sábado, 30 de janeiro de 2010

Nilto Maciel (Caderno de Poesias)


Dor

Não tenho mal nenhum, senhora minha,
como se fosse puro, imaculado,
como se fosse um anjo, um serafim,
como se fosse deus, imune à dor.

Eu nada sinto, dor nenhuma tenho,
quer na cabeça, quer no amargo peito.
Não tenho mal nenhum, senhora minha,
perfeitamente são me sinto e puro.

Se existe mal em mim, se existe dor,
é a de morrer tão cedo, a pleno sol,
envelhecer como qualquer mortal.

E a dor maior, minha senhora bela,
é dentro d'alma, bem profunda e aguda,
a dor chamada angústia, a dor de ser.

Possessão

Nada é meu,
nem a vida,
que é minha.

SÍSIFO

Para Cátia Silva

O meu destino é semelhante àquele
imposto ao legendário rei coríntio,
que carregava ao ombro para o monte
pedra que despencava em avalancha.

Buscava novamente a rocha bruta,
subia o monte e, mal chegava ao cimo,
de suas mãos sangradas escapava
o mineral, que ao solo retornava.

E assim jamais o seu suplício ao fim
chegava, mesmo exausto, quase morto.

O meu suplício é semelhante ao dele
- a cada “não” que tu me dizes, subo
minha montanha, carregando pedras,
que se desprendem de meus ombros, rolam
ladeira abaixo, e volto a ti, pedinte.

E tu de novo dizes “não”, sorrindo.

Apanho minha rocha, subo o monte.
Se conseguir chegar ao cimo e lá
deitar a pedra, ao chão fincá-la, o “sim”
de ti terei; porém fui condenado
a carregar meu fardo vida afora
e vê-lo escorregar pelas escarpas.

E quando quase morto me encontrar,
sabendo, embora, que somente “não”
a mim dirás, ainda assim direi:
“Melhor este suplício, a ser feliz
longe dos olhos teus, vizinho à morte”.

SONETO CREPUSCULAR

Para Francisco Carvalho

Nos campos de meu pai antigamente
as chuvas inundavam meus pensares
e do pomar do céu pingavam frutos.

Ventos ninavam aves repousadas
nas árvores vigias de seu sono,
sentinelas da luz crepuscular.

As ovelhas baliam suas crias,
os vaga-lumes alumbravam tudo
e a solidão das vacas nos currais.

Duendes se assustavam co’os trovões.
Na escuridão dos quartos o perfume
do amor gemente à sombra dos lençóis.

Invernos que de mim se evaporaram
nos campos de meu pai antigamente.
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Fonte:
Jornal de Poesia.

Nilto Maciel (O Ouro de um Pobre-Diabo)


Passei toda minha longa vida imaginando riquezas, sonhando tesouros e prêmios lotéricos. Vivia numa pobreza de causar dó. Trabalhava feito um desgraçado. Cometi mil pequenos erros, de tanto querer escapar à má sorte. Embriagava-me, jogava dados, batia na mulher e nos filhos. Terminei por abandoná-los. Vagueei pelas ruas, por vilas e cidades, sempre em busca de dinheiro, muito dinheiro, fortuna.

Já velho, cansado, doente, resolvi parar. O destino não me queria rico. Restava trabalhar, pedir, roubar migalhas. E esperar a morte. A mais miserável morte.

Uma noite, deitado numa esteira, eu fazia um balanço de minha vida. E olhava para um buraco no teto. Talvez visse estrelas e seu brilho distante, infinito.

Absorto, senti cair sobre meu peito um pequeno objeto. Assustado, ergui-me. A coisa rolou para um lado. E tiniu. Parecia uma moeda. Dei um bote, agarrei-a. Trêmulo, aproximei dos olhos o brilho encantador do ouro. Sim, era moeda de ouro.

Ainda encantado, ouvi outro tinido no quarto. Arregalei os olhos, para não perder de vista um só instante do trajeto daquele maná. A rodinha rodopiou no chão e parou junto à parede. Ia eu apanhá-la, quando novo baque sucedeu. Olhei para o teto. Não vi mais estrelas. Em compensação, o buraco parecia entupido de moedas, que caíam lentamente, uma a uma.

Primeiro enchi os bolsos, a seguir sacos e sacolas. Cheguei a esvaziar a mala de roupas e pequenos objetos de uso pessoal. Imaginava fugir dali, tão logo caíssem todas as moedas. Com certeza haviam sido roubadas e escondidas no telhado da casa.

Porém não consegui fugir. Pois, abarrotados bolsos, sacos e mala, continuaram a cair moedas. E cada vez com mais intensidade. Decidi, então, sentar-me a um canto e simplesmente observar o espetáculo.

Acumulavam-se moedas no chão. E eu maravilhado, sem mais nenhum pensamento, a não ser o de estar finalmente rico.

No meio da noite, já todo o chão se cobrira de moedas. E eu passeava, sonolento, de um lado para outro, a pisar, orgulhoso, minha incalculável riqueza. Olhava de vez em quando para cima. O buraco expelia ouro, sem parar.

Pela madrugada, senti sono e cansaço, e recostei-me à porta. Acordei já de manhã. Um peso enorme parecia me sufocar. Eu devia estar sentado. As moedas chegavam à altura do pescoço e todo o quarto cheirava a ouro e brilhava como um sol.

Tentei desenterrar-me. Nem sequer consegui arrancar as mãos do monte de moedas. E do teto mais e mais ouro escorria.

Apavorei-me. Se aquilo não parasse logo, eu poderia morrer sufocado. Pus-me a gritar, ao mesmo tempo que fazia força para me soerguer.

Quando conseguiram entrar no quarto, minha alma já havia sumido.

Fontes:
Jornal de Poesia.
Imagem = Montagem sobre desenho (mendigo) de Souzacampos

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Charles Bukowski (Conversa às 3h30 da madrugada)


às 3h30 da madrugada
uma porta se abre
e há passos na entrada
movendo um corpo,
e uma batida
e você repousa a cerveja
e responde.

com os diabos, ela diz,
você não dorme nunca?

e ela entra
com rolos no cabelo
e num robe de seda
estampado de coelhos e passarinhos

e ela trouxe a sua própria garrafa
à qual você gloriosamente acrescenta
2 copos;
o marido, ela diz, está na Flórida
e a irmã manda dinheiro e vestidos para ela,
e ela tem estado procurando emprego
nos últimos 32 dias.

você diz a ela
que é um cambista de jóquei e
um compositor de jazz e de canções românticas,
e depois de alguns copos
ela não se preocupa em cobrir
as pernas
com a beira do robe
que está sempre caindo.

não são pernas nada feias,
na verdade são pernas ótimas,
e logo você está beijando uma
cabeça cheia de rolos,

e os coelhos estão começando a
piscar, e a Flórida é longe, e ela diz
que não somos realmente estranhos
porque ela tem me visto na entrada.

e finalmente
há muito pouca coisa
para dizer.

(Tradução de Roberto Schmitt-Prym)
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Charles Bukowski nasceu na Alemanha, filho de um soldado americano, ainda criança foi para os EUA. Teve problemas com alcoolismo e, apesar de ter realizado estudos superiores em literatura e jornalismo, trabalhou como frentista, ascensorista e motorista de caminhão. Começou a escrever poesias aos 15 anos, em 1935, mas seu primeiro livro saiu apenas 20 anos depois. Em 1962, estreou na prosa, caracterizada pela mistura de vida pessoal na literatura. Apenas em 1970 Bukowski deixou seu último emprego "comum", o de funcionário do correio, para se dedicar exclusivamente à escrita. Moreu em 1994 aos 73 anos.
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Fontes:
Máquina do Mundo – Revista de Poesia.
Imagem = http://www.simplesmentepoeta.hpg.ig.com.br/

Emilia Barbès (Conversa)


A senhora já teve alguém da família preso? – ia perguntar, na primeira chance.

Podia ser quando ela entrasse na cozinha para pedir alguma coisa ou beber água e ficasse por ali puxando conversa, comentando alguma notícia. Às vezes dava para começar uma conversa assim comentando notícia, e eu contava tudo, se desse tempo.

Dizia primeiro que há uns seis meses tinha ido à cadeia pública. Um filho meu ficou preso vinte dias. Fui lá dois domingos para vê-lo e levar frutas. Não, não comprei frutas – levei biscoitos e cigarros e outras coisas. Não me lembro. Quando cheguei, vi logo que estava exasperado. Atirou num homem num baile; não matou, a bala passou de raspão. Nem sabia que ele tinha arma. Disse que em outro baile o sujeito tinha dado um tapa na cara dele e fugido na confusão. Que confusão? Um tapa na cara, ficou apanhado. Esse meu filho tem 23 anos.

Fui aqueles dois domingos para a fila. Tinha muitas mulheres, quase só mulheres. Jovens, velhas, meia-idade, tudo com sacola na mão, caladas, conversando, umas já conhecidas das outras, falando, falando. Nunca senti tanta vergonha de ser mulher, de ser mãe, de estar ali com aquelas outras todas, carregando coisas para amenizar o malfeito dos outros. E depois raiva, uma raiva que dava vontade de largar aquela sacola e ir andando sem rumo.

Pensava na distância grande até em casa, mas não podia me ver caminhando na cidade como num descampado, sem ponto final definido, sem parar para esperar os carros. Queria mesmo era andar sem rumo e sem paradas - num descampado - andar muito, até ficar meio grogue, sem sentir os pés, com uma moleza, sem saber de dia, de noite, do tempo desgraçado que fazia, ou muita chuva, ou pouca, sol fraco, sol escaldante, vento frio, mormaço, não consigo me lembrar. Como o tempo aqui é assim, talvez nem estivesse chovendo, não levava sombrinha, ou carreguei a minha pequena, por hábito, dentro de uma das sacolas. Tinha duas. Sacolas, quero dizer. Todas de plástico, do supermercado. Não, eram quatro, uma por dentro da outra, de reforço. Cheguei lá para entregar as coisas. Não teve muita conversa. Vi a vergonha dele. Vergonha da burrice, da cavilação. Comprou o revólver, ficou esperando o baile três semanas. Agora que está solto tem dificuldade de arranjar emprego por conta da ficha suja na polícia. Na época do tiro trabalhava, arrumou dinheiro, comprou arma, passou dias remoendo a raiva, fermentando. Gostaria de bater nele, dar uns tapas, sacudir pelos ombros, beliscar os braços, puxar os cabelos, torcer os dedos.

Vingança burra; se pegasse, miserável, quem perdia os melhores dias? Pro morto, nada mais conta: toda a merda ia ficar contigo mesmo. Essa sujeira. Não pelo resto da tua vida, mas bem pelo resto da minha, miserável. Não, queria que pelo resto da tua mesmo, o resto dos teus dias desgraçados, sem entendimento, remoídos, burros. Quem sabe aprendia alguma coisa nessa porcaria.

Se ela me perguntasse, sim, eu gostaria de ter dito. Não disse nada. Só as coisas habituais: “Oi, filho?”, eu disse. “Trouxe umas coisinhas aqui pra você”. Dei notícias de casa, as desculpas dos que não podiam visitá-lo, não permitiam a família toda - nem me lembro. Sei que não queriam, nenhum queria fazer visita em cadeia, o pai não quis, os irmãos não iam estragar a folga do domingo: vai você, mãe. Não disse. Dei as saudações, as lembranças, falei de um churrasco que o irmão mais velho queria dar quando ele saísse, seria logo sua saída. E ia sentindo minha falta de pena. Até enxergava a vergonha dele, exasperado, ignorante, o rosto mais fino, como se fosse magro e era forte. Mas pena, compaixão, dó de mãe, não consegui. Ali, durante a conversa, a raiva foi mudando, assentando. Eu olhava para ele, falava, agia tudo como mãe, mãe zelosa do filho; quero dizer, de sua maneira particular, levando coisas, falando, sem muitos afagos, mas com os cuidados, os cumprimentos etc. Mas de mim ele estava muito apartado. Depois, em casa, a distância foi diminuindo.

Penso agora que se dividiu pelos outros filhos. Toda vez que faço coisas por eles, um favor, uma atenção a mais, qualquer espécie de agrado, de ajuda, desconfio. Acho que é assim, um sujo num canto difícil de limpar, a gente olha aquele lugar, tenta, tenta, tenta, cansa, desiste, esquece. Depois vê de novo, tenta de novo, pensa até que melhorou e a sujeira acaba se entranhando, já faz parte daquele canto. Se der, falo. Será que falo mesmo? E ela escuta tudo ou me interrompe, faz perguntas? A senhora nunca vai conhecer meu filho, - podia começar.
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Emília Barbès nasceu em Belém do Pará em 1962. Formou-se em Química pela Usp em 1985 e pouco depois casou-se com um empresário canadense. No exterior, morou em Ottawa, Boston, Copenhagen e Vevey (Suíça). Divorciou-se e voltou para São Paulo, onde trabalha com educação infantil polilinguística. Começou a escrever recentemente.
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Fontes:
Cronopios – Literatura e Arte em Meio Digital.
Silvia Caroline.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Trova 112 - Manoel Martins de Oliveira (Juiz de Fora/MG)

Valdecy Alves (Canto ao Ceará)


Poesia selecionada para coletânea do XII Prêmio Ideal Clube de Literatura. Obra lançada no dia 21 de janeiro de 2010.

Não sou amigo de Homero
Nem sou parente de Dante
Licença, pois vou adiante
Com nada me desespero
Virgílio me inspira, eu quero
Apoio me dá Camões
Vieira com os seus sermões
E a força de Patativa
Vem Cego Aderaldo e ativa
Razão, sentir, emoções

Com todas as forças penso
Minha mente um reboliço
Protege-me Padim Ciço
Benção de Beato Lourenço
Meu pensar fica então denso
Avisto Frei Damião
Ibiapina dá-me a mão
Enfrento universo inteiro
Ao meu lado Conselheiro
Dos deuses a proteção

Das páginas da Iracema
As brisas da inspiração
E da Normalista, então
O real invade o tema
E de Galeno o Poema
De Raquel a força bruta
Do Quinze que o país enluta
Reforcem minha criação
Fogo à imaginação
Que brote poesia astuta

Paisagem bela e lunar
Na praia de Morro Branco
Vou-lhe confessar sou franco
Jericoacora não há
Igual éden, duna e mar
Serras de Baturité
E de Araripe da fé
Chapada da Ibiapaba
No alto o Ceará se acaba
Ao infinito onde der!

Corre o Rio Jaguaribe
Atravessando o sertão
Em tempos de sequidão
Artéria que não se inibe
Produz riqueza e PIB
Ao norte o Acaraú
Com o Rio Coreaú
São construtores da vida
Às suas margens o homem lida
Irrigando o solo nu

Tem a gruta de Ubajara
Os casarões de Icó
Crato, florestas que só
As dunas que o vento apara
Seco sim, mas não Saara
Lugares dos mais insólitos
Tem Quixadá dos monólitos
Tem mar, serra e sertão
Mulheres belas que são
Senhoras de homens acólitos

Ceará de sol intenso
Nas praias bronzeador
Carrasco no interior
Pai da seca e calor denso
Do sertão sem fim, imenso
Pátria do mandacaru
Banha-o a bica do Ipu
Tem único e ímpar luar
Carnaubais a dançar
Sob céu sem igual azul

Ceará doce Ceará
Do corajoso vaqueiro
Da praia do jangadeiro
Do artesão, renda e cantar
De repentistas a criar
De grandes compositores
Paraíso de escritores
Tapioca e rapadura
Que leva o turista à loucura
Com seu povo, o belo e cores...

Mesmo o cidadão que emigra
Pro Norte ou Sul do país
Kafka eterno infeliz
A distância causa intriga
Mesmo a miséria inimiga
Não o separa da terra
Que seu alicerce encerra
Sempre sonhando voltar
Com vida ou pra se enterrar
Nada atrapalha ou emperra

Tão grande amor instintivo
Não há maior sentimento
O voltar melhor momento
O partir fá-lo inativo
E da saudade cativo...
No Ceará o forasteiro
Seja rico ou sem dinheiro
Que resolve nele morar
Atesta no paraíso estar
O melhor do mundo inteiro!
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Valdecy Alves


Nascido na cidade de Senador Pompeu (CE), terra natal do grande escritor Moreira Campos, mora em Fortaleza, terra da luz.

É poeta, dramaturgo, cineasta e advogado especialista em Direito Constitucional..

Participou da fundação de inúmeros jornais e revistas literárias tanto no Ceará, como no Estado de São Paulo.

Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB Ceará durante 8 anos, foi advogado da Cáritas em Senador Pompeu (CE), advogando em várias áreas do direito.

Atualmente tem escritório em Fortaleza Ceará, assessorando vários sindicatos de servidores municipais tanto em Fortaleza, quanto no interior do Estado Ceará. Atuando como consultor e parecerista para todo o Brasil.

Livros

SEU SEVERINO (romance)
O MARITICÍDIO (romance)
ENCANTADO (romance)
O SONHO TEM ASAS PARA O INFINITO (romance)
O PODER, O IDEAL E A MISÉRIA (romance)
TRAVESSIA (romance)
EROSÃO (poesias)
A BESTA FERA DE 32 – Cordel
DIREITOS HUMANOS EM CORDEL - 2004
A DIVINA COMÉDIA EM CORDEL – 2004 Igualdade Mulheres e Homens – Cordel – 2005
EMBRIONÁRIA – 2006. HISTÓRIA, Lei Maria da Penha em Cordel, : ENCICLOPÉDIA DE SENADOR POMPEU.

FILMOGRAFIA:

São Paulo 2080 (Festival Guarnicê)
Senamorpoemeu
Um Grito No Caos
Orvalho Negro (premiado em São Paulo)
Infimus
Um Carrasco Deve Ser Coerente (festival mundial do minuto)
A Ponte
O Novo Deus
Albino Donat
Solidão
Guardiões do Tempo e da História
Etc.

Produziu, montou escreveu e dirigiu várias peças teatrais, uma delas “Ondas Secas” muito premiada no Estado do Ceará. De sua autoria foi montada em 2009 a Tragédia de 32, tratando do Campo de Concentração da Seca de 32 em Senador Pompeu - Ceará.

Fonte:
http://www.valdecyalves.blogspot.com/

Frei Betto (Passeio Socrático)


Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos, e em paz nos seus mantos cor de açafrão...

Em outro dia, eu observava o movimento do Aeroporto de São Paulo: a sala de espera estava cheia de Executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado o seu café da manhã em casa; mas, como a companhia aérea oferecia outro café, todos comiam vorazmente.

Aquilo me fez refletir: “Qual dos dois modelos vistos por mim, até aqui, realmente produz felicidade?”.

Passados alguns dias, encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei: “Não foi à aula?”. E ela me respondeu: “Não. Eu só tenho aula à tarde”. Comemorei: “Que bom! Isto significa, então, que, de manhã, você pode brincar, ou dormir até mais tarde!....”. “Não!”, retrucou-me ela, “tenho tanta coisa a fazer, de manhã...”. “Que tanta coisa?”, perguntei. “Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina”, e começou a elencar seu programa de garota robotizada...

Fiquei pensando: “Que pena! A Daniela não me disse: “Tenho aula de meditação”. Vê-se que estamos construindo super-homens e super-mulheres, totalmente equipados, mas, emocionalmente infantilizados.

Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo... Mas, preocupo-me com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos. Alguns perguntaram “Como estava o defunto?”. E outros responderão: “Olha..., uma maravilha, não tinha uma celulite!”...

Mas, como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?

Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação, porém, de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual. Somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. E somos também eticamente virtuais...

A palavra hoje é “entretenimento”. Domingo, então, é o dia nacional da imbecilização coletiva. Imbecil, o apresentador; imbecil, quem vai lá e se apresenta no palco; imbecil, quem perde a tarde diante da telinha... E como a publicidade não consegue vender felicidade, ela nos passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: “Se tomar este refrigerante, calçar este tênis, usar esta camisa, comprar este carro..., você chega lá!”.

O problema é que, em geral, “não se chega”! Pois, quem cede a tantas propagandas desenvolve, de tal maneira, o seu desejo, que acaba precisando de um analista, ou de remédios. E quem, ao contrário, resiste, aumenta a sua neurose.

O grande desafio é começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: a amizade, a autoestima e a ausência de estresse.

Mas há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno.. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um Shopping Center. É curioso: a maioria dos Shoppings Centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles, não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de “missa de domingo”. E ali dentro se sente uma sensação paradisíaca: não há mendigos, não há crianças de rua, não se vê sujeira pelas calçadas...

Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno: aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se vários nichos: capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Mas, aquele que só pode comprar passando cheque pré-datado, ou a crédito, ou, ainda, entrando no “cheque especial”, se sente no purgatório. E pior: aquele que não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno...

Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do McDonald...

Por tudo isto, costumo dizer aos balconistas que me cercam à porta das lojas, que estou, apenas, fazendo um “passeio socrático”.. E, diante de seus olhares espantados, explico: “Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia: Estou, apenas, observando quantas coisas existem e das quais não preciso para ser feliz!".

Fontes:
Colaboração de Maria Inez (Mifori)
Imagem = http://gabiru.info/

Pedro Ornellas (O Ébrio)

Foto do filme "O Ébrio"
Curtindo o efeito da malvada pinga,
cantando vai pela deserta rua...
Do mundo mau que o desprezou se vinga
fazendo um show bizarro à luz da lua!

Um sonolento abre a janela e xinga,
menciona a mãe e ele responde: “É a tua!”
gargalha e chora... e grita... e dança... e ginga...
e deita e dorme na calçada nua...

Já foi homem de bens, hoje um mendigo
que teve um dia a lhe mudar a história
uma mulher traidora e um falso amigo...

Que força estranha encerra um desengano:
pode impulsar um homem à vitória
ou transformá-lo num farrapo humano!
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Fonte:
Colaboração do Autor.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Denise Emmer (Caderno de Poesias)


O MEU ESTRANHO AMOR

Um espectro que passa enquanto chora
Por minha ausência ele se consome

E quando chega vem como quem some
E bate as asas universo afora

É o meu estranho amor que longe mora
E dorme no altar da cabeceira

Quando me ama arde sem fogueira
Para partir na arca da memória

Foge com o sol e leva nossa estória
Tão docemente me acena uma vertigem

Sequências de montanhas impossíveis
Escarpas adversas giratórias

Quando ele chega o mundo é uma sala acesa
O seu sorriso ofusca a cena da aurora

Não tarda ele se cala e vai embora
Para morar na plácida tristeza.

O BEIJO

Levou-me sem feitas frases
Somente passo e camisa
Roubou-me um beijo de brisa
Na quadratura da tarde

Jogou-me contra a parede
Rasgou-me a blusa de linho
Roubou-me um beijo de vinho
Diante das aves vesgas

Puxou-me para seu fundo
Rompeu a rosa pirâmide
Roubou-me um beijo de sangue
E bateu asas no mundo.

VIAS AVESSAS

Chegas por vias avessas escuto teus passos surdos
Deuses que movimentam a incoerência do mundo
Regem relógios quietos de horas que não existem
Feliz a insanidade das multidões irascíveis

Se há mares em teus abraços mergulho em sóis afundados
Decifro a nova linguagem que inutiliza tratados
E despedaça países fundidos em calmarias
O amor desgoverna os ventos assombros em abadia

Viajo os rumos trocados as ruas que se invertem
Distâncias que se encontram pernas que se perseguem
Olhos que confabulam dentro de rios quentes
Percebo outras cidades nos vãos de uma nova lente

O que me faz alcançar as caravelas aéreas
Andaimes velozes cumes a indizível matéria
São teus incêndios a luz que espalhas pelo Universo
E por meu corpo acendendo meus lampiões submersos.

À NOITE

A noite ela se embriaga
e vai bailar nos espaços
usando um traje de pássaros
viaja para o infinito

abro a janela do mundo
e já não vejo seu rastro
me leva lagoa lua
à grande festa das águas

em que outra madrugada
esconderás teu espelho

nas esquinas que não vejo
onde a noite vira asa?

OS ANIMAIS QUE MORREM

Os animais que morrem
viram luzes
assombros tão pequenos
entre escuros
espectro sereno
sobre muros

os animais que morrem
são futuros.

SINAL DE ALERTA

Faça a noite que faça
as fábricas soltam fumaça
e como avistar quem passa
através de um claro vidro?

Os operários levitam
seus espíritos vencidos
ao cume das chaminés;
que flutuam ente os telhados
marés de moços causados
qual uma cinza tristeza.

E esta pálida natureza
vai colorindo de morte
os jardins de nossos filhos
os fios de nossos pássaros.

E enquanto as mulheres abraçam
crianças de olhos fundos
vão se calando o mundo
como um velho homem com tosse.

Tão curvado e solitário
um moribundo canário
canta a manhã da cidade
que a todo dia reage.

AS GALÁXIAS

As galáxias
se expandem
e nem ouvimos
seus gritos

os labirintos
se aprofundam
sem que saibamos
seus números
esperamos
que um cão azul
decifre
o infinito

e que nos esclareça
a álgebra
do abismo

a lógica
do insondável

a física
do ilimitado.

Por que é tão dramática
a visão de um céu estrelado?

NOITE MAGA

Andei contigo nas dunas
Nas páginas das areias
Pensei avistar sereias
Mas eram sóbrias escunas

E ao perguntar quem eras
O mar moveu seus navios
Olharam-se as éguas no cio
Voaram fêmeas sem sela

Enquanto me assombravas
Os sais trocavam segredos
Abraçava-me com medo
Torpor, o que me falavas

Então comecei morrer
Por rua mão de veludo
Que me levava entre surdos
No tênue amanhecer

Desmanches de beijo e vício
Aroma de folha e chuva
Teu sorriso atrás da curva
Na ponta do precipício

Longe vai a noite maga
Em seu palácio estranho
Não te decifro és sonho
A povoar minhas águas.

DA MORTE

Os mortos não sobem aos céus
nem elevam-se abstratos
tornam-se apenas retratos
lado a lado nas paredes.

Retrato do avô imóvel
austero e silencioso
do tio tuberculoso
que esquivo me espia.

A avó já está fria
mas me olha com ternura
tece uma colcha escura
para as bodas da família,

Mortos não sobem trilhas
de inconsistentes arranjos
não viram anjos nem brisas
nem cristos nem assombrados.

Sequer passam dos telhados
sequer vão a outros mundos
quando morrem se enraízam
e se alastram é pelos fundos.

Não lhes peço algum milagre
também não lhes rogo bênçãos
de dentro de seus quadrados
não podem mover o Tempo.

Quadros em salas quietas
emoldurados cinzentos
memória em fragmentos
— as vezes nem lhes percebo.

TARDE NO MAR

Tarde e moleza marolas e mascavo
Nada suponho nada sei nada respondo
Não sei o nome do mundo
E seu patrono

Leio jornais em branco folhas velhas
Cartas passadas notícias reviradas
Do que me valem as novas utopias
Se o que me traz o mar
É uma garrafa vazia.

NAVIOS

Venho ao cais esperar navios
Sucedem-se as altas vagas
Aceno sinais de estio
Às vesperas adiadas

Te aguardo e quando te espreito
Arrastam-se os segundos
O vento esticou o mundo
Nos cárceres dos estaleiro

Passam veios, horas largas
Nenhum sinal de teu fardo
Busco-te a cada entrada
O que me passas - passado.
---------------------

Fontes:
Teatro dos elementos, 1993
Cantares de amor e abismo, 1995
Canções de acender a noite, 1982
O Inventor de enigmas, 1998
Lampadário, 2008