes a ovelha, trazes a cabra,
trazes as crianças para junto das mães.

Alceu conheceu e amou Safo; há fragmentos suficientes de seus poemas para que se saiba que não foi correspondido. Os poemas de Alceu refletem uma vida dedicada à guerra e à política - e uma vigorosa apreciação dos prazeres da vida, como podemos apreciar no poema que segue :

INVERNO

Zeus faz chover, e do céu
cai terrível tormenta. Os rios congelaram ...
Afugenta o inverno. Junta lenha ao fogo
e tempera, sem exagerar na água, o doce vinho.
Envolve nossas cabeças em macias
coroas cerimoniais de pele.
Não devemos nos deixar invadir pela tristeza.
Não iremos a arte alguma com o pesar, minha Bukchis.
O melhor a fazer é prepararmos muito vinho, e tomá-lo
.

Simônides de Ceos, nascido por volta de 550 a.C., era um poeta cortesão muito viajado que contava com a proteção dos tiranos de Atenas, da Tessália e da Siracusa. Ele era um mestre, admirado pela perfeição de suas canções, pela elegância de seus epigramas funerários (Nos tempos antigos, era uma pequena composição em verso colocada nos túmulos ou nos templos e terminava por uma nota mordaz) e pela profundidade com que tratava os temas mitológicos.

Seu lamento por Dânae era um exemplo típico. Dânae teve um filho – o herói Perseu - de Zeus. O pai de Dânae colocou-a, juntamente com o bebê, numa arca que foi lançada ao mar. Eles sobreviveram graças a um milagre. Eis uma simples demonstração de um pequeno epigrama funerário de Simônides :

EPITÁFIO

Este é o túmulo de Megístias, morto pelos persas
e medos após cruzarem o Rio Spercheios;
de um advinho que, mesmo vendo claramente
a morte aproximar-se,
jamais pensou em abandonar os reis de Esparta.

Mais jovem do que Simônides, Píndaro de Tebas foi tão apadrinhado quanto este e alcançou fama ainda maior. Grandioso, idealista e profundamente religioso, ele celebrou suas odes e as vitórias gregas nas Guerras Persas (Famosas guerras travadas entre os povos da Grécia antiga e da Pérsia (Irã)) e as vitórias dos atletas em Olímpia.

Abaixo podemos apreciar um trecho da introdução de sua primeira Ode Olímpica, em homenagem a Hierão, atleta vencedor das corridas a cavalo :

OLÍMPICA I

O melhor elemento é a água e o ouro,
como fogo que se inflama, brilha na noite
mais do que a orgulhosa opulência.
Se jogos celebrar desejas,
ó minh´alma -
nunca mais quente do que o sol procures outro astro
que brilhe de dia no céu deserto -
nunca superior à de Olímpia
uma competição celebraremos.
De lá o renomado hino envolve
o gênio dos poetas que para louvar
o filho de Cronos ao lar vieram
rico e feliz de Hierão.
Da justiça ele detém
o cetro da fecunda Sicília, colhendo
o que há de mais alto de todas as virtudes
e gloria-se também
com as excelências do canto com que nos recreamos
amiúde ao redor de sua mesa amiga

Avaliando superficialmente o poema podemos arriscar-nos a insinuar que, ignorando a má interpretação dos tradutores através dos séculos, por influências pessoais, Píndaro e os demais poetas da época utilizavam um nível elevado teor metafórico.

Dentre dezenas de poetas trágicos, três eram considerados os maiores. Ésquilo, o mais velho, nasceu cerca de uma década antes de 500 a.C. Filho de aristocrata, participou da Batalha de Maratona.

O jovial e culto Sófocles, nascido por volta de 497 a.C., combateu sob Péricles na guerra contra Samos. Sete de suas 130 peças foram preservadas. Eurípedes, nascido por volta de 480 a.C., era um filósofo austero, recluso e menos idealista do que os outros dois. Das noventa peças que escreveu, restam dezoito.

(continua)

Fonte:
Monografia feita pelo autor em Curitiba / PR , março de 2001

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Trova LXXXVI - Antonio A. de Assis (Maringá/PR)

Trova sobre imagem de http://colunistas.ig.com.br

Regina M. A. Machado (Contraponto de Casa com Sorriso)



— Até a morte de meus pais, nunca mudei.

Eu estava distraída.

— Não mudou ...?

— De casa. Até ser posta à venda, essa foi a única casa que tive.

— Deve ser algo profundamente reconfortante morar na mesma casa que se tem dentro.

— Ah, isso quer dizer o que?

— Simplesmente que você me faz lembrar que em matéria de casa eu vivi uma dualidade — havia, sim, uma casa eterna e boa, com recantos e esconderijos mágicos e até alguns inacessíveis e misteriosos, mas era a casa de minha avó. Nós, quer dizer, meus pais e eu, sempre fomos instáveis, sempre nos mudando e nunca a casa em que morávamos era satisfatória. O pior é que isso perdura, acho... Que horror!

— Bom, mas morar nessa casa que parecia eterna — mas não era — quase transforma a gente em árvore, com raiz e copa frondosa e espaçosa. Quando isso acaba, a gente descobre que não cabe direito em lugar nenhum. Você viu meu apartamento — um bom prédio bem situado no meio de outros tantos prédios parecidos, com entradas impecáveis e pátios limpos e cimentados, nenhum pedacinho de terra aparecendo, só canteiros muradinhos e floridinhos...

Nada daquela sombra no chão batido, as gaiolas que meu pai cuidava diariamente, as paredes largas, entre as quais meus velhos móveis tinham espaço e luz, que refletiam com brilho de madeira boa. Agora eu e eles ficamos um pouco empoeirados – é tudo limpo, mas meio embaçado, a poeira do tempo parece que grudou.

Tenho quase certeza que a história de Sorriso veio logo depois dessa conversa sobre a casa, trazida nessa onda de nostalgia que veio rolando, talvez nos vapores da sopa de feijão, que veio cremosa e acompanhada de torradas e de um bom vinho – duas garrafas para três pessoas – foi um jantar perfeito e uma conversa que ficou ecoando até agora e deu para rebrotar neste começo de outono europeu. Acho que também pelo fato de termos entrado num restaurante quase vazio e que, contrariamente ao do lado, não tinha música barulhenta para atrair público em busca de animação, com as poucas pessoas que havia falando baixo ou longe, não sei, mas a conversa pôde correr solta.

Devo ter esquecido vários detalhes, o que me vem são retalhos de sons, de frases.

...

— ...e além dessas minhas casas sem história, minha cidade também tem muito pouca, apesar de ter sido na origem um pouso de tropeiros, que dizem ser lugar de muita conversa e de bons causos pela noite afora. Deve ser daí minha nostalgia irrealista de luz de fogueira perdida no silêncio da noite estrelada e meu gosto de ouvir histórias, meio enrodilhada num canto.

— Pois esta cidade tem muita história, vivida ou inventada, dá no mesmo — o que fica é sempre uma história contada. E a casa de meus pais tem até um bom causo, que se poderia chamar “Sorriso da casa velha”.

— Ah, é? Alusões literárias, a esta hora?

— Pode até ser, mas não deu para resistir. Veja: Sorriso era o nome de um retardado mental, que ficou com esse nome porque sorria o tempo todo e a vizinhança o chamava assim. Ele apareceu lá em casa um belo dia, ou uma bela noite, pois acho que vinha sobretudo para dormir na varanda. Quando eu voltava de dar aula à noite, quase tinha que passar por cima dele. Minha mãe arrumou um papelão para servir de cama, mas Sorriso sumiu com ele. Ele fazia questão de deitar no capacho, que era bem grande. Acho que ele tinha uma casa, mas nunca soube bem aonde.

Lembrando dessa noite, em que festejamos o aniversário de Bia, agora que já passaram uns três meses de minha viagem ao Brasil, o que me impressiona é o fato de que esse homem fosse visto de maneira tão benigna, dele poder dormir nessa casa de família de classe média conservadora e discreta. Essa senhora tão estrita em matéria de costumes, que minhas amigas descreviam como uma mãe severa, orientada por uma moralidade já fora de uso na época, aparece como uma pessoa paradoxalmente aberta, com uma generosidade quase perigosa, se transportada para um prédio qualquer de uma cidade atual, ou talvez mesmo para uma residência burguesa da mesma época. Será que uma casa velha, cuja única ostentação de riqueza provém da sombra das árvores e da solidez dos muros um tanto maltratados, de bons móveis envernizados, toalhas bem passadas e moradores fiéis, tem mais espaço para a marginalidade, para a alteridade gratuita e incontrolável de um retardado mental ? É paradoxal, claro, mas pensando bem, foi também por ter se tornado marginal no crescimento da cidade, na partida dos filhos, no necessário abandono disso tudo que pesa e prende, que a casa velha teve que desaparecer. Em todo caso, me espantou essa história de uma dona de casa mineira aceitando, sem medo nem preconceitos, que um louco, como a gente os chamava no interior, entrasse pelo jardim confiante em que não seria expulso, sabendo que poderia dormir tranqüilo no lugar e da maneira que escolhera por motivos que só ele sabia e que aliás nenhuma instituição psiquiátrica foi chamada a questionar. Acho que um dia ela proibiu apenas que ele dormisse atravessado na porta — a restrição deve ter sido bem aceita, pois o pouso serviu ao Sorriso durante bastante tempo.

— E ele vinha todas as noites?

— Não, ele sumia de vez em quando, às vezes eu cruzava com ele na rua, de dia, mas talvez tivesse achado outro pouso, não sei. Quando minha mãe vinha da feira ele se oferecia para carregar as sacolas, se caía uma tabuinha dos cercados dos canteiros, ele arrumava, enfim, ele olhava em volta e enxergava coisas para fazer, que às vezes a gente nem via.

— O que aconteceu com o Sorriso? Achou alguma garagem de prédio para morar?

— Imagine... esse tipo de nicho num prédio moderno, com todos os espaços racionalizados e rentabilizados... impossível. E depois, com a cidade ficando tão feia, tão desfigurada parece que de susto com tanta via rápida, não dá para imaginar qualquer lugar que seja, capaz de acolher a loucura, o sorriso gratuito de um vagabundo improdutivo...

— Mas afinal, que fim levou o seu louco poético?

— Não sei. Não me lembro bem se foi com a morte de minha mãe que ele sumiu, mas sei que foi bem antes da venda da casa. Eu ainda morava lá e lembro que senti falta de tudo ao mesmo tempo. Mas o que mais pesava era a ausência de meus pais, e foi essa falta que determinou todo o resto. O Sorriso era um traço, um detalhe num quadro de outros tempos, sumiu como sumiram todos os outros momentos, almoços de domingo, visitas de irmãos, primos, sobrinhos, gente que passava na rua...

Houve outros episódios, diálogos mais vivos, mas que foram se apagando, deixando apenas essas vagas lembranças que não chegam para formar uma história. Talvez uma crônica, pedindo ecos nas lembranças dos outros, como costumam fazer as crônicas, retratando o que é efêmero e desimportante.

No dia seguinte tomamos o ônibus de volta para o Rio, a cidade enfeiada ficou para trás, a serra da Mantiqueira fez a transição, com seus restos de mata, algumas poucas árvores grandiosas, muita encosta desbarrancada, muito paliteiro de eucalipto. Sorrisos raros e desdentados na paisagem vista da estrada.

Chegando no Rio, comemos na casa de Thereza uma polenta frita bem crocante, que ela tinha prometido ao devolver a do restaurante na noite do jantar, que foi considerada mole e indigna da nossa fome saudosa e exigente — ficou faltando só o frio de Minas e a neblina com a sombra do Sorriso imaginada pelas esquinas.

Fonte:
Releituras

Cora Coralina (Casarão Poético)

Casa de Cora Coralina, agora Museu
ANINHA E SUAS PEDRAS

Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

(Outubro, 1981)

MÃE

Renovadora e reveladora do mundo
A humanidade se renova no teu ventre.
Cria teus filhos,
não os entregues à creche.
Creche é fria, impessoal.
Nunca será um lar
para teu filho.
Ele, pequenino, precisa de ti.
Não o desligues da tua força maternal.

Que pretendes, mulher?
Independência, igualdade de condições...
Empregos fora do lar?
És superior àqueles
que procuras imitar.
Tens o dom divino
de ser mãe
Em ti está presente a humanidade.

Mulher, não te deixes castrar.
Serás um animal somente de prazer
e às vezes nem mais isso.
Frígida, bloqueada, teu orgulho te faz calar.
Tumultuada, fingindo ser o que não és.
Roendo o teu osso negro da amargura.


TODAS AS VIDAS
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de São-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo ser alegre
seu triste fado.
Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera
das obscuras!

EU VOLTAREI

Meu companheiro de vida será um homem corajoso de trabalho,
servidor do próximo,
honesto e simples, de pensamentos limpos.

Seremos padeiros e teremos padarias.
Muitos filhos à nossa volta.
Cada nascer de um filho
será marcado com o plantio de uma árvore simbólica.
A árvore de Paulo, a árvore de Manoel,
a árvore de Ruth, a árvorede Roseta.

Seremos alegres e estaremos sempre a cantar.
Nossas panificadoras terão feixes de trigo enfeitando suas portas,
teremos uma fazenda e um Horto Florestal.
Plantaremos o mogno, o jacarandá,
o pau-ferro, o pau-brasil, a aroeira, o cedro.
Plantarei árvores para as gerações futuras.

Meus filhos plantarão o trigo e o milho, e serão padeiros.
Terão moinhos e serrarias e panificadoras.
Deixarei no mundo uma vasta descendência de homens
e mulheres, ligados profundamente
ao trabalho e à terra que os ensinarei a amar.

E eu morrerei tranqüilamente dentro de um campo de trigo ou
milharal, ouvindo ao longe o cântico alegre dos ceifeiros.
Eu voltarei...
A pedra do meu túmulo
será enfeitada de espigas de trigo
e cereais quebrados
minha oferta póstuma às formigas
que têm suas casinhas subterra
e aos pássaros cantores
que têm seus ninhos nas altas e floridas
frondes.
Eu voltarei...

CONSIDERAÇÕES DE ANINHA

Melhor do que a criatura,
fez o criador a criação.
A criatura é limitada.
O tempo, o espaço,
normas e costumes.
Erros e acertos.
A criação é ilimitada.
Excede o tempo e o meio.
Projeta-se no Cosmos

CONCLUSÕES DE ANINHA

Estavam ali parados. Marido e mulher.
Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça
tímida, humilde, sofrida.
Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho,
e tudo que tinha dentro.
Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar
novo rancho e comprar suas pobrezinhas.

O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula,
entregou sem palavra.
A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou,
se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar
E não abriu a bolsa.
Qual dos dois ajudou mais?

Donde se infere que o homem ajuda sem participar
e a mulher participa sem ajudar.
Da mesma forma aquela sentença:
"A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar."
Pensando bem, não só a vara de pescar, também a linhada,
o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso
e ensinar a paciência do pescador.
Você faria isso, Leitor?
Antes que tudo isso se fizesse
o desvalido não morreria de fome?
Conclusão:
Na prática, a teoria é outra.

VELHO

Estás morto, estás velho, estás cansado!
Como um suco de lágrimas pungidas
Ei-las, as rugas, as indefinidas
Noites do ser vencido e fatigado.

Envolve-te o crepúsculo gelado
Que vai soturno amortalhando as vidas
Ante o repouso em músicas gemidas
No fundo coração dilacerado.

A cabeça pendida de fadiga,
Sentes a morte taciturna e amiga,
Que os teus nervosos círculos governa.
Estás velho estás morto! Ó dor, delírio,
Alma despedaçada de martírio
Ó desespero da desgraça eterna.

RESSALVA

Versos... não
Poesia... não
um modo diferente de contar velhas histórias
Cora Coralina (Poemas dos Becos de Goiás )

Assim eu vejo a vida

A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.

MASCARADOS

Saiu o Semeador a semear
Semeou o dia todo
e a noite o apanhou ainda
com as mãos cheias de sementes.
Ele semeava tranqüilo
sem pensar na colheita
porque muito tinha colhido
do que outros semearam.
Jovem, seja você esse semeador
Semeia com otimismo
Semeia com idealismo
as sementes vivas
da Paz e da Justiça.
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Cristina Leite (50 Anos da Biblioteca Municipal de Paranavaí)

Roza de Oliveira no Sesc Paranavaí
A Biblioteca Pública Municipal Júlia Wanderley de Paranavaí festejou seu Cinqüentenário no último sete de dezembro. Além da apresentação da renomada Orquestra de Sopros de Paranavaí, inauguração do Telecentro Digital Paranavegar, destacamos o recital "A Música Erudita e seus Poemas " com a poetisa Roza de Oliveira e seu marido pianista Júlio Henrique Gómez. Roza é paranavaiense radicada em Curitiba, presidente da Academia Paranaense de Poesia, membro da Academia Sul-Brasileira de Letras, membro correspondente da Academia de Letras e Artes de Paranavaí e Imortal pela Academia de Letras do Brasil/PR. Júlio é especialista em música erudita, membro do Centro de Letras do Paraná e Academia Paranaense de Poesia.

A comemoração do aniversário contou com a presença do prefeito Rogério Lorenzetti, do vice-prefeito Alziro Lopes, do presidente da Fundação Cultural Paulo Cezar de Oliveira, da vice-presidente da Academia de Letras e Artes de Paranavaí Cristina Leite Goetten, do presidente da Câmara Municipal de Paranavaí Gil Júlio, da coordenadora da Biblioteca Ilca Zicka, secretários municipais, dentre outras autoridades.

O cerimonial foi conduzido pelo secretário de Comunicação Social Jorge Roberto Pereira da Silva.

A oradora oficial da A.L.A.P Dinair Leite discursou em nome da Academia, das Delegacias do Movimento Poético Nacional e UBT- União Brasileira de Trovadores em Paranavaí e do recém-fundado Instituto Brasileiro de Culturas Internacionais - InBrasCI, no Paraná, do qual é a Presidente Fundadora e Governadora. Dinair ofereceu em nome de toda a comunidade cultural as boas vindas a Roza e Júlio.

A propósito, o talentoso casal fez belíssima apresentação de poesias, músicas e trovas em performance dirigida a concorrida platéia da terceira idade, no dia seguinte no SESC- Paranavaí.

Cora Coralina foi um dos nomes homenageados pela declamadora Roza, além de apresentação de belas obras de sua autoria. Tangos e boleros empolgaram os presentes através das mãos do pianista Júlio.

Paulo Cezar de Oliveira e o gerente executivo do SESC Ubiratan Angelo Fernandes contabilizam elogios pelas atividades realizadas nessa ocasião.

Fonte:
Dinair Leite
.

Adolfo Simões Muller (Quando Eu Era Pequenino...)


Quando eu era pequenino,
gostava de ouvir contar
histórias de princesinhas
encantadas ao luar.

Havia então lá em casa
uma criada velhinha,
a Sérgia contava histórias
- e que graça que ela tinha!

Lendas de reis e de fadas,
inda me incheis a lembrança!
Que saudades de vós tenho,
ó meus contos de criança!

“Era uma vez...” As histórias
começavam sempre assim;
e eu, então, sem me mexer,
ouvia-as até ao fim.

Lembro-me ainda tão bem!
Os irmãos à minha beira,
calados! E a boa Sérgia
contava desta maneira:

“Era uma vez...” E depois,
olhos fitos nos seus lábios,
ouvia contos sem conta
de gigantes e de sábios”.

“Era uma vez...” E, por fim,
a voz da Sérgia parava...
E assim como eu te contei
era como ela contava.

Ai! que saudade, que pena,
que nos meus olhos tu vês!
Eu sentava-me e ela, então,
começava: - “Era uma vez...”
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Fontes:
O Príncipe Imaginário e Outros Contos Tradicionais Portugueses
Imagem = http://gatocomvertigens.com

Fabricio Carpinejar (Reveillon das Letras)

O escritor brasileiro está lotérico. Todo novo ano renasce a expectativa de ficar rico. Antes não existia essa bolsa de valores, esse pregão de títulos. Ser escritor correspondia a assumir um atestado de pobreza. Um voto de castidade orçamentária. A vocação pesava mais do que a carreira. O prazer substituía o ideário de estabilidade. Os pais permaneciam como fiadores da trajetória inteira. Das opções milionárias nas décadas de 1980 e 1990, restava a chance mínima de ser um best seller – mais fácil era acertar a Mega Sena. Hoje, existem prêmios polpudos na literatura que reforçam o valor das simpatias e crendices na virada do calendário: R$ 400 mil do governo de São Paulo, dividido entre romance de veterano e estreante; R$ 100 mil de Passo Fundo para romance; R$ 150 mil do Portugal Telecom (R$ 100 mil ao primeiro, R$ 35 mil para o segundo e R$ 15 mil para o terceiro); R$ 60 mil do Jabuti (dividido entre livro do ano ficção e não ficção) e R$ 212 mil do governo de Minas (R$ 120 mil para o conjunto da obra, R$ 25 mil para um poeta, R$ 25 mil para um ficcionista e R$ 7 mil para um jovem escritor mineiro); R$ 100 mil do Machado de Assis, além de sete outros prêmios da Academia Brasileira de Letras, no valor de R$ 50 mil cada.

Mais de 1 milhão de reais disponíveis para os melhores livros. Publicar tornou-se uma atividade esperançosa. São valores para acertar a conta bancária e direcionar um maior tempo do autor para os livros e para o computador.

Perspectivas para aguçar costumes esotéricos em 31 de dezembro. Qualquer sinal é importante, tanto para fazer poesia quanto para incluir na categoria de presságios. Joaninha e louva-a-deus, portadores de boa sorte, serão recebidos com alarido nas golas das camisas.

Tatiana Salem Levy, por exemplo, laureada com o Prêmio São Paulo de Literatura de 2008 com A chave de casa, é a rainha dos rituais do réveillon, adepta do banho de mar e de pular sete ondas. Já começa pela lingerie. "Ano-novo tem de ser com calcinha nova dada por alguém. Branca, se eu quiser paz; vermelha, paixão; rosa, amor; amarela, dinheiro", comenta.

Moradora do Rio de Janeiro, não perde a oportunidade de visitar o repuxo das águas e jogar flores para Iemanjá, além de vestir alguma peça com a cor do orixá. Já foi escandalosa nas oferendas. "Uma vez, fiz uma mandinga que precisava molhar uma rosa em leite materno – peguei com uma amiga! –, espalhar pelo corpo, depois amarrá-la em fita de cetim azul e jogá-la para Iemanjá, no dia 31, em troca de um novo amor", lembra.

Loucura? Nem tanto. Desejo bom tem de cansar. E o pedido acabou atendido. "No início de fevereiro, lá estava ele, prontinho pra mim", solta uma boa risada, prevendo que estará no Alentejo, em Portugal, na transição da década. Trocará o oceano pelo campo, para ver como funcionará a mudança de ares.

O catarinense Cristovão Tezza tem antecedentes para ser um pai de santo. Pela primeira vez, teve que fazer mais estantes em seu escritório: não para abrigar os livros, e sim para abrir espaço para os troféus. Só não ganhou a São Silvestre, e isso porque não correu. Nos dois últimos anos, recebeu mais de 400 mil reais em prêmios por O filho eterno. Arrebatou o Portugal Telecom, o Jabuti, o APCA, o Prêmio São Paulo de Literatura, o Bravo! e o Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon. Depois do anúncio de seu nome no segundo certame, ninguém mais o parabenizava.

Apesar da lua cheia editorial e da inveja ainda maior dos colegas, não é usuário da mandinga. Muito menos fã de lentilha. Por incrível que pareça, não acredita em nada. "Sou estéril, desprovido de crenças metafísicas", brinca.

Sua virada é prosaica. Refugia-se com a família na praia paranaense Gaivota, toma cerveja e dá risada calçando havaianas. "Vou para o litoral ficar cozinhando em casa. Como vampiro, não tomo sol, senão viro pó."

A paulista Ivana Arruda Leite, autora de Hotel Novo Mundo, já abusou das despedidas, das listas de intenções, dos patuás, de receber amigos e de preparar encomendas para os santos. Agora, quer paz. "Adorava entrar no ano-novo em grandes festas, fazendo todas aquelas mandingas pra ter dinheiro, amor, sucesso. Até que, em 2006, resolvi passar o réveillon sozinha na minha casa vendo televisão, de pijama, tomando cerveja e comendo canapé de salmão defumado. Pra quê? Foi o melhor da minha vida. De lá pra cá, nunca mais fiz coisa diferente. E esse vai ser igual. Assisto à queima de fogos e meianoite e meia estou na cama feliz da vida. Nada como se livrar de ção ritualística, ainda que ela tenha cara de festa", explica.

De acordo com a médica e psicanalista Christiane Ganzo, do grupo gaúcho Bororó e uma das autoras de A vida como ela é para cada um de nós,as pessoas trabalham mais para consumar os caprichos da passagem do que para concretizar os pedidos. Trata-se de uma ísica e alimentar que às vezes leva à gripe ou à indigestão.

As crendices são fruto da onipotência. Um fruto amargo. "Antropologicamente e individualmente, nos acostumamos a um imenso êxito e nos tornamos profundamente gulosos com nosso desempenho. Assim que dominamos algo, já o apetite aumenta e desejamos controlar o incontrolável", afirma.

A insatisfação virá, qualquer que seja o resultado. Porque sempre se pede mais do que é possível realizar. Nem os milagres são casuais. "Paciência, escritores, a fome é diferente do apetite. Ambos necessitam de respeito e amor. Amor a quem somos e podemos ser frente aos fatos de nossas vidas. O poder é apenas delírio, sequer existe. Somos potentes, sim. Muito potentes, mas não onipotentes. Inventamos a onipotência como uma saída para a suposta impotência."

A verdadeira sorte dos autores é que não há fracasso que não vire uma grande história. O que não aconteceu na vida pode virar arte.

Fonte:
Revista da Cultura. Ed. 29. Dezembro de 2009.

Ciranda de Trovas - Natal



01.
Natal! Tempo de harmonia,
de repensar seu agir,
de perdão, com alegria,
nova vida construir.
(Mifori)

02.
As vozes dizem: Hosana!
É Natal. Só paz e amor!
O Universo se engalana
num parto de luz e cor!
Gislaine Canales (SC)

03.
Era Natal na favela.
Bem limpinhos e arrumados,
foram postos na janela
dois sapatinhos furados!
Delcy Canalles (SC)

04.
Embora rudes e escassos
os bons atos, em geral,
o Natal recria laços
num simples “Feliz Natal!”
(Flávio Roberto Stefani/RS)

05.
No Natal é uma beleza,
tem presentes, festa e luz.
Mas vi que ao redor da mesa,
falta um lugar pra Jesus!
(Ademar Macedo/RN)

06.
Neste Natal vou pedir
ao Pai do Céu muitas graças
para eu não contribuir
na segregação de raças!
(Amilton Maciel Monteiro/SP)

07.
Sentamos juntos à mesa:
filhos, pais, irmãos, avós...
E o Natal mantém acesa
a chama do amor em nós!
(Marina Bruna/SP)

08.
Natal, tempo de bonança,
tempo de amor, de perdão;
deixa nascer a esperança
dentro do teu coração.
(Conceição A. de Assis/MG)

09.
Minha infância na favela
não teve um Natal de fato.
O que botar na janela
se eu não tinha nem sapato?!
(Arlindo Tadeu Hagen/MG)

10.
Esse Natal dos meninos
eles que sonham com santa.
Dão-lhes seus pais carinhos
e Santa Claus lhes encanta.
(Jaime Correa)

11.
Um Natal mais abrangente,
seria, para as crianças,
Papai Noel, consciente,
distribuindo esperanças!
(Elisabeth Souza Cruz)

12.
Que o Ano Novo, afinal,
seja de instantes risonhos
e que os sonhos do Natal
sejam muito mais que sonhos!
(Arlindo Tadeu Hagen/MG)

13.
Vou pedir com insistência,
neste Natal, um presente:
Amor e paz com urgência,
para este mundo carente!
(Vânia Ennes-Curitiba/PR)

14.
Menino Deus com ilusão,
eu sigo teus mesmos passos
paz e amor, a solução,
um Natal cheio de abraços!
(Carlos Imaz Alcaide / França)

15.
É Natal, Menino Deus,
e renasce uma esperança
às penas eu digo adeus,
ponho em ti minha confiança!
(Cristina Oliveira Chavez / USA)

16-
É Natal... E me parece
que os Natais se multiplicam
no amor fraterno que cresce
das Amizades que ficam.
(Divenei Boseli/SP)

17-
Quisera que Deus pudesse,
acabar com todo o mal
e que o mundo todo em prece
festejasse....é o natal!!!!
Eleandra Bonatto

18.
É Natal, noite de luz,
recordando a manjedoura:
José, Maria e Jesus,
traz-nos a paz duradoura.
(Arlene Lima)

19.
Nesse tempo o principal
menino que vai nascer
nesse dia de Natal
jamais ele vai morrer.
(Mário Osny Rosa)

20.
Que o Natal ao vento espalhe
toda angústia, toda dor,
e um sino alegre bimbalhe
novas mensagens de amor!
(Dorothy Jansson Moretti/SP)
-----------
Fonte:
Mifori

João Carlos Lopes (Camões Guaicuru)


Vida do escritor Manoel de Barros vira documentário e sua poesia ganha a primeira tradução para o inglês

É em um pequeno quarto, no alto da casa, "escritório de ser inútil, isto é, de ser poeta", que Manoel de Barros prepara a "humanização das coisas" e a "coisificação do homem". Também inventa palavras, recorda-se de memórias que nunca existiram, dedica-se a uma poesia que tem o auge na construção do nada – tudo feito a lápis, em caderninhos por ele mesmo colados e pintados. Há um buquê de tocos de lápis velhos sobre a mesa – ele nunca os joga fora. Essa é a vida de vagabundagem que conseguiu adquirir: "Para escrever, é preciso ser vagabundo", acredita.

Uma rotina que só foi possível depois de muito trabalho. Autocondenado ao silêncio e à vida de fazendeiro por dez anos, Manoel rebelou-se e resolveu deixar a responsabilidade pelas terras nas mãos do filho, João. Foi quando se estabeleceu definitivamente na cidade de Campo Grande, aos 55 anos, para exclusiva dedicação à poesia, com idas semestrais ao Pantanal e visitas esporádicas ao Rio de Janeiro. Hoje, prefere o Pantanal da infância que viveu e da que ainda pode inventar, magoado com a degradação ambiental, o assoreamento dos rios e o avanço da fronteira agrícola. Venceu o prêmio Jabuti com O guardador das águas, em 1989, e com O fazedor do amanhecer, em 2002, e alerta que as águas e as alvoradas do Pantanal sofrem agora por abandono.

Aos 92 anos, Manoel de Barros continua em busca das miudezas. "Hoje, o meu olhar é ajoelhado no chão a ver os caracóis da terra, as rãs das águas, os lagartos das pedras", diz. A idade teima em o aproximar da infância. A surdez que o impede de ouvir as obrigações cotidianas e todas as coisas importantes, misteriosamente permite que ouça o tropel dos pássaros e a música de Brahms. A visão limitada, que dificulta a leitura de letras miúdas, serve para olhar bem de perto as formigas, as avencas e as violetas. Desbocado, diz aquilo que não gostaríamos de ouvir – e que até pode ser verdade. Para ele, seu último livro já foi escrito: Memórias inventadas: A terceira infância, que completa a trilogia de sua autobiografia ficcional. Se é possível que o autor personifique sua obra, Manoel atingiu a infância que narrou em seus versos.

OUTRA INFÂNCIA

Enquanto Nequinho brincava com as miudezas do chão, o pai, João Wenceslau Barros, fazia cercas, levantava acampamentos, cumpria a rotina da vida adulta no campo como capataz de fazenda. Do Beco da Marinha, beira do Rio Cuiabá, a família mudou-se para o Pantanal de Corumbá, extremo oeste do Mato Grosso do Sul. A criança foi criada naquele chão, brincando com sapos, lagartixas e tropas de formigas. Aos 13 anos, já atendia por Manoel de Barros, interno no colégio dos Maristas, cidade do Rio de Janeiro: leu, pela primeira vez, Os sermões, do padre Antônio Vieira, e descobriu o que era poesia. Apaixonou-se pela palavra, embora ainda não soubesse o que era paixão. Chamava isso de “dom”.

Uma capacidade primitiva e inocente, dedicada apenas a coisas sem importância: "As coisas sem importância são bens da poesia", explica. Procurou pelas palavras em toda a literatura quatrocentista portuguesa. Sofreu a revolução dos versos de Rimbaud. Aprofundou os estudos de linguística, tendo em mãos as palavras sagradas dos profetas bíblicos. Também estudou Direito, revezando as aulas com fugas para a Biblioteca Nacional, onde tinha encontro marcado com a poesia. Exerceu a advocacia, ainda que na primeira audiência tenha vomitado sobre o processo, na mesa do juiz.

Para se tornar poeta, desafiou o destino. Seguiu para uma viagem sem rumo, passando por Bolívia, Peru, Equador até chegar a Nova York, onde viveu por um ano, dedicado apenas à leitura da poesia norte-americana, às exposições de arte e à música barroca. "Aí, a minha vida virou", conta. A visão da miséria latino-americana lhe rendeu alguns poemas e o choque com o mundo civilizado exigiu a lembrança das coisas primitivas do Pantanal de sua infância. Resolveu construir imagens com palavras para fazer delas insetos, pássaros, águas e assobios.

Voltou ao Brasil, publicou o primeiro livro, Poemas concebidos sem pecado, e enfim soube o que era a paixão: conheceu Stela, com quem teve três filhos. Só aos 60 anos foi lançado para o grande público, confundindo a crítica e a imprensa com a falsa impressão de um poeta inato, bucólico, guardado no regionalismo pantaneiro. Foi fazendeiro, mas antes de calçar as botas já era plenamente poeta. Decidiu formar sua fazenda Santa Cruz apenas aos 44 anos, pai de família, autor de dois livros. Durante o período em que viveu no campo, não escreveu um só poema.

Se o mérito de Luis Vaz de Camões, o mestre, está na consumação de seus versos como idioma corrente, a feitura da própria língua, Manoel de Barros promove o contrário com a mesma grandeza: faz do idioma um revés, aplica-se a construções linguísticas que despertam o lado mais estranho da própria língua, ao mesmo tempo tão íntimo e compreensível. Se faltam os mares que influenciaram Camões, merecem destaque as lendas guaicurus do Mar de Xaraés – o mar do sertão pantaneiro, a fonte das águas que Manoel versou. E, como Camões, superou os limites da poesia.

REINVENÇÃO DA LÍNGUA

A carreira de Manoel de Barros é marcada pela paciência – mais que pelas atribulações da vida, com publicações, em média, a cada cinco anos. A feitura do poema lhe toma tempo. É preciso que cada palavra seja desacostumada, talvez até destruída, reformulada. "Sempre achei a linguagem destroncada mais bela do que a comum. A linguagem é a minha matéria plástica", explica. É uma linguagem comparável ao ciclo das águas do Pantanal. As tribos de índios Guaicurus percorriam os desvãos do Pantanal, entre as cheias e as épocas secas, até que encontrassem os descampados ideais para viver. Manoel promove essa fuga constante a cada verso, subvertendo o curso da língua.

Com traduções para seis idiomas, incluindo catalão e alemão, neste último assinadas por Curt-Meyer Clason – tradutor que também se dedicou às obras de João Guimarães Rosa –, Manoel de Barros estreará na língua inglesa, no próximo semestre, com a antologia Birds for a Demolition. Foram traduzidos cerca de 70 poemas escolhidos livremente. “O que me atrai na poesia de Manoel é a invenção de palavras e o uso de estruturas gramaticais surpreendentes. Isso faz o leitor perceber a linguagem de uma maneira diferente e, por meio dela, perceber o mundo com um novo olhar”, explica Flávia Rocha, poeta e jornalista paulistana que auxiliou a premiada tradutora nova-iorquina Idra Novey na pesquisa para a primeira tradução do poeta para o inglês.

O jornalista Bosco Martins, que acompanhou durante os últimos 30 anos a vida cotidiana do poeta e seus encontros com personalidades, políticos, escritores e artistas, promete um livro-reportagem cujo lançamento acontecerá em breve, ainda sem título definido. Assim como a série fotográfica a que Lucas Barros, fotógrafo e neto do poeta, tem se dedicado. Um raro registro da intimidade da casa, da fazenda e da família, com chance de resultar em uma fotobiografia.

Nas telas de cinema, Manoel já se viu no longa-metragem documental dirigido por Pedro Cezar, a desbiografia oficial do poeta Só dez por cento é mentira, lançada em 2008 no Festival de Cinema do Rio de Janeiro. Essas aparições, ainda que apenas para contestar a versão romântica de um poeta tímido e recluso, são regalos de valor inestimável para os leitores. Embora ele ainda prefira as cartas, inclusive para fazer promessas, como no trecho que segue, desvendando um título e o enredo do que pode ser o seu novo livro: "A infância da palavra. Gosto da semente da palavra, que é a voz de Deus que habita nas crianças, nos tontos, nos profetas e nos poetas. Gosto da infância"

Fonte:
Revista da Cultura. Ed. 29. Dezembro de 2009.

Jean-Pierre Bayard (História das Lendas) Parte XIX

III. Roberto, o diabo

Este belo e doloroso conto da Idade Média francesa canta a esperança de cada homem: qualquer, que seja o grau de nossos pecados, podemos encontrar o caminho da salvação. Roberto, esse ser abjeto e amaldiçoado, torna-se um santo. Obra de moralização e de encanto, sua ação rápida, alerta, acentua os caracteres da cavalaria.

1. — O assunto

Roberto nasce sob uma influência infernal. Sua adolescência é marcada pelos seus atos de crueldade; porém, ao saber do segredo do seu nascimento, quer expiar-se. Em Roma, num recanto do palácio do imperador, imita um louco e come com os cães. Porém, quando os sarracenos devastam a região, Roberto, com autorização celeste, combate e expulsa o invasor.

Depois, no anonimato, retoma o seu lugar de truão. Três anos mais tarde seu feito glorioso se repete e a identidade do “cavaleiro branco” se desvenda; a princesa encontra novamente a palavra para glorificar Roberto que, fugindo às honras, se retira do mundo.

2. — Os manuscritos

Um antigo poema de duzentas e quarenta estrofes monorrimas de quatro versos datando do século XIII foi retomado por G. S. Trébutien (Silvestre, Paris, 1837). Outro manuscrito do século XIV (ou começo do século XV) recebeu os cuidados atenciosos de E. Loseth (1903).

3. — As fontes

a) Literárias — Um texto em latim — de Etienne de Bourbon, dominicano do século XIII, publicado por Lecoy de la Marche (1877) retoma o mesmo tema, bem como uma redação em alemão do século XV. Um regato atravessa o quarto da princesa: imaginamos o quarto de Isolda.

Este assunto se repete nos Mistérios de Nostradamus (ll.o milagre) e no Roman de Robert, le Dyable, manuscrito de La Vallière, n.o 80 (edição Frère, Ruão, 1836). Mas “Un miracle de Nostre-Dame d’un enfant qui fu donné au dyable, quand il fu engendré” (33o. milagre de Gautier de Coincy) é publicado pelo padre Poquet (1857; Frère, Ruão, 1836) e Petit de Julleville (t. 149; t. II, 310) contêm textos análogos; Paulin Paris ocupa-se do “Miracle d’un enfant que sa mere donna ao diable à l’eure que son père l’engendra et qui fut porté en enfer”. Mágicos presidiram também a esse nascimento: este tema de iniciação é estudado nos temas do conto de Barba Azul.

b) Histórico — Nas Chroniques de Normandie pretendeu-se atribuir a paternidade de Roberto, o Diabo, a Aubert, duque e governador, da Normândia no tempo de Pépin le Bref; depois foi Robert Courteheuse, filho de Guilherme; o Conquistador, que teve morte gloriosa em 1134, durante a primeira cruzada. Outros viram nesse personagem o pai de Guilherme, o Conquistador, Roberto, o Magnífico (1035).

Na verdade Roberto, o Diabo, parece ser uma criação. É o tipo do príncipe salteador da Idade Média.

4. — Sucessão literária

Se Liebrecht (zur, Volkskunde) vê nessa lenda a adaptação eclesiástica de um velho conto popular pertencente ao grupo do “Teigneux”, Borinski pensa em Robert Guiscard.

Realmente, muitas vezes o demônio se interessa pelas crianças para delas fazer suas criaturas. Guillaume d’Orange, as lendas alemãs de Orendel e de Wolf Dietrich, as sagas de Thidrek têm pontos de semelhança estudados por Cosquin nas literaturas do Cambodge, de Zanzibar, da Sibéria, etc. A criança se liberta desse jugo maléfico mas conserva os benefícios da iniciação nos segredos importantes.

Edelestand do Meril (Etudes d’archéologie), Littré e Gaston Paris (Romania, IX, 523; XV, 260) estudaram essa lenda que Edouard Fournier, depois de uma tradução (Denty, 1879), fez representar no Gaieté, no dia 2 de março de 1879. Fora a ópera de Meyerbeer (Paris, 1831), as obras de Scribe e de Delavigne são interpretações livres.

5. — Seu ensinamento

Este conto, cujo texto é de uma pureza exemplar, adotou as idéias do cristianismo medieval. Faz lembrar Saint Alexis que, no dia de seu casamento, para se mortificar, foge às alegrias de sua família. Esta idéia de penitência, de elevação, depois de uma decadência nativa, tem bem um caráter popular e moralizador. Roberto, o Diabo, continua a ser uma das lendas francesas mais recentes.
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continua...
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Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Trova LXXXV - Lairton Trovão de Andrade (Pinhalão/PR)


Montagem sobre imagem obtida em http://bibliofototeca.blogspot.com

João Gilberto Noll (Dois Ingressos)


“DOIS INGRESSOS”, Pedi me abaixando um pouco, espiando as tristes feições que me atendiam. Sabia que eu estava absolutamente sozinho, mas não me contive, repeti: “Dois ingressos”. Na verdade não me importava com o filme em cartaz. Apenas deixei que o vento batesse no que me restava de cabelo, e fiquei ali, esperando que a moça me entregasse os bilhetes para o filme sobre o qual eu nem vagamente ouvira falar. Uma criança, claro, me puxava pela calça para que eu comprasse suas pastilhas de hortelã. Dizem que na eternidade todas as coisas vão se conectar umas às outras sem que nenhuma pese demais, ou seja, sem que nada chame muito a atenção sobre si para que tudo possa se encadear indefinidamente, um papo assim. Pois foi nisso que fui pensar no momento em que aguardava os bilhetes. A criança vendedora de pastilhas já não estava por ali.

Entrei. Dormi. Acordei com o filme pelo meio. Dois corpos se beijavam dentro de um carro. Depois uma batalha esquisita entrava. Numa época anterior à possibilidade histórica de um carro. Depois... depois uma sombra azeitonada cochichava ao meu ouvido um torvelinho de sílabas com uma fenda voraz em certo trecho de toda a confusão; cochichava o que não sou doido de reproduzir, pois venho desenhando em mim um homem com a mania férrea de se manter na mansidão do que pensa aparentar. Mas... mas em que ponto mesmo eu ia tocar?

Ah, precisava dormir um pouco mais. A música na tela era um tanto militar, como se saísse de um tranco de guerra, de algo que de sonífero tinha apenas um instrumento calado, constantemente a postos, preparado para entrar...

Aliás, o que eu queria mesmo era só uma pausa momentânea diante de tanta erupção sem a guarda dos fatos... Compreende ou prefere se afastar? Mas espera!, espera... O que eu queria era voltar a antes da sessão, eu com as mãos sobre o mármore frio da bilheteria, pedindo calmamente dois ingressos em plena vigência de uma sesta impossível, com aquela baboseira sobre o rigor da eternidade na cabeça, lembro... Duas, duas e meia da tarde... Ah, não sei por que volto ao plano inicial na calçada, em frente ao orifício por onde a mão passava com o dinheiro e voltava com as entradas; só sei, vocês verão, que não tenho aonde chegar – é isso... Então me levantei, fui ao banheiro do cinema.

Exatamente assim: me levantei, fui ao banheiro do cinema, justamente nessa ordem quase demencial ao panorama da hora, e soube pelo espelho que eu caçoava de mim. Língua, dentes, orelhas, tudo, tudo já não se continha em si, já expunha um outro mundo onde criaturas como ele... ele, ele sim, esse que se olhava no espelho de um cinema sujo e malcheiroso, esse que nunca ninguém mais viu, inclusive eu, se eu ainda fosse um pronome utilizável aqui onde já nem me encontro – mas calma!, pois eu dizia... dizia que inclusive eu de fato nunca mais vira aquele homem que se olhava no espelho do banheiro do cinema, a reparar que toda aquela massa orgânica até então coesa já caçoava irremediavelmente de sua própria pele, de seu próprio desconsolo até, uma vez que o tal desconsolo já não tinha realidade que o pudesse sustentar, sustentar para na primeira oportunidade poder eliminá-lo num afago quem sabe, num beijo de morte talvez, enfim!, deixa pra lá...

“Dois ingressos”, repeti. “Dois ingressos”, murmurei o mantra esfarrapado saindo do cinema – ali, bem ali naquela esquina onde eu já não podia estar...

Fontes:
Revista Cult. Junho de 2001. p.26 (Ficção Cult)

João Gilberto Noll (1946)



João Gilberto Noll nasceu em 1946 na cidade de Porto Alegre (RS).

Em 1969, após ter abandonado o Curso de Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, muda-se para o Rio de Janeiro, onde começa a trabalhar como jornalista nos jornais “Última Hora” e “Folha de São Paulo.

Em 1970, publica seu primeiro conto na antologia “Roda de Fogo”, organizada por Carlos Jorge Appel, de Porto Alegre.

Transfere-se para São Paulo, indo trabalhar como revisor da Cia. Editora Nacional.

Retorna ao Rio e à “Ultima Hora”, em 1971, onde escreve sobre teatro, literatura e música.

No ano de 1974 volta aos estudos de Letras e, no ano seguinte, leciona no Curso de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Em 1980, um ano após concluir o Curso de Letras, publica seu primeiro livro, “O cego e a dançarina”.

Recebe os Prêmios “Revelação do Ano”, da Associação Paulista de Críticos de Arte, “Ficção do Ano”, do Instituto Nacional do Livro e o “Prêmio Jabuti”, da Câmara Brasileira do Livro.

Outros livros do autor:

1981 – “A fúria do corpo”
1985 – “Bandoleiros”
1986 – “Rastros de verão”
1989 – “Hotel Atlântico”
1991 – “O quieto animal da esquina”
1993 – “Harmada” (Prêmio Jaboti)
1996 – “A céu aberto” (Prêmio Jaboti)
1997 – “Contos e romances reunidos”
1999 – “Canoas e marolas”
2002 – “Berkeley em Bellagio"
2003 – “Mínimos múltiplos comuns”

Recebeu vários prêmios internacionais, teve livros lançados da Inglaterra, foi bolsista e professor convidado na Universidade de Berkeley – E.U.A.

Fontes:
Wikipedia
Projeto Releituras
Revista Cult

Paulo Leminski (A Lua no Cinema)



A Lua foi ao cinema,
Passava um filme engraçado,
A história de uma estrela
Que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
Uma estrela bem pequena,
Dessas que quando apagam,
Ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
Ninguém olhava para ela,
E toda a luz que ela tinha
Cabia numa janela.

A Lua ficou tão triste
Com aquela história de amor,
Que até a Lua insiste:
-Amanheça, por favor!

Adolfo Simões Muller (Malditos Poetas)

Grandes Poetas (arte de Iraima Bagni)
Malditos poetas, que disseram tudo
e tudo tão bem dito!

Malditos poetas, que me deixam mudo,
sem um ai, uma súplica ou um grito!

Raios os partam, cada qual maldito!

Malditos, que roçaram no seu voo,
com asas de veludo
o infinito!

Malditos poetas: Eu os abençoo…

José de Mello Jr. (A Evolução do Livro e da Leitura)



O livro como nós conhecemos hoje, surgiu no Ocidente por volta do Século II D.C., fruto de uma revolução que representou a substituição do Vólumen pelo Códex, ou da forma de organizar em rolos para a forma atual composta por cadernos reunidos. Essa mudança não ocorreu de súbito, os primeiros a aderir foram as comunidades cristãs ainda no Século II visto em sua totalidade dos manuscritos da Bíblia encontrada a partir deste período, vale-se deste suporte. O mundo grego-romano relutará em assumi-lo. Só por volta do Século V é que haverá tanto Códex quanto rolos.

Vários eram as vantagens da nova forma de suporte: a utilização dos dois lados do suporte, a reunião de um número maior de textos em um único volume, absorvendo o conteúdo de diversos rolos, a indexação permitida pela paginação, a facilidade de leitura; enquanto o Vólumen exigia para ser desenrolado e lido a utilização das duas mãos, o Códex depositado em uma mesa pode ser lido sem o auxílio das mãos, liberando-as para o exercício de anotações. As mudanças, como se vê, eram significativas: tornava-se possível a redução dos custos de fabricação e, ao mesmo tempo em que se facilitava a leitura, concedia-se ao leitor a oportunidade de anotar, comparar e criticar o texto lido.

Com o Códex criou-se a tipologia formal, abrindo caminho para toda a padronização de formatos associada a gêneros e tipos de livro, normatização da qual são herdeiras as formas atuais de editoração.

Nestes 18 séculos que nos separam da passagem do Vólumen ao Códex, outras transformações significativas ocorreram ao âmbito do livro e da leitura. A partir do século 14 os impressores passaram a se responsabilizar por todas as marcas, títulos, capítulos e cabeças de páginas, eliminando a intervenção direta do corretor ou possuidor do livro. A separação entre as palavras, o estabelecimento de parágrafos, a numeração de capítulos, dentre outros, são adventos que irão interferir diretamente na leitura e que tomarão possível a proliferação de um leitor silencioso, que se vale apenas do olhar para apropriar-se do texto. Todo o aparato da leitura que na Antigüidade era predominantemente um ato sonoro e coletivo (voz alta), transforma-se em um ato solitário.

O leitor silencioso, em geral, confunde-se com o leitor extensivo, qual seja, aquele que tem à sua disposição um número muito grande de títulos para se apropriar, comparar e fundar a partir de seus comentários e novos textos. É o oposto do leitor intensivo, predominante em toda a Idade Média, ou seja, um leitor que dispõe apenas de um pequeno número de livros, e que faz da leitura destes textos um ato sagrado.

O advento da imprensa de tipos móveis, criou condições para que o leitor silencioso proliferasse por toda a Europa, uma verdadeira cultura letrada desenvolveu-se à medida que os originais se multiplicavam e que a oferta de títulos aumentava vertiginosamente. Enquanto a leitura em voz alta permanecia forte nos meios populares, dedicando-se a um pequeno número de obras, em geral romances, contos populares e poemas, a leitura com os olhos se dedicava à mais ampla gama de assuntos, em especial os científicos e filosóficos, era portanto, praticada por um seleto grupo de leitores.

No século XXI, proliferaram dezenas de novos modelos de suporte para leitura. Desta vez tinha-se a impressão de que voltaríamos ao passado. Sim, porque o texto estava mais uma vez rolando em algo, desta vez, não através do Vólumen mas pelo Écran (tela do computador) e com a ajuda da barra de rolagem. O texto eletrônico permite, de alguma forma, que possamos ler num suporte muito próximo ao modelo do caderno, em termos de tamanho e peso, porém como se fosse em rolos. O Vólumen levava os pensamentos ali escritos em uma unidade. O caderno, tão moderno e tão sofisticado em si, leva folhas presas, grampeadas ou costuradas.

Da evolução do Vólumen ao Écran, passamos pelo Códex e chegamos aos eBooks.

Fonte:
Revista Editor. Trechos do artigo "O Livro Digital". ano 2 - Nº 8 - Fevereiro / Março 2000

Jean-Pierre Bayard (História das Lendas) Parte XVIII



II. — O Judeu Errante

O judeu Isaac Lequedem da tribo de Levi, denominado também Ahasvero — Sapateiro — recusou qualquer socorro a Jesus supliciado. Por essa falta de caridade, caminhará até o juízo final conforme a maldição divina.

1. — Criação literária

Em 1228, um arcebispo da Grande Armênia, ao visitar o mosteiro de Saint-Alban, narrou a lenda de José — ou Cartafilo — porteiro do pretório, que bateu em Jesus e foi condenado a esperar a volta do Senhor. Caindo, de cem em cem anos, em letargia, recupera sua aparência corporal do tempo da paixão (trinta anos). O arcebispo diz ter almoçado com José. Mathieu Paris, recolhe a lenda e registra-a, em 1252, na sua História Major; Philippe Mousket, bispo de Tournai, menciona o mesmo episódio na sua Chronique rimée (em aproximadamente 1243).

Entretanto, essa lenda não aparece no folclore armênio.

Gaston Paris (Légendes du Moyen Age, 1912), observa que Cartafilo devia ser romano e não judeu pois que foi empregado por Pilatos.

A. d’Ancona mostrou (Romania, t. X e XII) que o personagem obsedava a imaginação da Idade Média.

2. — Evolução da lenda

Uma carta em alemão, datada de 29 de junho de 1564 afirma que Paul d’Eitzen, doutor em teologia e bispo de Scheleszving, encontrou o Judeu errante em Hamburgo em 1542. 0 redator alemão, protestante, teve que se servir desse nome para autentificar uma narração lendária. A narração de Chrysostornus Duduloeus Westphalus (Leyde, 1602), teve numerosas reedições.

Em 1575 esse erradio é encontrado na Espanha; apresenta-se aos Magistrados de Estrasburgo; Pierre Louvet o vê em Beauvais (1614). 0 advogado Bouthrays, na Histoire de son temps (t. II, XI, 1604), observa que — toda a Europa se — ocupa com esse personagem que inspira as artes. Depois da .publicação em Bordéus dos Discours du véritable Juif Errant (Discursos do verdadeiro Judeu Errante) (1609), as cartas de Prétendu Espion Turc (Pretenso espião turco) torna-se Michob-Ader (Paris, 1680).

3. — Origem literária

Gaston Paris pensa em Caim, o erradio fugitivo, em Samiri que foi condenado por Moisés a caminhar sem descanso por ter adorado um bezerro de ouro. Malc, que esbofeteou o Cristo com sua luva de ferro e gira em torno de uma coluna até o juízo final. Mas a lenda mais notável parece ser a de Jean Boutedieu, conhecida pelas cruzadas estabelecidas na Síria. É encontrada nos mistérios provençais, na canção de gesta de Fierabras (Ferrabras) na qual o leproso Marcos bate Jesus e na Espanha sob o nome de Juan Espera-en-Dios. Philippe de Novare anotou-o no seu Livre en forme de plait (1250).

4. — Evolução do personagem

Discípulo bem-amado ou culpado? São João, bem como José de Arimatéia são imortais e entretanto o cristão espera apenas a graça do céu. A vida tranqüila de Cartafilo sucede a vida errante de Ahasvero. Mas o erradio pára nas vilas, professa, toma assento à mesa de Paul d’Eitzen. Esses dois homens são tão diferentes que Droschen (Iena, 1668), Frantzel e uma brochura de 1645 são de opinião de que existem dois testemunhos da paixão.

Porém, em aproximadamente 1800, o judeu errante não pode mais parar; possui apenas 5 soldos no bolso que se renovam à medida que os vai gastando. É um timorato. Goethe pensa em tratar dessa lenda, mas Fausto, que também pode renascer, é muito mais humano.

5. — A sucessão literária

Depois das obras anônimas, as edições tais como La chanson de Béranger, a ópera de Scribe e Saint-Georges com a música de Halevy. Gérard de Ner vai traduziu Schubart numa meditação filosófica.

Gustave Doré firma esse personagem que permite a Eugene Sue compor o primeiro romance-folhetim. Mélies, em 1904, consagra-lhe uma curta metragem cinematográfica e histórica; lendas relativas à Paixão encontram-se intercaladas nessa obra. Daí as obras de Edgard Quinet (Ahasverus, 1834), de Ed. Fleg (Albin Michel, 1953), de Alexandre Arnoux (Carnet de route du Juif Errant, Grosset, 1931). Depois deste livro vibrante t’Serstevens criou seu encontro com D. Juan (La Légende de Don Juan, Gonet, 1946); num diálogo cintilante D. Juan torna-se o Judeu errante do amor. J. C. Cordeau (Ahasverus, Jouve, 1951) observa os simuladores que vão do desertor (Léopold Delporte, 26 de maio de 1623), aos impostores, tais como o conde de Saint-Germain ou Cagliostro. Outros homens, seguindo a convocação geral do ano 1000, já haviam endossado essa personalidade.

6. — Conclusão

O Judeu Errante talvez tenha nascido da imaginação popular. Todavia, o castigo parece desmesurado em relação ao ato e dificilmente se compreende o rigor de Jesus que sabia perdoar. A lenda pode personificar a nação judaica que deve viver entre os outros povos depois da destruição de Jerusalém por Tito. Pode ser o emblema da humanidade que caminha continuamente para um fim imprevisto. É a alegoria da guerra; a explicação mitológica transforma-a no vento que a conduz. É também um tema protestante, um testemunho certo que fortalece a fé, um testemunho em favor da veracidade dos fatos narrados nos Evangelhos, que combate o mito cristão.

A lenda permite aos autores traçar o quadro dos usos e costumes de cada país por onde passa; ou contar a História Sagrada. Porém, o personagem, vencido por seu erro, não goza das alegrias mortais, as únicas alegrias que poderiam lhe ter criado na obra literária um lugar de destaque.
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continua...
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Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Trova LXXXIV - Pedro Ornellas (São Paulo)

Montagem da Imagem utilizando imagens recolhidas da internet

Adolfo Simões Muller (A Raposa e a Cegonha)



O sr. Pombo, o carteiro,
trouxe um bilhete à Cegonha,
em folha de pessegueiro,
que ela soletrou, risonha:

«Dona Raposa, a Vossência,
envia muito saudar,
aguardando a comparência
de Vossência no jantar

que às Tantas do dia Tal
do corrente, se efectua
no Retiro do Pardal,
na rua da Catatua.

Não diga nada ao correio
e creia-me ao seu dispor.
Traje: simples, de passeio
R.S.F.F. (Responda, se faz favor).»

É claro: à hora marcada,
no dia Tal, no bilhete,
Dona Cegonha, apressada
lá seguiu para o banquete.

Mas foi uma decepção,
pois a Raposa, matreira,
fez servir a refeição
numa pedra da ribeira...

E, enquanto a pobre Cegonha
achava o caso bicudo,
a Raposa, sem vergonha,
tratava de comer tudo!

Mas a Cegonha, à saída,
despediu-se em tom amigo:
- Gostei muito da comida!
Almoce amanhã comigo!

De manhãzinha, a Raposa,
sempre cheia de apetite,
não quis saber doutra coisa
senão daquele convite.

- Sim, senhora! Bela mesa! -
gritou logo, satisfeita –
Cheira que é uma beleza!
Há-de me dar a receita...

- Bem digo eu, afinal,
e a colegas das melhores,
que dona de casa igual
não há nestes arredores!

Pôs então o guardanapo,
pensando, de olhos em alvo,
que havia de encher o papo
graças a mais um papalvo...

Já a Cegonha servia,
prazenteira, o seu almoço,
numa bilha muito esguia
e funda que nem um poço.

Só um bico, desta vez,
podia chegar ao fundo...
Foi o que a Cegonha fez:
rapou tudo num segundo.

E fula, de olhar em brasa,
a Raposa, como louca,
teve de voltar a casa,
fazendo cruzes na boca.

Vingança é coisa mesquinha!
Mas na vida quem faz mal
paga às vezes a continha
com juros e capital...
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Poesia baseada em fábula de Esopo

Imagem
http://fabulasdeesopo.blogspot.com

Adolfo Simões Müller (1909 – 1989)


Adolfo Simões Müller (Lisboa, 18 de Agosto de 1909 - 17 de Abril de 1989) foi um escritor e jornalista português.

Frequentou a Faculdade de Medicina mas abandonou o curso. Foi secretário de redação do jornal Novidades, fundador e diretor até 1941 do jornal infantil O Papagaio e diretor do Diabrete. Foi ainda diretor do gabinete de estudos de programas da Emissora Nacional e produtor de programas para a rádio. Inclusive foi o autor do primeiro folhetim de rádio As Pupilas do Senhor Reitor.

Estreou-se na literatura com o volume de poemas Asas de Ícaro (1926). No entanto, foi a literatura infantil que o celebrizou, tendo escrito obras como Caixinha de Brinquedos (1937, Prémio Nacional de Literatura Infantil) e O Feiticeiro da Cabana Azul (1942, galardoado com o mesmo prêmio).

Para o público juvenil escreveu, entre outros, os livros constantes da coleção Gente Grande para Gente Pequena, onde em cada livro romanceou a vida de personalidades como Madame Curie (A Pedra Mágica e a Princesinha Doente), Robert Scott (O Capitão da Morte),Camões (As Aventuras do Trinca-Fortes), Thomas Edison (O Homem das Mil Invenções), Gago Coutinho (O Grande Almirante das Estrelas do Sul), Wagner (O Piloto do Navio Fantasma), Gutenberg (O Exército Imortal), Florence Nightingale (A Lâmpada que Não se Apaga), Infante Dom Henrique (O Príncipe do Mar), Cervantes (O Fidalgo Engenhoso), Serpa Pinto (Através do Continente Misterioso), Marco Polo (O Mercador da Aventura), Fernão de Magalhães (A Primeira Volta ao Mundo - Prémio Nacional da Literatura em 1971), Baden-Powell (A Pista do Tesouro) ou Hans Christian Andersen (O Contador de Histórias).

Entre outras obras, adaptou para a juventude Os Lusíadas (1980), A Peregrinação (1980), A Morgadinha dos Canaviais (1982) e As Pupilas do Senhor Reitor (1984).

Em 1982, recebeu o Grande Prémio da Literatura Infantil da Fundação Calouste Gulbenkian pelo conjunto da sua obra, onde também se incluem livros como Meu Portugal, Meu Gigante (1931), Jesus Pequenino (1934), A Última Varinha de Condão (1941), Historiazinha de Portugal (1944), A Última História de Xerazade (1944), Dona Maria de Trazer por Casa (1947), O Livro das Fábulas (1950) e A Viagem Maravilhosa de Comboio (1956), num total com mais de 70 obras.

Outras das suas obras são Tejo Rio Universal, Sola Sapato Rei Rainha, Douro: Rio das Mil Aventuras, Histórias do Arco da Velha, Moço Bengala e Cão ou a adaptação juvenil das Mil e Uma Noites.

Em 1990, a Editorial Verbo instituiu um prêmio com o nome do escritor, como homenagem à memória desse mestre da literatura infantil e como estímulo à revelação de novos autores.

Fonte:
Wikipedia

Alex Giostri (O Ator e a Poesia)



“O verdadeiro aplauso que deves procurar não são as palmas subitamente ouvidas após um verso deslumbrante, mas o profundo suspiro que escapa da alma e a alivia, após a opressão de um longo silêncio.”
DIDEROT, Denis

A relação do ator com a poesia deve ser íntima. Um ator que tenha um conhecimento médio no universo poético terá naturalmente uma maior desenvoltura em seu ofício. E a poesia não são apenas os versos que se lê em livros, mas também as letras musicais, as frases bem ditas, a maneira que se experimenta a vida.

Da poesia, da obra poética, é fundamental que o ator leia tudo o que puder. Quanto maior for o seu conhecimento maior será o seu espaço emocional e intelectual. O objetivo maior dessa aproximação entre o ator e a poesia é a questão lírica que a poesia contém em sua estrutura. O eu lírico do poeta é também o eu lírico do ator, que na verdade está levando á cena o eu lírico de uma personagem, que é fruto de um eu lírico do autor.

O poeta ao escrever seus versos expressa suas sentimentalidades nos versos. O ator, ao compor sua personagem, exala através de sua fala as palavras que o autor, que também já foi chamado de poeta dramático, escreveu. Ambos falam de seu eu. Um revela a própria verdade, o outro revela a verdade daquela pessoa que não é ele próprio, mas que também é naquele momento. Neste sentido, pode-se pensar que as impressões do ator emolduram as impressões da personagem, que revela ao público não apenas a sua impressão, mas também a impressão do ator e de sua vivência emocional pessoal. Todos falam ou tratam de si subjetivamente.

O fazer poesia para o ator é quando é capaz de ocultar-se e à palavra que diz, transformando-a apenas em impressões para os espectadores. A fala do ator é também poesia. Toda fala é também canção, assim como a canção vem da fala. Então, na medida em que o ator é sensível à poesia também é sensível à palavra, consequentemente à maneira de falá-la, declamá-la ao seu público.

E ao transformar a sua fala em poesia em cena, o ator se mune da boa respiração, das pausas, das inflexões, do conhecimento da língua, da pontuação e do sentido de tudo que está dizendo e fazendo. O ator completo é poesia.

E essa é a questão:

O que diferencia o poeta do ator é que o poeta é poeta de sua obra e o ator é poeta do mundo e do próprio poeta. É o ator que declama o que o poeta, que é também o dramaturgo, escreve em seus papéis.

Fonte:
http://www.alexgiostri.com.br/

Casa do Poeta de Canoas (Convite)

Mário de Andrade (O Cortejo)


Monotonias das minhas retinas...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...
Todos os sempres das minhas visões! "Bom giorno, caro."

Horríveis as cidades!
Vaidades e mais vaidades...
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! Os tumultuários das ausências!
Paulicéia - a grande boca de mil dentes;
e os jorros dentre a língua trissulca
de pus e de mais pus de distinção...
Giram homens fracos, baixos, magros...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...

Estes homens de São Paulo,
Todos iguais e desiguais,
Quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,
Parecem-me uns macacos, uns macacos.

Mário de Andrade
Paulicéia Desvairada (1922)
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Análise da Poesia

O livro Paulicéia Desvairada foi publicado em 1922, mesmo ano da Semana de Arte Moderna. Trata-se do primeiro livro de poemas modernista, cuja "confecção tumultuária" Mário de Andrade descreveria muitos anos depois na famosa conferência de 1942 sobre o movimento que transformaria o panorama das artes no Brasil.

Como o autor descreve, havia muito tempo que ele intentava compor um livro à maneira do Les villes tentaculaires (As cidades tentaculares), do poeta belga Émile Verhaeren (1855-1916). Mas suas tentativas, no entanto, se frustravam.

O desejo por fim se realizou quando, num dia em que adquirira a famosa escultura Cabeça de Cristo, de Victor Brecheret, o poeta teve de enfrentar a injúria e a incompreensão da família, solidamente católica, diante de uma obra que ousava representar Jesus com tranças na cabeça. Enfurecido, subiu até seu quarto, onde, pela janela, podia avistar o movimento já frenético dos carros e dos bondes.

A visão da cidade que se urbanizava rapidamente e em que a paisagem industrial ia se desenhando [Lembremos que a casa de Mário de Andrade se situava, como se situa até hoje, na rua Lopes Chaves, no bairro da Barra Funda, em São Paulo], mais a desordem íntima que o escritor experimentava após a discussão familiar, talvez tivessem lhe proporcionado uma percepção poética de como escrever, em português e de maneira conforme à realidade local, paulista, um livro semelhante ao de Verhaeren, que procurou traduzir em imagens poéticas a cidade moderna, "tentaculizada" pela linhas de bonde. Paulicéia Desvairada seria escrita naquela noite mesmo, de um fôlego só.

É evidente que não foi apenas nessa noite que Mário de Andrade se deu conta do processo de modernização por que passava a cidade, em que os bondes, os postes de luz, a imigração e a especulação imobiliária mudavam a cada dia a cara da cidade. O que é interessante nessa anedota é o fato de que o autor, embora tivesse à vista um material semelhante ao de Verhaeren (a cidade grande, com as diferenças, entretanto, que há entre Brasil e Europa), precisava também sentir a "música" do tumulto associada a esse material.

Sem conjeturar mais acerca dos elementos que precederam a criação poética, importa notar que o poema O cortejo transcreve um pouco essa música da desordem, música que é obtida pelo cruzamento de diversas linhas melódicas, produzindo o que Mário chamou, no prefácio a Paulicéia Desvairada, de polifonia poética. Transcrevemos abaixo um trecho longo mas fundamental desse prefácio para compreendermos um poema como "Os cortejos":

"A poética está muito mais atrasada que a música. Esta abandonou, talvez mesmo antes do século 8, o regime da melodia quando muito oitavada, para enriquecer-se com os infinitos recursos da harmonia. A poética, com rara exceção até meados do século 19 francês, foi essencialmente melódica. Chamo de verso melódico o mesmo que melodia musical: arabesco horizontal de vozes (sons) consecutivas, contendo pensamento inteligível. Ora, si em vez de unicamente usar versos melódicos horizontais:

Mnezarete, a divina, a pálida Frinéia
Comparece ante a austera e rígida assembléia
Do Areópago supremo...

Fizermos que se sigam palavras sem ligação imediata entre si: estas palavras, pelo fato mesmo de se não seguirem intelectual, gramaticalmente, se sobrepõem umas às outras, para a nossa sensação, formando, não mais melodias, mas harmonias.

Explico melhor:
Harmonia: combinação de sons simultâneos.
Exemplo:
Arroubos...Lutas...Setas...Cantigas...
Povoar!...

Estas palavras não se ligam. Não formam enumeração. Cada uma é frase, período elíptico, reduzido ao mínimo telegráfico.

Si pronuncio Arroubos, como não faz parte da frase (melodia), a palavra chama a atenção para seu insulamento e fica vibrando, à espera duma frase que lhe faça adquirir significado e que não vem. Lutas não dá conclusão alguma a Arroubos; e, nas mesmas condições, não fazendo esquecer a primeira palavra, fica vibrando com ela. As outras vozes fazem o mesmo. Assim: em vez de melodia (frase gramatical) temos acorde arpejado, harmonia - o verso harmônico.

Mas, si em vez de usar só palavras soltas, uso frases soltas: mesma sensação de superposição, não já de palavras (notas) mas de frases (melodias). Portanto: polifonia poética
".

Mário de Andrade, também professor e pesquisador de música, explora a afinidade entre música e poesia para cobrar desta os mesmos desenvolvimentos da primeira. Assim como a música, já na Idade Média, passara da melodia (a disposição horizontal de sons consecutivos) para a harmonia (a superposição vertical, a combinação de sons simultâneos), assim a poesia deveria passar do verso considerado como articulação lógica entre as palavras para o verso caracterizado pela combinação de palavras sem relações visíveis entre si. Ou seja, a poesia, aproveitando a analogia com a música, deveria se emancipar do verso melódico e desenvolver o verso harmônico, espécie de arquipélago sonoro, em que as palavras vibram, descoladas umas das outras, à espera de um completamento de sentido que, no entanto, não vem, como enfatiza o poeta. Na verdade, ela não vem no próprio texto, pois é o leitor quem é solicitado a refazer as conexões entre aquelas ilhas de som e de sentido. Assim, numa seqüência como Tietê, de Paulicéia Desvairada, "Arroubos...Lutas...Setas...Cantigas...Povoar!... citada por Mário, a ligação entre os termos não está dada, embora caiba ao leitor imaginar as articulações, fornecidas pelo contexto do poema, que, por meios bastante sintéticos e telegráficos, mapeia a odisséia dos bandeirantes ao longo do rio que corta a cidade de São Paulo. Uma odisséia em que se misturam mortes, lutas, as "monções da ambição", as "gigânteas vitórias" e as cantigas de povoamento. Todo um capítulo da história brasileira o poeta pretendeu condensar em versos harmônicos. Se ele tivesse exprimido o mesmo conteúdo do verso acima em versos melódicos, poderíamos ter algo como:

"Os arroubos dos bandeirantes, sua ambição de enriquecer os levaram a desbravar a terra selvagem, enfrentando todo tipo de hostilidade"

"Lutavam com os índios na posse da terra e de riquezas naturais, e estes por fim acabavam ou apresados ou chacinados"
etc.

O sucesso da articulação entre aqueles signos descolados (arroubos, lutas, setas) será tanto maior conforme o conhecimento e a sensibilidade de cada um. É requerida, portanto, uma operação da inteligência.

O poema "Os cortejos" é bastante representativo do que o poeta chamou de "polifonia poética", explicada no trecho que destacamos do prefácio. A polifonia poética nada mais é do que a aplicação, na relação entre as frases num poema, do mesmo procedimento usado entre as palavras no interior do verso melódico. Temos agora um agrupamento de frases soltas, transmitindo umas às outras remotas vibrações, como as cordas de uma cítara:

Monotonias das minhas retinas...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...
Todos os sempres das minhas visões! "Bom giorno, caro"

Notemos que o poeta não faz aqui uso de verbos, a não ser no modo infinitivo e com função de adjetivo ["a se desenrolar" equivale ao qualificador "desenrolantes"]. Não estamos diante de orações, em que se exprime um pensamento lógico e encadeado. A ausência de verbo indica que estamos diante de frases mais marcadas pela efusão do sentimento. São frases não-oracionais, difíceis de analisar quanto à estrutura. Conforme a teoria poética de Mário, funcionariam como sons isolados e superpostos, produzindo a impressão de uma polifonia, na qual uma das várias linhas melódicas parece fazer as vezes de um monótono cantochão, repetido ao longo do poema:
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...

A cidade é vista como um amontoado de cortejos, que, conforme a perspectiva, podem ser tanto carnavalescos ("serpentinas") como funerários ("monotonias"). É curioso que a utilização da polifonia poética, recurso mais apropriado que o verso melódico para representar o mosaico urbano de trabalho, massas, bondes, agitação, esporte, vitrines, sirva aqui a exprimir o aspecto monótono que essa mesma pluralidade de elementos pode assumir. A cidade pode também matar a poesia:

Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!

São Paulo se revela uma boca de mil dentes, uma língua trissulca (adjetivo que significa aquilo que tem três sulcos), que morde e mastiga os homens "fracos, baixos, magros". Estes são "todos iguais e desiguais", assim como os cortejos podem variar conforme o ângulo de quem os observa. Nas retinas saturadas do poeta, eles parecem

"...uns macacos, uns macacos".

Se a cidade moderna representaria, por um lado, a libertação e a afirmação do indivíduo, a qual não se daria no quadro de uma vida provinciana, por outro ela poderia achatar e tirar a singularidade desse mesmo indivíduo, inserido na divisão do trabalho e sujeito ao poder avassalador do dinheiro e do comércio. Se os homens parecem desiguais ao poeta, com características étnicas, sociais e culturais que os distinguem entre si, são também iguais e anônimos no aglomerado urbano e no mundo do trabalho. São nada mais que números. O excesso de estímulos visuais e sonoros produzidos pela Paulicéia, que o poema apreendera de maneira polifônica, não deixa de soar, no fim das contas, como uma melodia única, monocórdica, que a repetição no verso final enfatiza: uns macacos, uns macacos. Tais homens são menos que homens, pois parecem agir meramente por reflexos condicionados.

Paulicéia desvairada pode ser lida como um inventário das vivências, percepções e sensações desencadeadas pela modernização de São Paulo, com a qual Mário de Andrade terá uma relação ambígua ao longo de sua obra. A cidade ora é tumba de homens massacrados pelas "monções da ambição", de bandeirantes ou de capitalistas, ora é palco de multicoloridos festejos.

Fonte:
http://www.tvcultura.com.br/