quinta-feira, 24 de junho de 2010

Constelação de Trovas


A mais triste solidão
que um ser humano já tem:
vasculhar seu coração
e não encontrar ninguém!
ADEMAR MACEDO – Natal/RN

Dar um livro de presente
sempre é gesto bem feliz:
quem o dá fica contente,
quem recebe pede bis.
AFONSO JOSÉ DOS SANTOS – Moji Guaçu/SP

Duas rimas simplesmente,
sete sílabas certinhas,
uma idéia, e a nossa mente
vai brincando em quatro linhas!
ALBA CHRISTINA CAMPOS NETTO – São Paulo/SP

Sem querer ser feminista,
a verdade vou contar:
a mulher é quem conquista,
mas se deixa conquistar!
ALBA HELENA CORREA – Niterói/RJ

É primavera, querida!
Deixemos para depois
as nossas rusgas da vida...
que a vida somos nós dois...
ALFREDO BRASÍLIO DE ARAÚJO – Baependi/MG

De uma forma desmedida,
muita gente, a toda hora,
dizendo gozar a vida,
vai jogando a vida afora!...
ALFREDO DE CASTRO – Pouso Alegre/MG

No palco da vida, atuante,
junto a comédias e dramas
o destino, ator brilhante,
vai tecendo suas tramas...
ANGÉLICA VILLELA SANTOS – Taubaté/SP

O agricultor que semeia
o arroz, o milho, o feijão,
trabalha com Deus à meia
na Obra da Criação.
ANTONIO A. DE ASSIS – Maringá/PR

Superando os meus problemas,
descubro que os teus abraços
são elos com que me algemas
no presídio dos teus braços!
ANTONIO COLAVITE FILHO – Santo André/SP

Se de barro fomos feitos
nesta olaria divina,
somos dois corpos perfeitos,
partilhando a mesma sina!
ANTÔNIO FACCI – Maringá/PR

Velhos sinos badalando
anunciam minha dor...
- Cada toque ressoando
no meu presente sem cor...
ANTONIO MANUEL ABREU SARDENBERG – São Fidélis/RJ

Ao reler o livro antigo,
grande emoção me tomou:
deu-me na impressão de um amigo
que de repente voltou.
AUROLINA ARAÚJO DE CASTRO – Manaus/AM

É verdade, neste inverno,
vou dar tudo a quem não tem,
porque sei que para o inferno
nunca vai quem faz o bem.
+CECIM CALIXTO – Tomazina/PR

Todo livro, quando aberto,
é pólen, é flor, é fruto...
fechado: é sombra, é deserto,
é silêncio, é campa, é luto.
CYRO ARMANDO CATTA PRETA – Orlândia/SP

O nosso pracinha que era
simples jovem a sonhar
lutou tal qual uma fera
voltou glorioso ao seu lar.
CYROBA RITZMANN – Curitiba/PR

Na esperança verde e bela
há o otimismo de luz!
Se a porta fecha, a janela
se abre em par e sol reluz!
DINAIR LEITE – Paranavaí/PR

Sigo a vida, e meu caminho
foi produto e fecundo
mas não troco teu carinho
por qualquer prêmio do mundo.
DJALDA WINTER SANTOS – Rio de Janeiro/RJ

O nosso amor escondido,
sem papel, sem aliança,
tem o sabor proibido
da fruta da vizinhança...
DOMITILA BORGES BELTRAME – São Paulo/SP

No tear da solidão,
rendeiro em dias tristonhos,
basta um fio de ilusão
para tecer os meus sonhos!
ELISABETH SOUZA CRUZ - Nova Friburgo/RJ

Revendo a foto esquecida
num álbum velho, tristonho,
vejo a saudade escondida
Por detrás daquele sonho...
FERNANDO CÂNCIO ARAÚJO – Fortaleza/CE

Nas lembranças em cadeia,
a verdade me angustia:
Ver luzir a lua cheia,
na varanda tão vazia.
FERNANDO VASCONCELOS – Ponta Grossa/PR

Os homens aqui na Terra,
em sua saga funesta,
vão passando a motosserra
no pescoço da floresta.
FLÁVIO ROBERTO STEFANI – Porto Alegre/RS

Ciúme é como se fosse
um veneno sedutor,
amargo, se mostra doce,
matando aos poucos o amor.
FRANCISCO PESSOA – Fortaleza/CE

Nosso reino de nobreza,
nós dois podemos cria-lo:
meu amor te faz princesa,
teu amor me faz vassalo.
HÉRON PATRÍCIO – São Paulo/SP

É no rosto da criança
que o sorriso é mais bonito:
- tem a força da Esperança
e o tamanho do infinito!
IZO GOLDMAN – São Paulo/SP

O imortal desaparace
desta vida transitória,
mas seu verso permanece
nas letras vivas da história.
JOAMIR MEDEIROS – Natal/RN

Foi pela guerra enlutada,
mas a ilusão de Maria
fincava os olhos na estrada
quando a porteira batia.
JOSÉ MESSIAS BRAZ – Pouso Alegre/MG

Fugir, poeta, não queiras
do que a vida preceitua:
teu destino é abrir fronteiras
e deixar que o sonho flua!
JOSÉ OUVERNEY – Pindamonhangaba/SP

Esquece a luta perdida
porque, mais que insensatez,
lembrar fracassos na vida
é fracassar outra vez!
JOSÉ TAVARES DE LIMA – Juiz de Fora/MG

Quando os vejo, todo o dia,
sempre me espanta, não nego,
perceber, no olhar do guia
a luz dos olhos do cego!
LACY JOSÉ RAYMUNDI – Garibaldi/RS

A paz é conquista interna,
pura ausência de ansiedade,
tranqüilidade que externa
prazer e felicidade.
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE – Pinhalão/PR

No mundo por onde andei,
nestes anos que vivi,
as minhas culpas paguei,
tudo o que semeei – colhi!
+ LEONARDO HENKE – Curitiba/PR

Para a alma aliviar
na dor, conflito, paixão,
a lágrima acalma o olhar,
um poema, o coração.
MARIA ELIANA PALMA – Maringá/PR

Entre os véus da noite, imerso,
insone, em meu travesseiro,
escrevo apenas um verso
e a saudade...um livro inteiro!
MARIA LÚCIA DALOCE – Bandeirantes/PR

Não te atenhas tanto ao sono
porque o trabalho te espera,
pois quem não planta no Outono,
não colhe na Primavera.
+ MÁRIO MONTEIRO – Bauru/SP

O amor chega de mansinho,
como quem está brincando...
Mostra a flor, esconde o espinho,
e acaba nos machucando!
MAURÍCIO LEONARDO – Ibiporã/PR

O tempo não traz perigo
à verdadeira amizade;
quem não é mais teu amigo,
jamais o foi na verdade.
MIGUEL RUSSOWSKY – Joaçaba/SC

Neste mundo passageiro,
a vida, que vai fluindo,
é um intervalo ligeiro,
dois silêncios dividindo...
MILTON NUNES LOUREIRO – Niterói/RJ

Cavalgando sem rodeios
por galáxias estreladas,
o poeta, em seus anseios
tece trovas requintadas.
NILTON MANOEL – Ribeirão Preto/SP

Passou...Bonita de fato!
E o mar, ao vê-la tão bela,
sentiu não ser um regato
para correr atrás dela...
ORLANDO BRITO – São Luis/MA

Desço caminhos tristonhos
tentando, em vão, descobrir
algum vestígio dos sonhos
que desprezei ao subir!...
RODOLPHO ABBUD – Nova Friburgo/RJ

Nossa gente faladeira,
que tanto esfrega e ensaboa,
pra lavar a língua inteira
esvaziou a Lagoa!
RONALDO AFONSO FRANCO JÚNIOR – Sete Lagoas/MG

A leveza de seu verso,
fez-me voar até o céu.
E de lá só lhe arremesso,
estrelas como troféu.
ROSALY AP. CURIACOS A. LEME – Piracicaba/SP

Saudade, algema de amor,
que ao coração se derrama,
tem sempre o mesmo fulgor
no silêncio de quem ama.
SARAH RODRIGUES – Belém/PR

A Trova que se revela
em sua forma e magia
é uma pequena aquarela
na tela da Poesia.
SEBAS SUNDFELD – Tambaú/SP

Nesta vida alucinante
e de ilusões passageiras,
às vezes, um breve instante
vale mais que horas inteiras.
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA – São Paulo/SP

O mendigo solitário
perambula pela rua.
Ao redor, só o cenário
de uma imensa e fria lua.
VANDA ALVES DA SILVA – Curitiba/PR

Revezam-se em nossas rotas
sombra e luz, contras e prós
e as vitórias e derrotas
começam entre de nós...
VANDA FAGUNDES QUEIRÓZ – Curitiba/PR

Navegam os trovadores
em e-mails de ilusões,
computando riso e dores,
conectando as emoções...
VÂNIA MARIA SOUZA ENNES – Curitiba/PR

Um velho colchão de palha...
Teus braços por cobertor;
não há fortuna que valha
a fortuna deste amor!...
WANDA DE PAULA MOURTHÉ – Belo Horizonte/MG

Literatura Brasileira (Parte 3 = O Barroco)



O Barroco no Brasil tem seu marco inicial em 1601, com a publicação do poema épico "Prosopopéia", de Bento Teixeira, que introduz definitivamente o modelo da poesia camoniana em nossa literatura. Estende-se por todo o século XVII e início do XVIII.

Embora o Barroco brasileiro seja datado de 1768, com a fundação da Arcádia Ultramarina e a publicação do livro "Obras", de Cláudio Manuel da Costa, o movimento academicista ganha corpo a partir de 1724, com a fundação da Academia Brasílica dos Esquecidos. Este fato assinala a decadência dos valores defendidos pelo Barroco e a ascensão do movimento árcade. O termo barroco denomina genericamente todas as manifestações artísticas dos anos de 1600 e início dos anos de 1700. Além da literatura, estende-se à música, pintura, escultura e arquitetura da época.

Antes do texto de Bento Teixeira, os sinais mais evidentes da influência da poesia barroca no Brasil surgiram a partir de 1580 e começaram a crescer nos anos seguintes ao domínio espanhol na Península Ibérica, já que é a Espanha a responsável pela unificação dos reinos da região, o principal foco irradiador do novo estilo poético.

O quadro brasileiro se completa no século XVII, com a presença cada vez mais forte dos comerciantes, com as transformações ocorridas no Nordeste em consequência das invasões holandesas e, finalmente, com o apogeu e a decadência da cana-de-açúcar.

Uma das principais referências do barroco brasileiro é Gregório de Matos Guerra, poeta baiano que cultivou com a mesma beleza tanto o estilo cultista quanto o conceptista (o cultismo é marcado pela linguagem rebuscada, extravagante, enquanto o conceptismo caracteriza-se pelo jogo de idéias, de conceitos. O primeiro valoriza o pormenor, enquanto o segundo segue um raciocínio lógico, racionalista).

Na poesia lírica e religiosa, Gregório de Matos deixa claro certo idealismo renascentista, colocado ao lado do conflito (como de hábito na época) entre o pecado e o perdão, buscando a pureza da fé, mas tendo ao mesmo tempo necessidade de viver a vida mundana. Contradição que o situava com perfeição na escola barroca do Brasil.

Antônio Vieira - Se por um lado, Gregório de Matos mexeu com as estruturas morais e a tolerância de muita gente - como o administrador português, o próprio rei, o clero e os costumes da própria sociedade baiana do século XVII - por outro, ninguém angariou tantas críticas e inimizades quanto o "impiedoso" Padre Antônio Vieira, detentor de um invejável volume de obras literárias, inquietantes para os padrões da época.

Politicamente, Vieira tinha contra si a pequena burguesia cristã (por defender o capitalismo judaico e os cristão-novos); os pequenos comerciantes (por defender o monopólio comercial); e os administradores e colonos (por defender os índios). Essas posições, principalmente a defesa dos cristão-novos, custaram a Vieira uma condenação da Inquisição, ficando preso de 1665 a 1667.

A obra do Padre Antônio Vieira pode ser dividida em três tipos de trabalhos: Profecias, Cartas e Sermões.

As Profecias constam de três obras: "História do futuro", "Esperanças de Portugal" e "Clavis Prophetarum". Nelas se notam o sebastianismo e as esperanças de que Portugal se tornaria o "quinto império do Mundo". Segundo ele, tal fato estaria escrito na Bíblia. Aqui ele demonstra bem seu estilo alegórico de interpretação bíblica (uma característica quase que constante de religiosos brasileiros íntimos da literatura barroca). Além, é claro, de revelar um nacionalismo megalomaníaco e servidão incomum.

O grosso da produção literária do Padre Antônio Vieira está nas cerca de 500 cartas. Elas versam sobre o relacionamento entre Portugal e Holanda, sobre a Inquisição e os cristãos novos e sobre a situação da colônia, transformando-se em importantes documentos históricos.

O melhor de sua obra, no entanto, está nos 200 sermões. De estilo barroco conceptista, totalmente oposto ao Gongorismo, o pregador português joga com as idéias e os conceitos, segundo os ensinamentos de retórica dos jesuítas. Um dos seus principais trabalhos é o "Sermão da Sexagésima", pregado na capela Real de Lisboa, em 1655. A obra também ficou conhecida como "A palavra de Deus". Polêmico, este sermão resume a arte de pregar. Com ele, Vieira procurou atingir seus adversários católicos, os gongóricos dominicanos, analisando no sermão "Por que não frutificava a Palavra de Deus na terra", atribuindo-lhes culpa.

Fonte:
http://www.vestibular1.com.br/

Folclore Africano (Napi, os Homens e os Animais)



No início do mundo nasceu o Sol, e depois dele surgiu Napi, o criador, o guardião da vida. Um dia Napi descansava perto de uma fonte. Olhou para a terra úmida e teve uma idéia: pensou que seria divertido moldar pequenas criaturas de argila. Primeiro modelou um animalzinho. Gostou dele e continuou a criar, e fez aparecer todos os animais que até hoje vivem na face da terra. Quando terminou, deu a cada animal um lugar para habitar. Por último moldou o homem e lhe disse:

- Você deve viver na floresta, é o melhor lugar para você.

Depois, fechou os olhos e tentou descansar. Mas não conseguiu.

Poucas horas mais tarde os animais voltaram para reclamar.

Ninguém estava feliz. O touro parecia furioso:

- Não posso viver na montanha, Napi. Preciso de pasto!

O antílope também estava aborrecido:

- Napi, não posso viver no pântano, meu sonho ‚ correr pelos campos!

Até mesmo o sensato camelo tinha uma queixa:

- Napi, detestei o deserto! Será que você não pode me mudar de lugar?

O homem, então, não parava de reclamar. Queria viver viajando, queria conhecer todos os lugares. Era muito curioso para ficar só na floresta. Napi suspirou e respondeu:

- Minhas queridas criaturas, vou lhes dar outros territórios! Calma! E depois disse:

- Touro, vá para os pastos! - E para o antílope: - Vá para a savana correr com liberdade.- E, finalmente, para o camelo: - Vá para perto de um oásis, onde o ar é fresco.

E quando chegou o homem, Napi lhe sugeriu diversos lugares para morar, mas o homem nunca ficava contente. Até que o guardião da vida se cansou e disse apenas:

- Você é mesmo impossível, meu filho! Tudo bem, vá para onde quiser!

É por isso que todos os animais têm seus territórios preferidos, mas o homem, essa criatura sempre insatisfeita, espalhou-se pelas montanhas, florestas, rios e mares, e até hoje continua procurando novos lugares para morar.

Fonte:
http://www.esnips.com

Rosa Maria Graciotto Silva (Revisitando as Fadas com Lobato)


1. Considerações preliminares

A literatura infantil surgiu no Ocidente por volta do final do século XVII, época que também registrou o apogeu dos contos de fadas. Oriundos da tradição oral e não tendo, originalmente, a criança como público-alvo, os contos inseriram-se, com o tempo, no acervo literário infantil, ocupando um lugar definitivo.

É em 1697, com a publicação de uma coletânea de oito contos em prosa, que o escritor francês Charles Perrault marca a ascensão de um gênero que terá ampla receptividade no leitor-criança. Esses contos, prescindindo às vezes da presença das fadas, mas envolvidos na áurea do maravilhoso, encontraram larga difusão na segunda metade do século XVII e meados do século XVIII, retornando com vigor no século XIX, principalmente na Alemanha com os contos dos Irmãos Grimm, e na Dinamarca, com os contos de Hans Christian Andersen.

Gênero que saltou da oralidade para perpetuar-se na literatura escrita, os contos de fadas avançaram fronteiras e já no século XIX, encontramos em terra brasileira a proliferação desses contos através das traduções de Alberto Figueiredo Pimentel e Carlos Jansen, que tiveram o cuidado de promover uma adaptação da linguagem, tornando-a próxima da língua portuguesa falada no Brasil.

A Carlos Jansen, alemão radicado no Brasil, coube a difusão de obras em que o elemento maravilhoso se fazia presente como se verifica, por exemplo, em Contos seletos das mil e uma noites (1882) e As aventuras do celebérrimo Barão de Münchausen (1891), ao lado de histórias de aventuras como Robinson Crusoé (1885), Viagens de Gulliver (1888) e D. Quixote de La Mancha (1901). Entretanto, foi Figueiredo Pimentel o grande divulgador dos contos de fadas, reunindo principalmente contos de Charles Perrault, Irmãos Grimm e Andersen nas obras: Contos da Carochinha (1894), Histórias da Avozinha (1896), Histórias da Baratinha (1896) e Contos de Fadas (1896).

Segundo Arroyo (1986:177) Contos da Carochinha, com o subtítulo Contos populares morais e proveitosos de vários países, traduzidos e recolhidos diretamente da tradição local, reunia 61 histórias seguindo o modelo de Charles Perrault que, em 1697, designara os Contos da mamãe gansa como Histórias ou narrativas do tempo passado com moralidades. A exemplo, portanto, da literatura infantil européia, a nossa literatura, que nesse primeiro momento era somente nossa quanto ao fato de ser traduzida em língua portuguesa abrasileirada, trazia em seu bojo a preocupação com o aspecto formativo da literatura. Diferenciava-se, entretanto, da literatura veiculada nas escolas, marcada por ideais pedagógicos e sem qualquer alusão ao elemento maravilhoso. Saindo do âmbito escolar e visando a um público emergente, os contos de Figueiredo Pimentel resgataram o popular e o mundo das maravilhas, suprindo uma carência então vigente: o conhecimento dos clássicos europeus através de uma linguagem solta, livre, espontânea e bem brasileira para o tempo subvertendo, assim, os cânones da época ( Arroyo, 1986: 178).

É pelos fins do século XIX, que ganha pulso em nossa recém-criada República, a viabilização de um projeto educativo que via no texto infantil e na escola a possibilidade de contribuir para a formação de futuros cidadãos. Juntando-se a isso a preocupação generalizada com a carência de obras adequadas à criança brasileira e que fossem feitas por brasileiros, é que nasce a nossa literatura para crianças. Entre os escritores que se prontificaram a concretizar esse projeto situam-se Coelho Neto, João do Rio, Tales de Andrade, Arnaldo de Oliveira Barreto, Júlia Lopes de Almeida, Francisca Júlia, Olavo Bilac, Manuel Bonfim, Júlio César da Silva e outros (Lajolo, 1984).

Olavo Bilac e Manuel Bonfim, no prefácio de Através do Brasil (1910) explicitam a ligação da nossa incipiente literatura com os ideais pedagógicos ao afirmarem que a obra fora elaborada com o intuito de constituir-se no único livro de leitura para o curso médio das Escolas Primárias do Brasil, a fim de trazer às crianças o conhecimento necessário para a sua formação cultural, moral e cívica (apud Zilberman, 1986:18).

Nos laços entre a literatura e a escola, não havia espaço para a fantasia. E é ainda Olavo Bilac quem, no prefácio de sua obra Poesias Infantis (1904), adverte o leitor dos perigos existentes em histórias maravilhosas e tolas que desenvolvem a credulidade das crianças, fazendo-as ter medo das coisas que não existem (apud Zilberman,1986:273).

A produção literária nacional atenta à difusão dos ideais de glorificação à Pátria, enaltecimento da natureza, valorização de heroísmos, preocupação com os registros cultos da língua portuguesa, se ganhou notoriedade devido à sua vinculação à escola, garantia certa de sucesso mercadológico, não servira, entretanto, para suprimir a divulgação dos contos maravilhosos, provenientes do acervo europeu. Prova disto são as obras de Figueiredo Pimentel que, convivendo no mesmo espaço de tempo com os chamados livros de leitura escolar , alcançaram um número significativo de edições, sendo que somente sua primeira obra Contos da Carochinha obtivera, entre 1894 a 1931, o número de cem mil exemplares colocados no mercado ( Lourenço Filho, apud Zilberman, 1986:322).

Paralelamente às histórias de Perrault, Grimm e Andersen divulgadas por Figueiredo Pimentel e que foram traduzidas diretamente dos originais, vicejavam no Brasil os contos pertencentes à tradição oral, transmitidos de geração à geração, principalmente, pelos imigrantes europeus e seus descendentes que aqui aportaram. Inseridos no cotidiano brasileiro, em um ambiente culturalmente diversificado pelo encontro de múltiplas vozes (alemã, francesa, portuguesa, espanhola, italiana e africana) esses contos passaram a se diferenciar do berço de além-mar, ganhando novas versões.

Em Câmara Cascudo (1956), que procedeu à recolha de contos da oralidade, vamos encontrar, por exemplo, A Gata Borralheira, um dos mais conhecidos de Charles Perrault, miscigenado a outros contos. Bicho de Palha, versão encontrada na tradição oral do Rio Grande do Norte, mescla dois contos de Perrault: o já referido A Gata Borralheira e Pele de Asno, a que se acrescenta o toque popular, quer relacionado à denominação do conto e ao nome da heroína (Maria), quer na inserção da religiosidade, pois a entidade mediadora que auxilia a protagonista não é uma fada, mas sim, Nossa Senhora. Similarmente, nos contos recolhidos por Sílvio Romero (1954), A Gata Borralheira transforma-se em Maria Borralheira, numa história que lembra tanto A Gata Borralheira quanto As fadas de Perrault, sem deixar de inserir, também, o elemento religioso. Aqui, a velhinha de As fadas é substituída por Nosso Senhor e a varinha de condão atua não pela magia de uma fada, mas pela intercessão do poder divino.

Ao findar do século XIX e primeiras décadas do século XX, a literatura infantil brasileira depara-se ante duas vias. A primeira, adotando o processo mimético europeu, cativa o leitor pela presença do maravilhoso, entretanto lhe faltam as raízes brasileiras. É um produto importado que embora passando por um processo de adaptação com relação à língua e apresentando histórias resultantes da intertextualidade de outras, como Bicho de Palha e Maria Borralheira, continua sendo um acervo de histórias alheias. Se por um lado, a simbologia presente nos contos atende aos anseios que são universais ao ser humano, como quer Bettelheim (1980), por outro lhe falta a representação da criança brasileira, em suas peculiaridades. A segunda via abre caminho para uma literatura caracterizada como brasileira, isto é, feita por brasileiros e para a criança brasileira. Entretanto, os seus propósitos não convencem o leitor-criança e muito menos o adulto, gerando insatisfações como a expressa por Monteiro Lobato:

A nossa literatura infantil tem sido, com poucas exceções, pobríssima de arte, e cheia de artifício, – fria, desengraçada, pretensiosa. Ler algumas páginas de certos “livros de leitura”, equivale, para rapazinhos espertos, a uma vacina preventiva contra os livros futuros. Esvai-se o desejo de procurar emoções em letra de forma; contrai-se o horror do impresso. (Cavalheiro, 1962:182, V. II)

2. As reinações de Lobato

Optando por uma terceira via, surge a literatura infantil de Monteiro Lobato mostrando que é possível produzir obras que seduzam o leitor-criança, explorando o lado mágico da vida, utilizando em larga escala o elemento maravilhoso sem deixar, entretanto, de focalizar a criança brasileira e o contexto em que está inserida.

Com A menina do Narizinho arrebitado, obra publicada em 1920 e levada às escolas em 1921 como “segundo livro de leitura” e já com o título Narizinho Arrebitado, Lobato consegue um fato inédito no âmbito do mercado livreiro: esgotar 50.000 exemplares em cerca de oito a nove meses (Cavalheiro, 1962:147, V. II).

Rompendo com a literatura tradicional, Lobato angaria, na época, comentários como os feito por Breno Ferraz:

... um livro absolutamente original, em completo, inteiro desacordo com todas as nossas tradições “didáticas”. Em vez de afugentar o leitor, prende-o. Em vez de ser tarefa, que a criança decifra por necessidade, é a leitura agradável, que lhe dá a amostra do que podem os livros (...) a historieta fantasiada por Monteiro Lobato, falando à imaginação, interessando e comovendo o pequeno leitor, faz o que não fazem as mais sábias lições morais e instrutivas: desenvolve-lhe a personalidade, libertando-a e arrimando-a para cabal eclosão, fim natural da escola. (apud Cavalheiro, 1962:146, V.II)

Durante a década de 20, Monteiro Lobato cria outras dez histórias que, somadas à primeira, resultam no livro Reinações de Narizinho, publicado em 1931. Promovendo uma fusão entre realidade e fantasia, anulando os limites de espaço e de tempo, Lobato faz com que o sítio de dona Benta transforme-se na morada, não só dos habitantes do sítio, como também dos integrantes do mundo das maravilhas. Já na primeira história, Narizinho Arrebitado, encontramos o Pequeno Polegar fugindo de seu mundo e de dona Carochinha, a fim de vivenciar novas aventuras:

... Ando atrás do Pequeno Polegar [...] Há duas semanas que fugiu do livro onde mora e não o encontro em parte nenhuma. Já percorri todos os reinos encantados sem descobrir o menor sinal dele. [...] tenho notado que muitos dos personagens das minhas histórias já andam aborrecidos de viverem toda vida presos dentro delas. Querem novidades. Falam em correr mundo a fim de se meterem em novas aventuras. Aladino queixa-se de que sua lâmpada maravilhosa está enferrujando. A Bela Adormecida tem vontade de espetar o dedo noutra roca para dormir outros cem anos. O Gato de Botas brigou com o marquês de Carabás e quer ir para os Estados Unidos visitar o Gato Félix. Branca de Neve vive falando em tingir os cabelos de preto e botar ruge na cara. Andam todos revoltados, dando-me um trabalhão para contê-los. Mas o pior é que ameaçam fugir e o Pequeno Polegar já deu o exemplo. [...] Tudo isso [...] por causa do Pinóquio, do Gato Félix e sobretudo de uma tal menina do narizinho arrebitado que todos desejam muito conhecer.(Reinações de Narizinho, p.11)

Cansado das velhas histórias emboloradas pelo tempo, Polegar abre o caminho para a vinda das demais personagens do mundo encantado: Cinderela, Branca de Neve, Rosa Branca e Rosa Vermelha, Chapeuzinho Vermelho, Gato de Botas, Barba Azul, Patinho Feio, Hansel e Gretel, o Soldadinho de Chumbo, o Alfaiate Valente, Ali Babá, Aladino, Lobo Mau, os heróis gregos Perseu e Teseu, além de Xeerazade e todo o séquito das mil e uma noites. A estes heróis do passado juntam-se outros da contemporaneidade de Lobato, como Tom Mix e Gato Félix, que saem das fitas de cinema e histórias em quadrinhos interagindo com os habitantes do sítio e do mundo maravilhoso. Se as personagens dos contos antigos visitam o sítio, rompendo o espaço geográfico e temporal, os moradores do sítio também se aventuram, empreendendo, tal como Polegar, visitas a outros reinos. É desta forma que visitam em Pena de Papagaio a terra das fábulas e seus fabulistas famosos La Fontaine e Esopo, presenciando as fábulas acontecendo e participando ativamente de outras como em Os animais e a peste, que traz como resultado a vinda de mais um morador para o sítio: o burro falante. E as incursões continuam. Próxima aventura: as terras do barão de Münchausen e com a participação do mundo adulto, pois D. Benta acompanha as crianças na nova empreitada.

Em Reinações de Narizinho o mundo maravilhoso passa a fazer parte do cotidiano das crianças. Assim é que Narizinho em suas incursões pelo Reino das Águas Claras vivencia um conto de fadas, transformando-se pelas “mãos” mágicas de dona Aranha numa princesa que se prepara para o encontro com o príncipe que se é escamado, é, acima de tudo, encantado. O esplendor de seu vestido ofusca os de Pele de Asno e de Cinderela descritos por Perrault e Irmãos Grimm. Suas maravilhosas vestes, tanto as do primeiro encontro ( p.14-15), quanto as confeccionadas para a celebração de seu casamento com o príncipe (p. 61), resultam da interação de elementos que fogem do domínio do real. Dona Aranha, a costureira de cerca de mil anos de idade, assim metamorfoseada por uma fada má, vale-se de um tecido tramado pela fada Miragem, cortando-o com a tesoura da Imaginação e cosendo-o com a linha do Sonho e com a agulha da Fantasia (p. 63).

Tem-se aí a identificação dos recursos utilizados pela costureira Aranha com os selecionados e organizados por Lobato para sua recriação dos contos maravilhosos, em que a miragem, a imaginação, a fantasia e o sonho deixam o campo da abstração e concretizam-se nas aventuras vividas por Narizinho e sua comitiva, nas onze histórias que compõem a obra Reinações de Narizinho.

Se no Reino das Águas Claras, presentificado nas histórias Narizinho Arrebitado e O casamento de Narizinho, Lobato promove o encontro do antigo com o contemporâneo de sua época, maior ênfase se encontra nas peripécias que ocorrem no Sítio do Picapau Amarelo. É na festa organizada para recepcionar os integrantes do mundo maravilhoso (Cara de Coruja), que Lobato proporciona uma verdadeira fusão entre o real do sítio e a ficção dos contos. Desse encontro resulta um maior conhecimento por parte dos habitantes do sítio e, concomitantemente, do leitor. Através da curiosidade de Emília fica-se sabendo o porquê de os sapatinhos de Cinderela ora serem de cristal, ora de camurça. Ou ainda, elucida-se o verdadeiro final desta história, se é o contado por Perrault ou o dos Irmãos Grimm. Estas e outras questões são levantadas buscando respostas dos diretamente envolvidos nas histórias. Resgatam-se portanto, histórias antigas que retiradas da fixidez da escrita, transformam-se em histórias reais, possibilitando que o sítio se transforme, como disse Dona Benta, num livro de contos da carochinha.

As idas e vindas de personagens de diferentes histórias e diferentes autores, assim como as aventuras do pessoal do sítio por outras paragens, revelam ao leitor um mundo em que ele pode interagir, de tal forma que os seus sonhos e suas fantasias passam a ser possíveis de uma real concretização. E isto se torna possível pela atuação das personagens do sítio que, representando o anseio dos pequenos leitores, estabelecem comparações entre uma história e outra, apontam defeitos, buscam soluções, questionam e obtém respostas. Com isso, Lobato transforma em realidade um de seus sonhos: transformar o sítio (leia-se sua obra) na morada de seus leitores.

Convidado a participar desse jogo em que o real e o imaginário se fundem ou se confundem, o leitor se vê enredilhado nas tramas tecidas pelo mestre Lobato, que marotamente, na voz de Peninha revela que o mundo das maravilhas existe por toda parte e para nele ingressar basta ter imaginação: [...] O mundo das maravilhas é velhíssimo. Começou a existir quando nasceu a primeira criança e há de existir enquanto houver um velho sobre a terra (p. 134).

Entre os recursos empregados por Lobato que viabilizaram os novos rumos da literatura infantil brasileira, destaca-se a centralização dos eventos na personagem-criança. Esta, que até então ocupava um patamar inferior na literatura a ela endereçada, passa a ser o foco de interesse da obra lobateana, acarretando modificações significativas tanto no campo ideológico quanto no estético. Priorizando a criança “reinadeira”, sempre pronta a vivenciar novas aventuras e, ao mesmo tempo, ávida em adquirir novos conhecimentos, Lobato indica ao leitor o caminho a ser trilhado pela imitação dos heróis-mirins Narizinho, Emília e Pedrinho. Intrepidez, criatividade e imaginação fértil caracterizam o perfil infantil lobateano em oposição ao modelo inculcado pela literatura escolar, que promovia a fidelidade à criança exemplar, totalmente dependente dos ditames do mundo adulto. Se, nos contos antigos transmitidos pela literatura escrita e oral, as personagens ( em geral jovens casadoiros ) mostravam-se passivas, dependentes de auxílio externo para conseguirem superar obstáculos ou obterem ascensão social, Lobato resolve tal problema, retomando essas histórias e promovendo a rebeldia das personagens:

Esquecidas de que eram famosas princesas, foram correndo receber o pequenino herói. Era ele o chefe da conspiração dos heróis maravilhosos para fugirem dos embolorados livros de dona Carocha e virem viver novas aventuras no sítio de dona Benta. Polegar já havia fugido uma vez, e apesar de capturado estava preparando nova fuga –– dele e de vários outros. ( p.96 )

O recurso usado por Lobato, em que os habitantes do sítio interagem com as personagens do mundo maravilhoso, tem como conseqüência o reforço no propósito que une as personagens dos dois mundos e que, evidentemente, deverá atuar de forma eficaz no destinatário da obra. Após a leitura de Reinações de Narizinho, o leitor terá acrescido à sua história não só conhecimentos, mas, sobretudo, a reflexão necessária para se tornar um leitor dotado de um olhar mais crítico, quer com relação ao mundo ficcional que lhe é ofertado, quer com relação ao mundo real de que faz parte.

Ao privilegiar a ótica infantil, Lobato elege como prioridade o ludismo que perpassa, sobremaneira, todas as histórias. Ludismo este que se encontra no inusitado das cenas compartilhadas pelas crianças, animais e objetos antropomorfizados e pelos adultos que compactuam com as personagens-mirins, aceitando e vivenciando o jogo do faz-de-contas.

Criando cenas bem-humoradas, o narrador convida o leitor para compartilhar da brincadeira, como se observa no desenrolar da primeira história, no momento em que o besouro discute com o príncipe do Reino das Águas Claras a respeito da “misteriosa elevação”, onde estão apoiados:

[...] Abaixou-se, ajeitou os óculos no bico, examinou o nariz de Narizinho e disse:
–– Muito mole para ser mármore. Parece antes requeijão.
–– Muito moreno para ser requeijão. Parece antes rapadura –– volveu o príncipe.
O besouro provou a tal terra com a ponta da língua.
–– Muito salgada para ser rapadura. Parece antes...( p.08)

O espaço vazio, representado pelas reticências, surge como um convite à entrada do leitor, indicando-lhe a continuação do diálogo.

Essa interação do leitor com o texto, espraia-se pela obra. E, se uma das intenções de Lobato era recuperar os contos tradicionais sob uma nova ótica, o leitor é, novamente, solicitado a colaborar. Desta feita, como se participasse de um jogo de “quebra-cabeças”, cabe-lhe identificar os contos famosos de Charles Perrault, Irmãos Grimm e Andersen, pelas pistas que são inseridas na construção do texto. Assim, [...] O peixinho, porém, que era muito valente permaneceu firme...(p. 09) lembra O soldadinho de chumbo de Andersen; [...] a baratinha de mantilha, de nariz erguido para o ar como quem fareja alguma coisa. [...] Estou sentindo o cheirinho dele (p. 13) lembra O pequeno polegar de Perrault e Joãozinho e Maria dos Grimm; [...] –– Estou vendo uma poeirinha lá longe! ( p. 93) remete ao conto O Barba-Azul de Perrault.

Reservando um lugar para o leitor no relato, convidando-o para ingressar no mundo mágico da ficção, onde tudo é possível, a obra lobateana cumpre o seu papel revolucionário. Recuperando caminhos esquecidos, traçando veredas, ampliando as já existentes e abrindo outras, Lobato criou um mapa de um mundo ficcional que se transforma a cada instante, sempre a espera de um novo traçado.

Fonte:
XIII Seminário do CELLIP (Centro de Estudos Linguísticos e Literários dos Paraná). Campo Mourão: 21 a 23 outubro de 1999. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2000. CD-Rom.

Anton Tchekhov (O Vingador)


Logo depois de haver surpreendido sua mulher em flagrante, encontrava-se Fedor Fedorovich Sigaev na loja de armas de Schmuks e Cia, a escolher o revolver que melhor lhe pudesse servir. Seu rosto expressava ira, dor e decisão irrevogável.

“Bem sei o que devo fazer!”, pensava. “Quando os fundamentos de uma família são profanados, e a honra é arrastada pela lama e triunfa o vício... eu, como cidadão e como homem honrado, devo ser o vingador. Matarei primeiro a ela, depois ao amante e finalmente suicidar-me-ei”.

Não havia ainda escolhido o revolver e nem sequer assassinara alguém, mas na imaginação já se lhe apresentavam três cadáveres ensangüentados, de crânios triturados, os miolos a flutuarem... Barulho, ruído de curiosos e autópsia.

Possuído pela insensata alegria do homem ofendido, calculava o horror dos parentes e do público, a agonia da traidora e até lhe parecia poder ler em pensamento os artigos da primeira página, a comentarem a decomposição dos fundamentos da família.

O empregado da loja, tipo inquieto, afrancesado, de ventre pequeno e colete branco, apresentava-lhe os revólveres e juntando os calcanhares dizia, sorrindo respeitosamente:

- Eu aconselharia a Mousieur que levasse este magnífico modelo do sistema Smith & Wesson. É a última palavra na ciência das armas. Possui três propulsores e pode-se dispará-lo a uma distância de seiscentos passos. Chamo também a atenção de Mousieur para a limpeza do acabamento. Seu sistema é que está mais em moda. Vendemos diariamente dezenas deles, que são utilizados contra os bandidos, os lobos e os amantes. Seu tiro é preciso e forte, alcança distâncias enormes e mata, atravessando-os, a mulher e o amante. Quanto aos suicidas, Mousieur, não conheço, para eles, melhor sistema.

E o empregado, apertando e soltando o gatinho, soprando o cano e fingindo mirar, parecia próximo a afogar-se de puro entusiasmo. A julgar-se pela expressão extasiada de seu rosto, poder-se-ia pensar que ele mesmo, de boa vontade, pregaria um tiro na testa, se possuísse uma arma tão maravilhosa quanto aquela.

- E qual o preço? – perguntou Sigaev.

- Quarenta e cinco rublos, Mousieur.

- Hum! É muito caro, para mim.

- Neste caso, Mousieur, posso oferecer-lhe algo mais em conta. Aqui está. Tenha a bondade de examinar. Temos estoque variado e de todos os preços... Este, por exemplo,
do sistema Lefrauché, que custa somente 18 rublos. Porém... – o empregado fez um muxoxo de pouco caso – é um sistema, Mousieur, demasiadamente antiquado. Quem o
compra são os pobres de espírito e os psicopatas. Suicidar-se ou matar a própria mulher com um Lefauché é considerado atualmente de mau gosto. O bom-tom admite somente uma Smith & Wesson.

- Não necessito matar-me ou a alguém – mentiu, com acento sombrio, Sigaev. – Compro-o simplesmente para a minha casa de campo... Para assustar os ladrões.

- Não nos interessa o seu motivo – sorriu o empregado, baixando modestamente os olhos – Se, em cada caso, buscássemos as razões, já deveríamos ter fechado a loja.

Para espantar os corvos, Mousieur, o Lefauché não serve, pois produz ruído um tanto surdo. Eu lhe proponho uma pistola Mortimer, das chamadas para duelos.

“E se eu o provocasse para um duelo?”, passou pela cabeça de Sigaev. “Porém... não... Seria honra demasiada. A essas bestas, devemos matá-las, como cachorros...”

O empregado, revoluteando graciosamente e em pequenos passos, sem deixar de sorrir e de conversar, apresentou-lhe todo o monte de revólveres. O Smith & Wesson era o de aspecto mais sólido e justiceiro. Sigaev tomou um destes nas mãos, fixou-o e quedou ensimesmado. A imaginação desenhava-o destroçando um crânio, o sangue a escorrer como um rio sobre o tapete e o assoalho, a traidora, moribunda, agitando um pé convulso... Para a alma indignada, aquilo era pouco. O quadro de sangue, os soluços e o estupor não o satisfaziam. Deveria pensar em algo mais terrível.

“Isto é o que farei”, pensou. “Matarei a ele e a mim em seguida, porém ela... deixaria viver. Que morra do arrependimento e do desprezo dos que a cercam! Para natureza tão nervosa quanto a sua, será martírio maior que a morte!”

Começou a imaginar o próprio funeral: ele, o ofendido, estendido no ataúde, com um sorriso bondoso nos lábios... Ela, pálida, torturada pelos remorsos, caminhando atrás do féretro, como uma Níobe, sem poder escapa aos olhares depreciativos e aniquiladores, lançados pela multidão indignada...

- Vejo, Mousieur, que lhe agrada o Smith & Wesson – comentou o empregado, interrompendo o devaneio – Se o acha muito caro, posso fazer uma redução de cinco rublos, embora tenhamos outros mais baratos.

A figurinha afrancesada girou graciosamente sobre os próprios tacões e alcançou na prateleira outra dúzia de estojos com revólveres.

- Aqui está outro, Mousieur. O preço, trinta rublos. Não é caro, se lembrarmos que o câmbio está baixo e que os direitos alfandegários sobem cada dia mais... Juro-lhe, Mousieur, que sou conservador, porém já começo a protestar! Imagine que o câmbio e a tarifa da alfândega são o motivo de que somente os ricos possam adquirir armas!

Para os pobres nada mais resta que as armas de Tula, e os fósforos. E as armas de Tula são uma desgraça! Se alguém pretender disparar uma arma de Tula sobre a própria mulher, apenas consegue atingir a própria omoplata...

Repentinamente Sigaev entristeceu-se com a idéia de morrer e não contemplar os sofrimentos da traidora. A vingança unicamente é doce quando existe a possibilidade de ver e tocar seus frutos. Pois, que sentido encontraria em estar deitado no ataúde, se nada poderia perceber?!

“E se eu fizesse isto?... matá-lo, ir a seu enterro, ver tudo e depois me suicidar?... Sim. Porém... antes do enterro eu seria preso e me tirariam a arma... Bem...

O que farei será matá-lo e deixar que ela viva. Eu... enquanto não decorra um certo tempo, não me matarei. Serei preso. Para suicidar-me, sempre terei ocasião. Estar preso será melhor, pois que ao prestar declarações, terei possibilidade de demonstrar, ante o poder e a sociedade, toda a baixeza do seu comportamento. Se eu morresse, ela, com seu caráter desavergonhado e embusteiro, jogaria a culpa sobre mim, e a sociedade acabaria por absolvê-la.... de outro lado, talvez caçoe de mim, se continuo a viver... Então....

Um minuto depois, pensava:

“Se... Talvez me acusem de sentimentos mesquinhos se eu me matar... E, depois, para que suicidar-me? Isso em primeiro lugar. Em segundo... o suicídio é covardia.

Então, o que farei será matá-lo, deixá-la viver e eu irei para o cárcere. Serei julgado e ela figurará como testemunha... Veremos seu sobressalto e vergonha, quando precisar enfrentar meu advogado! Por certo que as simpatias do tribunal, do público e da imprensa estarão ao meu lado!...”

Enquanto assim devaneava, o empregado continuava a expor a mercadoria e considerava de seu dever, entreter o comprador.

- Veja aqui, outros, ingleses, de sistema novo, que recebemos há pouco. Porém, previno-o, Mousieur, de que todos os sistemas empalidecem diante do Smith & Wesson.

Por certo, terá lido, há poucos dias, acerca de um militar que comprara um Smith & Wesson em nossa casa, e que o usou contra o amante... E que imagina tenha acontecido? A bala atravessou primeiro o amante, alcançou, depois o abajur de bronze, em seguida o piano de cauda e deste, como uma carambola, matou um cachorro pequinês e roçou a esposa... As conseqüências foram brilhantes e honraram nossa firma. O militar está preso agora... Por certo o condenarão a trabalhos forçados!... Em primeiro lugar, porque temos leis muito antiquadas , em segundo, porque já se sabe que o tribunal sempre toma o partido do amante. Por quê? Muito simples, Mousieur. Porque também o jurado, os juízes, o procurador e o advogado de defesa se entendem com esposas alheias e mais tranqüilos estão quando sabem de que um marido há na Rússia. A sociedade se encantaria, caso o Governo desterrasse todos os maridos para a ilha de Sajalin. Ah! Mousieur! Não pode o senhor imaginar a indignação que me desperta este desmoronar dos costumes morais contemporâneos!... Nestes tempos, cortejar mulheres alheias causa tanto prazer quanto filar cigarros os outros ou pedir livros emprestados! Cada ano que passa, o nosso comércio declina, porém não significa que haja menos amantes... Significa que os maridos reconciliam-se com a situação e temem os trabalhos forçados – e o empregado, olhando em torno de si, sussurrou: - E quem é o responsável, Mousieur? O Governo!

“Acabar em Sajalin, por causa de um porco... não, não é razoável”, refletiu Sigaev. “Se me condenam aos trabalhos forçados, somente conseguirei dar à minha mulher a possibilidade de casar-se outra vez e de enganar também ao segundo marido. O lucro será todo dela! O que farei então será isto: deixá-la viver, não me matar e nem matar a ele... Devo imaginar algo mais prudente e sentimental. Castigá-los-ei com meu desprezo e encetarei escandaloso processo de divórcio...”

- Aqui está, Mousieur, um sistema novo – comentou o empregado, recolhendo de outra prateleira mais uma dúzia de revólveres. – Chamou-lhe a atenção para o mecanismo original do cão...

Porém, uma vez tomada aquela decisão, Sigaev não mais necessitava de revólver. Em compensação, o empregado, cada vez mais inspirado, não cessava de mostrar-lhe os artigos que tanto elogiava. O marido ofendido envergonhou-se de que, por sua causa, o sujeito estava trabalhando em vão, a entusiasmar-se e a perder tempo.

-Bem – balbuciou. – Será melhor que eu volte mais tarde ou mande alguém...

Conquanto não visse a expressão do rosto do empregado, compreendeu que, para suavizar a violência da situação, não havia outra saída que comprar algo. Porém, o que? Seus olhos percorreram as paredes da loja, em busca de uma coisa barata, e se detiveram numa rede de cor verde, pendurada junto à porta.

- E isso? Que é isso? – perguntou.

- É uma rede para caçar codornas.

- Qual o preço?

- Oito rublos.

- Pois pode mandar embrulhar.

O marido ofendido pagou os oito rublos, passou a mão na rede para levá-la e, cada vez mais ofendido, saiu da loja.

Fonte:
Anton Tchekhov. O Beijo e outros contos.
Imagem =
http://www.atribunamt.com.br

Josilene de Paiva, Kelly Cheron Yamasaki e Simoni Cristina Brito (Visões de um Sonhador – Lima Barreto)


Depois de um estudo minucioso da obra de Lima Barreto “Triste Fim de Policarpo Quaresma” buscamos fazer uma relação entre a mesma e a obra “Utopia “ de Thomas More, comparando a questão utópica entre ambas, já que nelas está evidente a distância entre o sonho e a realidade, de forma que vai criticar o idealismo inconseqüente, incapaz de enxergar as verdadeiras dimensão do real .

Utopia é o sonho do sistema de vida verdadeiro, justo e agradável. A primeira utopia que serviu de modelo as posteriores foi descrita por Platão (428 –547 a. C.) no mais extenso de seus diálogos intitulado “A República”. No Decorrer da obra, Platão apresenta Sócrates, seu mestre, conversando com seus amigos e discípulos sobre o tema justiça.

Muitos são os utopistas, tais como: Platão, Thomas More, Morris e Bellamy. Estes se inspiraram em paraísos primitivos ou nas aspirações camponesas.

Para Thomas More e para a maioria de seus sucessores, a utopia é a terra da sábia organização social. Inspirando-se em viagens americanas, o chanceler T. More inventou uma ilha intitulada Utopia que em grego significa “nenhum lugar”. Esta ilha, na verdade, é uma denúncia contra a Inglaterra, ou seja, contra a miséria, crueldade e luxo da sociedade inglesa. Na ilha reina o bem-estar e a justiça, estabelecendo a simplicidade e a prosperidade plena, não havendo a circulação de dinheiro, nem propriedade privada. Os deveres e direitos dos cidadãos são iguais, sendo que para o desenvolvimento da República, conta-se com o apoio e participação de todas as pessoas.

Baseando-se nestas características utópicas de Thomas More é que se torna possível estabelecer um quadro comparativo entre as duas obras, visto que T. More, com seu país utópico, ressalta a necessidade de mudar nosso mundo atual, cheio de totalitarismo, ganância e miséria. Lima Barreto em “Triste fim de Policarpo Quaresma”, é dissecado o sonho de um patriota exaltado, dominado pela idéia de um Brasil acolhedor e amável.

A utopia dentro desta obra vai se estabelecer em três planos. Num primeiro momento, o grande sonhador prepara uma reforma cultural; num segundo, uma reforma agrícola e por último, uma reforma política. Ao contrário de um grande final nessa caminhada ufanista, a narrativa destruirá todo o mito romântico de um Brasil superior mostrando um país precário, inóspito, infecundo, cruel, opressor e odioso.

A primeira reforma proposta por Quaresma se dá pela cultura. Como um patriota exaltado, possuía uma biblioteca só com obras sobre o Brasil. Assim, num de repente, viu-se assaltado por uma obsessão: salvar o país por uma reforma de costumes.

As pessoas deveriam se expressar como os primitivos tupinambás, e não como europeus. Em pouco tempo, Quaresma, pretendeu substituir o idioma português pela língua dos primitivos habitantes da terra, chegando ao extremo de redigir documentos oficiais em tupi.

Essa aventura acabou por metê-lo num sanatório. Onde ao sair, já não pensava e reformar os costumes nacionais. A partir daí, Quaresma acredita que a solução estava numa reforma pela agricultura. Muda-se então para um sítio, onde depois de importar revistas e maquinários agrícolas, incumbe-se demonstrar aos compatriotas que a melhor terra do mundo é a do Brasil. Porém, é vencido pela má qualidade do solo e pela mesquinharia da política local, tendo que voltar ao Rio de Janeiro para salvar a pátria do perigo representado pela Reforma Armada, que eclodia no país. Desta forma, alista-se no exército a favor de Floriano Peixoto, comandando um batalhão de quarenta soldados.

Nesta altura, Quaresma está empenhado nas reformas políticas do florianismo. Obtém um entrevista com o presidente da República, mas sai decepcionado com a figura displicente do líder. Abafada a revolta, é enviado para a Ilha das Enxadas, com a função de carcereiro. Ali, estavam os prisioneiros da guerra, ex–membros da marinha. Estes, numa noite, são levados para um fuzilamento por ordem de Floriano Peixoto.
Quaresma ao saber do fato, redige uma carta de censura ao presidente , exigindo os direitos humanos dos rebeldes. Em conseqüência , Quaresma é preso e enviado para a Ilha das Cobras, onde teria o mesmo fim dos prisioneiros por cujos direitos protestara.

As visões do sonhador de um Brasil perfeito se desfez ao tentar lutar pela identidade , pela valorização da terra e pelo direito do ser humano, ficando somente um idealismo patriótico e a utopia de “despertar a pátria do sono inconsciente em que jazia, ignorante de seu potencial, e conduzi-la ao merecido lugar de maior nação
do mundo.”

Fonte:
XIII Seminário do CELLIP (Centro de Estudos Linguísticos e Literários dos Paraná). Campo Mourão: 21 a 23 outubro de 1999. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2000. CD-Rom.

Homenagem a José Saramago, em Itu



O Ponto de Leitura de Itu - Biblioteca Comunitária prof. Waldir de Souza Lima será palco, neste sábado, de uma homenagem ao escritor português José Saramago, falecido no último dia 18 de junho. Saramago foi um dos maiores expoentes da literatura contemporânea e o único vencedor do Prêmio Nobel de Literatura a escrever em língua portuguesa.

Pela manhã, a partir das 9 horas, será a aberta uma exposição de cartazes e obras do escritor e à noite, às 19 horas, o Cineclube Brad Will irá exibir o filme "Ensaio sobre a cegueira", do diretor brasileiro Fernando Meirelles, baseado no livro de mesmo nome, de autoria de Saramago. Quem for à biblioteca poderá conferir, ainda, uma exposição de livros sobre o continente africano, que está sediando a Copa do Mundo de Futebol.

A biblioteca fica localizada na Rua Floriano Peixoto, 238, Centro, Itu. Maiores informações em: (11) 8110-3598 ou bibliotecacomunitariaitu@gmail.com . As atividades são todas gratuitas.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Lúcio Cardoso (Poemas Avulsos)


A UMA ESTRELA

Meu domínio é o do sonho,
minha alegria é a do céu que a tormenta obscurece,
meu futuro é aquele que amanhece à luz do desespero.
Só tu saberás o segredo da minha predestinação.
Só tu saberás a extensão de tantas caminhadas,
só tu conhecerás a casa humilde em que morei.
Quem saberia romper o sortilégio que me cerca,
ó sol vermelho, aurora dos agonizantes.

Mas não reflitas nunca o gesto que condena.
Ai, este país é o da eterna aridez!
Se da altura a estrela não baixar o olhar ao pântano,
maior será a sua impiedade que o seu esplendor.

E só tu Vésper, só tu aplacarás o meu desejo,
só tu poderás depositar, nesta carne crispada,
o beijo que nas trevas dá ao sono a serenidade do repouso.
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AMANHECER

A noite está dentro de mim,
girando no meu sangue.
Sinto latejar na minha boca,
as pupilas cegas da lua.
Sinto as estrelas, como dedos
movendo a solidão em que caminho.
Logo o perfume da poesia
sobe aos meus olhos trêmulos, cerrados,
ouço a música das coisas que acordam
sobre o corpo negro da terra
e a voz do vento distante
e a voz das palmeiras abertas em raios
e a voz dos rios viajantes.

E a noite está dentro de mim.
Como um pássaro,
meu sonho ergue as asas no coração da sombra.
Ouço a musica das flores que tombam,
o tropel das nuvens que passam
e a minha voz que se eleva
como uma prece na planície solitária.

Então sinto a noite fugindo de mim,
sinto a noite fugindo dos homens
e o sol que avança na garupa do mar
e as nuvens curvas que enchem o céu
como grandes corcéis de fogo cor-de-rosa
desaparecendo sugados pela treva.
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VELHA FORTALEZA

Vejo-te dormindo no silêncio antigo e forte.

Ouço as ondas que roçam tuas ilhargas de granito,
e o vento que desenlaça no espaço frio
a memória guerreira dos teus dias idos.

Sinto renovar-se em mim
o desejo desta vida que sonhei.
Ouço a voz das madrugadas sôbre as rochas
e o mar remoto que soluça
junto ao aço morto dos canhões...

E vejo, ó fria sentinela,
o teu vulto crescer na linha do horizonte,
como um estranho navio que ancorasse
junto à cidade descuidada,
vazia de heroísmo e mocidade!

Fonte:
Jornal de Poesia.

Lúcio Cardoso (Crônica da casa assassinada : Primeira narrativa do farmacêutico)



Meu nome é Aurélio dos Santos, e há muito tempo que estou estabelecido em nossa pequena cidade com um negócio drogas e produtos farmacêuticos. Minha loja pode mesmo ser considerada a única do lugar, pois não oferece concorrência um pequeno varejo de produtos homeopáticos situado na Praça Matriz. Assim, quase todo o mundo vem fazer suas compras em minha casa, e mesmo para a família Meneses tenho aviado muitas receitas.

Lembro-me muito bem da noite em que ele veio me procurar. Achava-me sentado sob uma lâmpada baixa, a fim aproveitar a claridade o mais que pudesse, já que a eletricidade em nossa vila é deficiente, e eu consultava um dicionário de pós medicinais impresso em letras exageradamente miúdas. A noite mal começara a baixar, e a loja se achava cheia de mariposas que giravam num círculo cada vez mais fechado em torno da lâmpada. Isto me enervava e eu sacudia a cabeça para afugentá-las, pois tinha as duas mãos ocupadas em sustentar o grosso volume. Não fechara inteiramente a porta, cuidando que apareceria algum freguês retardatário. Como ouvisse um leve rangido, ergui a cabeça e percebi a mão que empurrava a porta — depois o rosto surgiu devagar, sem procurar produzir efeito, apenas como se evitasse uma intervenção repentina.Avançou dois passos e eu reconheci então de quem se tratava. Pareceu-me mais pálido do que habitualmente, de modos hesitantes, olhos desconfiados.

— Boa noite, Sr. Demétrio — disse eu, naturalmente estranhando a visita.

Talvez seja necessário explicar aqui por que aquela chegada não me pareceu um fato banal — é que eles, os Meneses, por orgulho ou por suficiência, eram os únicos fregueses que jamais pisavam em minha casa. Mandavam recados, aviavam receitas, pagavam as contas por intermédio dos empregados. Eu os via passar com certa freqüência, quase sempre de preto, distantes e numa atitude desdenhosa. Dizia comigo mesmo: "São os da Chácara" — e contentava-me em inclinar a cabeça num hábito que já se perdia longe através do tempo. Aliás, devo acrescentar ainda que caminhavam quase sempre juntos, o Sr. Valdo e o Sr. Demétrio. Podiam não ser muito unidos lá dentro de casa, tal como corria de boca em boca, mas nas ruas eu os encontrava sempre ao lado um do outro, como se neste mundo não houvesse melhores irmãos. Uma única vez vi o Sr. Demétrio em companhia de sua esposa, Dona Ana, que a voz corrente dizia encerrada obstinadamente em casa, e sempre em prantos pelo erro que cometera contraindo aquele matrimônio. Não era uma Meneses, pertencia a uma família que antigamente morara nos arredores de Vila Velha, e fora aos poucos triturada pela vida sem viço e sem claridade que os da Chácara levavam. Lamentava-se muito a sua sorte, e alguns chegavam mesmo a dizer que não era de todo destituída de beleza, se bem que um tanto sem vida.

— Boa noite — respondeu-me o Sr. Demétrio, e ficou diante de mim, parado, esperando sem dúvida que eu iniciasse a conversa. Não sei que esquisita maldade se apoderou naquele instante do meu coração — ah, aqueles Meneses! — e por puro capricho continuei em silêncio, o dicionário aberto entre as mãos e contemplando sem pestanejar a face que se achava diante de mim. Devo esclarecer desde já que se tratava de um homem mais baixo do que alto, extraordinariamente pálido. Nada em sua fisionomia parecia ter importância, a natureza se encarregara de moldar uma série de traços sem relevo, tudo batido um tanto a esmo, circundando o ponto central, o único que se via desde o início e que atraía imediatamente a atenção: o nariz, grande, quase agressivo, um autêntico nariz da família Meneses. O que mais impressionava nele, repito, era o aspecto doentio, próprio dos seres que vivem à sombra, segregados do mundo. Talvez essa impressão viesse exclusivamente de sua tez macerada, mas a verdade é que se adivinhava imediatamente a criatura de paragens estranhas, o pássaro noturno, que o sol ofusca e revela.

— Queria um conselho do senhor — disse ele afinal, com um suspiro.

Inclinei a cabeça e, depositando o livro sobre a mesa, voltei-me, manifestando assim que me achava à sua disposição. Ele não ousava esclarecer o que o trouxera, talvez preferisse ser inquirido, e fitava-me sempre, os olhos miúdos rolando de um o para outro.

— No que for possível... — adiantei.

Essas simples palavras como que tiveram o dom de arrancar-lhe um peso do espírito. Qualquer coisa se iluminou escassamente em sua fisionomia e ele se inclinou sobre o balcão, num gesto de maior intimidade. Não digo que sua voz fosse totalmente segura, mas foi vencendo aos poucos as dificuldades, até que conseguiu falar com relativa calma. Confessou-me que sua mulher andava naqueles últimos tempos preocupada com um fato estranho que ocorria na Chácara. Disse isto e, depois de um ligeiro devaneio sobre os perigos da vida na roça, deteve-se e examinou-me para ver se eu acreditava no que dizia — e não sei por quê, neste inesperado silêncio que se formou entre nós, tive a intuição de que mentia, e que desejava que eu acreditasse na sua mentira. Ora, para um Meneses vir a minha casa .era necessário que realmente um fato importante ocorresse, e tão mais importante ainda, já que devia ser apresentado aos meus olhos com todas as roupagens de uma rebuscada mentira. Levantei-me, com a atenção agora inteiramente desperta, e debrucei-me ao seu lado sobre o balcão. Deste modo via seu rosto quase junto ao meu, e não poderia me escapar a menor emoção que o alterasse. Essa atenção pareceu desagradá-lo, e ele insistiu novamente, olhando-me pelo canto dos olhos, sobre as ocorrências que deveriam estar preocupando Dona Ana. Ora, todo o mundo em nossa pacata cidade sabia muito bem que a ela não interessavam as coisas da Chácara, e que seu tempo era pouco para lamentar e chorar as desditas de sua vida. Assim, era inadmissível que ela viesse a se interessar por qualquer "fato estranho" que estivesse ocorrendo na casa dos Meneses. No entanto guardei silêncio, e ele devia se ter contentado com este silêncio. De cabeça baixa, folheando à toa as folhas amareladas do meu .dicionário, ouvi a curiosa informação de que um animal desconhecido andava preocupando os moradores da Chácara. Aparentemente não existia nada de sensacional em semelhante notícia, mas a insistência na palavra "desconhecido" e o modo particular como explicou os ruídos e as pegadas que surgiam, trouxeram-me insensivelmente um sorriso aos lábios. Ele percebeu este riso e insistiu na frase com certa veemência.

— Animal desconhecido? — repeti, procurando encontrar-lhe a expressão do olhar.

Então ele fixou-me como se entregasse toda a sua alma:

— Sim, um cão selvagem; um lobo.

Novamente se estabeleceu um pequeno silêncio entre nós; fechei definitivamente o livro e indaguei:

— Neste caso, em que posso lhe ser útil?

Ele estendeu a mão, pousou-a no meu braço — e pelo tremor que a sacudia, compreendi que havíamos atingido o ponto nevrálgico da questão.

— Que me aconselha o senhor? — disse. — Foi para isto, exclusivamente para isto, que.vim aqui.

Devia ser verdade, nada me induzia a suspeitar de uma mentira oculta por trás daquela afirmativa, mas mesmo assim não pude deixar de soltar um riso breve:

— Mas, Sr. Demétrio, eu nada entendo de caçadas! Talvez fosse melhor ter procurado . . .

Ele balançou a cabeça com energia:

— Não! Não! Existem razões para ter vindo à sua procura. Por exemplo, poderia sugerir-me um veneno, ou qualquer coisa violenta que pudesse ser colocada numa armadilha.

— Não se liquidam lobos com venenos — disse, e fiz menção de colocar o dicionário no seu lugar, sobre a caixa registradora.

Ele devia ter apreendido o significado exato do meu gesto, o desinteresse que comportava. Fitou-me, e com olhos tão duros, tão cheios de súbito e agressivo rancor, que não pude deixar de sentir um estremecimento íntimo. Sem dúvida viera ali por outra causa, isto era mais do que certo, e, receando ir direto ao assunto, tergiversava, dava voltas ao problema, esperando que eu o auxiliasse. Via agora que eu não tinha a menor intenção de vir em seu socorro (por que viria? Desde há muito, desde tempos imemoriais, que entre mim e a família Meneses não existia o menor vislumbre de simpatia. . . ) e. fora esta minha atitude que lhe arrancara aquele olhar eloqüente e cheio de cólera. Ao contrário, em vez de facilitar-lhe a confissão (ou .o que quer que fosse . . . ) mudei completamente de assunto, como se a história do lobo jamais houvesse sido pronunciada. Havia um lado da parede da farmácia que se achava em péssimo estado, devido a uma pequena explosão, provocada por um prático sem experiência. Mostrei-lhe a cal arruinada, os tijolos à mostra, acrescentando com um sorriso:

— Tempos duros os que vivemos, Sr. Demétrio! Veja esta parede que carece tanto de reparos! Há dois meses espero conseguir o dinheiro necessário, e até agora não fiz nem sequer encomendar um tijolo!

Diante de mim, imóvel, ele seguia com extrema atenção aquela fingida volubilidade. Provavelmente estaria procurando adivinhar em minhas palavras um sentido oculto, uma insinuação qualquer — e eu confesso que nada mais queriam dizer além do sentido nu que exprimiam, nada, senão que o muro necessitava de conserto, e que eu não possuía o dinheiro necessário para fazê-lo. No entanto, uma inspiração pareceu tocá-lo de repente, vi uma pequena luz se acender em seus olhos, enquanto mais uma vez estendia a mão e tocava-me o braço:

— Talvez possa ajudá-lo, quem sabe? Um tijolo a mais ou a menos, sempre estamos aqui para ajudar os amigos.

Ao ouvir estas palavras, eu me achava de costas: voltei-me devagar e fitei-o bem no fundo dos olhos. Imaginei ver então agitar-se naquelas profundezas alguma coisa brilhante como a esperança — de quê, meu Deus, nem eu próprio o poderia dizer jamais, tão recôndita cintilava diante de mim, tão secreta, tão acrisolada no fundo triste daquela alma. Ele não desviou a vista, ao contrário, ofereceu-se inteiro como quem abre um livro diante de mim, e assim ficamos durante alguns segundos, transitando de um para o outro, invisíveis e rápidos, pensamentos sem nexo, restos de idéias e sentimentos, coisas que o inconsciente apenas trazia. à tona, mas que nos faziam atingir uma importante fase de compreensão.

— Uns tijolos. . . — murmurei É exatamente do que eu preciso.

— Digamos . . . um carro deles? — sugeriu, debruçando-se familiarmente sobre o balcão.

Oh, decerto ele arfava um pouco, e já seus olhos, inteiramente acesos, sondavam-me a face com avidez, buscavam-me a palavra de pronta aquiescência, numa falta de pudor, numa pressa que me escandalizava quase. Ainda assim, balancei a cabeça com ar penalizado:

— Um carro! Digamos três, Sr. Demétrio, não consigo tapar aquele rombo com menos de três carros de tijolos!

Qualquer coisa como um sorriso — um diminuto, um insignificante sorriso de vitória — esboçou-se em sua face pálida. Como eu aguardasse, ele aquiesceu com um movimento de cabeça. Havíamos atingido um terreno de onde não me seria possível recuar, e foi portanto com a mais serena das vozes que voltei ao assunto inicial:

— Um lobo numa chácara é sempre perigoso. Contudo. . .

Repetiu sufocado, como se lhe custasse um esforço imenso aquela palavra:

— Contudo. . .

Dei alguns passos pela loja, procurando mostrar-me o mais natural possível:

— Contudo existem meios práticos de liquidá-los, sem que seja necessário recorrer ao veneno.

— Por exemplo... — sugeriu ele.

Abandonei-o um instante sem resposta, dirigindo-me ao interior da casa. Devo esclarecer que ocupava um modesto aposento dos fundos, mal iluminado e de assoalho periclitante, cuja única vantagem era me oferecer guarida durante a noite, próximo à loja, podendo assim atender algum freguês que surgisse em horas avançadas. Corria no entanto a notícia de que alguns ladrões andavam operando em nossa pequena cidade, e este, sem dúvida, foi o motivo que me levou a guardar na gaveta da cômoda, entre peças de roupa passada, um pequeno revólver. "Não me apanharão desprevenido" — dizia comigo mesmo. Assim, abri a gaveta e tateei entre a roupa, não tardando muito a encontrar o que procurava. Silencioso como me afastara, voltei à farmácia e depositei a arma sobre o balcão.

— Que é isto? — indagou o Sr. Demétrio sem ousar tocar no objeto.

— Oh — exclamei — apenas uma brincadeira. É de manejo fácil, mas liquida qualquer lobo.

Ele pareceu hesitar, fixando sempre a arma, sem coragem para tocá-la. Não sei que confusos pensamentos se digladiavam no seu íntimo — sei apenas que em certo momento, estendendo devagar a mão, tomou o revólver e examinou-o erguido quase à altura dos olhos.

— É uma arma feminina — disse, fazendo cintilar as incrustações de madrepérola que bordavam o seu cabo.

— Pertenceu à minha mãe — esclareci.

Ele rodava a arma, e já agora eu podia perceber que a satisfação brilhava claramente em seus olhos.

— Funciona bem? — indagou, apontando o cano para o fundo da loja.

— Perfeitamente.

E tentando desvanecer seus últimos escrúpulos, acrescentei:

- É uma arma como hoje não se fabrica mais.

A partir desse ponto, podia se dizer que ele estava definitivamente conquistado. Vendo-o, eu indagava de mim mesmo se aquele Meneses não teria vindo à minha casa precisamente para obter a arma — eles, que eram tão ricos em recursos e estratagemas acaso poderiam deixar de ter em casa um revólver idêntico àquele? Em que circunstâncias o utilizariam, sob que pretexto comprometeriam um outro na ação que provavelmente estariam prestes a executar? E se se tratasse na verdade de um lobo — a idéia era quase ingênua... — por que não liquidá-lo de um modo mais simples, com uma armadilha, por exemplo? De qualquer modo, ergui os ombros — o negócio me convinha.

O Sr. Demétrio experimentou ainda o gatilho, retirou o tambor, chegou a esfregar o cano na manga do paletó — e era mais do que evidente que tudo aquilo lhe causava um secreto, um intenso prazer, como se desde já, da obscuridade da farmácia, sentisse seus inimigos trucidados. Parou afinal o exame e fitou-me — e posso jurar que só um sentimento muito fundo, talvez antigo, mas imoral e cheio de impiedade, desenhou o sorriso que aflorou à sua face — ah, um sorriso de entendimento, de alguém que se sente perfeitamente seguro do valor da transação que acaba de realizar. Ao mesmo tempo colocou a mão sobre o meu braço:

— Obrigado, amigo. Creio que não existe mesmo melhor meio para liquidar lobos. . .

Sorri também, despedimo-nos. O Sr. Demétrio encaminhou-se para a rua, apertando o revólver no fundo do bolso; eu balançando a cabeça — os mistérios da natureza humana — voltei ao meu dicionário.

Fonte:
CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. RJ: Nova Fronteira, 1979.

Literatura Brasileira (Parte 2 = O Quinhentismo)



Esta expressão é a denominação genérica de todas as manifestações literárias ocorridas no Brasil durante o século XVI, correspondendo à introdução da cultura européia em terras brasileiras. Não se pode falar em uma literatura "do" Brasil, como característica do país naquele período, mas sim em literatura "no" Brasil - uma literatura ligada ao Brasil, mas que denota as ambições e as intenções do homem europeu.

No Quinhentismo, o que se demonstrava era o momento histórico vivido pela Península Ibérica, que abrangia uma literatura informativa e uma literatura dos jesuítas, como principais manifestações literárias no século XVI. Quem produzia literatura naquele período estava com os olhos voltados para as riquezas materiais (ouro, prata, ferro, madeira, etc.), enquanto a literatura dos jesuítas se preocupava com o trabalho de catequese.

Com exceção da carta de Pero Vaz de Caminha, considerada o primeiro documento da literatura no Brasil, as principais crônicas da literatura informativa datam da segunda metade do século XVI, fato compreensível, já que a colonização só pode ser contada a partir de 1530. A literatura jesuítica, por seu lado, também caracteriza o final do Quinhentismo, tendo esses religiosos pisado o solo brasileiro somente em 1549.

A literatura informativa, também chamada de literatura dos viajantes ou dos cronistas, reflexo das grandes navegações, empenha-se em fazer um levantamento da terra nova, de sua flora, fauna, de sua gente. É, portanto, uma literatura meramente descritiva e, como tal, sem grande valor literário.

A principal característica dessa manifestação é a exaltação da terra, resultante do assombro do europeu que vinha de um mundo temperado e se defrontava com o exotismo e a exuberância de um mundo tropical. Com relação à linguagem, o louvor à terra aparece no uso exagerado de adjetivos, quase sempre empregados no superlativo (belo é belíssimo, lindo é lindíssimo etc.).

O melhor exemplo da escola quinhentista brasileira é Pero Vaz de Caminha. Sua "Carta ao El Rei Dom Manuel sobre o achamento do Brasil", além do inestimável valor histórico, é um trabalho de bom nível literário. O texto da carta mostra claramente o duplo objetivo que, segundo Caminha, impulsionava os portugueses para as aventuras marítimas, isto é, a conquista dos bens materiais e a dilatação da fé cristã.

Literatura jesuíta - Conseqüência da contra-reforma, a principal preocupação dos jesuítas era o trabalho de catequese, objetivo que determinou toda a sua produção literária, tanto na poesia quanto no teatro. Mesmo assim, do ponto de vista estético, foi a melhor produção literária do Quinhentismo brasileiro. Além da poesia de devoção, os jesuítas cultivaram o teatro de caráter pedagógico, baseado em trechos bíblicos, e as cartas que informavam aos superiores na Europa sobre o andamento dos trabalhos na colônia.

Não se pode comentar, no entanto, a literatura dos jesuítas sem referências ao que o padre José de Anchieta representa para o Quinhentismo brasileiro. Chamado pelos índios de "Grande Piahy" (supremo pajé branco), Anchieta veio para o Brasil em 1553 e, no ano seguinte, fundou um colégio no planalto paulista, a partir do qual surgiu a cidade de São Paulo.

Ao realizar um exaustivo trabalho de catequese, José de Anchieta deixou uma fabulosa herança literária: a primeira gramática do tupi-guarani, insuperável cartilha para o ensino da língua dos nativos; várias poesias no estilo do verso medieval; e diversos autos, segundo o modelo deixado pelo poeta português Gil Vicente, que agrega à moral religiosa católica os costumes dos indígenas, sempre com a preocupação de caracterizar os extremos, como o bem e o mal, o anjo e o diabo.

Fonte:
http://www.vestibular1.com.br