sábado, 10 de abril de 2010

Juliana Santini e Rejane Cristina Rocha (Os Risos do Brasil: Trilhas do Cômico na Literatura Brasileira do Século XX) Parte II-final


(...) E quando pensava nessas coisas surgiu na estrada o seu compadre Vitorino. Vinha na égua magra, com a cabeça ao tempo, toda raspada. Saltou para uma conversa e estava vestido como um doutor, de fraque cinzento, com uma fita verde e amarela na lapela. O mestre José Amaro olhou espantado para a vestimenta esquisita.

- Estou chegando, compadre, do Itambé. O doutor Eduardo tinha um réu para defender e mandou me chamar no Gameleira para ajudá-lo. Lourenço, o meu primo desembargador, me disse: “Olhe, Vitorino, você para ir à barra do tribunal do júri precisa desse fraque”. E me deu este. É roupa feita lá do Mascarenhas, de Recife. Botei o bicho. Então o primo Raul me chamou para um canto para dizer que eu precisava cortar os cabelos. O desgraçado do barbeiro da Lapa tosquiou-me a cabeleira, o jeito que tive foi de raspar tudo. Raul passou-me a navalha na cabeça. Me disseram que era moda no Recife para advogado. Quando cheguei no Itambé o júri já tinha se acabado
. (REGO, 1997, p.92-3)

A comicidade de Vitorino impregna-se do trágico destino dos outros personagens e, ainda, não deixa de contrastar com a sua própria condição marginal, revelada ao leitor pelo discurso do narrador onisciente que entretece toda a narrativa. Narração entremeada por fios de um discurso indireto livre que, mais do que evidenciar a dissonância entre a realidade em que vive o personagem e aquela criada por ele, sintetiza em um mesmo ponto a decadência inevitável e sua ilusão empreendedora.

Nesse movimento de síntese de opostos, o humor funde contrastes que se mostram no romance e se configuram como tais apenas em sua aparência: entre presente e passado, ilusão e realidade, decadência e progresso, vida e morte. Menos do que instaurar uma crítica que aponta para a reformulação regeneradora ou renovadora - como já se foi possível notar a respeito da paródia e da caricatura que, no princípio do século XX, serviram à literatura como meio de revisão do passado ou como forma de desmistificar imagens ideologicamente cristalizadas da identidade nacional – o humor coloca lado a lado elementos opostos com o intuito de promover uma reflexão - aguda na medida em que se pauta no entre-espaço do contrário - acerca da condição sobre a qual a obra humorista lança seu feixe de luz.

E é justamente na poesia que a paródia encontrará novamente seu lugar na década de 50: poeta afinado à potencialidade cômica do signo poético, José Paulo Paes, em 1952, publica as Novas cartas chilenas, paródia satírica de uma sátira política do século XVII, intitulada Cartas chilenas, cuja autoria se atribui a Tomás Antônio Gonzaga. Revisitando, simultaneamente, as cartas barrocas e a poesia pau-brasil de Oswald de Andrade – o que pode ser percebido pela semelhança na forma de composição da paródia -, José Paulo Paes faz uma incursão pela história do Brasil e destrói cânones por meio do deslizamento de significados. É o que acontece, por exemplo, no poema “L’affaire sardinha”, sátira ao trabalho de catequização dos índios, em que o título já evidencia todo o poder corrosivo da ambigüidade: a idéia de um caso, sugerida pela palavra “affaire”, institui um jogo entre o fato de o poema representar um fato a ser contado / lido, a conotação de escândalo que o vocábulo assume na língua original, o francês, e o significado que a palavra assumiu, ao ser absorvida pela Língua Portuguesa, relacionado a uma conotação sexual, que perpassará todo o poema:

O bispo ensinou o bugre
Que pão não é pão, mas Deus
Presente em eucaristia.
E como um dia faltasse
Pão ao bugre, ele comeu
O bispo, eucaristicamente
. (PAES, 1986, p. 153)

Nos liames da ambigüidade, o poema entretece os significados sexual e religioso por meio de uma distorção que é instaurada por uma característica inerente ao processo de aculturação a que foram submetidos os índios quando catequizados pelas missões jesuíticas: os dois últimos versos da primeira estrofe marcam a tentativa de sobreposição da crença indígena pelo cristianismo, intento de que se verifica o fracasso no desfecho do poema, em que o índio, tomando o suposto representante de Deus como alimento, o teria devorado. Da antropofagia ao ato sexual, a crítica a arbitrariedade do colonizador é trazida à tona justamente no momento em que se valoriza a inteligência do colonizado, supostamente subestimada por aquele que o toma como elemento a ser absorvido. Novamente, a inversão paródica a que se fez menção quando se tratou do livro de poemas de Oswald de Andrade se faz presente na reestruturação semântica do passado: invertem-se os papéis e o colonizador passa ser colonizado por um fazer poético brincalhão, herdeiro das conquistas de seus antecessores.

A mesma dimensão paródica é reiterada pelo poeta em outro poema do mesmo livro, agora alicerçada no diálogo intertextual entre diferentes tipos de discurso: “O grito”, ao mesmo tempo em se que refere ao famoso quadro em que Pedro Américo retrata a grandiosidade da Proclamação da Independência no Brasil, volta-se para o paradigma de representação histórica do fato, de modo que, ao desmistificar a idealização latente no discurso pictórico, engloba a narrativa oficial que supostamente atribui ao acontecimento cores não menos exóticas. O significado paródico constrói-se, portanto, na ambivalência de diversos significados entretecidos, já que (...) “a intertextualidade designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador, que detém o comando de sentido” (JENNY, 1979, p.14).

Sob esse aspecto, o poema de José Paulo Paes institui uma teia, que se inicia na referência ao fato histórico, passa pela crítica ao relato oficial reiterado sobre o mesmo fato, e desemboca na descrição paródica da representação pictórica feita a partir desse mesmo relato. Atente-se para o fato de que a proposição do poema, que reconta e, portanto reconstrói a história só é possível partindo-se de uma acepção de história como discurso, como construção de linguagem, o que evidencia, a seu respeito, uma visão semiotizada. As Novas cartas chilenas partem de um pressuposto de que a história é uma construção discursiva que pode ser reformulada, remodelada, revista; posicionamento que será levado ao paroxismo pelos escritores dos romances históricos contemporâneos, entre eles Márcio Souza, sobre o qual se refletirá em outro momento deste texto.

Da poesia ao romance, da paródia ao humor: herdeira das inovações de João Guimarães Rosa e antes de assistir à sua decadência nos anos seguintes, a prosa regionalista brasileira vê no romance O coronel e o lobisomem, de José Cândido de Carvalho, uma de suas mais célebres realizações, principalmente no que diz respeito à composição do humor como instrumento capaz de promover uma tomada de consciência em relação ao desconcerto do homem que habitava o sertão e se vê alheio aos movimentos da cidade. A agonia de um mundo em transformação, a marcha do progresso e a suplantação do sistema político-econômico coronelista, arraigado na manutenção do poder, cindem o personagem Ponciano de Azeredo Furtado e o atam a uma esfera já sufocada da sociedade, enquanto não consegue se adaptar aos novos esquadros que se desenham juntamente com a expansão dos grandes centros urbanos.

Tensão entre tempos e espaços que se manifesta também na composição da voz narrativa e na configuração do olhar que se lança sobre os fatos narrados: enquanto narrador autodiegético, Ponciano coloca-se em posição ulterior relativamente ao universo diegético que constrói por meio de sua fala, enquanto o Ponciano-personagem, aquele que viveu a trajetória ora relatada, empresta o seu ponto de vista e, em conseqüência, as restrições que cabem à percepção de um integrante dos acontecimentos. Confluem, portanto, a voz do presente e o olhar do passado em um espaço que é a própria zona de atrito entre o novo que tenta se impor e o velho agonizante.

Voz do passado que traz para a narrativa a maleabilidade da fala popular em episódios protagonizados por figuras típicas do folclore nacional. Desse modo, apropriando-se do imaginário coletivo e trazendo seus contornos como pano de fundo para a invenção de seus feitos individuais, o Coronel cria um universo particular que mascara a decadência crescente em que mergulha ao longo de sua trajetória, declínio que se inicia no momento em que Ponciano deixa o Sobradinho e se muda para Campos dos Goitacazes - cidade em efervescência que representa a própria decadência do sistema coronelista, sobrevivente apenas na imagem de imponência que o neto do velho Simeão insiste em sustentar.

Perdidos o poder e toda a riqueza que simbolizavam sua manutenção, resta a Ponciano tecer uma narrativa em que tenta reacender a chama do passado no presente da narração, embora seja traído pelo olhar do fanfarrão de outrora e pela própria imaginação, que entretece no mesmo fio realidade e devaneio. E se o personagem possui uma concepção do mundo ultrapassada para sua existência (MARCHEZAN, 2002), a própria estrutura narrativa se encarrega de revelar a tensão entre tempos e espaços no cerne de seu impulso de recolher os estilhaços daquilo que se perdeu. Mais do que agenciar a agonia de um mundo, Ponciano é instrumento e produto dessa agonia e, sucumbindo aos novos esquadros que se inauguravam, representa a imagem da fusão impraticável entre presente e passado, rural e urbano, realidade e imaginação.

A obra ficcional Galvez, imperador do Acre (1978) parte de um episódio da história brasileira e toma para si, como personagens, personalidades de relevância histórica, mas o faz a partir de uma dissimulação, já que ficcionaliza a história quando transforma a matéria por ela narrada em uma autobiografia encontrada, por acaso, em um sebo em Paris.

A história oficial relata que em meados de 1899 o jornalista Luiz Galvez Rodrigues de Aria, então funcionário do jornal A Província do Acre, consegue informações e documentos acerca de um tratado prestes a ser firmado entre a Bolívia e os Estados Unidos. Por tal acordo, os Estados Unidos ofereceriam apoio à Bolívia para a conservação da sua soberania nos territórios do Acre, Purus e Iaco. Em troca, a Bolívia comprometia-se a fazer concessões aduaneiras e territoriais aos Estados Unidos. A publicação n’ A província do Acre e, logo depois, n’O Comércio do Amazonas de tal furo jornalístico repercutiu fortemente na então capital da república, Rio de Janeiro, bem como em Manaus e Belém, desdobrando-se na revolução acreana liderada por Luiz Galvez, que por oito meses fez do Acre uma república independente, em resposta à atitude leniente do Brasil diante das investidas bolivianas.

Muitos dos fatos que cercam esse acontecimento não estão bem esclarecidos pela história e as inúmeras perguntas sem respostas sobre esse episódio abrem vasto campo de especulações que, concordam os historiadores, não serão facilmente dirimidas, já que os documentos oficiais, os depoimentos, as notícias veiculadas naquele momento pela imprensa foram, ao que parece, cuidadosamente arranjadas a fim de excluir a figura do governador amazonense dos acontecimentos (TOCANTINS, 1979, passim).

Diante de tantos vazios históricos, de tantos silêncios propositadamente semeados, a ficção de Galvez, imperador do Acre (1978) propõe uma releitura do fato histórico, evidenciando, dessa forma, aspectos que a historiografia julgou, não ingenuamente, irrelevantes para o entendimento dos fatos. Tais aspectos ganham relevância na ficção e fazem com que atos e personalidades sejam vistos de forma desmistificada e deseroicizada, colocando a nu as motivações comezinhas por trás dos grandes feitos documentados pela história. Nesse contexto, a sátira assume o papel de, pela ridicularização, antepor ao fato historiográfico uma nova versão que, embora não tenha pretensões de assumir o lugar da história oficial, abre, a seu respeito, novas possibilidades de leitura.

As relações intertextuais entre ficção e história desvelam, na contemporaneidade, uma nova atitude frente à história. A reverência diante do “científico”, que provocava o distanciamento próprio da atitude respeitosa, é substituído por uma familiaridade que abre espaço para as atitudes parodísticas, apropriativas, suplementares em relação à história. E nesse sentido, o riso ridicularizador cumpre papel fundamental, já que

(...) tem o extraordinário poder de aproximar o objeto, ele o coloca na zona de contato direto, onde se pode apalpá-lo sem cerimônia por todos os lados, revirá-lo, virá-lo do avesso, examiná-lo de alto a baixo, quebrar o seu envoltório externo, penetrar nas suas entranhas, duvidar dele, estendê-lo, desmembrá-lo, desmascará-lo, desnudá-lo, examiná-lo e experimentá-lo à vontade. O riso destrói o temor e a veneração para com o objeto e com o mundo, coloca-o em contato familiar e, com isto, prepara-o para uma investigação absolutamente livre. (BAKHTIN, 1988, p.340.)

O aspecto cômico (que se desdobra em sátira, em ironia, em paródia) presente nessa obra não apresentaria dificuldades de interpretação se concordássemos com as leituras que o colocam como instrumento de um contra-discurso elaborado a fim de corrigir uma interpretação da História unilateral, que privilegiava os vencedores, os detentores do poder. Nesse caso, o riso cumpriria o seu papel de ridicularização e, portanto, desmistificação da História oficial, legitimada pelos privilegiados no sentido econômico, social e cultural. O riso demoliria a História a fim de que uma nova versão, mais justa, pudesse ser colocada no lugar.

No entanto, as considerações de Linda Hutcheon (1991) que colocam a metaficção historiográfica como forma de arte da pós-modernidade abrem uma outra via de reflexão, fazendo com que nos defrontemos com um paradoxo: se a metaficção historiográfica é a forma de arte de um momento em que as ilusões perderam-se e os valores multiplicaram-se, como entender a presença constante do riso satírico – marcado pela exigência da adesão – na expressão literária dessa época? O ímpeto moralizador do discurso satírico estaria presente nessas obras, marcadas pelo ceticismo de seu tempo?

Algumas pistas podem nos levar a uma possibilidade de resposta a esses questionamentos: a imagem da espada celta, que se volta contra aquele que a desembainha, empregada por Alfredo Bosi (1997) a respeito da sátira moderna; a instabilidade do humor contemporâneo, a que se refere Alba Romano (2000). Essas considerações críticas apontam para uma configuração particular do riso satírico que, quando empregado em obras literárias que pretendem rever fatos históricos, sugere uma nova forma de ver e contar o passado – diferente, também, da forma de ver e contar o passado do romance histórico paradigmático e do romance histórico de feições utópicas – bem como uma nova forma de ler o discurso satírico.

Chamar à baila o termo contemporânea para adjetivar a literatura produzida nas últimas três décadas no Brasil é colocar, de antemão, uma problemática relacionada à caracterização dessa literatura, não só porque a proximidade temporal entre obra e crítica funciona como uma lente que amplia distorcendo, já que coloca em primeiro plano os detalhes e impede a visão do conjunto, mas também porque a multiplicidade de temas, técnicas e estilos é, paradoxalmente – já que o incaracterístico não poderia, a priori, caracterizar – a marca dessa produção literária recentíssima. Se o caráter distintivo dessa literatura é a multiplicidade de suas facetas – que faz com que seja difícil vislumbrar um traço comum nas diferentes obras, nos diferentes autores – e o hibridismo formal, como assegurar uma caracterização mínima, que não seja a problemática observância exclusiva da cronologia?

Nesse sentido é que o deslindamento das questões sócio-históricas podem oferecer pistas para a compreensão da literatura contemporânea, já que elas não só oferecem temas a serem desenvolvidos ficcionalmente, mas também interferem no modo como o texto literário é construído, na sua organização estética.

A produção ficcional de Rubem Fonseca exemplifica o modo como a literatura contemporânea absorve os questionamentos angustiados de uma sociedade que perdeu de vez a sua inocência, encantada com as conquistas fugazes do capitalismo e alheia à contra-face que esse sistema econômico implantou simultaneamente com as seduções da posse: a violência, o interesse, a vacuidade de valores, a perda da essência humana:

A sociedade de consumo é, a um só tempo, sofisticada e bárbara. Imagem do caos e da agonia de valores que a tecnocracia produz num país de Terceiro Mundo é a narrativa brutalista de Rubem Fonseca que arranca a sua fala direta e indiretamente das experiências da burguesia carioca, da Zona Sul, onde, perdida de vez a inocência, os “inocentes do Leblon” continuam atulhando as praias, apartamentos e boates e misturando no mesmo coquetel instinto e asfalto, objetos plásticos e expressões de uma libido sem saídas para um convívio de afeto e projeto. (BOSI, 1998, p. 18)

Em Rubem Fonseca expõe-se brutalmente o modo de vida da sociedade urbana imersa nos inúmeros paradoxos do sistema capitalista. Ficcionalmente tal exposição se dá por meio da eleição da ironia como componente estruturador do discurso, e que aqui é entendida como algo mais amplo do que uma figura de linguagem, já que lingüisticamente modela e organiza um modo de olhar o mundo contaminado por oposições indissolúveis. A ironia, em Rubem Fonseca não oferece uma síntese que amenize as contradições humanas provenientes das contradições econômicas e sociais, pelo contrário: ao expô-las com crueza e brutalidade, a ficção desse autor aponta para a perda de unidade do homem, que não se sabe mais indivíduo, imerso que está na sociedade de consumo, que o desumaniza.

No conto “A arte de andar pelas ruas do Rio de Janeiro” as oposições articulam-se em vários níveis de significação, compondo uma estrutura abissal que vai das contraposições espaciais aos dilemas mais íntimos do personagem, expostos por um narrador que não os julga, embora os desvende pormenorizadamente. Assim, a primeira oposição espacial - igreja evangélica versus cinema pornô - não é, na verdade, uma oposição, já que o compartilhamento de um mesmo espaço físico pelas duas “instituições” aproxima os significados implícitos sexo e religiosidade. Outra oposição geográfica também é colocada: o centro carioca, com sua horda de velhinhas e doentes, os atuais fiéis do pastor Raimundo, é contraposto à Zona Sul, região financeiramente abastada cujos moradores, ricos, “precisam ainda mais da salvação do que os pobres” (FONSECA, 1992, p. 13). Tal oposição entre a realidade, o centro, e o objeto de desejo do pastor, a Zona Sul, é colocada em termos financeiros, já que entendida, e almejada, como uma promoção profissional.

Embora a promoção profissional do pastor pareça se restringir ao nível individual, ela encontra maior amplitude quando se projeta para o nível institucional, representado pela igreja evangélica. O anseio pela riqueza faz o narrador anunciar de maneira enviesada aquele que seria um dos projetos de futuro do personagem: “Um dos sonhos de Raimundo é ser transferido do centro para a Zona Sul e chegar ao coração dos ricos” (FONSECA, 1992, p.15). O efeito irônico que se projeta da afirmação do narrador pauta-se na distorção semântica que se desenha ao colocar ao lado da palavra “coração”, símbolo universal do que não pode ser reificado, um adjunto adnominal que restringe o campo a ser conquistado pela evangelização de Raimundo: em contraste com a idéia socialmente aceita de que Deus ignora as diferenças entre classes sociais, os projetos do pastor mostram-se afinados ao interesse de uma instituição religiosa que se configura com os mesmos moldes de uma empresa orientada pelo lucro.

3. Conclusão

A trajetória aqui delineada em termos panorâmicos evidencia a estreita relação existente entre a literatura brasileira e as diferentes realizações do cômico literário. Mais do que um feixe de recursos estilísticos que servem à expressão crítica e à construção estética, percebe-se, no encalço dessa antologia, que a comicidade, nos seus mais variados graus e nas suas mais diversas realizações, alinha-se a uma forma particular de ver e representar o mundo, que ultrapassa os períodos históricos e os movimentos literários e relaciona-se com os aspectos mais profundos de nossa constituição cultural.

Ainda assim, é possível interpretar as manifestações da comicidade, presentes nas obras aqui mencionadas, em íntima congruência com os momentos históricos e literários em que foram produzidas, o que torna possível afirmar que o riso é uma das formas de exposição mais profícuas das incongruências a que o homem se vê submetido quando em relação com o seu semelhante, quando imerso no convívio social.

Esboçar um panorama da literatura brasileira do século XX por meio da breve leitura das obras e das manifestações risíveis aqui privilegiadas seria uma temeridade, já que demandaria um aprofundamento não compatível com as dimensões desse texto. Pode-se, contudo, arriscar algumas considerações que tracejem um esquema para novas e posteriores discussões.

Malgrado as diferenças estruturais e de objetivos das diferentes manifestações cômicas – sátira, humor, caricatura, paródia, ironia -, é possível observar, no panorama proposto, um movimento de redução progressiva da distância e da superioridade entre aquele que ri o seu objeto. Em direção ao final do século XX e ao início do século XXI, o riso não mais se constitui como barricada por meio da qual o sujeito que ri protege-se das considerações críticas invariavelmente lançadas contra – e tão somente contra – o alvo do riso. O movimento da expressão cômica na literatura brasileira aponta para o reconhecimento que faz com que, de repente, aquele que ri veja-se envolvido na situação que ensejou o riso e considere-se enovelado com os mesmos fios que entretecem seu alvo.

Nesse movimento de mudança, o riso na literatura brasileira do século XX vai da caricatura do princípio do século, que avultava os traços do caricaturado com o intuito de revelar o que havia de dissonante entre a realidade e a imagem que se criava de um tipo ainda difuso, passa pela paródia revisitadora da história do Brasil na poesia modernista da primeira fase, impregna-se de melancolia e reflexão na poesia da década de 30 e na literatura regionalista de José Lins do Rego e José Cândido de Carvalho, demonstra-se anti-utópico e não mais reformador na sátira contemporânea de Márcio Souza, ironiza a pasteurização cultural da sociedade urbana na contística de Rubem Fonseca e continua a trilhar um caminho afeito à descaracterização da essencialidade humana, mostrando sua face brutal em autores surgidos já no século XXI, tracejando caminhos a serem desbravados pela crítica literária atual.

Fontes:
Enivalda Nunes Freitas e Souza; Eduardo José Tollendal e Luiz Carlos Travaglia (organizadores). Literatura: caminhos e descaminhos em perspectiva. Uberlandia: EDUFU, 2006.
- Imagem = Jornal de Letras, Artes e Idéias. Lisboa, Portugal. janeiro de 2010.

Academia Parananense de Poesia (Programação de Abril)


Fonte:
Presidente da Academia Paranaense de Poesia, Roza de Oliveira

Rede de Escritoras Brasileiras convida…

Senhoras e senhores

As cortinas começam a se abrir
e todos vocês, seus familiares e seus amigos
estão convidados para o nosso

Show de talentos em prosa e verso

Venham para a sessão de autógrafos de nossa antologia
que acontecerá durante a bienal internacional de fortaleza

Dia 12 de abril de 2010 às 19 horas

No Espaço Café Literário
"Galo de Ouro"

Centro de Convenções do Ceará
Av. Washington Soares 141
Convidada: Joyce Cavalcante/organizadora REBRA (Brasil/SP)
Apresentação: Leda Maria Feitosa Souto(Brasil/CE)

http://www.rebra.org/

Patrocínio
SECULT - Secretaria da Cultura - Governo do Estado do Ceará
http://www.secult.ce.gov.br/
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Fonte:
REBRA (Rede de Escritoras Brasileiras)

Projeto cria novas alternativas para fomentar o acesso a leitura

A leitura é um elemento fundamental no processo de aprendizagem, organização e construção do conhecimento. No entanto, no Brasil, os mecanismos para fomento a leitura, ainda são arcaicos e insuficientes para formar cidadãos leitores, especialmente na Rede Pública de Ensino.

A fim de contribuir para eliminar esse gargalo literário, o escritor e produtor cultural, Laé de Souza criou o projeto “Lendo na Escola”, que oferece obras literárias com baixo custo e acessível a todos os bolsos.

O projeto existe há mais de 8 anos e já foi desenvolvido em mais de 400 escolas do país. O trabalho contempla o Ensino Fundamental I e II e ainda o Ensino Médio e pode ser aplicado tanto em escolas públicas, quanto em entidades particulares. Para participar, unidades escolares farão o investimento de RS 4,00 a R$ 5,00 por aluno de escolas públicas e cerca de R$ 12,00 a R$ 15,00 por aluno de escolas particulares.

Execução

Para realização do trabalho, a escola interessada fará a aquisição do material didático, que é composto por: cartilha pedagógica com instruções para dinamizar a leitura em sala de aula; livros paradidáticos; questionários com atividades; folhas pautadas de redação; manual de aplicação do projeto, entre outros itens a depender da série escolar.

A partir da leitura da obra literária escolhida, o professor deverá estimular o aluno a dar novas respostas através de textos elaborados por eles, e ainda desafiar os estudantes a desenvolver reproduções livres como: ilustrações, peças de teatro, entre outras formas de expressões próprias. O projeto “Lendo na Escola”, tem como objetivo estimular a capacidade criativa, crítico e social dos alunos, por meio de discussões dos assuntos propostos nas obras do escritor Laé de Souza.

Conteúdo

Os livros de Laé de Souza apresentam crônicas de fácil assimilação e com linguagem simples e histórias infantis. Com isso, o autor acredita ser mais fácil despertar o interesse dos estudantes pela leitura, uma vez que os temas abordados em suas obras, trazem histórias do cotidiano, aproximando os estudantes de sua própria realidade. “É importante frisar que o ato de ler precisa levar o indivíduo a compreensão do texto lido e não apenas a repetição de informações. Na minha opinião, conteúdos pedagógicos obrigatórios e rebuscados demais, muitas vezes acabam levando o estudante ao desinteresse pela leitura”, avalia Laé de Souza.

Participação

Professores interessados em conhecer o “Lendo na Escola” devem se inscrever no site do projeto para receber amostra do material e folheto explicativo. Após análise do conteúdo, o professor poderá confirmar a participação através de um formulário, e na sequência serão encaminhados os materiais para aplicação do projeto.

Informações: (11) 2743-9491 e 2743-8400

Fonte:
Colaboração de Laé de Souza

Feira do Livro no Mercado Municipal Paulistano (SP)


Das 9h às 17h, freqüentadores do maior mercado paulistano poderão conhecer novidades de nove editoras

O tradicional Mercado Municipal da Cantareira, ligado à Secretaria Municipal de Coordenação das Subprefeituras, terá novidade para seus cerca de 30 mil freqüentadores diários. Entre 15 e 30 de abril, das 9h às 17h, todos terão à disposição uma feira de livros com algumas das maiores editoras brasileiras.
Com entrada gratuita, o evento contará com a participação de expositores como as editoras Arlf, Brasiliense, Barcarolla, Faarte e Iracema, além da presença da Nova Luz Livraria, Ciranda Cultural, grupo Quilombhoje Literatura e da Publifolha.

As editoras e livrarias apresentarão seus produtos e novidades com preços atrativos para os visitantes do Mercadão, no Salão de Eventos do local.

O evento ainda terá um cantinho para a “contação” de histórias, misturando artes cênicas, música e literatura. Diferentes grupos, como a Biblioteca Belmonte, Cantos & Contos e a contadora de histórias Ana Springer, se apresentarão nos finais de semana, sempre em dois horários, às 10 e às 14 horas.

Programação da contação de histórias
Dia 16 – 10 e 14 horas – Biblioteca Belmonte
Dia 17 – 14 horas – Ana Springer
Dia 23 – 10 e 14 horas – Cantos & Contos
Dia 24 – 10 e 14 horas – Biblioteca Belmonte
Dia 30 – 10 e 14 horas – Cantos & Contos

Feira do Livro no Mercadão
Data e horário: Entre os dias 15 e 30 de abril, das 9 às 17 horas.
Local: Rua da Cantareira, 306 – Salão de Eventos do Mercado Municipal

Letícia Xavier Pereira (Eventos)
Mercado Municipal Paulistano
SMSP/ABAST
Tel.: (11) 3313-2444 ramal 231

Fonte:
Colaboração de Delasnieve Daspet

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Trova 138 - Marcos Medeiros (Natal/RN)

Carlos Guimarães (Trovas: Cantigas que Alguém Espera)


Canto, feliz, para quem
é meu Sol de Primavera
e, em suas mãos, hoje, tem
CANTIGAS QUE ALGUÉM ESPERA.
________________________________________
Ponho nas trovas amigas
um pouco do meu viver,
por isso, chamo-as Cantigas,
CANTIGAS DE BEM-QUERER.

A minha trova imperfeita
somente um destino almejo:
- pra tua boca ser feita,
como foi feito o meu beijo.

A tua mão carinhosa,
quando me vem afagar,
lembra a ternura da rosa
desabrochando ao luar.

Ai amor, que me fugiste
e deixaste tantas mágoas!
Sou, hoje um salgueiro triste
chorando à beira das águas

As coisas simples, pequenas,
bem pode o Amor transformar
- eu dei-te uma casa, apenas,
dela, tu fizeste um Lar!

Ao desespero me entrego.
Choro tanto, tanto, tanto,
que recaio ficar cego:
- olhos desfeitos em pranto.

A mais triste das notícias
tu me dás com tanta graça,
por entre tantas carícias,
que a tristeza vem e passa.

A ternura do meu beijo,
em vão, ocultar procura
este meu louco desejo
de beijar-te sem ternura.

A tua mão, que transforma
pesares meus em ventura,
é uma flor de estranha forma,
toda feita de ternura.

A Estrela d'Alva perdida
no céu, em plena alvorada,
é uma lágrima vertida
dos olhos da madrugada.

As roseiras tão vaidosas,
quando me vens visitar,
deitam pétalas de rosas
nas pedras que vais pisar.

A prece que tu fizeste,
mão unida à minha mão,
se não foi ao Pai Celeste,
entrou no meu coração.

As velas pandas ao vento...
Doidas gaivotas pelo ar...
Você no meu pensamento
E, entre nós dois, esse Mar...

A tua boca perfeita,
que tem do pecado a cor,
parece, amor, que foi feita
para os meus beijos de amor

Beijo teu beijo na rede,
com repassada ternura,
como quem mata a sede
numa fonte de água pura.

Contra a tua ingratidão,
transbordando indiferença,
meu remédio é a solidão,
meu refúgio é minha crença.

Cantando canções antigas,
a serenata me encanta
porque repete as cantigas,
que a minha saudade canta

Chora, amor, que o pranto encerra
lenitivo à alma ferida:
depois da chuva é que a terra
se apresenta mais florida

Deus que te deu tanta graça,
que te fez linda e faceira,
espero, amor, que te faça
minha eterna companheira

Devo tudo quanto sou
e a Vida me concedeu,
à mãe que Deus me levou
e à mulher que Ele me deu.

Desfaz-se a flor, mas, no galho,
deixa em pétala singela,
uma lágrima de orvalho,
que a noite chorou por ela.

Deixei-te, amor, e não sei
como aquilo aconteceu,
pois nunca mais encontrei
outro beijo igual ao teu

Devo a essa boca vermelha
ser o escravo que, hoje, sou:
foi o teu beijo a centelha,
que o meu peito incendiou!

Eu sou feliz - bem ou mal -
crendo nas tuas promessas,
porque a Esperança, afinal,
é um saudade às avessas.

Ela se vai eu aceito
o adeus com tranqüilidade
e o céu da distância enfeito
com estrelas de saudade

Essas tuas mãos morenas,
com que meu rosto acarinhas,
parecem feitas das penas
das asas das andorinhas.

Entre apagadas imagens,
fulguras como um clarão,
neste asilo de miragens,
que é, hoje, meu coração.

E esta lágrima contida,
medrosamente a brilhar,
é igual à conta perdida
de todo um grande colar...

Esta aflição que me invade
e esta dor que me consome,
não creio sejam saudade:
- devem ter um outro nome.

Esse teu beijo molhado
traz-me à idéia imagem louca:
- vinho rubro do pecado,
na taça da tua boca.

Enquanto a Lua comanda
as serenatas na Terra,
estrelas fazem ciranda
juntinho à crista da serra.

Entra as rosas mais formosas,
a razão dos meus enleios,
são as rosas perfumosas,
com que ornamentas teus seios.

Gemem, na praia, os coqueiros,
refletindo o soluçar
das noivas dos marinheiros,
que se perderam no Mar.

Já não me queres, porém,
é tranqüilo que eu te digo:
- tu não me impedes, meu bem,
que eu sonhe, sempre, contigo.

Lavadeira, o que insinuas,
um desejo em mim acorda:
ver minhas roupas e as tuas,
juntinhas, na mesma corda.

Lembro o beijo terno e amante,
que te dei quando menino:
espaço de um breve instante,
que mudou todo um destino.

Linda música de fato,
ouvida em noite de Lua,
é a que faz o teu sapato,
nas pedras de minha rua.

Maria, que é meu tesouro
e ee julga muito pobre,
não sabe que valem ouro
seus cabelos cor de cobre.

Minhas mãos formam dois ninhos
sempre de ternura cheios,
onde abrigo dois pombinhos,
dóceis e lindos: teus seios,

Meu lenço, na despedida,
tu não viste em movimento:
- Lenço molhado, querida,
não pode agitar-se ao vento.

Marcado por mil ausências,
que a distância evidencia,
meu pranto põe reticências,
em nossa história, Maria.

Mudou nosso lar depois
do triste adeus, que ela deu:
- um Paraíso de dois
tornou-se Inferno só meu

Meio tonto de desejo,
beijo teu beijo risonho
e, através desse teu beijo,
chego à fronteira do sonho...

No momento em que o
sol posto separa a noite do dia,
sinto roçarem meu rosto
as asas da nostalgia.

Na carta, ao dizer-te quanto
a saudade me consome,
as reticências do pranto
quase apagaram meu nome.

Não é desdém, malquerença,
antipatia ou rancor.
Essa tua indiferença
tem um nome: desamor

Nesta vida amargurada,
que eu vejo esvair-se aos poucos,
tu foste a chama migrada,
no altar dos meus sonhos loucos!

Numa carta alviçareira,
dizes que voltas e, então,
mais rosas veste a roseira,
mais sonoro é o carrilhão,

Não posso impedir que um beijo
lascivo, em meus lábios brote,
quando teu seio, entrevejo,
na janela do decote.

Na Rósea Estrada do Amor,
que, junto de ti, eu trilho,
rendo graças ao favor
de seres mãe do meu filho.

Nas noites de serenata
quantas cancões tenho escrito
usando as letras de prata
do livro azul do Infinito,

Na ausência do teu carinho
torturado de desejos,
rolo em meu leito, sozinho,
beijando meus próprios beijos.

Na festa do teu regresso,
desculpa o que eu te disser
e perdoa todo o excesso
dos carinhos que eu te der

Nessas minhas confidências,
repetidas, sempre iguais,
falam mais as reticências,
que as frases convencionais

Olhos presos à amazona,
velho palhaço risonho
faz, sob o teto de lona,
os seus castelos de sonho.

O sol, pelas madrugadas,
se as estrelas vão-se embora,
acende as velas doiradas
do candelabro da aurora,

O destino, em sua teia,
enredou-nos por maldade:
eu - pequeno grão de areia;
tu - cristal de qualidade

Ouço na alma a ressonância
da frase simples, sem brilho,
ouvida lá na distância:
- Que Deus te abençoe, meu filho!

O que me faz indeciso
- indecisão que eu não venço -
é pensar que teu sorriso
não quer dizer o que eu penso.

Os teus seios, provocando
o meu olhar atrevido,
são dois pássaros bicando
as rendas do teu vestido.

O Tempo ao Amor não mata
é, disso prova fiel,
as nossas Bodas de Prata,
em plena Lua de Mel...

Passaste... E eu recordo ainda
o pouco que me ficou:
Foste a promessa mais linda
com que a vida me enganou...

Por te querer me torturo,
sem saber, em minha dor,
que mistérios o futuro
reservou ao nosso amor!

Porque te foste, a revolta
não me deixa por um triz,
mas a crença em tua volta
quase me faz ser feliz.

Pobre amor que as nossas vidas
reduziu a quase nada:
- somos as brasas dormidas
de uma fogueira apagada...

Partiste, mas, sem desgosto,
lembro a nossa história louca,
pois, na boca, tenho o gosto
do gosto da tua boca.

Preso às garras da saudade,
quase feliz, eu bendigo
ter ainda a liberdade
de sonhar sempre contigo...

Pelo milagre do amor,
é que a mulher nos conduz,
transformando o espinho em flor,
fazendo, das trevas, luz.

Passam-se as horas felizes,
numa disparada louca,
quando as frases que tu dizes
são ditas na minha boca.

Passos leves sobre alfombra,
de roxa mágoa vestida,
a saudade é igual à sombra,
que acompanha a despedida...

Quando me deito e acontece,
que o sono logo não vem,
converso com Deus em prece,
rezo em trovas ao meu bem.

Quando a mulher seu amor
transforma em doida paixão,
ganha as asas de um condor
ou rasteja pelo chão,

Quando contigo velejo,
que prazer, ao te beijar,
sentir no teu doce beijo,
gosto salgado do Mar.

Quando aos teus beijos me entrego,
é tanta a minha alegria,
que eu me sinto como um cego,
que enxergasse a luz do dia.

Reacendendo meus desejos,
lembro saudoso, Maria,
da camisola de beijos,
que no teu corpo eu tecia.

Regresso e, de peito aberto,
dás-me perdão às mancheias:
- quem anda no rumo certo
entende as culpas alheias

Rendeiras, de toda a parte,
tecelãs de fina teia,
vinde à praia ver com que arte
o mar faz rendas na areia.

Saudoso de ti, tristonho,
procuro o sono com ânsia
porque, nas asas do sonho,
torno menor a distância.

Sem teu beijo, teu abraço
e o calor do teu carinho,
vou, de fracasso em fracasso,
morrendo devagarinho.

Se para a igreja ela passa,
penso pedir-lhe um favor:
- Maria, cheia de graça,
rogai por mim, pecador.

Tu me deixaste e eu, tristonho,
lamento o amor fracassado:
- cortaste as asas de um sonho
tanto tempo acalentado

Toda essa dor que me invade
e, constante, me angustia,
se não chega a ser saudade
é bem mais que nostaIgia...

Teu rosto vincado, triste,
é simples confirmação
de que o remorso persiste,
mesmo depois do perdão.

Teu amor, brasa dormida,
que o tempo apagada fez,
a um leve sopro, incendida,
pode brilhar outra vez...

Tentei o amor e os fracassos
se acumularam, meu bem:
- quem teve você nos braços
já não pode amar ninguém.

Tudo acabou... Não mais juntos,
seguimos rumo, diversos...
E eu te agradeço os assuntos,
que deste para os meus versos.

Tece a vida, a vida inteira,
a minha sina vadia,
mas, na trama, trapaceira,
põe fios de nostalgia!...

Taça cheia de doçura,
tua boca apetecida
faz milagres de ternura,
nos beijos de despedida...

Triste vida é minha vida,
pois, na vida, não consigo
a coisa melhor da vida:
- viver a vida contigo...

Teu beijo, doce acalanto
à noite, me embala, amor...
De manhãzinha, entretanto,
ele é meu despertador...

Tendo os olhos rasos d'água,
imploraste o meu perdão,
com tanta graça, que a mágoa
fugiu do meu coração.

Tuas mãos, flores morenas,
que eu colhi nos meus caminhos,
junto à maciez das penas
trazem ternura dos ninhos.

Tanta beleza e tal graça
valorizam teu amor,
pois que quanto mais linda a taça,
melhor do vinho o sabor...

Tantas vezes foi relida,
do meu triste pranto em meio,
que a carta de despedida
já não tem letras e eu leio...

Um violão preso à parede...
Canto alegre de um riacho...
Um doce embalo de rede...
Quatro chinelos debaixo...

Um grande amor permanece
dentro em nós, a vida inteira:
É igual à cinza que aquece,
depois de extinta a fogueira...

Vivo preso ao desencanto
que esse teu amor me traz:
teus olhos prometem tanto
e é tão pouco o que me dás...

Vestindo roupas de bruma,
envolta em seu negro véu,
a madrugada, uma a uma,
apaga estrelas no céu...

Vais ser mãe... Tua figura
perdeu a graça infinita...
Mas, revelas tal ventura,
que pareces mais bonita...

Voltaste! E, em meio à alegria,
nós nem contamos as horas,
que o carrilhão anuncia
pingando gotas sonoras!...
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Fonte:
União Brasileira dos Trovadores Juiz de Fora

Carlos Drummond de Andrade (No Ônibus)


A senhora subiu, Deus sabe como, em companhia de dois garotos. Cada garoto com sua merendeira e sua pasta de livros e cadernos indispensáveis para a aquisição das preliminares da sabedoria. (Quando chegarem ao ensino médio, terão de carregar uma papelaria e uma biblioteca?) O ônibus não cabia mais ninguém. A bem dizer, não cabia nem o pessoal que se espremia lá dentro em estado de sardinha. Na massa compacta de gente, ou de seções de gente que a vista alcançava, percebi aquelas mãozinhas tentando segurar as pastas atochadas.

- Deixa que eu carrego - falei na direção de um dos braços a meu alcance. Na qualidade de passageiro sentado, é irresistível minha inclinação para carregar embrulhos alheios. Estou sempre a oferecer préstimos, movido talvez pelo remorso de viajar sentado, e de só ceder lugar a pessoas mais idosas do que eu - pessoas que raramente aparecem no ônibus, de sorte que...

- Eu carrego pra vocês - insisti, executando um movimento complicado, para enxergar os rostos dos garotos. O menor olhou-me com surpresa e hesitação, porém o mais velho estendeu o braço, e o primeiro, depois de uma cotovelada ministrada pelo segundo, imitou-o. Fiquei de posse de duas bojudas pastas escolares, que acomodei da melhor maneira possível sobre os joelhos. Conheço perfeitamente a técnica de carregar embrulhos dos outros. Deve-se colocá-los de tal modo que fiquem seguros sem que seja necessário pôr a mão em cima deles. São coisas sagradas. Não devemos absolutamente lançar-lhes um olhar, mesmo distraído. O perfeito carregador de embrulhos do próximo deve olhar para fora do ônibus, aparentemente observando um eclipse ou uma regata, porém na realidade com o pensamento fixo naquele pacote, ou bolsa, de que é depositário.

Não vá a coisa cair no chão e quebrar. Não vá alguém subtraí-la. Quando até a Santa Casa é assaltada, tudo é possível. Mas que conterá mesmo esse embrulho? Seria feio manifestar curiosidade, e perigoso abrir um volume que não nos pertence. Mas que gostaríamos de saber o que tem lá dentro, isto, humildemente o confesso, em meu nome e no do leitor, é pura, descarnada verdade.

Bom, tratando-se de pastas escolares, não havia segredo a descobrir. A voz da senhora saiu daquele bolo humano:

- Agradece ao moço, Serginho. Agradece, Raul.

Raul (o mais crescido) obedeceu, mas Serginho manteve-se reservado.

Mal se passaram alguns minutos, senti que a pasta de cima escorregava mansamente do meu colo. Muito de leve, a mão esquerda de Serginho, escondida sob um lenço, puxava-a para fora. Compreendi que ele prezava acima de tudo a sua pasta, e deixei que a tirasse. A mãe ralhou:

- Que é isto, Serginho?! Deixe a pasta com o moço.

Serginho duro.

- Serginho, estou lhe dizendo que deixe a pasta com o moço.

Teve de levantar a voz, para torná-la enérgica. Passageiros em redor começaram a sorrir.

Tive de sorrir também.

Muito a contragosto, Serginho voltou a confiar-me sua querida pasta. Um estranho mereceria carregá-la? E se fugisse com ela? Visivelmente, Serginho suspeitava de minha honorabilidade, e os circunstantes se deliciavam com a suspeita.

Mais alguns quarteirões, Serginho repete a manobra. Desta vez é radical. Toma sua pasta e a de Raul. Raul protesta:

- Deixa com ele, seu burro. Não vê que eu não posso segurar nada?

A mãe, em apoio de Raul, exproba o procedimento de Serginho. Este capitula, mas em termos. Só me restitui a pasta do irmão. A sua não correrá o risco. Coloca-a sobre o peito, sob as mãos cruzadas, como levaria o Santo Gral.

- Este menino é impossível. Desculpe, cavalheiro. Não vejo o rosto da senhora, mas sua voz é doce, e compensa-me da desconfiança do Serginho. Sorrio para este, enquanto retribuo: "Oh, minha senhora, por favor. Até que seu filhinho é engraçado."

Engraçado? Serginho faz-me uma careta e ferra-me um beliscão. A assistência ri. A mãe ferra outro em Serginho, que dispara a chorar. Bonito. É no que dá carregar embrulho dos outros.

Entre as diferentes maneiras de chorar em público, Serginho escolheu a que rende maior dividendo.

Botou a boca no mundo, como se cantasse na Ópera, e, nos intervalos, denunciou-me. Eu é que o tinha beliscado, quando tentara impedir-me de violar a pasta de seu irmão Raul. E mostrava a pasta entreaberta, em desordem. A senhora mudou de fisionomia, censurando-me com voz alterada:

- Francamente, cavalheiro! Nunca pensei que o senhor tivesse tamanha coragem!

- Perdão, minha senhora, eu...

- Perdão coisa nenhuma. É inútil explicar. Meu filho tinha razão de não querer deixar as pastas com o senhor. Vir com partes de gentileza para segurar as pastas das crianças, e depois vasculhar o que tem lá dentro! Um senhor de barbas brancas fazer uma coisa dessas!...

Os passageiros em redor acompanhavam com o máximo interesse o desenvolvimento da cena. No olhar de todos, a maligna curiosidade, o prazer de ver o próximo em situação grotesca acendia um lume especial. Não precisei encará-los para observar a reação. Senti que estavam de olhos acesos, saboreando a desmoralização do senhor respeitável.

- Minha senhora - retruquei -, o seu garoto é um imaginativo, simplesmente.

- Mentiroso? O senhor tem o atrevimento de chamar meu filhinho de mentiroso?!

- Imaginativo, minha senhora. Eu disse i-ma-gi-na-ti-vo.

- É a mesma coisa. Imaginativo é mentiroso com água-de-colônia. Fique sabendo que eu educo meus filhos no jogo da verdade.

- Não duvido. Pergunte ao Raul, que viu tudo. Confio no Raul.

- Que Raul? Que intimidade é essa com meu filho mais velho? Desde quando o senhor está autorizado a tratá-lo de Raul?

- Ouvi a senhora chamá-lo por esse nome.

- Eu posso chamá-lo assim, mas um estranho tem lá esse direito? Raul, meu bem, você viu esse senhor abrir sua pasta e dar um beliscão nó Serginho?

Raul, moita.

- Diz, meu coração, o homem abriu sua pasta, não foi? Depois deu um beliscão no Serginho, não deu?

- Perdão - arrisquei -, a senhora está forçando a resposta de seu filho.

- O filho é meu, não tenho que lhe dar satisfação. O senhor é que está perturbando o interrogatório. Anda, Raul, diz logo o que você viu, menino!

Nada de Raul abrir a boca. Apelei para ele:

- Escute aqui. Você disse a seu irmão que devia deixar a pasta comigo. Depois disso, você viu, você percebeu qualquer gesto de minha parte, tentando abrir a pasta? Não tenha medo de falar.

Raul respondeu, firme:

- Vi, sim senhor. Vi também a hora que o senhor beliscou meu irmão.

- Não é possível!

Raul não disse mais nada. Nem precisava. Eu estava condenado no tribunal das consciências. Envolveu-me a reprovação geral, expressa em murmúrio que soava a meus ouvidos como um brado coletivo: "Crucificai-o!" Todo o ônibus contra mim, como demonstrar minha inocência?

Foi quando apareceu o defensor público. Por mais que se descreia da generosidade das multidões, de dez em dez anos surge um defensor público em socorro dos oprimidos. Era um homem robusto, sangüíneo, de voz forte:

- Calma, senhores e senhoras. Não podemos condenar este passageiro pela simples declaração de duas crianças. Temos de proceder a uma averiguação, temos de ouvir os adultos presentes.

- O senhor também duvida da palavra de meus filhos?! - protestou a mãe ofendida. - Não faltava mais nada. E que é que o senhor tem com isso?

- A senhora tenha a bondade de calar-se, senão vai tudo para o Distrito.

- O senhor é autoridade para nos prender?

- Sou a voz do povo, madame. Não posso ficar calado quando os direitos do cidadão sofrem uma ameaça.

- Comunista é que o senhor é. Subversivo! Motorista, pára esse ônibus que tem um subversivo dentro!

- Pára! - gritaram uns.

- Não pára! - gritaram outros.

- A senhora está muito enganada. Pensa que intimida, me chamando de subversivo? Sou democrata-cristão e estou ao lado da justiça. Senhores e senhoras, alguém viu esse cavalheiro bulir na pasta do garoto e dar o beliscão?

Ninguém respondeu. Todos falavam ao mesmo tempo e o ônibus voava. A senhora explodiu:

- Covardes! Ninguém para defender uma mulher com seus dois filhos inocentes!

Aí, manifestou-se o defensor de mulheres e filhos inocentes, outra raridade cíclica, interpelando o defensor público. Este respondeu à altura. A coisa engrossou. O sinal fechou.

O ônibus estacou. Não sei como, abriu-se a porta dos fundos e, também não sei como, aproveitando a confusão, fugi. Da rua, ainda ouvi a senhora indignada:

- Pega! Pega! Ladrão de pasta!

Carregar embrulho dos outros, eu, hem? Nunca mais.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Criança d’agora é fogo. Editora Record. 5a. edição. Rio de Janeiro - São Paulo, 1999.

Carlos Drummond de Andrade (Livro de Poesias)



A CASA DO TEMPO PERDIDO

Bati no portão do tempo perdido, ninguém atendeu.
Bati segunda vez e mais outra e mais outra.
Resposta nenhuma.
A casa do tempo perdido está coberta de hera
pela metade; a outra metade são cinzas.
Casa onde não mora ninguém, e eu batendo e chamando
pela dor de chamar e não ser escutado.
Simplesmente bater. O eco devolve
minha ânsia de entreabrir esses paços gelados.
A noite e o dia se confundem no esperar,
no bater e bater.
O tempo perdido certamente não existe.
É o casarão vazio e condenado.

A CORRENTE

Sente raiva do passado
que o mantém acorrentado.
Sente raiva da corrente
a puxá-lo para a frente
e a fazer do seu futuro
o retorno ao chão escuro
onde jaz envilecida
certa promessa de vida
de onde brotam cogumelos
venenosos, amarelos,
e encaracoladas lesmas
deglutindo-se a si mesmas.

LEMBRANÇA DO MUNDO ANTIGO

Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranqüilo em redor de Clara.

As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!

IMPORTÂNCIA DA ESCOVA

Gente grande não sai à rua,
menino não sai à rua
sem escovar bem a roupa.
Ninguém fora se escandalize
descobrindo farrapo vil
em nossa calça ou paletó.

Questão de honra, de brasão.
Ninguém sussurre:
A família está decadente?
A escova perdeu os pêlos?
A fortuna do Coronel
não dá pra comprar escova?

Toda invisível poeirinha
ameaça-nos a reputação.
Por isso a mãe, sábia, serena,
sabendo que sempre esqueço
ou mesmo escondo, impaciente,
esse objeto sem fascínio,
me inspeciona, me declara
mal preparado para o encontro
com o olho crítico da cidade.

E firme, religiosamente,
vai-me passando. repassando
nos ombros, nas costas, no peito, nas pernas
na alma talvez (bem que precisava)
a escova purificadora.

FIM

Por que dar fim a histórias?
Quando Robinson Crusoé deixou a ilha,
que tristeza para o leitor do Tico-Tico.
Era sublime viver para sempre com ele e com Sexta-Feira,
na exemplar, na florida solidão,
sem nenhum dos dois saber que eu estava aqui.
Largaram-me entre marinheiros-colonos,
sozinho na ilha povoada,
mais sozinho que Robinson, com lágrimas
desbotando a cor das gravuras do Tico-Tico.

PAVÃO

A caminho do refeitório, admiramos pela vidraça
o leque vertical do pavão
com toda a sua pompa
solitária no jardim.
De que vale esse luxo, se está preso
entre dois blocos do edifício?
O pavão é, como nós, interno do colégio.

QUERO ME CASAR

Quero me casar
na noite na rua
no mar ou no céu
quero me casar.

Procuro uma noiva
loura morena
preta ou azul
uma noiva verde
uma noiva no ar
como um passarinho.

Depressa, que o amor
não pode esperar!

SENTIMENTAL

Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas,
e debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.
Desgraçadamente falta uma letra,
uma letra somente
para acabar teu nome!

Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!

Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
"Neste país é proibido sonhar."

A LEBRE

Apareceu não sei como.
Queria por toda lei
desaparecer num relâmpago.
Foi encurralada
e é recolhida,
orelhas em pânico,
ao pátio dos pavões estupefatos.
Lá está, infeliz, roendo o tempo.
Eu faço o mesmo.

José Lins do Rego (Eurídice)



Eurídice (1947) – Romance em que o autor deixa de lado as intenções regionalistas.

O romance é dividido em 2 partes. A primeira descreve a infância dramática da personagem principal. A segunda a sua adolescência afetada pelo drama da infância.

Este romance deveria ser lido inteiramente. A leitura é muito agradável e facilitada pelos capítulos curtos. Parece ter havido a intenção de permitir que o livro fosse lido num transporte coletivo ou em viagens curtas.

Primeira parte.

O cenário é a cela de um presídio no Rio de Janeiro.A personagem principal é o prisioneiro Julio, 20 anos de idade, estudante de direito. Na falta do que fazer resolve escrever sobre sua vida e dizer só a verdade.

O companheiro de cela, um homem taciturno a quem ele falou uma única vez sobre seus escritos e teve resposta enigmática sobre as boas intenções de um tio de Júlio que esconderiam algo e isso será uma preocupação constante. Não mais se falaram. Este companheiro irá se suicidar quando estiver próximo do término da pena, para fugir de responsabilidades.

Júlio, filho temporão, tem duas irmãs e a mãe D.Leocádia uma mulher amarga que demonstra desamor doentio pelo filho temporão. O filho temporão causava a ela um constrangimento. Talvez a coincidência do nascimento com a falência dos negócios do pai tenham agravado o problema afetivo. Desejava que ele não houvesse vingado. O pai morre pouco depois.

Isidora, a irmã mais moça, dá a ele todo o amor que a mãe nega. Ela fica noiva de um médico, Dr. Luiz, com total apoio da mãe, ganha posição privilegiada e provoca a inveja da irmã mais velha, casada contra a vontade da mãe. Muitas brigas ligadas a herança ocorrerão, inclusive na justiça.

Júlio direciona para a irmã o amor que seria para a mãe, com muito mais intensidade do que seria o normal. Ama Isidora de forma doentia. Na mesma medida que ama a irmã ele odeia o noivo que considera estar roubando o amor que é dele.

O repúdio e a aspereza da mãe deformará a personalidade de Júlio de forma terrível. O amor que a irmã lhe dedica não atenuará essas deformações e o amor que Júlio lhe tem também é doentio.

Metade dos escritos na cela é para descrever o drama do menino de dez anos implorando, sem sucesso, uma demonstração de carinho. É inimaginável o que se passa na mente dessa criança.

A mãe de Júlio não aplica a ele um único castigo físico e, no entanto a distancia que obriga o filho a manter dela, com a sua frieza, é talvez infinitamente mais dolorosa.

É impossível reproduzir. Uma criança de dez anos com um enorme sentimento de culpa. Tenta resolver seus problemas fugindo de casa, mas é logo levado de volta. Depois, com dez anos, descobre que a morte pode ser solução para os problemas. Isto parece lhe dar certa paz, funcionando como uma espécie de recurso disponível. Esta descoberta lhe permite cogitar seriamente de soluções radicais. Tendo a morte como um refugio pode se permitir qualquer coisa.

O amor por Isidora também é um sentimento bem complicado envolvendo um ciúme doentio da irmã e o ódio pelo noivo, o Dr. Luiz.

O relacionamento da irmã com o noivo, durante o período de noivado até o casamento desencadeia uma confusão na cabeça do menino e o amor pela irmã parece ter algo de incestuoso, transformando-se algumas vezes em ódio e, após o casamento, quando a irmã morre de parto, ele demonstra uma estranha indiferença, talvez por se sentir traído, enganado.

Laura, a outra irmã de Júlio, casada, é mulher invejosa e rancorosa, inconformada com o que considerava perseguições contra ela e contra o marido Jorge.

Julio tem, ainda, a tia Catarina, irmã de Leocádia, casada com um juiz, Dr. Fontes. É totalmente diferente da irmã. Mora em Alfenas, está bem financeiramente e veio para ajudar nos preparativos do casamento. Pessoa muito boa e habilidosa no trato com as pessoas resolve todos os desentendimentos que surgem na família e ainda cuida do dia a dia.

Dr. Fontes, juiz, é pessoa muito considerada na família. Nas questões sérias depende da opinião mulher, tia Catarina.

Acabam levando Júlio para alfenas, e no tempo certo mandam-no para o Rio de Janeiro fazer a faculdade de Direito e irá morar numa pensão do Catete.

Segunda parte.

A segunda parte dos escritos falam de sua vida de jovem universitário com os problemas normais de todo rapaz. A dona da pensão é D. Glória que tem três filhos, Jaime, Noêmia e Eurídice, moça sem juízo e que mantém um caso com Faria, companheiro de quarto de Júlio.

Jaime, muito trabalhador, pouco fica em casa, apaixonado por futebol, zela pelo comportamento das imãs. Inspira respeito e certo temor.

Os pensionistas de D. Glória são:

1) D. Olegária, meia idade, gosta de poesia, sonha com casamento, conhece um um vigarista que lhe propõe casamento e leva todas as suas economias. As censuras ao seu comportamento e o constrangimento leva a muitas brigas na pensão. Ela acaba se mudando e pouco depois se tem notícia do seu suicídio.

2) O Sr. Campos, conhecido como Campos das Águas, funcionário do Dept de Águas.

Meia idade, mora lá há dez anos, quando chegou fez proposta de casamento para D. Glória que recusou. Considera as moças como filhas. Vangloria-se do seu sucesso com as mulheres e, ainda hoje, namora uma ou outra jovem. Gosta dos poetas clássicos e se considera um poeta inspirado. Já teve coluna em jornais importantes dirigidos por um Sr. Brício. É conhecido e considerado na Cidade e popular na zona boêmia.

O senhor Campos irá ser um conselheiro de Julio. Carregou-o algumas vezes para a zona boêmia. Estas primeiras experiências que são normalmente complicadas, para Júlio foram terríveis por haver alguma estranha associação com a figura da irmã Isidora que não o deixa. Esses fracassos lhe causavam algum constrangimento.

3) Faria, último ano de direito, escolhido pelo tio Fontes para cuidar de Júlio, seria seu colega de quarto. Veste-se com apuro, preocupa-se somente com os estudos, orienta e aconselha Júlio que o tem como modelo. É admirado e respeitado na pensão e na faculdade pelo seu comportamento irrepreensível.

Júlio observa um relacionamento do companheiro com Eurídice e finge dormir. No início, fingia dormir para não perturbar. Depois passa a sentir uma forte excitação que irá dominá-lo completamente. Passa a odiar o companheiro hipócrita e a desejar Eurídice de forma incontrolável. Eurídice gostava de Faria e para tê-la cogita seriamente da morte do rival. Nessa ocasião Faria começa a participar de um movimento político, o integralismo, que visava combater o comunismo e tomar o poder pela força. Morre numa dessas tentativas.

Eurídice mostra-se indiferente e ela que, já antes da morte de Faria, dera esperanças a Júlio, vai ao seu quarto algumas vezes apenas para conversar e depois recua definitivamente deixando-o transtornado.

Eurídice torna-se uma obsessão e Júlio não consegue pensar em mais nada. Marcam um encontro num bosque. Júlio tenta beijá-la e ela se afasta.

Júlio é possuído por um ódio intenso que domina todo o seu ser. Vem-lhe à mente todo o drama familiar. Ele a agarra e termina por esganá-la.

Quando vemos na televisão a brutalidade de um crime passional, ficamos desejando saber o que passa pela cabeça dum assassino naquele momento. O último capítulo é esclarecedor.

Texto extraído do último capítulo

A ÚLTIMA FUGA DE EURÍDICE

Fiquei em desespero. Uma ânsia irresistível de sair, de andar, me arrastou da cama ainda com a madrugada.

A cidade dormia, e quando cheguei ao Largo do Machado, os pássaros tiravam as suas alvoradas. Quis absorver-me ao olhar as coisas quietas, mas era impossível. Eurídice, sempre Eurídice a cercar-me, a atormentar-me. Ficara-me o cheiro do seu corpo, como uma nódoa no meu olfato. E este cheiro persistia, avançava sobre mim em ondas que me envolviam.

Andei muito, cansei-me de atravessar a praça. Agora muita gente aparecia de todos os cantos. Os bondes passavam cheios. Detive-me a olhar as criaturas que transitavam, com o intuito de comparações.

Estava todos pacificados. Nenhum carregaria aquela obsessão que me escravizava. Voltei para casa, e encontrei os hóspedes ao café. O velho Campos se espantara de minha saída tão cedo.

Expliquei-me com a necessidade que tivera de levar um conhecido de Minas ao trem. Mas Eurídice me olhava com tal malícia que me arrasou a serenidade com que procurava fingir. Tremia nas minhas mãos a xícara . E não ouvia nada da conversa da mesa. Sei que D. Glória falava de D. Olegária, e que Noêmia sorria. Eurídice me olhava.

E quando a casa ficou silenciosa e vazia, veio ela ao meu quarto. E tranqüilamente falou-me de fatos corriqueiros. Alheia inteiramente àquela outra Eurídice que escapara de minhas mãos na noite anterior.

Esforcei-me para fingir a maior indiferença um domínio absoluto de nervos. Um cheiro infernal me cobria o raciocínio. Quase nada lhe disse, mas marcamos um passeio para a tarde.

D. Glória chamou-a em tom de advertência. E como não podia permanecer no quarto, saí. Não encontrei ninguém para conversar. O mal que andava dentro de mim crescia, a cada instante. Lembro-me de que Faria ficou comigo, a censurar-me.

Lembro-me de que Isidora, triste e abandonada, me apareceu, e de minha mãe furiosa, de todas as mágoas que se avivaram naquelas horas de ansiedade.

E o estranho é que aquele cheiro de Eurídice, que não se consumia, em vez de exaltar-me para o amor, conduzia-me para um ódio cruento. Acredito que foram estas horas de espera, para o encontro marcado pela mulher que amava, os mais terríveis instantes de minha vida.

Curioso em tudo isto é que, ao passo que se aproximava a hora, se apoderava de mim uma calma esquisita. E assim, ao ver Eurídice, no ponto dos bondes de Santa Teresa, aproximei-me, sem espécie alguma de medo.

Estava senhor de mim, ao atravessar o viaduto, mas quando o seu corpo quente chegou-se ao meu, no aperto do bonde, foi como se uma faísca elétrica se despencasse sobre a minha cabeça. Um fogo misterioso ferveu o meu sangue nas veias. Não sei se ouvia a fala de Eurídice. Tinha como que perdido toda a consciência.

Senti que andávamos no meio de árvores e vi o sol por cima de nossas cabeças. Voltara a mim para ver Eurídice ao meu lado. E recordo-me de seus olhos verdes, e mais do que nunca o cheiro de seu corpo se expandia, sufocava-me.

Andamos um pedaço pela mata sombria. Havia cigarras cantando, ouvia bem o trinado de pássaros e o rumor de nossos pés pelas folhas secas. Agora o que existia em mim era uma mistura de ira e amor, de asco e de desejo indomável.

Eurídice falava, falava manso, e a sua voz foi me arrastando para uma espécie de precipício. Queria fugir e não podia. E nos sentamos num recanto escondido. Ouvi bem o que ela falava de Faria, e o seus olhos estavam molhados. Procurei beijá-los, e ela fugiu de minha boca. Então, em mim se desencadeou uma fúria que não era uma vontade minha.

A fala de Eurídice mais ainda me exasperava. Ouvi-a como se fosse a voz áspera de minha mãe. Ao mesmo tempo as palavras pareciam sair da boca de Isidora. Por fim calou-se, e o calor da tarde de março se diluía no correr manso do riacho aos nossos pés. Uma força estranha se apoderou de mim.

O cheiro do corpo de Eurídice subia, me afogava. Ela estava ali, quieta, mole, vencida. E senhor de mim, capaz de vencer todos os obstáculos, debrucei-me sobre ela para esmagá-la.

Eurídice resistiu, quis erguer-se do chão úmido, mas a minha força era de uma energia descomunal. Sabia que a tinha em minhas mãos e que as minhas mãos eram de ferro.

E procurei a boca que fugia, que gritava, e aos poucos tudo foi ficando em silêncio pesado. As minhas mãos largaram o pescoço quente de Eurídice. E ela estava estendida, como na minha cama. O corpo quase nu na terra fria.

E não senti mais nenhum cheiro de seu corpo.

Fonte:
http://www.vestibular1.com.br

Juliana Santini e Rejane Cristina Rocha (Os Risos do Brasil: Trilhas do Cômico na Literatura Brasileira do Século XX) Parte I de II


RESUMO: A literatura brasileira do século XX teve muitas de suas páginas esboçadas pelos traços do cômico que, em suas várias feições e recursos, mostra-se como um dos instrumentos mais eficazes à revisão de valores e desmistificação de cânones historicamente construídos. Traçar um panorama do conjunto criado por essa produção – partindo dos anos que antecedem o modernismo até a pungência do riso contemporâneo – significa não apenas expandir o olhar que se lança sobre essa literatura, tomando como fio condutor a comicidade entrelaçada a tais obras, mas também associar a uma visão diacrônica da história literária brasileira uma perspectiva que permite reinterpretar seus significados.

1. Introdução

Malgrado a posição marginal a que muitas vezes é relegada a produção literária de feições cômicas, é inegável a posição do riso como um dos elementos particularizadores de uma cultura, tecendo um estreito diálogo com o contexto em que se realiza, o que lhe confere um caráter essencialmente histórico. Na cultura brasileira, vislumbram-se claramente os traços de uma tradição constituída a partir do viés cômico, como testemunham as sátiras de Gregório de Matos e Tomás Antônio Gonzaga. Além de autores e obras que fundamentam esta tradição do risível no interior do cânone literário brasileiro, outros escritores não ignoraram os recursos da comicidade na composição de personagens e situações mesmo quando o risível não se manifesta no primeiro plano do texto literário, como se pode notar, por exemplo, na ironia machadiana, na feição caricaturesca de personagens de Aluísio Azevedo ou, na paródia bíblica de Guimarães Rosa.

Essa fecundidade do riso no interior dos mais diversas realizações literárias brasileiras liga-se menos a uma perspectiva ingênua de mero divertimento ou distensão de ânimos do que a um progressivo trabalho de revisão dos valores e estereótipos que se sustentaram em diferentes contextos sócio-políticos. Sob esse aspecto, o cômico mostra-se como excelente instrumento de crítica justamente por promover o deslizamento de significados instituídos por um modelo de discurso sério tomado como canônico – e validado socialmente por representar a voz destituída da loucura e da inconseqüência comumente associadas àqueles que se valem das cores fortes do riso para colocar em evidência tonalidades que forjam uma falsa harmonia.

Partindo dessas considerações, esse trabalho faz um panorama das diferentes formas de realização do cômico ao longo da literatura brasileira no século XX, considerando nuances de composição e transformações formais em sua estreita relação com diferenças estéticas e contextuais inerentes ao curso da história literária brasileira. É necessário que se esclareça que, embora alguns aspectos da comicidade sejam identificados a determinadas décadas ou períodos de tempo específicos, isso não significa que a produção literária deste momento restrinja-se apenas a este aspecto, ou seja, as observações aqui tecidas consideram preponderâncias mas não ignoram diversidades.

2. Caminhos do cômico: de Jeca Tatu ao riso da desesperança

Os últimos anos do século XIX e aqueles que iniciaram o século XX assistiram à composição de uma prosa literária apregoada ao estilo romântico, comprometida com um paradigma de representação corolário do exotismo e do artificialismo que fizeram da literatura do período um modo de reprodução da realidade afetado pelo idealismo acadêmico, impregnado pela influência art nouveau. Nesse contexto, a literatura regionalista encontra no conto sertanejo matéria e instrumento para que se concretize uma espécie de imagem pictórica adornada do habitante das zonas rurais do país, retrato distorcido que, (...) “a pretexto de amor da terra, ilustra bem a posição dessa fase que procurava, na sua vocação cosmopolita, um meio de encarar com olhos europeus as nossas realidades mais típicas” (CANDIDO, 1967, p.134).

Essa imagem adornada e mistificada do roceiro domina a cena literária, esboçando-se com outras faces apenas nas páginas de poucos autores, como é o caso de João Simões Lopes Neto, que faz do relato nostálgico do gaúcho um instrumento de revelação da condição marginal a que foi relegado o homem do campo, principalmente a partir das transformações que se iniciaram desde a Proclamação da República e abolição dos escravos e se intensificaram com a industrialização, o êxodo rural e o conseqüente inchaço daqueles que começam a se configurar como centros urbanos de atração econômica.

Mas será Monteiro Lobato o principal responsável pela reconfiguração definitiva desses traços: em 1914, a publicação dos artigos “Velha praga” e “Urupês” no jornal O Estado de São Paulo traz à tona um caipira preguiçoso, decrépito e indolente, despido de toda aura idealizada que o tracejava como forte e íntegro, ícone do equilíbrio entre o homem e a natureza. Embora seja o produto da visão do fazendeiro de café que tomava o caipira como um entrave ao desenvolvimento, o Jeca Tatu não deixa de lançar um feixe de luz sobre a situação de miséria e abandono do sertanejo brasileiro que, desde então, perde suas tonalidades românticas e passa a ser desenhado pela literatura em feições menos distorcidas, traços que, guardadas as devidas proporções, antecipam o regionalismo engajado da década de 30 do modernismo brasileiro.

A síntese imagética da caricatura - que se aproveita de poucos atributos e, por meio de comparações exagera a imagem caricaturada com a finalidade de pôr à mostra os defeitos daquilo que lhe serve de alvo – faz de Jeca Tatu uma imagem símbolo estruturada a partir das idéias de parasitismo e preguiça. Já no início do primeiro artigo, “Velha praga”, Lobato define a mulher do caipira como “sarcopta fêmea”, espécie de parasita causador da sarna, de modo que a natureza predatória do aracnídeo passa a ser associada ao caboclo na medida em que ilustra sua relação com o espaço em que habita, de onde retira sua subsistência até que seja descartado depois de esgotados todos os recursos:

Quando se exaure a terra, o agregado muda de sítio. No lugar fica a tapera e o sapezeiro. Um ano que passe e só este atestará a sua estada ali; o mais se apaga como por encanto. A terra absorve os frágeis materiais de choça e, como nem sequer uma laranjeira ele plantou, nada mais lembra a passagem por ali do Manoel Peroba, do Chico Marimbondo, do Jeca Tatu ou outros sons ignaros, de dolorosa memória para a natureza circunvizinha. (LOBATO, 1959, p.273).

O atributo do comportamento de um predador é reiterado e reafirmado por Lobato em “Urupês”, palavra que intitula não apenas o segundo artigo escrito pelo autor a respeito do caipira, mas também o livro de contos a ser publicado em 1918, onde foram incluídos os dois textos em questão. Definido o sertanejo como um “urupê”, espécie de fungo que retira todos os nutrientes da árvore em que se aloja, o autor passa a esboçar toda a preguiça do caipira, que se acocora diante das dificuldades e, para não reforçar as paredes de sua habitação paupérrima, prefere escorá-las com uma imagem de Nossa Senhora, para que o poder da santa proteja a habitação.

Se a visão determinista e higienista de Monteiro Lobato não fez justiça ao caipira por ignorar as causas de sua situação marginal – o que o levou a se desculpar posteriormente – é necessário que se atente para a aguda percepção do hiato criado entre a imagem literária idealizada do caboclo e a realidade em que este estava inserido: “Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade!” (LOBATO, 1959, p.281). E é justamente a revelação dessa disparidade que fez com que a imagem de Jeca Tatu promovesse uma espécie de renovação do paradigma de representação do caipira na literatura brasileira, já que (...) “a caricatura é máscara que desmascara, enfatizando a dissolução de unidade ou a disjunção no caricaturado (entre aparência e essência, entre forma e conteúdo, entre simulação e realidade)” (LEITE, 1996, p.20).

Enquanto essa reformulação do olhar a ser lançado sobre a imagem do sertanejo serviu-se da caricatura como forma de desmistificação de um modelo desgastado – trabalho caro aos autores pré-modernistas –, a proposta modernista de atualização da linguagem artística e as inclinações política e ideológica decorrentes desse exercício de renovação das artes apontavam para a necessidade de promover uma revisão de cânones e discursos reiterados por uma literatura presa aos moldes europeus. A partir dessa perspectiva, a proficuidade encontrada pelo cômico nos primeiros anos do Modernismo desdobra-se não apenas na intenção de remodelação estética promovida pelos autores que levaram a cabo o projeto de reestruturação artística das formas supostamente estagnadas pela rigidez que se mantinha na permanência do idealismo romântico, mas também no anseio de revisar o paradigma de representação da nacionalidade, ainda corolário das interpretações naturalistas e cientificistas do segundo quartel do século XIX.

A publicação, em 1925, do livro Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, representa a continuidade ou, mais do isso, a realização palpável do conteúdo programático que fundou o Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Se, no texto de 1924, o substantivo composto “pau-brasil” fora adjetivado e emprestava toda a sua amplitude de significados à poesia – e, de maneira mais ampla, à estética – que se desenhava no manifesto, aqui, recebe de volta a classificação morfológica original e coloca-se como um rótulo sobre o livro, como se dissesse ao leitor: “isto é pau-brasil”. E sendo metáfora da imagem primeva do Brasil, o primeiro produto de exportação das terras encontradas além mar, a poesia contida no livro transfigura-se, como se propunha no manifesto, no produto interno mais primitivo e representativo do conteúdo nacional, seja em termos estéticos, seja na releitura do passado nacional.

Reinterpretação que já se mostra com toda a sua força na dedicatória do livro: “A Blaise Cendrars por ocasião da descoberta do Brasil”. No momento da publicação do texto, esta expressão carregava-se de diversos significados e poderia se referir tanto à viagem realizada pelos modernistas ao interior de Minas Gerais, ocasião em que se permitiu aos brasileiros e ao viajante Blaise Cendrars um novo conhecimento sobre o país, quanto à permanência de Oswald na França, junto ao mesmo Cendrars, que teria despertado no autor de Memórias sentimentais de João Miramar o interesse em “ver com olhos livres” uma realidade já vestida com uma interpretação determinada por diferentes orientações ideológicas, de modo a incutir-lhe um novo sentido.

E é justamente sob esse novo olhar que se coloca mais um significado para a referida dedicatória, este sim mais amplo e intimamente ligado ao projeto “pau-brasil”: a “descoberta do Brasil” a que se refere Oswald projeta-se, assim, para o conteúdo histórico que ordena as nove seções do livro. Trata-se, de fato, de um percurso histórico-geográfico que contempla, sob o prisma da paródia, desde os cronistas que escreveram sobre o Brasil nos séculos XVI e XVII, até a então efervescente cidade de São Paulo, em seus movimentos agitados do princípio do século XX. Sob esse aspecto, a incursão pelo passado nacional acaba por se mostrar multifacetada na medida em que se articula não apenas com a visão do presente em relação ao que se fora, mas também com a construção desse passado a partir de uma estética fundamentada em novos traços.

Nesse ponto, tradição e ruptura aproximam-se pela primeira vez na síntese dos elementos aparentemente díspares que compõem o livro de 1925: entre a realização de recursos poéticos estritamente ligados ao movimento vanguardista de renovação das artes e uma temática que contempla o antigo sem deixar de explicitar o anseio pelo novo, a poesia de Oswald coloca-se como o vértice de um emaranhado temporal em que sincronia e diacronia se entretecem na composição de um novo momento. Sob esse aspecto, a paródia promove uma espécie de entrelaçamento de significados, desmistificando um discurso ideologicamente cristalizado ao mesmo tempo em que lhe confere novas tonalidades: “Ora, o que o texto parodístico faz é exatamente uma re-apresentação daquilo que havia sido recalcado. Uma nova e diferente maneira de ler o convencional. É um processo de liberação do discurso. É uma tomada de consciência crítica” (SANT´ANNA, 1999, p.31).

A primeira seção das nove que estruturam o Pau-Brasil de Oswald intitula-se, não por acaso, “História do Brasil”. Em diálogo com a dedicatória da obra – a que já se fez referência – a proposta de narrar o percurso histórico do país mostra-se como uma forma de re-descoberta, irônica e paródica na medida em que instaura um novo ponto de vista, capaz de promover uma importante inversão de perspectivas: por meio da subversão inerente à paródia, a poesia pau-brasil colocaria o colonizado na posição de colonizador, de modo que aquele que fora descoberto, agora, desvende e traga à tona o que o processo de colonização, ao contrário, fez questão de esconder.

Nesse jogo de revelação e ocultamento, os oito cronistas parodiados por Oswald aparecem retratados em seus textos mais característicos, entretecendo-se uma teia em que o fio principal conduz a uma sucessão cronológica que se inicia na descoberta do Brasil, em 1500, e se estende até os liames do processo de independência, três séculos mais tarde. O primeiro texto parodiado é, portanto, a carta de Pero Vaz de Caminha que, como se sabe, comunica ao rei português o descobrimento das terras brasileiras. Com uma estrutura que contém certa inclinação narrativa, os quatro poemas organizados sob o título “Pero Vaz Caminha” – já sugestivo ao ocultar a preposição “de” que fazia parte do nome do autor da primeira carta informativa sobre o Brasil e, em conseqüência, trazer à tona, por meio do verbo “caminhar”, a idéia de um panorama traçado por alguém que faz uma visita de reconhecimento das terras – vão do momento da descoberta, narrado no primeiro poema, à descrição das riquezas femininas das novas terras:

“as meninas da gare”
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E sua vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha (ANDRADE, 1966, p.72)

A transposição de trechos da carta de Pero Vaz de Caminha para um novo contexto, o do princípio do século XX, evidenciado pelo contraste que se estabelece entre o português arcaico do poema e a colocação de um título ligado ao momento da escritura do poema, traz à tona, em primeiro lugar, a idéia da exploração sexual que se teria instaurado desde o momento em que se iniciou a colonização e se mantinha atuante e revigorada ao longo dos séculos – como bem explicita a professora Vera Lúcia de Oliveira (2002). E já que “o poder do não dito de desafiar o dito é a condição semântica que define a ironia” (HUTCHEON, 2000, p.91), a transposição paródica da carta de Pero Vaz reveste-se de um refinado tom de ironia ao evidenciar um certo discurso de exploração sexual e malícia escondido sob a aparente ingenuidade do olhar estrangeiro.

Do caminhar de Pero Vaz ao regresso a São Paulo do poema “Canto de regresso à pátria”, (ANDRADE, 1966), uma trajetória de re-semantização da nacionalidade instaura-se jocosamente nos liames que se entretecem entre a seriedade estilhaçada de cada texto parodiado e a comicidade que brota da inversão paródica. Se os palmares que substituem as palmeiras românticas trazem à tona toda a crueldade da escravização dos negros que fundamentou o desenvolvimento da nação brasileira e foi obscurecida pela idealização de um passado representado como exótico e harmônico, “o progresso de São Paulo” institui o pólo do presente como um ícone da modernidade dos novos tempos a que tenta se afinar a poesia pau-brasil. A paródia que ata dois tempos em uma única matéria serve de instrumento aos modernistas da primeira fase justamente por estar em consonância com um percurso coeso em que se busca a reformulação do paradigma histórico de representação do Brasil, cujas novas diretrizes seriam orientadas pela desmistificação do discurso dominante que, supostamente, teria ficcionalizado a história em favor da idealização épica do passado. Nesse ponto, a descoberta do passado se colocaria como a manifestação original de uma poesia capaz de congregar novas diretrizes estéticas ao pitoresco local.

No impulso de revisão crítica do passado, a poesia pau-brasil encontra a paródia como forma de desconstrução irônica da história tradicional. Malgrado esse caráter destrutivo, identificado, portanto, à idéia de ruptura, a paródia não anula a tradição, pelo contrário, atua como instrumento de reativação desse mesmo passado, de modo a atribuir-lhe uma nova roupagem, agora proposta pela visão primitivista do princípio do século, que promove uma nova contextualização de seu substrato.

Instituída a reformulação da forma poética, trabalho a que se propuseram os modernistas de 22, a poesia, a partir da década de 30 e, principalmente, com a obra de Carlos Drummond de Andrade, passa a assistir à reafirmação do elemento cotidiano como matéria central do poema, embora tenha na subjetivação das formas de percepção um de seus movimentos mais essenciais. De fato, o eu que se percebe no mundo oscila entre deparar-se consigo mesmo e lidar com o desconcerto da realidade que o envolve, fazer poético que passa pela

(...) aguda percepção de um intervalo entre as convenções e a realidade: aquele hiato entre o parecer e o ser dos homens e dos fatos que acaba virando matéria privilegiada do humor, traço constante na poesia de Drummond. A prática do distanciamento abriu ao poeta mineiro as portas de uma expressão que remete ora a um arsenal concretíssimo de coisas, ora à atividade lúdica da razão, solta, entregue a si mesma, armando e desarmando dúvidas, mais amiga de negar e abolir que de construir. (BOSI, 1997, p.441)

O hiato apontado pelo crítico manifesta uma particularidade da forma humorística, pautada na articulação entre o cômico e o trágico na composição de uma síntese que impregna o riso de um sentimento de compaixão. Essa síntese, definida por Pirandello (1996) como “sentimento do contrário”, instaura um movimento de reflexão capaz de diluir o distanciamento crítico próprio do cômico. Nesse sentido, o humor possibilita certa aproximação entre o objeto do riso e aquele que ri, substituindo a gargalhada pelo sorriso complacente daquele que subitamente se vê envolvido afetivamente com o objeto do riso, justamente por se reconhecer tão vulnerável quanto ele.

Na poesia drummoniana, o humor ata-se justamente à relação entre a percepção cômica de um mundo às avessas e a impotência do eu diante do desconcerto. Poética que ri sem escarnecer, essa expressão lírica mostra um mundo de valores invertidos e, ao mesmo tempo, aponta para a inexistência de soluções que remodelem seus esquadros. Como no poema “Papai Noel às avessas”, em que o revés sugerido pelo título antecipa o itinerário enviesado de um Noel que, na noite de Natal, entra pela porta dos fundos e, ignorando a chaminé, deixa de lado todas as convenções da data para se transformar uma representação metonímica de uma sociedade alheia a qualquer possibilidade de harmonia. Construindo a figura de um Papai Noel que se agacha e surrupia todos os brinquedos de crianças que, ingenuamente, dormem e sonham com “outros natais muitos mais lindos” (DRUMMOND, 1998, p.55), o eu-lírico desconstrói a imagem idílica do ícone natalino e põe em cena o avesso do Natal.

Descontrução que passa, ainda, pela lente da ironia que amplia o absurdo da situação ao apontar o contraste entre a construção harmônica e idealizada do Natal cristão e a realidade dos fatos. O último verso – “Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes” (DRUMMOND, 1998, p.56) - promove uma síntese irônica da incongruência fundamental do poema, ao conceder ao reino vegetal o que seria suposto privilégio da humanidade: as dádivas natalinas. A dimensão trágica da vida se mostra na posição indiferente do homem em relação ao sentimento de afeto trazido pelo Natal, avultando a crueza do comportamento humano justamente por construir uma figura que macula a ternura da criança e retira dela a possibilidade de se encantar com o espírito natalino já que, em lugar dos presentes esperados, restará a mesma desilusão do leitor que vê um Papai Noel que quebra a harmonia da noite.

Essa mesma melancolia misturada ao absurdo cômico da vida rege uma parte da poética de Manuel Bandeira, também afinado à percepção subjetivada dos contrastes que compõem a aparente banalidade cotidiana. No poema “Rondó dos cavalinhos” (BANDEIRA, 1974, p.149), uma situação corriqueira, um almoço no jóquei clube, serve de mote para a reflexão de um eu-lírico que se vê diante do embrutecimento do homem. Na verdade, mais uma vez a ironia serve como instrumento para que dois elementos contrastantes sejam sintetizados: enquanto os cavalos são tratados afetuosamente, o homem é tomado com brutalidade, oposição de sentido reiterada pela estrutura do poema, composto por um estribilho – “Os cavalinhos correndo / E nós, cavalões, comendo...” (BANDEIRA, 1974, p.149) – e quatro dísticos (CANDIDO, 1995).

A polaridade fundadora do poema articula-se à constituição do humor, uma vez que a cena observada passa por um processo que parte da percepção, passa pela descrição e culmina com a reflexão do eu-lírico a respeito da perda do traço humano do próprio homem, o que conduz à falência final de qualquer esperança, já que a alma anoitece enquanto a poesia morre, sem que aqueles que participam da cena descrita se apercebam da humanidade que se escoa. Sob esse aspecto, ainda, colocam-se como componentes do humor a dimensão lúdica alcançada pela repetição do diminutivo que qualifica o animal em contraste ao aviltamento do homem, tomado em sua fragilidade corpórea e instintiva, já que o ato de alimentar-se não é o elemento que definiria a singularidade humana, pelo contrário, é justamente o que faz com que o homem perca sua individualidade e se submeta a um processo zoomórfico.

Transposta para a prosa regionalista das décadas de 30 e 40, essa dimensão melancólica da vida assume nova roupagem na medida em que se impregna das tonalidades da miséria do homem do sertão diante da industrialização e das crescentes transfigurações que daí decorreram. Menos do que a afirmação de um tipo que resumisse os traços do habitante de cada região – como ocorrera na produção do princípio do século -, o regionalismo busca a dimensão humana do espaço em transformação, de modo que a consciência aguda da decadência passa por uma significativa mediação sócio-política no interior da obra literária, o que lhe atribui sua inclinação de crítica e engajamento. Entrelaçado a esse contexto, o humor promove a síntese entre o absurdo cômico do desconcerto e a reflexão sobre as causas que conduziram à perda de identidade do sertanejo, que vê o esfacelamento do mundo em que vive e não é capaz de se encaixar nos esquadros inaugurados pelo progresso.

Tendo como eixo central de estruturação a falência dos engenhos de açúcar diante da modernização da produção e do advento das usinas de açúcar, o romance Fogo morto, de José Lins do Rego, serve-se do humor como instrumento de reflexão acerca das mazelas a que foi legado o sertanejo no nordeste do Brasil. A dimensão trágica da decadência institui-se, aqui, a partir da segmentação de três eixos narrativos: de um lado, coloca-se o mestre José Amaro, seleiro que vive nas terras do Santa Fé por julgar-se dono de um direito adquirido pelo pai, que foi acolhido no engenho por seu antigo dono após apresentar-se fugido por ter cometido um homicídio em outra região; de outro lado, Luís César de Holanda Chacon, o coronel Lula de Holanda, transforma-se em dono do engenho Santa Fé depois da morte do capitão Tomás, seu fundador; por último, o capitão Vitorino Carneiro da Cunha, personagem quixotesco, constitui-se como um ativista político, sustentado pelo trabalho da esposa, Adriana, escarnecido por todos da região por seu comportamento exagerado.

Embora cada um dos personagens empreste seu nome a um capítulo do romance, o desenvolvimento da narrativa institui um eixo temporal comum que os une: a história de criação, apogeu e decadência do engenho Santa Fé define suas trajetórias e marca, de maneiras diferentes, o ponto central da falência do indivíduo e do segmento social que representa. Fundado em 1848 pelo capitão Tomás, o Santa Fé tem o ápice de seu desenvolvimento já em 1850, ano em que se realiza a última pintura na casa grande quando o piano - símbolo de prosperidade e fidalguia - da filha do capitão é transportado para a propriedade. Corridos os anos, institui-se o apoio governamental para o desenvolvimento das usinas de açúcar na região nordeste, em 1875, e o comando do capitão Lula recusa-se a acompanhar os novos moldes do mercado de açúcar o que conduz, já na época da abolição da escravatura, à falência do engenho. Sob esse ponto de vista, é importante que se note que o velho engenho de Lula não é capaz de se adequar o crescente desenvolvimento industrial e sua queda ata-se à falência de cada um dos três personagens.

O fantasma do passado próspero passa a reger os escombros do presente e institui a loucura como meio e fim do percurso da tríade que estrutura o romance. Assim, o capitão Lula enlouquece e tem sucessivas crises convulsivas, sendo que sua doença passa a ser narrada em paralelo com o atavismo de sua propriedade: “Entraram, e o cheiro de mofo da sala de visitas era como um bafo de morte. O piano, os tapetes, os quadros na parede, o retrato de olhar triste de seu pai. O capitão Lula de Holanda pegou no braço da cadeira, e a sua vista escureceu, um frio de morte varou-lhe o coração. Caiu no chão, estrebuchando” (REGO, 1997, p.151). Do mesmo modo, a loucura sonda o personagem José Amaro, tanto na figura da filha Marta quanto no esfacelamento de qualquer possibilidade existência de uma identidade individual que o defina. Seleiro que já não tem no ofício o mesmo apogeu de outrora – pois os meios de produção industrial deslocaram para a cidade os atrativos do comércio e, em conseqüência, a atividade profissional que o definia deixou de existir -, Mestre Amaro é expulso das terras do Santa Fé por Lula e vê cortadas as raízes que o prendiam ao espaço, depois de já ter a dimensão do tempo destruído seu ofício e seu presente: “Agora era aquilo que se via, um engenho de duzentos pés, moendo cana, puxado a besta. Toda a alegria do seleiro se pondo como um sol em dia de chuva. Todo ele enroscava-se outra vez, fechava-se em sombras. E a cara dura, os olhos inchados, a tristeza íntima, eram outra vez o mestre José Amaro” (REGO, 1997, p.63).

À tragicidade atada aos personagens mestre Amaro e Lula de Holanda entrelaça-se a dimensão cômica de Vitorino Carneiro da Cunha, de modo que a amargura e a crescente decadência dos primeiros contrastam com a figura faceira do segundo. Não menos entretecido à dimensão trágica do tempo, Vitorino desenvolve uma trajetória em que essa mesma tragicidade contrasta com os contornos de um mundo criado por sua imaginação, instituindo acentuada comicidade à narrativa pelos traços caricaturescos com que é desenhado:

(continua)

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Fontes:
Enivalda Nunes Freitas e Souza; Eduardo José Tollendal e Luiz Carlos Travaglia (organizadores). Literatura: caminhos e descaminhos em perspectiva. Uberlandia: EDUFU, 2006.
- Imagem = Jornal de Letras, Artes e Idéias. Lisboa, Portugal. janeiro de 2010.