terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Menotti Del Picchia (Juca Mulato)


Juca Mulato nasceu em Itapira, cidade da zona mogiana do Estado de São Paulo, em 1917. Seu pai, recém-formado em Direito e fazendeiro nessa cidade, acabara de publicar na Capital paulista seu poema Moisés. Exercia agora uma vaga advocacia numa terra quase sem demandas e dirigia o jornal local, Cidade de Itapira, em cujos prelos imprimiu o primeiro exemplar do seu poema.

Foi no ambiente da fazenda Santa Catarina da Capoeira do Meio e na paz e no silêncio do parque que se debruça sobre o Cubatão, bairro no qual serpeja o Rio da Penha, em cujas margens bivacavam ciganos, que a imagem do caboclo do Mato e sua alma lírica empolgaram o advogado-poeta.

E a Filha da Patroa ?

Essa, ainda hoje, nascerá no coração de cada leitor do poema quando haja atingido a idade do amor. É uma idéia e um sonho. Continuará a lembrar, vida afora, a criatura que teria sido o complemento do seu ser, realização sempre sonhada e impossível de um perfeito amor ideal.

Compõe o poema o Céu e a Terra. Todas as coisas telúricas e celestes, o chão que abriga o homem e o alimenta e o que há no mistério do azul quando ele olha para as estrelas. Ali descobre uma nova e mágica dimensão do universo: os animais, como o prudente e confidente Pigarço e os lerdos bois pensativos e decorativos; o galo, clarim do dia que ilumina as coisas para a vida e oferece as maravilhas do mundo ao homem que acorda.

A fala do "Juca" é coloquial e divina. Sai da boca do homem e vem da conexão mágica que ele tem com as coisas. É que o universo é um eterno diálogo de vozes mudas. Cabe-lhe comunicá-las às demais criaturas. Ele é o intérprete da formidável comunhão espiritual que nos envolve numa harmoniosa coesão de vivências e mistérios regida pela fatalidade dessa divina força que é o amor ("...Che muove il sole e l`altre stelle...")
_

GERMINAL

1
Nuvens voam pelo ar como bandos de garças,
Artista boêmio, o sol, mescla na cordilheira
pinceladas esparsas
de ouro fosco. Num mastro, apruma-se a bandeira
de São João, desfraldando o seu alvo losango.

Juca Mulato cisma. A sonolência vence-o

Vem, na tarde que expira e na voz de um curiango,
o narcótico do ar parado, esse veneno
que há no ventre da treva e na alma do silêncio.
Um sorriso ilumina o seu rosto moreno.

No piquete relincha um poldro; um galo álacre
tatala a asa triunfal, ergue a crista de lacre,
clarina a recolher entre varas de cerdos e
mexem-se ruivos bois processionais e lerdos
e, num magote escuro, a manada se abisma na treva.

Anoiteceu.
Juca Mulato cisma.

2

Como se sente bem recostado no chão!
Ele é como uma pedra, é como a correnteza,
uma coisa qualquer dentro da natureza,
amalgamada ao mesmo anseio, ao mesmo amplexo,
a esse desejo de viver grande e complexo
que tudo abarca numa força de coesão.
Compreende em tudo ambições novas e felizes,
tem desejo até de rebrotar raízes, deitar ramas pelo ar,
sorver, junto da planta, e sobre a mesma leiva,
o mesmo anseio de subir, a mesma seiva,
romper em brotos, florescer, frutificar!

3

"Que delícia viver! Sentir entre os protervos
renovos se escoar uma seiva alma viva
na tenra carne a remoçar o corpo moço..."

E um prazer bestial lhe encrespa a carne e os nervos;
afla a narina; o peito arqueja; uma lasciva
onda de sangue lhe incha as veias do pescoço...

Ei-lo, supino e só, na noite vasta. Um cheiro
acre de feno lhe entorpece o corpo langue
e, no torso trigueiro,
enroscam seus anéis serpentes de desejos
e um pubescente ansiar de abraços e de beijos
incendeia-lhe a pele e estua-lhe no sangue.

Juca Mulato cisma.
Escuta a voz em couro
dos batráquios, no açude, os gritos lancinantes
do eterno amor dos charcos.

É ágil como um poldro e forte como um touro;
no equilíbrio viril dos seus membros possantes
há audácias de coluna e elegância dos barcos.

O crescente, recurvo, a treva em brilho frange
e, na carne da noite, imerge-se e se abisma
como num peito etíope a ponta de uma alfange.
Juca Mulato cisma...
A natureza cisma.

4

Aflora-lhe no imo um sonho que braceja;
estira o braço, enrija os músculos, boceja,
supino fita o céu e diz em voz submissa:
"Que tens, Juca Mulato ?..." e, rebolcado na erva,
sentindo esse cansaço irritante que o enerva
deixa-se, mudo e só, quebrado de preguiça.

Cansado ele ? E por quê ? Não fôra essa jornada
a mesma luta, palmo a palmo, com a enxada
a suster no café as invasões da aninga ?
E, como de costume, um cálice de pinga,
um cigarro de palha, uma jantinha à toa,
um olhar dirigido à filha da patroa ?

Juca Mulato pensa: a vida era-lhe um nada...
Uns alqueires de chão, o cabo de uma enxada,
um cavalo pigarço, uma pinga da boa,
o cafezal verdoengo, o sol quente e inclemente...

Nessa noite, porém, parece-lhe mais quente
o olhar indiferente
da filha da patroa...

"Vamos, Juca Mulato, estás doido ?
Entretanto, tem a noite lunar arrepios de susto,
parece respirar a fronde de um arbusto.
O ar é como um bafo, a água corrente, um pranto.
Tudo cria uma vida espiritual violenta.
O ar morno lhe fala, o aroma suave o tenta...
"Que diabo !" Volve aos céus as pupilas, à toa,
e vê, na lua, o olhar da filha da patroa...
Olha a mata: lá está! O horizonte lho esboça,
pressente-o em cada moita, enxerga-o em cada poça
e ele vibra, ele sonha e ele anseia, impotente,
esse olhar que passou, longínquo e indiferente!

5

Juca Mulato cisma. Olha a lua e estremece.
Dentro dele um desejo abre-se em flor e cresce
e ele pensa, ao sentir esses sonhos ignotos,
que a alma é como uma planta, os sonhos como os brotos,
vão rebentando nela e se abrindo em floradas...

Franjam de ouro, o ocidente, as chamas das queimadas,
Mal se pode conter de inquieto e satisfeito.
Advinha que tem qualquer coisa no peito
e às promessas do amor a alma escancara ansiado
como os áureos portais de um palácio encantado!...

Mas a mágoa que ronda a alegria de perto
entra no coração sempre que o encontra aberto...

Juca Mulato sofre... Esse olhar calmo e doce
fulgiu-lhe como a luz, como a luz apagou-se.
Feliz até então, tinha a alma adormecida....
Esse olhar que o fitou, o acordou para a vida!
A luz que nele viu deu-lhe a dor que agora o assombra,
como o sol que traz a luz e, depois, deixa a sombra...

6

E, na noite estival, arrepiadas, as plantas
tinham na negra fronde, umas roucas gargantas
bradando, sob o luar opalino, de chofre:
"Sofre, Juca Mulato, é tua sina, sofre...
Fechar ao mal de amor nossa alma adormecida
é dormir sem sonhar, é viver sem ter vida...
Ter, a um sonho de amor, o coração sujeito
é o mesmo que cravar uma faca no peito.
Esta vida é um punhal com dois gumes fatais:
não amar é sofrer; amar é sofrer mais"!

7

E, despertando à Vida esse caboclo rude,
alma cheia de abrolhos,
notou, na imensa dor de quem se desilude
que, desse olhar que amou, fugitivo e sereno,
só lhe restara no lábio um travo de veneno,
uma chaga no peito e lágrimas nos olhos!

A SERENATA

1

Canta, Juca Mulato...
Ele pega na viola:
seu dedo nervoso os machetes esfrola.
Solta um gemido o aço vibrado
como um grito de dor de um peito esfaqueado.
É tão suave a canção, tão dolente e tão langue
que cada nota lembra uma gota de sangue
a fluir e a pingar dos lábios de uma chaga.
É noite. A brisa sopra uma carícia vaga.

A turba espera. O terreiro tem brilhos
quando, de chapa, a lua esplende nos ladrilhos
e, sentindo a paixão estuar-lhe a garganta,
Juca Mulato canta:
"Veio coleante, essa mágoa
arrastas triste e submisso;
também choro, veio dágua,
sem que ninguém dê por isso...

Saltas nos seixos de chofre.
Choras. No mundo inclemente,
só não chora quem não sofre
só não sofre quem não sente...

Procuras dentre os abrolhos
ver o céu que astros povoaram.
Eu também procuro uns olhos
que nunca me procuraram...

Os céus não vêem tua mágoa,
nem estas ela advinha...
Veio d’água, veio d’água,
Tua sorte é igual à minha.

Ora em bolhas vãs tu medras,
eu em sonhos bem mesquinhos,
Teu leito é cheio de pedras,
minha alma é cheia de espinhos...

Se uma rama se desfolha
sobre teu dorso e resvala,
corres doido atrás da folha
sem poder nunca alcançá-la.

Às vezes, também, risonho,
um sonho minh’alma junca,
Corro doido atrás do sonho
Sem poder tocá-lo nunca.

Ventura... doida corrida
de uma folha sobre um veio.
Folha... Esperança perdida
de um bem que nunca me veio.

Assim vou, sangrando mágoa
e doido, para onde for
veio d’água, veio d’água
corro atrás da minha dor!"

ALMA ALHEIA

1

Que tens, Juca Mulato ?
Uma tristeza mansa
embaça-lhe o fulgor dos olhos de criança.
Ele é outro... Um langor anda a abrasar-lhe a pele.
Não sabe definir o que há de novo nele.
Fuma e segue pelo ar uma espiral que esvoaça,
pensa que seu destino é igual a essa fumaça...
"A vida é mesmo assim..." ele cisma tristonho.
"Sai do fogo da dor a fumaça do sonho"...

Da cocheira, um nitrir, de intervalo a intervalo,
vibra no ar... É o pigarço. Esse pobre cavalo
anda esquecido e há muito que, sozinho,
sente a falta que faz o calor de um carinho.
Juca Mulato todo o dia vinha vê-lo...
Afagava-lhe o dorso, acamava-lhe o pelo,
e ele, baixando, quieto, as pálpebras vermelhas,
nitrindo e resfolgando, espetava as orelhas...
Juca Mulato, então, numa voz doce e calma,
dizia-lhe baixinho o que ele tinha n’alma.
Coisa de pouca monta: umas fanfarronadas,
uns receios pueris, façanhas de caçadas,
desafios na viola em noites de luar;
coisas que tinha pejo até de lhe contar,
que sussurrava a custo, onde, por entre os dentes,
a gente advinhava umas frases ardentes:
bocas mordendo um seio em que os bicos quentinhos
tinham a cor da rosa e a ponta dos espinhos...
Ele ria e a risada espoucava-lhe aos pinchos
e o pigarço sisudo explodia em relinchos
que diriam, talvez, traduzido em frases:
"Toma tento, Mulato! Olha bem o que fazes..."

Juca afagando-o, então, murmurava contente:
"Pigarço, você tem uma alma como a gente!"

Hoje, anda abandonado e pesa-lhe o abandono.
Há no seu manso olhar saudades de seu dono.
Quem não vê nesse olhar úmido e cor de enxofre
que esse cavalo sofre ?

2

Vê uma ave voar na tarde calma e suave,
vem-lhe o desejo absurdo e doido de ser ave.
Quando junto a uma fonte acaso se debruça,
se a corrente soluça, ele também soluça...
Depois, envergonhado, encolhe-se, procura
no seu imo o porquê dessa vaga ternura.
Até vendo uma flor, comove-se, suspira...
"Juca: toma cuidado... Estás ficando gira...
Deixa de te arrastar, como um doido qualquer,
atrás da tentação de uns olhos de mulher!"

E resolve, consigo, ir altivo e insolente,
fingir que não padece e mostrar que não sente,
montar o seu pigarço, atacar a restinga
às foiçadas, beber um cálice de pinga
na venda do caminho e, entre parvos caipiras,
de mistura, contar três ou quatro mentiras
onde lampeja a faca, onde, aos uivos e aos brados
põe em fuga, triunfante, um bando de soldados!
Revive a ilusão! Ele é outro! Salvou-se!

Insidioso, de novo, um olhar meigo e doce
o alucina, o subjuga, o domina, o amolece...

E nem sabe porque humilhado obedece
à sugestão da luz que cintila naquele
lânguido e triste olhar que nunca olhou para ele.

FASCINAÇÃO

Tudo ama!
As estrelas no azul, os insetos na lama,
a luz, a treva, o céu, a terra, tudo,
num tumultuoso amor, num amor quieto e mudo,
tudo ama! tudo ama!

Há amor na alucinada
fascinação do abismo,
amor paradoxal, humano e forte,
que se traduz nas febres do sadismo,
nessa atração perpétua para o Nada,
nessa corrida doida para a Morte.

Por isso, quando as lianas
em lascívias florais cercam de abraços
o tronco hirsuto e grosso,
têm, no amplexo mortal, crueldades humanas.
Há no erótico ardor de enlaçá-lo, abraçá-lo,
a assassina violência de dois braços
crispados num pescoço
atenazando-o para estrangulá-lo!

É que o amor quer a morte. Num momento
resume a vida, os loucos entusiasmos
dos supremos espasmos...
Nesse furor que o invade,
tem a volúpia da ferocidade,
tem o delírio do aniquilamento!

É por isso que vês, por tudo
uma luta de morte, um desespero mudo:
a insídia da raiz que mina a terra e a esgota,
o caule que ergue o fuste, a rama, em sobressalto,
agitando pelo ar a própria dor ignota,
no torturante amor do mais puro e mais alto!

2

E, na noite estival,
enchendo o Espaço e o Tempo, a Luz e a Treva,
o turbilhão fantástico se eleva
do amor UniversaL.

Tudo ama!
As estrelas no azul, os insetos na lama,
a luz, a treva, o céu, a terra, tudo,
num tumultuoso amor, num amor quieto e mudo,
tudo ama! Tudo ama!...

3

Juca Mulato freme. Imerge os olhos entre
as estrelas curiosas.

Não sabe que anda o amor nos espaços profundos
a fecundar o ventre
das próprias nebulosas
na eterna gestação de novos mundos...

Ele é a matriz da vida: multiplica
seres e coisas, numa força eterna,
cria o verme, animais que andam de rastros.
Mata e ressurge, estiola e frutifica,
e, pelo espaço rútilo, governa
a prodigiosa rotação dos astros!

E a vertigem do amor, fascinadora,
tudo arrasta, fantástica, nos braços
e a terra que palpita, canta e chora,
ora imersa na treva ora imersa na aurora,
leva através do Tempo e dos Espaços...

Acendendo no olhar um lampejo divino,
Juca Mulato cede à vertigem que o enlaça
e brada num transporte:
"Arrasta-me também, no turbilhão que passa!
Leva-me ao teu destino,
Amor que vens para a Vida e que vais para a Morte!"

LAMENTAÇÃO

1

"Amor?
Receios, desejos,
promessas de paraísos,
depois sonhos, depois risos,
depois beijos!

Depois...
E depois, amada?
Depois dores sem remédio,
depois pranto, depois tédio,
depois... nada!"

2

"Também como esse bosque eu tive outrora
na alma um bosque cerrado de emoções.
As palmeiras das minhas ilusões
iam levando o fuste espaço afora.

Floriam sonhos; era uma pletora
de crenças, de desejos, de ambições...
Não havia por todos os sertões
mais luxuriante e mais violenta flora.

Ai! Bosque real, é o tempo das queimadas!...
É agosto, é agosto! O fogo arde o que existe
em turbilhões sinistros e medonhos.

Ai de nós!... Somos almas desgraçadas,
pois na luz de um olhar lânguido e triste
também ardeu o bosque dos meus sonhos..."

3

"Água cantante, soluçante, esse gemente
marulho triste, quantas tristes cismas trás...

E fica incerta, ao ouvir-te a voz, a dor da gente,
se vais cantando por ansiar o que há na frente
ou soluçando pelo que deixaste atrás...

Água cantante, água estuante, é singular
a semelhança em que te iguala à minha sorte:
vais para a frente e nunca mais hás de voltar,
vens da montanha e vais correndo para o mar,
venho da vida e vou correndo para a morte.

Água cantante, ai, como tu, esta alma embrenho
nas incertezas de caminhos que não sei...
E, na inconstância em que me agito, só obtenho
essa ânsia imensa de deixar o que já tenho,
depois a dor de não ter mais o que deixei!"

4

Tenho uma santa em casa; o seu olhar encanta.
O olhar dela é, porém, igualzinho ao da santa.

Quando rezo, nem sei, é como o olhar da corça,
tem, na própria fraqueza, a sua própria força.

Quando o fito minha alma enche-se da incerteza
que há na canoa sem dono á flor da correnteza.

Ele é tal qual o sol, indiferente e mudo,
sem saber quem aclara anda aclarando tudo...

Mas no olhar que o fitou brilha,
constantemente,
um reflexo de luz ambicionada e ausente.

Eu nunca vi o mar, mas vendo esse olhar penso
num barco que se afasta onde se agita um lenço...

Ou no doido terror que, em meio de procelas,
há num casco sem leme ou num barco sem velas...

Creio ver o meu vulto em teus olhos, tão vago
como as sombras que espelham a água morta
de um lago.
Eu bem sei que, tal qual na líquida planície,
o meu vulto não vai além da superfície.

Fica à tona, a boiar nessa pupila absorta
como na água parada alguma folha morta..."

5

"Pigarço: a dor me aquebranta...
Quando lembro o olhar que adoro
e que nunca esquecerei,
ah! Sinto um nó na garganta
e choro, pigarço, choro,
eu que até chorar não sei...

Quando, a trote, ela nos via,
debruçada na janela,
nós levávamos, após,
com o pó que do chão se erguia
o nosso olhar cheio dela
e o dela cheio de nós...

Então, pouco me importava
que seu olhar nos seguisse...
Galopava-se a valer...
Quando esse olhar eu olhava
era como se não o visse
tanto o olhava sem ver!

Hoje pago essa ousadia...
Ela os olhos de mi tolhe.
Queixar-me disso por que ?
Antes era eu que não o via,
agora, por mais que me olhe,
é ela que não me vê.

Sou um caboclo do mato
que ronda a luz de uma estrela...
Já viste uma coisa assim?
E o pobre Juca Mulato
morrerá por causa dela
e tu, por causa de mim...

Eu da luz desse olhar garço,
tu da dor que te machuca,
morreremos e, depois,
eu fico sem meu pigarço,
meu pigarço sem seu Juca
e o olhar dela... sem nós dois!"

PRESSÁGIOS

1

Juca Mulato sofre. Em cismas se aquebranta.
Uma viola geme, uma voz triste canta:

"Antes de amar eu dizia:
para cortar na raiz
esta constante agonia
preciso amar algum dia,
amando serei feliz".

"Amei... desventura minha!
Quis curar-me e piorei.
O amor só mágoas continha
e aos tormentos que já tinha,
novos tormentos juntei".

2

A cantiga, a gemer, nos ecos agoniza.

A vaga sugestão dessa angústia imprecisa
contamina-lhe a dor que o tortura sem pausa.

Juca sofre... Por que? Não advinha a causa.
Só sabe que, em seu peito, o olhar amado e langue,
deixa um rastro de luz como um rastro de sangue...

Tornou-o, pouco a pouco, a imensa dor que o oprime,
pálido como a cera e magro como um vime.
Tem olheiras cercando os grandes olhos lassos
cor do manto que traz Nosso Senhor dos Passos
quando carrega a cruz na procissão das Dores
no mais tristonho andor de todos os andores...
Mas por que sofre assim? Talvez mesmo ande nisso
artimanhas do Demo e coisas de feitiço...
Precisa, sem demora, ir uma sexta-feira,
à tapera do Roque, abrir sua alma inteira,
contar-lhe o mal que sofre e do peito arrancar
essa mágoa, essa luz, esse olhar!

A MANDIGA

1

Juca Mulato apeia.
É macabro o pardieiro.
Junto à porta cochila o negro feiticeiro.
A pele molambenta o esqueleto disfarça.
Há uma faísca má nessa pupila garça,
quieta, dormente, como as águas estagnadas.

Fuma: a fumaça o envolve em curvas baforadas.
Cuspinha; coça a perna onde a sarna esfarinha
a pele; pachorrento inda uma vez cuspinha.

Com o seu sinistro olhar o feiticeiro mede-o.
- Olha, Roque, você me vai dar um remédio.
Eu quero me curar do mal que me atormenta.

- Tenho ramos de arruda, urtigas, água benta,
uma infusão que cura a espinhela e a maleita,
figas para evitar tudo que é coisa feita...
Com uma agulha e um cabelo, enrolado a capricho,
à mulher sem amor faço criar rabicho.

Olho um rasto, depois de rezar um bocado
vou direitinho atrás do cavalo roubado.
Com umas ervas que sei, eu faço, de repente,
do caiçara mais mole, um caboclo valente!
Dize, Juca Mulato, o mal que te tortura.
- Roque, eu mesmo não sei de este mal tem cura...

- Sei rezas com que venço a qualquer mau olhado,
breves para deixar todo o corpo fechado.
Não há faca que o vare e nem ponta de espinho:
fica o corpo tal qual o corpo do Dioguinho...
Mas de onde vem o mal que tanto de abateu?

- Ele vem de um olhar que nunca será meu...
Como está para o sol a luz morta da estrela
a luz do próprio sol está para o olhar dela...

Parece o seu fulgor quando o fito direito,
uma faca que alguém enterra no meu peito,
veneno que se bebe em rútilos cristais
e, sabendo que mata, eu quero beber mais...

- Eu já compreendo o mal que teu peito povoa.
Dize Juca Mulato, de quem é esse olhar?
- Da filha da patroa.

- Juca Mulato! Esquece o olhar inatingível!
Não há cura, ai de ti, para o amor impossível.
Arranco a lepra do corpo, estirpo da alma o tédio,
só para o mal de amor nunca encontrei remédio...
Como queres possuir o límpido olhar dela ?
Tu és qual um sapo a querer uma estrela...

A peçonha da cobra eu curo... Quem souber
cure o veneno que há no olhar de uma mulher!
Vencendo o teu amor, tu vences teu tormento.
Isso conseguirás só pelo esquecimento.
Esquecer um amor dói tanto que parece
que a gente vai matando um filho que estremece
ouvindo, com terror, no peito, este estribilho:
"Tu não sabes, cruel, que matas o teu filho?"

E, quando se estrangula, aos seus gemidos loucos,
a gente quer que viva e vai matando aos poucos!
Foge! Arrasta contigo essa tortura imensa
que o remédio é pior do que a própria doença,
pois, para se curar um amor tal qual esse...

- Que me resta fazer ?
- Juca Mulato: esquece!

A Voz das Coisas
E Juca ouviu a voz das coisas. Era um brado:
"Queres tu nos deixar, filho desnaturado?"

E um cedro o escarneceu: "Tu não sabes, perverso,
que foi de um galho meu que fizeram teu berço?

E a torrente que ia rolar no abismo:
"Juca, fui eu quem deu a água para o teu batismo".

Uma estrela a fulgir, disse da etérea altura:
"Fui eu que iluminei a tua choça escura
no dia em que nasceste. Eras franzino e doente.
E teu pai te abraçou chorando de contente...
- Será doutor! - a mãe disse, e teu pai, sensato:
- Nosso filho será um caboclo do mato,
forte como a peroba e livre como o vento! -
Desde então foste nosso e, desde esse momento,
nós te amamos seguindo o teu incerto trilho
com carinhos de mãe que defende seu filho!"

Juca olhou a floresta: os ramos, nos espaços,
pareciam querer apertá-lo entre os braços!

"Filho da mata, vem! Não fomos nós, ó Juca,
o arco do teu bodoque, as grades da arapuca,
o varejão do barco e essa lenha sequinha
que de noite estalou no fogo da cozinha?
Depois, homem já feito, a tua mão ansiada
não fez, de um galho tosco, um cabo para a enxada?"

"Não vás" - lhe disse o azul - "Os meus astros ideais
num forasteiro céu tu nunca os verás mais.
Hostis, ao teu olhar, estrelas ignoradas
hão de relampejar como pontas de espadas.
Suas irmãs daqui, em vão, ansiosas, logo,
irão te procurar com seus olhos de fogo...
Calcula, agora, a dor destas pobres estrelas
correndo atrás de quem anda fugindo delas..."

Juca olhou para a terra e a terra muda e fria
pela voz do silêncio ela também dizia:

"Juca Mulato, és meu! Não fujas que eu te sigo.
Onde estejam teus pés, eu estarei contigo.
Tudo é nada, ilusão! Por sobre toda a esfera
há uma cova que se abre, há meu ventre que espera.

Nesse ventre há uma noite escura e ilimitada,
e nela o mesmo sono e nele o mesmo nada.
Por isso o que te vale ir, fugitivo e a esmo,
buscar a mesma dor que trazes em ti mesmo ?
Tu queres esquecer? Não fujas ao tormento.
Só por meio da dor se alcança o esquecimento.
Não vás. Aqui serão teus dias mais serenos,
que, na terra natal, a própria dor dói menos...
E fica que é melhor morrer (ai, bem sei eu!)
no pedaço de chão em que a gente nasceu!"

RESSURREIÇÃO

1

Coqueiro! Eu te compreendo o sonho inatingível:
queres subir ao céu, mas prende-te a raiz...
O destino que tens de querer o impossível
é igual a este meu de querer ser feliz.

Por mais que bebas a seiva e que as forças recolhas,
que os verdes braços teus ergas aos céus risonhos,
no último esforço vão, caem-te murchas as folhas
e a mim, murchos, os sonhos!
Ai! coqueiro do mato! Ai! coqueiro do mato!
Em vão tentas os céus escalar na investida...
Tua sorte é tal qual a de Juca Mulato...
Ai! tu sempre serás um coqueiro do mato...
Ai! Eu sempre serei infeliz nesta vida!"

2

"Ser feliz! Ser feliz estava em mim, Senhora...
este sonho que ergui, o poderia por
onde quisesse, longe até da minha dor,
em um lugar qualquer onde a ventura mora;

onde, quando o buscasse, o encontrasse a toda hora,
tivesse-o em minhas mãos... Mas, louco sonhador,
eu coloquei muito alto o meu sonho de amor...
Guardei-o em vosso olhar e me arrependo agora.
O homem foi sempre assim... Em sua ingenuidade
teme levar consigo o próprio sonho, a esmo,
e oculta-o sem saber se depois o achará...

E quando vai buscar sua felicidade,
ele, que poderia encontrá-la em si mesmo,
escondeu-a tão bem que nem sabe onde está!"

3

E Mulato parou.
Do alto daquela serra,
cismando, o seu olhar era vago e tristonho:
"Se minha alma surgiu para a glória do sonho,
o meu braço nasceu para a faina da terra."

Reviu o cafezal, as plantas alinhadas,
todo o heróico labor que se agita na empreita,
palpitou na esperança imensa das floradas,
pressentiu a fartura enorme da colheita...

Consolou-se depois: "O Senhor jamais erra...
Vai! Esquece a emoção que na alma tumultua.
Juca Mulato volta outra vez para a terra,
procura o teu amor numa alma irmã da tua.

Esquece calmo e forte. O destino que impera
um recíproco amor às almas todas deu.
Em vez de desejar o olhar que te exaspera,
procura esse outro olhar que te espreita e te espera,
que há, por certo, um olhar que espera pelo teu..."

Fonte:
PICCHIA, Menotti Del. Juca Mulato. 1917.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Menotti del Picchia (Nasce o Escritor)


Há dias, porém, estando no Rádio City, de Nova York, gozando o esplendor do espetáculo mais célebre do mundo com suas cem estandardizadas "girls" de pernas perfeitas realizando, sem erros, a matemática de suas danças ginásticas, veio-me à cabeça o saudoso teatrinho de Itapira. A emoção me tomou. Comparei o valor artístico técnico daquela faustosa apoteose de belezas e de luzes com a escura ribalta interiorana onde uma companhia andeja de comediantes italianos representava, para uma parva platéia de caipiras, nada menos nada mais que o Hamlet de Shakespeare. Eu estava lá, anelante. Adivinhava, mais que compreendia, que o ator, encarnando Hamlet, realizava um sonho.

Ator fracassado, ficara-lhe na alma o anseio de participar do drama do príncipe torvo. Avaliava a carga passional que animava esse personagem imortal e ele também queria, fosse como fosse, viver o instante dramático do filho humilhado e espoliado punindo a mãe adúltera e o padrasto assassino, usurpador do trono. Havia uma grandeza épica naquele artista frustrado dando todo seu gênio interior à sua realização histriônica diante daqueles jecas de boca mole fascinados pelos trajes de máscara dos comparsas e, sobretudo, pelo lucilar das espadas prateadas e frias.

Raramente me era dado sentir tanto e tão bem a arte mercê do amor que por ela manifestava aquele mambembe das ribaltas. Que eram os jogos acrobáticos daquelas duzentas pernas impecáveis na simetria dos movimentos e subversivas na insinuação do sexo, diante do Hamlet itapirense ele e o gênio de Shakespeare sozinhos no lusco-fusco daquela ribalta alumiada por lampiões de querosene na qual acordava do seu maravilhoso transe com as palmas finais dos seus cômicos assistentes?

Todas essas emoções me fatalizavam à sorte de artista. Não havia escapar. Eu me comovia demais com esse mundo rico de humanidade. Seus panoramas ficavam, cromáticos, fascinantes na minha memória e os personagens me pediam uma linguagem pela qual pudessem transladar para outros as emoções que me haviam tão intimamente comunicado. Foi então que comecei a rabiscar as primeiras páginas de prosa e de verso.

Já lia e muito. Todos os livros de papai ia devorando. Michaud, Flammarion, Alexandre Dumas, Dante, Tasso, Ariosto. mistura de história, vulgarização científica, ficção, poemas, o que me caísse diante das pupilas, de Pinocchio a D. Quixote, do drama épico das cruzadas às aventuras do Conde de Monte Cristo tudo ia devorando à tarde e à noite. Comecei, então, a escrever um terrível romance de cordel resíduos mentais das aventuras de d’Artagnan e dos personagens de Ponson du Terrail. Era uma história complicada na qual certamente entrava meu tio-avô capitão, pois parte da trama se passava nas batalhas napoleônicas. Mamãe era a única leitora dos sucessivos cadernos que lhe apresentava. Paciente, ela se emaranhava nas aventuras bélicas dos meus personagens entretida mais pela riqueza episódica do que pelo sentimento, porquanto nessa moxinifada romântica não entrava mulher.

De certa forma, mesmo castamente, eu estava fora do problema do amor e do sexo.

Os primeiros versos que escrevi foram polêmicos e satíricos. Eu fizera alguma diabrura e mamãe fechou-me num quarto. A certa altura, pela frincha da porta, reclamei um lanche. Estava com fome. A travessura deveria ter sido séria, pois mamãe, sempre tão frouxa pela sua ternura, continuava policial e severa. Então peguei num pedaço de papel rasgado ao caderno e escrevi.

"Esta é uma coisa desumana.

Mamãe me nega até uma banana."

Fiz escorregar o poema pela frincha da porta e pouco depois esta se abria. Esperava-me o lanche: bananas com queijo. Descobri, então, uma das utilidades múltiplas da poesia.

Fontes:
PICCHIA, Menotti Del. A longa viagem: memórias. SP: Martins Editora, 1970.
Imagem = montagem por José Feldman com imagens obtidas na internet - (ovo = http://www.canstockphoto.com.br/ e Menotti del Picchia em http://www.mundocultural.com.br/)

Menotti Del Picchia (1892-1961)


Paulo Menotti Del Picchia nasceu em São Paulo, em 20 de março de 1892. Filho de Luiz del Picchia e Corina del Corso del Picchia, Menotti foi agricultor, advogado, editor, industrial, banqueiro, deputado estadual e federal, chefe do Ministério Público do Estado de São Paulo, jornalista, poeta, romancista, ensaísta, teatrólogo e primeiro diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado de São Paulo.

Menotti Del Picchia inicia seus estudos no Grupo Escolar de Itapira. Em 1903 faz o curso ginasial em Campinas, de onde se transfere para Pouso Alegre (MG). Nesta cidade, aos 14 anos, funda o periódico "Mandu", nele publica suas primeiras produções literárias.

Aos 16, já tinha escrito um romance, que, segundo ele, não passou de um "terrível pastiche do Conde de Monte Cristo".

Em 1913, lança o livro de poemas "Poemas do Vício e da Virtude". Nesse mesmo ano forma-se advogado pela Faculdade de Direito de São Paulo. Logo depois da conclusão de seus estudos em São Paulo, volta para Itapira, onde exerce as atividades de agricultor e dirige o jornal "Cidade de Itapira".

Algum tempo depois funda o jornal político "O Grito", no qual foram publicados o romance "Laís" e os poemas "Moisés" e "Juca Mulato", sua obra de maior repercussão, que já teve dezenas de edições. O poema "Juca Mulato", publicado em 1917, foi tão importante e fez tanto sucesso que Menotti afirmou que era um autor perseguido por um personagem. (A força de "Juca Mulato" é tanta que Itapira, para homenagear Menotti, deu o nome de "Juca Mulato" a um parque. As homenagens de Itapira não param por aí. O nome do poeta foi dado a uma praça e foi criado o memorial "Casa de Menotti Del Picchia".)

Algum tempo depois, muda-se para Santos, onde dirige o jornal "A Tribuna". Ao regressar à cidade de São Paulo, exerce a função de redator em diversos jornais como "A Gazeta" e o "Correio Paulistano". Ainda em São Paulo funda o jornal "A Noite", dirige, com Cassiano Ricardo, os mensários "São Paulo" e "Brasil Novo". Em 1920 e 1921, Menotti Del Picchia, utilizando o pseudônimo de Helios, publica no jornal Correio Paulistano, vários artigos que divulgavam as novas estéticas modernistas e promoviam o grupo vanguardista.

Em 1922, junto com Oswald de Andrade, Mário de Andrade e outros jovens, participa ativamente da Semana de Arte Moderna. Nessa época já era considerado um poeta de prestígio.

Em 1937 foi diretor do Grupo Anta, com Cassiano Ricardo, e diretor do Movimento Cultural Nacionalista Bandeira, com Cassiano Ricardo e Cândido Mota Filho.

Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras, em 1942. Em 1960, recebeu o Prêmio Jabuti de Poesia, concedido pela Câmara Brasileira do Livro.

Em 1º de abril de 1943 é eleito para a cadeira 28 da Academia Brasileira de Letras, na sucessão de Xavier Marques. Em 20 de dezembro de 1943 é recebido na ABL pelo acadêmico e amigo Cassiano Ricardo.

Em 1982, é proclamado Príncipe dos Poetas Brasileiros. Esse título só havia sido concedido a mais três poetas: Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Olegário Mariano.

Em 1988, no dia 23 de agosto, o poeta morreu em São Paulo.

Menotti del Picchia teve destacada atuação no movimento modernista. Preparou, com Oswald de Andrade, o advento da nova tendência literária e artística, sustentando a polêmica com os passadistas, antes e depois da Semana de Arte Moderna. Em seguida, foi aguerrido defensor da doutrinação "Verde e Amarelo", opondo-se ao Oswald de Andrade de "Pau Brasil" e "Antropofagia". Defendeu também os ideais do "Grupo da Anta", que superavam os propósitos verdeamarelistas. Participou da Semana de Arte Moderna, sendo mesmo o seu orador oficial, apresentando, na festividade, os poetas e prosadores que exibiam, então, as produções da literatura nova. Suas crônicas no "Correio Paulistano", de 1920 até 1930, como que constituem um "diário do modernismo", registando, quase que quotidianamente, os entusiasmos, as raivas, as lutas e as desavenças da sua geração.

A poesia da fase modernista de Menotti del Picchia é colorida e engenhosa, padecendo do excesso das imagens. Abusa dos elementos plásticos, dos efeitos pitorescos e verbais. Mas, como todos os seus defeitos, que decorrem da atitude polêmica assumida, fecundou de idéias o período histórico que viveu, e que ajudou a desenvolver, sacrificando até a realização de obra poética de maior ressonância que podia dar. Poetando agora de raro em raro, controla os seus modismos e as invenções audaciosas, do que resulta uma poesia comunicativa e emocionada. "Nenhum dos seus livros modernistas" – escreve Manuel Bandeira – "superou o êxito de "Juca Mulato", onde o poeta se apresenta em sua feição mais genuína"

A poesia de Menotti del Picchia vincula-se à primeira geração do Modernismo. Entretanto, para o crítico Sérgio Milliet, ele "era um poeta neoparnasiano na forma e romântico no espírito. Moderno apenas pela inteligência compreensiva que lhe permitiu renovar a prosa nos seus romances. Na poesia, entretanto, manteve-se algo afastado dos exageros e entusiasmos da hora, fiel a uma expressão acessível ao grande público, o que lhe valeu aliás as maiores edições do Brasil.".


Principais Obras

Poesia:
Poemas do vício e da virtude (1913);
Moisés (1917);
Juca Mulato (1917);
Máscaras (1919);
A angústia de D. João (1922);
O amor de Dulcinéia (1926);
República dos Estados Unidos do Brasil (1928);
Chuva de pedra (1925);
Jesus, tragédia sacra (1958);
Poesias, seleção (1958);
O Deus sem rosto, introdução de Cassiano Ricardo (1968).

Romance:
Flama e argila (1920; após a 4a ed., intitulou-se A tragédia de Zilda);
Laís (1921);
Dente de Ouro (1923);
O crime daquela noite (1924);
A república 3000 (1930; posteriormente intitulado A filha do Inca, 1949);
A tormenta (1932);
O árbitro (1958);
Kalum, o mistério do sertão (1936);
Kummunká (1938);
Salomé (1940).

Literatura Infanto-Juvenil:
No país das formigas;
Viagens de Pé-de-Moleque e João Peralta;
Novas aventuras de Pé-de-Moleque e João Peralta.

Teatro:
Suprema conquista (1921);
Jesus

Fontes:
Jornal de Poesia.
Mundo Cultural.
As Tormentas.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.77)


Trova do Dia

Que o Ano Novo lhes traga,
Ó meus irmãos Trovadores,
aquela mais alta vaga
no pódio dos Vencedores!
JOÃO FREIRE FILHO/RJ

Trova Potiguar

Ao irmão que não conheço,
Feliz Natal, eu almejo
e abraçá-lo no começo,
do Ano Novo, é o meu desejo.
JAIR FIGUEIREDO/RN

Uma Trova Premiada

2002 > Garibaldi/RS -Estadual
Tema > Natal > 4º Lugar

Mais parece um acalanto,
uma prece, ou... algo assim,
quando, Natal, o teu canto
escuto, ao redor de mim!...
MARLÊ BEATRIZ ARAÚJO/RS

Uma Trova de Ademar

Vou pedir pra todo o povo,
em preces e em orações;
muita paz neste Ano Novo...
muito amor nos corações!
ADEMAR MACEDO/RN

...E Suas Trovas Ficaram:

É Natal... Com humildade
faço um pedido, em segredo:
- que eu ganhe a felicidade
nem que seja de brinquedo!
J. G. DE ARAÚJO JORGE/AC

Estrofe do Dia

A vocês caros poetas
desejo nesta poesia,
muito dinheiro no bolso
saúde, paz e harmonia;
pra você e pro seu povo
eu desejo um ano novo
cheio de paz e alegria...
JOSÉ ACACI/RN

Soneto do Dia

– Nilton da Costa Teixeira/SP –
A FARSA DO ANO

Em trinta e um de dezembro, esvai-se o calendário.
– Dia de São Silvestre é o dia derradeiro
e, buscando atingi-lo, a gente temerário,
corre de lá para cá, incerto o ano inteiro...

O ano percorre certo o próprio itinerário.
E a gente que o sonhava um ano lisonjeiro,
engendra pelo sonho o sonho legendário,
mas dezembro desfaz os sonhos de janeiro...

Quem nada usufruiu que use compensações,
– conte a quem possa ouvi-lo em milenar mentira,
que o ano lhe foi propício em suas ilusões...

Abrandará assim o anual desengano.
dizendo conseguido o que não conseguira
e pregará também a maior farsa do ano.

Fonte:
Ademar Macedo

domingo, 26 de dezembro de 2010

Ernâni Rosas (Antologia Poética)

(foi mantida a grafia original dos poemas)

REINO DESEJADO

Peregrino do Sonho errei caminhos
que iam ter às portas da alegria.
Poeta e marujo naufraguei sozinho
e a minha nau fora a melancolia.

Meus olhos não beijaram a luz da glória
nem meus lábios chegaram a balbuciar,
quero encerrar-me em vós portas da inglória
Noite, que é mar sem-fim a serenar!

Onde as almas na febre de seus lábios
nunca chegam a tocar para matá-la
Na insaciável ebriez dos lábios
A olhar amortecendo, sonha e cala

E como solitário a tempos-idos
nosso frescor de lábio sossegado
os antigos caminhos percorridos
Peregrino! Da morte no vencer!

CREPÚSCULO

Toda existência, é ocasional regresso...
Ali, a sombra do homem é grave e austera,
recai a tarde em cisma, à noute o espera
sossega a ceifa célere dos músculos...

É efêmero o viver do caminheiro
falsa visão do sonho p´la atmosfera
na demência da enxada do coveiro
que enterra as ruínas, mais as primaveras!...

Vida e ânsia vibrando num só verso
no transporte da serra ao éter puro,
é contato genial com o Universo...

Bruxuleia a minguar em céu escuro,
porque não crê, ficando submerso...
entre o oceano e o Nirvana do futuro!...

CONVALESCENTE

Convalesço dos males da Quimera
partindo sempre de um desejo rude,
a malograda sorte da galera
que aportar com delírio nunca pude...

Do amor, nada pretendo com veemência
pela vida misérrima que arrasto!
Eu sinto o frágil coração tão gasto
às futuras e rudes penitências...

Desconheço o rigor dessa ironia
Quando o sol tomba na água e eril centelha
sem n´a apagar em fulva alegoria...

Amo a noute, amo o espelho do Universo
nunca a chaga de um Deus que se avermelha
no sangue que palpita no meu verso!...

TÂNTALO DA DOR

Maldita, seja a Arte incompreendida
e a taça do Ideal que nos lacera...
os vinhos de Luxúria e da Quimera
e a báquica eclosão da Luz dorida!

dos tântlos letais e da beleza,
da dúvida do mundo em meu pensar...
os ciclos turvos de íntimas tristezas
que nunca mais se vão para o Luar!

Eo meu cismar romântico e amoroso,
é como um rio fundo rumoroso,
cheio de sombras e de estrelas d´oiro...

P´la maldição dessa sinistra incúria,
maldiz ao fel da vida, como agouro...
Maldita seja a serpe das Luxúrias!

VISÃO

Agoirenta visão da luz gelada!
Que mistério possui tua Presença?
Quando desces à terra anuviada,
Vais a Jesus, a Deus pedir licença!...

E arrebatas as almas desgraçadas
às geenas do Mal, como sentença!
e a mim, me levarás pela alvorada
de tuas vestes lúgubres – e descrença!...

Louca hiena da fé bebes-me a vida,
na fria tentação do teu segredo!
no Tântalo falaz, como bebida...

Cerras-me os olhos, gelam-me teus dedos...
arrebatas-me o corpo a vão degredo
num só beijo de morte apetecida!...

A MORTE

Sou dos ventres a lúbrica bacante,
a pantera em meus ócios de veludo:
fascino os corações, que enervante,
no languir dos aromas, sobretudo...

Serei do teu Amor, homem, o quebranto,
talvez, a morte em minha garra adunca,
sou bizarra no amor, não vejo nunca:
o que possa na dor causar espanto!

Venho meu corpo à alambra do oriente,
Lascivo riso exóticos perfumes...
Encarno a mancenilha em forma ingente!

Sou a sombra do Amor luxuriante.,
Inebrio as cabeças dos amantes...
Nunca amei, nem de mim não tive ciúmes!

SALOMÉ

Ó Bailarina, oh! mariposa inquieta!
Aljofrada da gema de uma tarde.
És nume, Salomé, ágil goleta...
dentre o incenso da sombra que oura e arde...

Espectro errante de um cometa absorto
após a bacanal "saturniana"!...
(onde os nardos têm ócio do "Mar-Morto"!)
e ergue-se a lua irial, sibariana...

Chovem do céu os raios da nova aurora
sobre seu corpo d'âmbar colmado
da via Láctea que su'alma olora...

Numa auréola de Luz e alegoria
Esvaindo-Te em Sonho musicado,
para a glória do "Mal" que a irradia...

LÚCIFER

No espelho encantado do destino
Mais de uma vez me vi transfigurado:
As horas tinham timbre cristalino
E erravam opalizadas no passado...

Não me fato de olha-las, no mistério
Tênues e loiras como a corda flébil
Do violino outonal do poente aéreo,
Que amortece em lilás num corpo débil...

Não me farto de olhar, erro inconsciente...
O solo é de diamante e o espaço um astro...
Vivem mármores d’alma no poente!

Foge-me a luz e se antecipam as horas,
No lago azul há cisnes de alabastro,
E o espelho em que me vi é tudo auroras!...

PERDI-ME... TODA UMA ÂNSIA...

"Perdi-me... toda uma ânsia me revela
sombra de Luz em corpo de olor vago,
a saudade é um passado que cinzela
em presente, a legenda desse orago".

"Errasse em densa noite de beleza,
pisasse incerto, um falso solo de umbra...
sonho-me Orfeu... o Luar, que me deslumbra...
é marulho de luz na profundeza!..."

Toda a alma do azul esvai-se em lua...
nimba-lhe a face um crepe de Elegia...
É alvor do dia numa rosa nua,

que as minhas mãos cruéis sonham colher...
mas ao tocar desfolha-se mais fria,
que a sombra de meus dedos a tremer...

O SONHO-INTERIOR

O Sonho-Interior que renasceste
era o poema dum lírio do deserto,
o vinho de outras-almas que bebeste
fatalizou o meu destino incerto...

Depois por ti em sombras de degredo
encerrei a minha alma desolada,
tive a tua visão crepusculada
na beleza fugaz do meu segredo...

Perdeu-se-me ao sol-pôr teu rastro amado!
qual cipreste, no poente agonizado, —
na demência autunal duma alameda...

Velaram-se sudários teus espelhos...
ante o cerrar do teu olhar de seda,
que era um descer de lua em cedros velhos

HORA DA INSÔNIA

Noite sem termo! A Lua erra em delírio,
Balbucío palavras sem querer...
Cismo no olor vernal d'alma de um lírio,
E sou memória d'algo a transcender...

Sofro-lhe a ausência. A carne é meu martírio,
Ressurjo... Amo a visão do meu não-ser!
Todo meu corpo é amorfa névoa-círio...
Volúpia de um perfume a se perder.

Cismo na errante estrela, que deslumbra
O vaso de teu ser dentre o relento
Num murmúrio de fonte que ressumbra!

Sou o olfato! Amo as horas de um jardim...
Sou uma vaga sonora em pensamento:
Eflúvio lirial que vens a mim!...

RIMAS À LUA

Dorme em lascivo leito, reclinada...
Repontando de Astros e fogueiras,
Ateias a coivara prateada
Dos caminhos desertos, pegureira...

Lua! Da meia noite, solitária,
Urna errante p'la nave do infinito...
Cravas o lácteo incêndio funerária,
Às montanhas geladas de granito...

Peregrinando em tua marcha hiante
E exausta de fadiga em água amara
Buscas o mar, o oceano o teu amante...

Artista, cuja tela, ao ver-Te aclara!
N'esse sonambulismo inebriante...
Em suas vagas verdes Te enlaçara...

PENUMBRA DO LUAR

Noite de lua e noveiro, argente
Difunde-se o luar pela folhagem...
Com a mesma languidez vaga e dormente
Da chuva, quando cai sobre a ramagem...

Como a música ao longe e som dolente
Recorda todo esse abandono... E a aragem
Que passa, agita o olor suave e florente
Vindo das messes, da vernal paisagem...

E o luar cresce através de ermo arvoredo,
Noite chuvosa e triste a Lua ateia...
Fluida névoa de luz... Sonho... Segredo...

Ao ressurgir das coisas na saudade
Que o silêncio evocou... E à luz ondeia
Erra na morta e fria claridade...

SONETO

Vai alta a lua lírica e silente,
Toda paisagem em sonho se embebeu!
Narra a si-mesmo o eco, vagamente...
Paira a auréola da luz dentre os céus...

Parece madrugada! Um galo canta...
Uivam de tédio os cães, não chega o dia!
[pois] se o Luar turvou minha alegria...
E a noite toda de uma mágoa santa!

Outono! Vão-se as horas... E lacrimosa
É tão triste a vereda e a própria casa...
Traz saudades da vida religiosa!

Cada vez mais o luar neva e cintila...
Seixos em pranto à flux o areal abrasa,
E a água por ser ceguinha erra e vacila...
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Heron Moura (Ernani Rosas: o homem em negativo)


Saiu pela Editora da UFSC um belo livro: Cidade do Ócio, seleção de poemas do poeta catarinense Ernani Rosas, selecionados e organizados por Zilma Nunes. Esses poemas eram todos inéditos, e o trabalho minucioso e amoroso de Zilma Nunes os torna agora públicos. Só a decifração da letra inóspita do poeta já significou um esforço admirável da organizadora; mas trazer à luz a obra desse poeta, de uma forma clara e orgânica, é o maior mérito da obra.

Duas coisas, paralelas à obra, me chamaram profundamente a atenção. Aparentemente, há apenas duas fotos do poeta, o que em si mesmo já é espantoso, já que Ernani Rosas nasceu em 1886 e faleceu em 1954. A primeira é do poeta ainda jovem, e seu perfil exprime confiança e força. A segunda é do poeta velho, e revela um homem desamparado, frágil, náufrago de algum desastre, cujos efeitos a companhia de um sorridente sobrinho só faz ressaltar.

Não sei as causas desse desastre pessoal. Parece que ninguém sabe. O segundo fato que me chamou a atenção é o registro de Zilma Nunes: “é possível, por intermédio das negativas, construir uma biografia às avessas: Ernani Rosas não estudou, não casou, não teve filhos, nunca trabalhou, nunca viajou, nunca publicou nenhum de seus poemas”. Ernani Rosas é o homem em negativo.

O que me espanta mais ainda é que há uma certa leitura plausível desse desastre, não uma justificativa, mas uma interpretação: Ernani Rosas encarnou o espírito do poeta moderno pós-simbolista, que recusa a vida em nome da arte. Se não viveu em vida, viveu na forma da arte.
Isso liga duas pontas muito díspares, mas que se encontram: uma visão intelectual e acadêmica da arte como pura estética, desligada da vida, e a prosaica percepção, ainda disseminada entre as pessoas leigas, de que a poesia é assunto da estratosfera, e que os poetas são espécies de extraterrestres. Eles não vivem para esse mundo, como os profetas bíblicos.

Foi essa percepção do poema como fuga do real que levou Ernani Rosas a não viver a sua vida? Não sei. Mas seus poemas herdam e trazem a marca de toda a tradição simbolista e pós-simbolista que ancora boa parte da mirada esteticista da poesia moderna. A raiz dos poemas de Ernani Rosas pode ser traduzida por meio de duas frases: a de Mallarmé, que afirmou que o mundo real não passava de uma “miragem brutal” e a frase lapidar que aparece no Axel de Villiers de L´Isle-Adam: “Viver? Nossos criados farão isso por nós!”

O simbolismo, do qual derivou a poesia moderna, recusava o mundo real, por razões que não cabe examinar aqui. Mas digamos que se tratava de uma visão aristocrática da vida: aos burgueses e populacho era destinada a vida, aos nobres e artistas era destinada a arte. Essa oposição entre arte e vida criava uma situação paradoxal: a forma mais rica de expressão era um apagamento das formas de vida perceptíveis por todos. A sintaxe de Mallarmé, por exemplo, era um minucioso esforço para apagar qualquer traço da fala da tribo, a qual estava ligada àquela “miragem brutal” da realidade. Tudo se passa como se uma vida retirada, uma vida em negativo, pudesse representar a forma mais intensa de expressão estética. A poesia se transforma em religião, e o poeta é o seu profeta. Ao sinal de menos na vida, corresponderia o sinal oposto na poesia.

Ernani Rosas estava consciente disso? Não sei. O espantoso é que ele viveu no Rio a maior parte de sua vida, e ali se configurou uma geração de grandes poetas que renegam essa tradição simbolista e semi-romântica do poeta como boêmio e como vate. Vejam a vida e as práticas sociais de poetas como Drummond, Jorge de Lima, Murilo Mendes e João Cabral. Todos eram homens de seu tempo, com profissões definidas, homens da rua, e não do claustro. Drummond era funcionário público graduado e jornalista, Jorge de Lima era médico e político, João Cabral era diplomata, assim como Vinícius de Moraes. Nada mais distante do Baudelaire que não trabalhava e que pintava o cabelo de verde. Mesmo se profética, a palavra do poeta brasileiro era a da língua de todos os dias, e mesmo a sintaxe de João Cabral deve tanto ao modernismo quanto à literatura de cordel.

Mas Ernani Rosas não. Era um pássaro de outros tempos, talvez o albatroz do poema de Baudelaire: a ave imponente que não voa mais. Talvez isso se explique por uma opção puramente estética: ao passo que a tradição brasileira se voltou para a língua da rua, Ernani Rosas se liga mais à tradição lírica de Portugal. Ele inclusive esteve ligado, por um tempo, ao grupo da Revista Orpheu, da qual participou Fernando Pessoa.

Aliás, Fernando Pessoa é outro moderno profundamente conectado à tradição simbolista. Mas há uma diferença enorme entre Fernando Pessoa e Ernani Rosas, além é claro da qualidade poética: o poeta português foi extremamente ativo na sua Lisboa, ao passo que Ernani Rosas se internou num limbo de inação que revela a essência da ideologia da arte pela arte.

Pode a arte pela arte salvar a vida? Essa é a questão que Ernani Rosas nos coloca. Os seus poemas substituem seus filhos, suas mulheres e seu labor social?

Eu acho que arte e vida trocam signos. Uma vida pobre emite menos signos, e uma arte rica não encontra resposta no silêncio. Eu sinto uma tristeza lendo poemas de Ernani Rosas. É certamente um poeta dotado, dedicado a seu ofício. Augusto de Campos já ressaltou algumas de suas qualidades como poeta. Mas se lemos essa seleção de poemas organizada por Zilma Nunes, ressaltam também as deficiências: poemas muitas vezes confusos, mal resolvidos, o poeta perdido na lida com seu material. Como se ele tivesse tentado dominar os seus poemas de dentro, de um ponto de vista puramente estético, e o resultado foi confusão mental e um repertório restrito, apesar de algumas surpresas e de um ritmo poético consistente e persistente.

Nos melhores momentos, ele chega a lembrar alguns poemas de Mário de Sá-Carneiro:

Neste poema cismático, agoniza
A luz de um sol como um delírio a Deus!
Num nevoeiro genial se concretiza,
Dúvida e sombra num debuxo a Zeus…

Mas o que fica ressoando em mim não é essa evocação de uma divindade poética, mas a auto-percepção do fracasso da linguagem do poema como instrumento de domínio:

Eu pensei dominar a turba ignara,
Vesti-me com o calor de D. Rodrigo,
Tive a maior das decepções… falhara,
Em nenhum coração tivera abrigo!

Se o mundo externo é uma miragem cruel, as pessoas que nele habitam também são. Mas o poeta reconhece o sofisma desse aforismo: as pessoas existem, e o poeta vive com a linguagem com que elas vivem. Ele não pode deixar a vida para seus criados. Aliás, o nosso querido Ernani Rosas certamente nunca teve um criado na vida.

Fonte:
Héron Moura. In Diário Catarinense, em 30 de agosto de 2008.

Ernâni Rosas (1886-1955)


Ernâni Salomão Rosas Ribeiro de Almeida, nasceu em Desterro, Florianópolis em 31 de março de 1886, mas viveu no Rio de Janeiro desde os 3 anos de idade. Filho do também poeta Oscar Rosas.

Chegou a entrevistar-se com poetas como Luiz de Montalvo, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, mas sua poesia é considerada simbolista, tardia.

Trabalhou em cargos modestos e variadas e humildes atividades profissionais.

Viveu em Nova Iguaçu, onde morreu em condições difíceis. Com o agravante da discriminação por ser gago, homessexual, pobre, tratando de viver 'como poeta' (...) apreciando sobremaneira o álcool e provavelmente o ópio, afastado do convívio com os 'poetas maiores' de sua época, é de se supor as dificuldades encontradas por Ernani para publicar seus poemas"

Tanto que os poemas contidos na "História do Gosto" ficaram guardados em uma caixa na Academia Catarinense de Letras por mais de 40 anos, sendo resgatados para a análise e publicação do livro só em 1997.

Poeta em certo sentido hermético, de inspiração mallarmáica. Chegou a ser redescoberto e cultuado pelos concretistas paulistas.

Dentre suas principais influências estão Eugênio de Castro e Cruz e Sousa. Como observa Andrade Muricy: "O fato de ter ficado quase completamente desconhecido e não haver, por isso, tido influência histórica, não lhe invalida a precedência".

Publicou em vida: Certa Lenda Numa Tarde - Paráfrasis de Narciso; Poemas do ópio; Silêncios. (...)

Fontes:
Antonio Miranda
Literatura Brasileira – Apostila 7 de simbolismo.
Casa de Paragens.

Oscar Rosas (Poesias Avulsas)


EXCELSIOR

Crescem teus ódios como o mar,
Cresce-me o amor como um novilho.
Rufa o tambor, vamos cantar,
Que no teu ventre está meu filho.

Nós não sabemos que é chorar,
Somos assim como um junquilho,
Como ferreiros a forjar
0 ferro em brasa para um trilho.

Somos de ferro como as lanças,
Eu cheiro só as tuas tranças
E a minha boca só tu beijas.

Tu és a noiva da desgraça!
A nossa sátira espicaça
Como dentadas às cerejas.
---------

O soneto é bastante aliterado, em m no início, em f nos versos 7-8, em t no verso 10, em b no verso 11, em s no verso 13, etc. Faltam aos versos o travamento e a precisão vocabular parnasianos, e essa ausência denota o caráter simbolista da composição.
--

SEREIA
(Dedicado a Emíïio de Menezes)

Reparem nesse bronze, veia a veia,
Cornucópia de seios e de escama,
Obra de um japonês, em que o Fusi-Iama
Adora o mar em enluarada areia.

Canta, e essa harmonia nos golpeia.
É duma triste e solitária gama,
Porém aumenta desse bronze a fama
O olhar amortecido da sereia.

Penso que sonha o pólo e o nevoeiro,
E a pálida talhada de um crescente
Num céu de véus de noiva e jasmineiro.

E, como búzio a referver, ressoa
Numa langue preguiça de serpente,
Num êxtase nostálgico de leoa.

VISÃO

Tanto brilhava a luz da Lua clara,
Que para ti me fui encaminhando.
Murmurava o arvoredo, gotejando
Água fresca da chuva que estancara.

Longe de prata semeava a seara...
O teu castelo, a Lua crepitando,
Como um solar de vidros formidando,
Vi-o como ardentíssima coivara.

Cantigas de cigarra na devesa...
E, pela noite muda, parecia
Cantar o coração da natureza.

Foi então que te vi, formosa imagem,
Surgir entre roseiras, fria, fria,
Como um clarão da Lua na folhagem.

Fontes:
Antonio Miranda.
Jornal de Poesia.

Oscar Rosas (1862 – 1925)


Oscar Rosas Ribeiro nasceu em Florianópolis, em 12 de fevereiro de 1862, Filho de João José da Rosa Ribeiro de Almeida e de Rosa Albino Machado.

No Rio de Janeiro se fez jornalista profissional, defendendo o abolicionismo e a Republica; conheceu Cruz e Sousa no Ateneu Provincial de Santa Catarina, levando-o para o Rio, durante a primeira estada do Poeta Negro (junho de 1888 — março de 1889), e quem o apresentou aos meios literários.

Os quatro poetas que, em redor da Folha Popular, fundaram o grupo renovador das nossas letras, um era Oscar Rosas, que desde 1890 se dizia ,"simbolista radical". Oscar Rosas secretariava o jornal Novidades, onde fez proselitismo simbolista; assim é que em 18 de outubro de 1890 atacou Araripe Junior, que interpretava o simbolismo de modo insatisfatório, e assim é que levou a colaborar no periódico Cruz e Sousa e os moços inconformados. Chegou a escrever um soneto de parceria com o Cisne Negro.

Depois de deixar Novidades, em abril de 1892, Oscar Rosas dedicou-se quase que integralmente ao jornalismo político, trabalhando em vários periódicos do Rio e de 1922 a 1925 em Florianópolis, onde dirigiu o jornal Republica.

Foi deputado à Assembleia Legislativa de Santa Catarina na 11ª legislatura (1922 — 1924).

É patrono de uma das 40 cadeiras da Academia Catarinense de Letras.

Faleceu nesse mesmo ano de 1925, no Rio, no dia 27 de janeiro. Sua produção poética encontra-se até hoje esparsa pelos jornais e revistas da época.

"Janela do Espírito", reproduzida por Andrade Murici (Panorama, vol. I, pag. 177), trai nítida influência de Teófilo Dias, confirmando, mais uma vez, que o poeta das Fanfarras foi uma poderosa sombra sobre os nossos primeiros decadentes e simbolistas.

Basta ver o começo: "Ai, que tormento, criança, / Oh! que sina tão sangrenta! / — Andar essa loura trança / Presa a minh'alma febrenta. // Agora eu passo os meus dias / Debaixo dessa janela, / A espera que tu sorrias / Sob essa coma de estrelas. // Pela calçada eu passeio, / Junto de ti eu me agito, / O sangue tinge-me o seio / Na veemência de um grito." Pelos espécimes que dele reuniu Murici, Oscar Rosas buscava novidade de expressão e imagens.

Fontes:
Antonio Miranda.
Wikipedia.
RAMOS, Péricles Eugênio da Silva, in Poesia Simbolista: Antologia. São Paulo: Melhoramentos, 1965.

Heron Moura (Robert Frost: Juntando Folhas)


Robert Frost (1874-1963) é um dos grandes poetas norte-americanos, num século muito rico de poetas nascidos nos Estados Unidos. Sua fama é menor que a de alguns de seus pares. Não é tão conhecido quanto Eliot ou Pound, nem tão moderno quanto William Carlos Williams. E parece provinciano perante Wallace Stevens.

Mas retornar a ele e reler os poemas de Frost é como visitar uma cidade do interior e descobrir nela uma construção que a gente não sabe catalogar de imediato; é uma construção claramente urbana e moderna, e, no entanto, algo ali exala um tempo que não volta mais. Sua arquitetura nos faz pensar em parentes mortos, e nos lança também diante de nós mesmos.

Não sei como um poema de Frost soa a ouvidos nativos. Para mim, evoca algo dessa sensação que sentimos ao ler poemas de Drummond, quando o poeta aborda a memória de Minas. Não é Minas que está ali; é uma sombra de parentes falecidos, ou menos que uma sombra; mas é tudo tão palpável.

Os poemas de Frost parecem esculpidos sobre um dialeto do inglês que eu não conheço, de caipiras um tanto bruscos e reticentes, e que vivem sob a neve durante meses. Como eles falam? O que pensam? Não sei, e na verdade pouco importa. Eu não sei como vivem os homens e mulheres de New Hampshire, estado no nordeste dos Estados Unidos, e que dá título a um dos grandes livros de Frost, do qual retirei o poema abaixo, traduzido por mim:
-

JUNTANDO FOLHAS.
Robert Frost
(tradução: Heron Moura).

Tanto faz pá ou colher
Para juntar essas folhas;
E o saco que elas enchem
Pesa o que pesam rolhas.

Eu faço um grande ruído
Pisando em folhas mortas,
Como coelhos e corças
Fugindo de trás das hortas.

Mas as montanhas que eu ergo
Escapam de meu enlace,
E tombam entre meus braços
E voam na minha face.

Eu carrego e descarrego
Usando a pá e a mão,
E o galpão fica cheio;
O que eu tenho então?

Apenas carga sem peso,
Um verde agora sem vida
Pelo contato com a terra,
- Carga tão descolorida

E que não serve pra nada.
Mas colheita é colheita
Não importa onde ela alcança
E para que ela é feita.
-

Nada neste poema evoca o dramatismo religioso e desamparado de um Eliot. O dramatismo cansa, tanto quanto a superficialidade. No poema acima não se encontra nada das supressões e elipses de um William Carlos Williams. A voz é nítida e musical, embora levemente rústica e brusca.

Poesia é uma questão de moda, como tudo o mais. Frost não entrou na moda (pelo menos aqui no Brasil), mas que diferença isso faz? Também é muito difícil explicar por que uma moda pega, e outra cai. É muito difícil explicar porque os homens deixaram de usar chapéus, ou por que os rapazes usam hoje calças folgadas, abaixo da linha da cintura. No entanto, os entendidos gostam de fazer a genealogia das etiquetas, e querem explicar os chapéus, as calças e Frost. Este grande poeta seria sentencioso e alegórico, o que corresponde a uma forma terrível de retórica. E o moderno aboliu a retórica. Veredito: Frost, fora da moda, poeta malvestido.

É um pouco fastidioso fazer a crítica das etiquetas, mas pensemos um pouco sobre a questão da alegoria. Um poema moderno não pode ser alegórico? Eliot não usa insistentemente desse processo para criar imagens? Por que o pobre Frost leva a culpa?

Pode-se ler o poema Juntando Folhas como uma alegoria. Mas alegoria do quê? O problema é que podemos dar variadas interpretações alegóricas a esse poema; interpretações em demasia, na verdade.

Essas folhas, que nos escapam e que não valem nada, mas que devemos juntar de toda forma, podem ser a imagem de nossos esforços cotidianos; pensamos ter colhido algo, mas só enchemos sacos de folhas.

Há uma alegoria um tanto mais elaborada, e ao gosto de uma moda agora levemente ultrapassada; juntar folhas é como escrever poemas. Palavras não pesam nada; elas tombam diante de nós, e voam diante de nossa face. Poemas não valem nada e só produzem ruído, e, no entanto, o poeta colhe essa colheita todo dia, como um coelho que busca o seu sustento entre as plantações. O poema Juntando Folhas seria, nessa leitura, uma alegoria da arte verbal, e, talvez, da incapacidade de essa arte atingir um destino.

Pode também ser uma alegoria do tempo que passa. Colhemos os anos, e o que temos no final? Sacos estufados de tempo, uma sombra do que vivemos, um verde que vai perdendo a cor e a intensidade.

Não pode ser; isso não está correto. Há alegorias demais nessas interpretações, e esse poema no fundo é muito leve. A sua força vem da convocação de imagens e ritmos; vem da música e da forma, não da superposição de um sentido mais amplo a essas imagens nuas.

E, no entanto, como essas imagens significam! Elas nos falam pelo que são: um homem faz muito esforço e muito barulho para usar a sua pá; é como se ele estivesse usando uma ridícula colher para arar a terra, arar o que não pode ser arado. É como se ele estivesse plantando na neve ou na rocha. Associamos esforço e dispêndio, tempo e passatempo, suor e montanhas de folhas.
O poema nasce daí: imagens estocadas em nossa mente se articulam de forma inesperada: talvez plantar e colher sejam como construir um castelo na areia, ou como juntar conchinhas na beira da praia. Algo nos empurra para a repetição e a aglomeração das coisas. Compulsivamente, juntamos e juntamos. Coletamos. Coletamos até o que não temos.

O fim do ano é também uma época de juntar coisas; o que foi e o que não é mais. Devíamos fazer as árvores natalinas com essas montanhas de folhas de Frost. Daria mais trabalho, mas seria mais real. O ano passou, mas a nossa vontade de juntar não.

Fontes:
http://www.heronmoura.com/blog/?p=186

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.76)


Trova do Dia

Que o Ano Novo, afinal,
seja de instantes risonhos
e que os sonhos do Natal
sejam muito mais que sonhos!
ARLINDO TADEU HAGEN/MG

Trova Potiguar

Eu fico feliz porque,
em Dezembro em peço assim:
Feliz Natal pra você...
como eu desejo pra mim.
LUIZ XAVIER/RN

Uma Trova Premiada

2002 > Garibaldi/RS
Tema > Natal > 1º Lugar

Nada ter na mesa à Ceia
do Natal, triste é! Porém,
bem mais triste é vê-la cheia
e em volta não ter ninguém.
MARIA AMÉLIA CARVALHO/PORTUGAL

Uma Trova de Ademar

Ao Trovador, meu irmão
mando um abraço apertado;
pra vocês, de coração,
um Ano Novo “Arretado”!
ADEMAR MACEDO/RN

...E Suas Trovas Ficaram:

Natal... Repicam os sinos...
Banha-se o mundo de luz...
Há nos lábios dos meninos
o sorriso de Jesus!
COLBERT R. COELHO/MG

Estrofe do Dia

Mais um ano se inicia
e, em nome dos Trovadores
peço ao filho de Maria
para amenizar as dores;
que agora neste Ano Novo
acabe a fome do povo
que não comeu no “Natal”;
peço ao Pai Onipotente
que mande para essa gente
mais justiça social.
ADEMAR MACEDO/RN

Soneto do Dia

– Josias Alcântara/ES –
UM ÓTIMO FINAL DE ANO.

Experimente, por favor experimente
ouvir e atender primeiramente ao seu Deus.
Não se recuse, apenas se esforce mais...tente...
compartilhar essas dádivas com os seus.

Experimente focar com o olhar da mente
o que fizeram outrora os fariseus.
Leia e releia o evangelho de São Mateus
e aprenda um pouco com Jesus a olhar de frente!

Não se esqueça e seja exemplo na caminhada
e não desista na primeira encruzilhada,
pois Deus é Pai e se preciso lhe carrega...

Oh! Meu amigo (a), a angústia passa, siga em paz,
que a sua luta é boa e logo se refaz;
mas, só vence nessa vida, quem não se entrega!

Fonte:
Ademar Macedo

Pedro Cezar em Recital de Poesia VIDA, em Salvador, BA


Desenvolvendo atividades artísticas e culturais a nível nacional e internacional, o poeta Pedro Cezar, Apresenta o recital de poesia Vida, poemas do livro CELEBRE.

Recital de poesia – Consiste na retomada da oralidade na poesia, com poemas, incursionando no modernismo vivenciando o pós modernismo com Pedro Cezar.

O recital é interativo, possibilitando o poeta presente declamar, sonetos, quadras, tercetos, viabilizando uma temática eclética, através do filosófico, romântico e social, possibilitando ao espectador, melhor possibilidade de reflexão sobre a vida.

Ora com a rima explicita, ora com a rima oculta, faz fluir do texto a poesia!

Fonte:
Poetas del Mundo

sábado, 25 de dezembro de 2010

Ialmar Pio Schneider (Soneto)


Fonte:
Soneto enviado pelo Autor
Montagem sobre imagem recebida por e-mail - autor anonimo.

Oswaldo Antônio Begiato (Oração a Mim Mesmo)


Que eu me permita
olhar e escutar e sonhar mais.
Falar menos.
Chorar menos.

Ver nos olhos de quem me vê
a admiração que eles me têm
e não a inveja que,
prepotentemente, penso que têm.
.
Escutar com meus ouvidos atentos
e minha boca estática,
as palavras que se fazem gestos
e os gestos que se fazem palavras.

Permitir sempre
escutar aquilo que eu não tenho
me permitido escutar.

Saber realizar
os sonhos que nascem em mim
e por mim
e comigo morrem por eu não os saber sonhos.

Então, que eu possa viver
os sonhos possíveis
e os impossíveis;
aqueles que morrem
e ressuscitam
a cada novo fruto,
a cada nova flor,
a cada novo calor,
a cada nova geada,
a cada novo dia.

Que eu possa sonhar o ar,
sonhar o mar,
sonhar o amar,
sonhar o amalgamar.

Que eu me permita o silêncio das formas,
dos movimentos,
do impossível,
da imensidão de toda profundeza.

Que eu possa substituir minhas palavras
pelo toque,
pelo sentir,
pelo compreender,
pelo segredo das coisas mais raras,
pela oração mental
(aquela que a alma cria e
que só ela, alma, ouve
e só ela, alma, responde).

Que eu saiba dimensionar o calor,
experimentar a forma,
vislumbrar as curvas,
desenhar as retas,
e aprender o sabor da exuberância
que se mostra
nas pequenas manifestações
da vida.

Que eu saiba reproduzir na alma a imagem
que entra pelos meus olhos
fazendo-me parte suprema da natureza,
criando-me
e recriando-me a cada instante.

Que eu possa chorar menos de tristeza
e mais de contentamentos.
Que meu choro não seja em vão,
que em vão não sejam
minhas dúvidas.

Que eu saiba perder meus caminhos
mas saiba recuperar meus destinos
com dignidade.

Que eu não tenha medo de nada,
principalmente de mim mesmo:
- Que eu não tenha medo de meus medos!

Que eu adormeça
toda vez que for derramar lágrimas inúteis,
e desperte com o coração cheio de esperanças.

Que eu faça de mim um homem sereno
dentro de minha própria turbulência,
sábio dentro de meus limites
pequenos e inexatos,
humilde diante de minhas grandezas
tolas e ingênuas
(que eu me mostre
o quanto são pequenas
minhas grandezas
e o quanto é valiosa
minha pequenez).

Que eu me permita ser mãe,
ser pai,
e, se for preciso,
ser órfão.

Permita-me eu ensinar o pouco que sei
e aprender o muito que não sei,
traduzir o que os mestres ensinaram
e compreender a alegria
com que os simples traduzem suas experiências;
respeitar incondicionalmente
o ser;
o ser por si só,
por mais nada que possa ter além de sua essência,
auxiliar a solidão de quem chegou,
render-me ao motivo de quem partiu
e aceitar a saudade de quem ficou.

Que eu possa amar
e ser amado.
Que eu possa amar mesmo sem ser amado,
fazer gentilezas quando recebo carinhos;
fazer carinhos mesmo quando não recebo
gentilezas.

Que eu jamais fique só,
mesmo quando
eu me queira só.
Amém.

Fonte:
Poetas del Mundo

Oswaldo Antônio Begiato (Livro de Poesias)


ANTEONTEM

Anteontem,
pé ante pé,
caminhei com anteolhos
por conta de uma antepaixão
que me veio de anteparo,
antepondo um dilema:
- Antes tarde do que nunca.

Diante de tudo isso
e ante minha descoberta,
fiz-me, antequanto,
ente e rente,
como dantes no quartel d’Abrantes.

PRESUNÇÃO

Há no Universo estrelas tolas.

Uma não suporta
a luz da outra.

Elas amam a escuridão;
sabem que sem escuridão
sequer vida teriam.

Não queiram me dar notoriedade.

Nasci no fundo do mar
com o destino de ser ostra.
Vivo da iridescência do nácar.

Meu cenário é a escuridão,
mas jamais serei estrela.

Não terei luz para iluminar tua passagem,
mas te fornecerei pérolas
para que tu sejas a luz no meio da festa.

DERMO-ÓTICA

Hoje estou feliz como nunca estive antes.

Sinto minhas alamedas cheias de bonanças,
Meus canteiros revirados pelo cuidado alheio,
Meus vácuos encurtados pela presença da verdade.

Sinto minhas sombras povoando os relógios de sol,
Minhas distâncias sendo medidas pelos sextantes.

Apesar de tudo, de todos.
Apesar de nada, de cada.
Apesar de pouco, de louco.

É que hoje você está mais radiante do que uma chuva de meteoros,
E suas mãos puderam me ler do princípio ao fim.

RESSURGIMENTO

Ganhei uma rosa
Leve como uma forma,
Breve como uma linha,
Fina como a esperança,
Bela como o mármore,
Donzela como a aurora,
Champanhe como o arroubo.

Ganhei uma rosa
Feita de brisa lenta,
Assim, como um alívio;
Feita de folhas virgens
Assim, como uma viagem.

Ganhei uma rosa
Feita de muitos versos,
Versos de plenos anversos.

Ganhei uma rosa. De ti.

POEMA RICO

Gostaria que abundantes me fossem
as palavras.
Mas elas me fogem
se fazem magras,
raquíticas,
e parcas.
(Me deixam mudo
diante desta mulher.)

Gostaria que intensos me fossem
os diamantes.
Mas tenho apenas uns cristais
que se quebram quando meu olhar
os toca sem sentido.
(Me deixam pobre
diante desta mulher.)

Mas tenho dentro de mim um coração,
que mesmo mudo,
bate enlouquecido
e como uma ostra vaidosa,
cria com o seu bater doído
a pérola mais linda
que já se viu.
(Me deixa como jóia rara
diante desta mulher.)

Me deixa como poeta
diante desta mulher.

REINÍCIO

Como me pediste, farei restauro de tuas obras-primas,
As que o tempo deteriorou por tua falta de cuidado,
E nada cobrarei de ti por isso. Nem um centavo.

Uma condição imponho. Peço que não me cobres
Os olhos tristes que querias ver no meu rosto,
Retrato que são do pouco-caso que me fizeste.

Estão a sete chaves no vácuo de meu desprezo.
Não os darei a ti. Juro que não. Nem que supliques.

SONETINHO BESTA

Correndo, vim aqui lhe mostrar encabulado,
Um sonetinho besta que fiz para você, às pressas,
Com palavras que encontrei, ontem à noite,
Presas por um fio na saudade que me exauria.

Fí-lo por ouvir seu canto no canto escuro do palco,
Por ver o brilho de seus olhos iluminando tudo,
Sem que me visse. Sei que anda zangada
Com o ciúme enlouquecido que sinto de sua voz.

Mas vim mesmo porque queria que soubesse
Que ando seduzido pelo seu canto de cigarra
Dando alívio às minhas noites solitárias de boemia;

E que quero ser, eternamente grato por sê-lo,
A formiga que sustenta com alegria pródiga
As suas fantasias de menina fugaz e volúvel.

CANTIGA DE NATAL

Quando o natal vem chegando
meus vácuos, prole da infância,
se enchem de Avenida Paulista,
de formas e lâmpadas surreais,
de presépios sobre-humanos,
de presentes multiangulares,
de Boas Festas de Assis Valente...

Todo ano, no mês de dezembro,
com as preces cheias de vitrines
e de dúvidas sobre um céu ouvidor,
desperta em mim a criança viva
que nunca fui. Que nunca vi.

Fonte:
http://oabegiato-poesias.blogspot.com/

Oswaldo Antônio Begiato (1953)



Pequena Autobiografia

SEM SOMBRAS

Ao meio dia
De um domingo
Prenhe de sol
E enamorado de outubro
Rompi espontâneo
Como um botão de rosa fêmea
Que nasce sem ser esperado.”


Nasci, sob o signo de escorpião, em 26 de outubro do ano de 1.953, na cidade de Mombuca,
um pequeno encanto no canto interior do Estado de São Paulo.

Menor que a cidade só eu mesmo.

Ainda pequeno vim para Jundiaí, também São Paulo, Terra da Uva, da qual experimentei o sabor do fruto e jamais a deixei.

Nela me fiz advogado sem banca, aposentado sem queixas e onde perambulo até hoje, buscando, perdidas nas sarjetas, as palavras que me usam para escrever poesias as quais publico na internet de um modo geral, além de ter participado com elas de algumas Antologias pelo Brasil.

Em 1988, publiquei um livro de poesias, sem muita importância e feito artesanalmente
em um mimeógrafo antigo, chamado "O Menino".

Carolina Ramos (Lição de Natal)


Pura e límpida, a estrela fulgurante
iluminou os céus da Palestina!
E pastores e reis levou avante
até a boca da gruta pequenina.

Naquele excelso e soberano instante,
reis e plebeus unia a luz divina
e a esperança, com brilho tremulante,
fazia a noite azul e cristalina!

E que lição, Senhor, nos deu a estrela!
Conduzindo, a Belém, adoradores,
mostrou a todos que puderam vê-la,

que os humildes serão sempre os primeiros!
Que, antes dos reis e que antes dos pastores,
aos Teus pés se ajoelharam os cordeiros!

Fontes:
A Autora
Imagem do Presépio = http://rosyluzes.jex.com.br

Nilton Manoel (A Poesia do Ribeirão Preto)


O ribeirão Preto
é o mais bonito da região;
abraça o Retiro
e nada deve ao Pardo
despojado pelos ranchos
e clubes sociais;
mas pardo não quer ser praia popular...
O Preto,não dá mais lambaris no anzol,
nem os “Cascudos” de nossa história
voltarão a amplos espaços no livro do povo.
o Preto, em tempo de chuvas,
ainda corre barrento;
mas à beira do Mercado,
esverdeado,desliza por longos meses do ano.
Suas palmeiras imperiais,
mais belas que as de Gonçalves Dias.
são eternas bandeiras de poesia.
O ribeirão Preto ainda chora
O assassinato onomástico de Barracão
quando ultrapassa o viaduto
que espera ser usado por metrô!
Ah! A nova Ribeirão com a via Norte?
O ribeirão Preto
de braços abertos para o futuro
é a eterna beleza da história da cidade.
O ribeirão Preto da antiga praça do mercado,
da ferrovia, da poente nova, do Triângulo,
da rodoviária Tiberense...
da centenária feira-livre em de redor do entreposto.
O palácio poderá até mudar-se para próximo do velho República,
mas o Preto sempre terá o caminho principal.
Ó Preto das palmeiras imperiais,
o mais bonito da região;
Sua beleza, poucas vezes foi matéria de Conselho de Cultura;;;
O ribeirão Preto é poético céu estrelado
da história da fundação...
Suas águas barrentas de outrora
são o eterno sangue da municipalidade.
sem este postal, a cidade deixará de existir?
O ribeirão Preto,
canta e chora a cidadania emérita de seus historiadores.
a Jerônimo Gonçalves fez-se importante avenida
com as palmeiras imperiais e o canto do preto...
É o populismo poético desde os poetas do café da capital do interior!
Com a ferrovia,foi-se Maria que,só levou de outrora a velha porteira
o túnel do xixi e o “muro da vergonha”...
A praça Smidht não é mais do povo,
não mais conta histórias dos tempos distantes.
Tem cargas e descargas de pouca atração.
A Augusto severo é um eterno abandono.
O antigo Barranco continua o mesmo
desde as plataformas ferroviárias.
Quando queda o movimento,tudo pode acontecer
bem próximo ao ribeirão preto...
nem sempre o detetive Fred ou o jornalista Clark Kent
podem estar por perto...
o Fantasma que anda,meio cansado,
namora com Diana e não atende a tambores.
Os nossos poetas por onde andarão?
longe dos batedouros,não sonham com varais;;;
O ribeirão Preto é a própria cidade...
Serpenteia pela geografia
projetando historias de nossa história social.
O ribeirão Preto
É o mais belo da região,abraça o retiro
e nada deve para o Pardo na sua reta final...

Fontes:
Cenas Urbanas,NILTON MANOEL,1989,p.23,Vermelhinho Ed.
Enviado pelo Autor.
Imagem = http://expressar.com/bruno/category/ribeirao-preto/

Monteiro Lobato (Jeca Tatu - A Ressurreição)


I
Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé. Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia e de vários fichinhas pálidos e tristes.

Jeca Tatu passava os dias de cócoras, pitando enormes cigarrões de palha, sem ânimo de fazer coisa nenhuma. Ia ao mato caçar, tirar palmitos, cortar cachos de brejaúva, mas não tinha idéia de plantar um pé de couve atrás da casa. Perto um ribeirão, onde ele pescava de vez em quando uns lambaris e um ou outro bagre. E assim ia vivendo.

Dava pena ver a miséria do casebre. Nem móveis nem roupas, nem nada que significasse comodidade. Um banquinho de três pernas, umas peneiras furadas, a espingardinha de carregar pela boca, muito ordinária, e só.

Todos que passavam por ali murmuravam:
Que grandíssimo preguiçoso!

II

Jeca Tatu era tão fraco que quando ia lenhar vinha com um feixinho que parecia brincadeira. E vinha arcado, como se estivesse carregando um enorme peso.
Por que não traz de uma vez um feixe grande? Perguntaram-lhe um dia.

Jeca Tatu coçou a barbicha rala e respondeu:
Não paga a pena.

Tudo para ele não pagava a pena. Não pagava a pena consertar a casa, nem fazer uma horta, nem plantar arvores de fruta, nem remendar a roupa.

Só pagava a pena beber pinga.
- Por que você bebe, Jeca? Diziam-lhe.
- Bebo para esquecer.
- Esquecer o quê?
- Esquecer as desgraças da vida.

E os passantes murmuravam:
- Além de vadio, bêbado...

III

Jeca possuía muitos alqueires de terra, mas não sabia aproveitá-la. Plantava todos os anos uma rocinha de milho, outra de feijão, uns pés de abóbora e mais nada. Criava em redor da casa um ou outro porquinho e meia dúzia de galinhas. Mas o porco e as aves que cavassem a vida, porque Jeca não lhes dava o que comer. Por esse motivo o porquinho nunca engordava, e as galinhas punham poucos ovos.

Jeca possuía ainda um cachorro, o Brinquinho, magro e sarnento, mas bom companheiro e leal amigo.

Brinquinho vivia cheio de bernes no lombo e muito sofria com isso. Pois apesar dos ganidos do cachorro, Jeca não se lembrava de lhe tirar os bernes. Por quê? Desânimo, preguiça...

As pessoas que viam aquilo franziam o nariz.
- Que criatura imprestável! Não serve nem para tirar berne de cachorro...

IV

Jeca só queria beber pinga e espichar-se ao sol no terreiro. Ali ficava horas, com o cachorrinho rente; cochilando. A vida que rodasse, o mato que crescesse na roça, a casa que caísse. Jeca não queria saber de nada. Trabalhar não era com ele.

Perto morava um italiano já bastante arranjado, mas que ainda assim trabalhava o dia inteiro. Por que Jeca não fazia o mesmo?

Quando lhe perguntavam isso, ele dizia:
- Não paga a pena plantar. A formiga come tudo.
- Mas como é que o seu vizinho italiano não tem formiga no sítio?
- É que ele mata.
- E porque você não faz o mesmo?

Jeca coçava a cabeça, cuspia por entre os dentes e vinha sempre com a mesma história:
- Quá! Não paga a pena...
- Além de preguiçoso, bêbado; e além de bêbado, idiota, era o que todos diziam.

V

Um dia um doutor portou lá por causa da chuva e espantou-se de tanta miséria. Vendo o caboclo tão amarelo e chucro, resolveu examiná-lo.
- Amigo Jeca, o que você tem é doença.
- Pode ser. Sinto uma canseira sem fim, e dor de cabeça, e uma pontada aqui no peito que responde na cacunda.
- Isso mesmo. Você sofre de anquilostomiase.
- Anqui... o quê?
- Sofre de amarelão, entende? Uma doença que muitos confundem com a maleita.
- Essa tal maleita não é a sezão?
- Isso mesmo. Maleita, sezão, febre palustre ou febre intermitente: tudo é a mesma coisa, está entendendo? A sezão também produz anemia, moleza e esse desânimo do amarelão; mas é diferente. Conhece-se a maleita pelo arrepio, ou calafrio que dá, pois é uma febre que vem sempre em horas certas e com muito suor. O que você tem é outra coisa. É amarelão.

VI

O doutor receitou-se o remédio adequado; depois disse: "E trate de comprar um par de botinas e nunca mais me ande descalço nem beba pinga, ouviu?"
- Ouvi, sim, senhor!
- Pois é isso, rematou o doutor, tomando o chapéu. A chuva passou e vou-me embora. Faça o que mandei, que ficará forte, rijo e rico como o italiano. Na semana que vem estarei de volta.
- Até por lá, sêo doutor!

Jeca ficou cismando. Não acreditava muito nas palavras da ciência, mas por fim resolveu comprar os remédios, e também um par de botinas ringideiras.

Nos primeiros dias foi um horror. Ele andava pisando em ovos. Mas acostumou-se, afinal...

VII

Quando o doutor reapareceu, Jeca estava bem melhor, graças ao remédio tomado. O doutor mostrou-lhe com uma lente o que tinha saído das suas tripas.
- Veja, sêo Jeca, que bicharia tremenda estava se criando na sua barriga! São os tais anquilostomos, uns bichinhos dos lugares úmidos, que entram pelos pés, vão varando pela carne adentro até alcançarem os intestinos. Chegando lá, grudam-se nas tripas e escangalham com o freguês. Tomando este remédio você bota p'ra fora todos os anquilostomos que tem no corpo. E andando sempre calçado, não deixa que entrem os que estão na terra. Assim fica livre da doença pelo resto da vida.

Jeca abriu a boca, maravilhado.
- Os anjos digam amém, sêo doutor!

VIII

Mas Jeca não podia acreditar numa coisa: que os bichinhos entrassem pelo pé. Ele era "positivo" e dos tais que "só vendo". O doutor resolveu abrir-lhe os olhos. Levou-o a um lugar úmido, atrás da casa, e disse:
- Tire a botina e ande um pouco por aí.

Jeca obedeceu.
- Agora venha cá. Sente-se. Bote o pé em cima do joelho. Assim. Agora examine a pela com esta lente.

Jeca tomou a lente, olhou e percebeu vários vermes pequeninos que já estavam penetrando na sua pele, através dos poros. O pobre homem arregalou os olhos assombrado.
- E não é que é mesmo? Quem "havera" de dizer!...
- Pois é isso, sêo Jeca, e daqui por diante não duvide mais do que a ciência disser.
- Nunca mais! Daqui por diante nha ciência está dizendo e Jeca está jurando em cima! T'esconjuro! E pinga, então, nem p'ra remédio...

IX

Tudo o que o doutor disse aconteceu direitinho! Três meses depois ninguém mais conhecia o Jeca.

A preguiça desapareceu. Quando ele agarrava no machado, as arvores tremiam de pavor. Era pan, pan, pan... horas seguidas, e os maiores paus não tinham remédio senão cair.

Jeca, cheio de coragem, botou abaixo um capoeirão para fazer uma roça de três alqueires. E plantou eucaliptos nas terras que não se prestavam para cultura. E consertou todos os buracos da casa. E fez um chiqueiro para os porcos. E um galinheiro para as aves. O homem não parava, vivia a trabalhar com fúria que espantou até o seu vizinho italiano.
- Descanse um pouco, homem! Assim você arrebenta... diziam os passantes.
- Quero ganhar o tempo perdido, respondia ele sem largar do machado. Quero tirar a prosa do "intaliano".

X

Jeca, que era um medroso, virou valente. Não tinha mais medo de nada, nem de onça! Uma vez, ao entrar no mato, ouviu um miado estranho.
- Onça! Exclamou ele. É onça e eu aqui sem nem uma faca!...

Mas não perdeu a coragem. Esperou a onça, de pé firme. Quando a fera o atacou, ele ferrou-se tamanho murro na cara, que a bicha rolou no chão, tonta. Jeca avançou de novo, agarrou-a pelo pescoço e estrangulou-a
- Conheceu, papuda? Você pensa então que está lidando com algum pinguço opilado? Fique sabendo que tomei remédio do bom e uso botina ringideira...

A companheira da onça, ao ouvir tais palavras, não quis saber de histórias - azulou! Dizem que até hoje está correndo...

XI

Ele, que antigamente só trazia três pausinhos, carregava agora cada feixe de lenha que metia medo. E carregava-os sorrindo, como se o enorme peso não passasse de brincadeira.
- Amigo Jeca, você arrebenta! Diziam-lhe. Onde se viu carregar tanto pau de uma vez?
- Já não sou aquele de dantes! Isto para mim agora é canja, respondia o caboclo sorrindo.
- Quando teve de aumentar a casa, foi a mesma coisa. Derrubou no mato grossas perobas, atorou-as, lavrou-as e trouxe no muque para o terreiro as toras todas. Sozinho!
- Quero mostrar a esta paulama quanto vale um homem que tomou remédio de Nha Ciência, que usa botina cantadeira e não bebe nem um só martelinho de cachaça.

O italiano via aquilo e coçava a cabeça.
- Se eu não tropicar direito, este diabo me passa na frente, Per Bacco!

XII

Dava gosto ver as roças do Jeca. Comprou arados e bois, e não plantava nada sem primeiro afofar a terra. O resultado foi que os milhos vinham lindos e o feijão era uma beleza.

O italiano abria a boca, admirado, e confessava nunca Ter visto roças assim.

E Jeca já não plantava rocinhas como antigamente. Só queria saber de roças grandes, cada vez maiores, que fizessem inveja no bairro.

E se alguém lhe perguntava:
- Mas para que tanta roça, homem? Ele respondia:
- É que agora quero ficar rico. Não me contento com trabalhar para viver. Quero cultivar todas as minhas terras, e depois formar aqui uma enorme fazenda. E hei de ser até coronel...

E ninguém duvidava mais. O italiano dizia:
- E forma mesmo! E vira mesmo coronel! Per la Madonna!...

XIII

Por esse tempo o doutor passou por lá e ficou admiradíssimo da transformação do seu doente.

Esperara que ele sarasse, mas não contara com tal mudança.

Jeca o recebeu de braços abertos e apresentou-o à mulher e aos filhos.

Os meninos cresciam viçosos, e viviam brincando contentes como passarinhos.

E toda gente ali andava calçada. O caboclo ficara com tanta fé no calçado, que metera botinas até nos pés dos animais caseiros!

Galinhas, patos, porcos, tudo de sapatinho nos pés! O galo, esse andava de bota e espora!
- Isso também é demais, sêo Jeca, disse o doutor. Isso é contra a natureza!
- Bem sei. Mas quero dar um exemplo a esta caipirada bronca. Eles aparecem por aqui, vêem isso e não se esquecem mais da história.

XIV

Em pouco tempo os resultados foram maravilhosos. A porcada aumentou de tal modo, que vinha gente de longe admirar aquilo. Jeca adquiriu um caminhão Ford, e em vez de conduzir os porcos ao mercado pelo sistema antigo, levava-os de auto, num instantinho, buzinando pela estrada afora, fon-fon! fon-fon!...

As estradas eram péssimas; mas ele consertou-as à sua custa. Jeca parecia um doido. Só pensava em melhoramentos, progressos, coisas americanas. Aprendeu logo a ler, encheu a casa de livros e por fim tomou um professor de inglês.
- Quero falar a língua dos bifes para ir aos Estados Unidos ver como é lá a coisa.

O seu professor dizia:
- O Jeca só fala inglês agora. Não diz porco; é pig. Não diz galinha! É hen... Mas de álcool, nada. Antes quer ver o demônio do que um copinho da "branca"...

XV

Jeca só fumava charutos fabricados especialmente para ele, e só corria as roças montado em cavalos árabes de puro sangue.
- Quem o viu e quem o vê! Nem parece o mesmo. Está um "estranja" legítimo, até na fala.

Na sua fazenda havia de tudo. Campos de alfafa. Pomares belíssimos com quanta fruta há no mundo. Até criação de bicho da seda; Jeca formou um amoreiral que não tinha fim.
- Quero que tudo aqui ande na seda, mas seda fabricada em casa. Até os sacos aqui da fazenda têm que ser de seda, para moer os invejosos...

E ninguém duvidava de nada.
- O homem é mágico, diziam os vizinhos. Quando assenta de fazer uma coisa, faz mesmo, nem que seja um despropósito...

XVI

A fazenda do Jeca tornou-se famosa no país inteiro. Tudo ali era por meio do rádio e da eletricidade. Jeca, de dentro do seu escritório, tocava num botão e o cocho do chiqueiro se enchia automaticamente de rações muito bem dosadas. Tocava outro botão, e um repuxo de milho atraia todo o galinhame...

Suas roças eram ligadas por telefones. Da cadeira de balanço, na varanda, ele dava ordens aos feitores lá longe.

Chegou a mandar buscar no Estados Unidos um telescópio.
- Quero aqui desta varanda ver tudo que se passa em minha fazenda.

E tanto fez, que viu. Jeca instalou os aparelhos e assim pode, da sua varanda, com o charutão na boca, não só falar por meio do rádio para qualquer ponto da fazenda, como ainda ver, por meio do telescópio, o que os camaradas estavam fazendo.

XVII

Ficou rico e estimado, como era natural; mas não parou aí. Resolveu ensinar o caminho da saúde aos caipiras das redondezas. Para isso montou na fazenda e vilas próximas vários Postos de Maleita, onde tratava os enfermos de sezões; e também Postos de Anquilostomose, onde curava os doentes de amarelão e outras doenças causadas por bichinhos nas tripas.

O seu entusiasmo era enorme. "Hei de empregar toda a minha fortuna nesta obra de saúde geral, dizia ele. O meu patriotismo é este. Minha divisa: Curar gente. Abaixo a bicharia que devora o brasileiro..."

E a curar gente da roça passou Jeca toda a sua vida. Quando morreu, aos 89 anos, não teve estátua, nem grandes elogios nos jornais. Mas ninguém ainda morreu de consciência tranqüila. Havia cumprido o seu dever até o fim.

XVIII

Meninos: nunca se esqueçam desta história; e, quando crescerem, tratem de imitar o Jeca. Se forem fazendeiros, procurem curar os camaradas da fazenda. Além de ser para eles um grande benefício, é para você um alto negócio. Você verá o trabalho dessa gente produzir três vezes mais.

Um país não vale pelo tamanho, nem pela quantidade de habitantes. Vale pelo trabalho que realiza e pela qualidade da sua gente. Ter saúde é a grande qualidade de um povo. Tudo mais vem daí.
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Nota:
Este conto foi adotado como peça publicitária do Laboratório Fontoura. Adaptado em história em quadrinhos ou na forma de folheto, ou ainda fazendo parte de almanaques, teve até os anos 60 uma tiragem de cerca de 18 milhões de exemplares. Há testemunhos de que sua leitura transformou a vida de muita gente.

Fontes:
http://www.projetomemoria.art.br/MonteiroLobato/bibliografialobatiana/bibliot.html
Imagem = http://listasliterarias.blogspot.com

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n.75)


Trova do Dia

Quando este povo latino
não mais viver nesta arena,
o natal de um tal menino
terá, sim, valido a pena.
CONCEIÇÃO A. C. DE ASSIS/MG

Trova Potiguar

Muito obrigado, Senhor,
pelo Natal de Jesus:
que na terra reine o amor,
muita paz e muita luz!...
JOAMIR MEDEIROS/RN

Uma Trova Premiada

2002 > Garibaldi/RS
Tema > Natal > M/H

Para o Natal ser perfeito,
repleto de amor e luz,
enche de afeto o teu peito
para receber Jesus.
ANTONIO JURACI SIQUEIRA/PA

Uma Trova de Ademar

Tenho pena da criança
que, num cruel desvario,
enche de desesperança
seu sapatinho vazio!
ADEMAR MACEDO/RN

...E Suas Trovas Ficaram:

Natal... repicam os sinos...
banha-se o mundo de luz...
Há nos lábios dos meninos
o sorriso de Jesus!
COLBERT R. COELHO/MG

Estrofe do Dia

Bom seria se o Natal,
fosse um natal diferente;
não fosse somente luz,
papai Noel e presente;
mas a estrela da bondade,
mandasse a felicidade,
para o lar de toda gente.
LUIZ DUTRA/RN

Soneto do Dia

– Auta de Souza/RN –
NATAL.

É meia noite ... O sino alvissareiro,
lá da igrejinha branca pendurado,
como num sonho místico e fagueiro,
vem relembrar o tempo do passado.

Ó velho sino, ó bronze abençoado,
na alegria e na mágoa companheiro!
Tu me recordas o sorrir primeiro
de menino Jesus imaculado.

E enquanto escuto a tua voz dolente,
meu ser que geme dolorosamente
da desventura, aos gélidos açoites ...

Bebe em teus sons tanta alegria, tanta!
sino que lembras uma noite santa,
noite bendita mais que as outras noites!

Fonte:
Ademar Macedo

Monteiro Lobato (Emília no País da Gramática) Capítulo XVII: Epílogo

Quando Emília voltou para onde se achavam os meninos, viu-os em preparativos para o regresso. Estavam com uma fome danada.
— E o Visconde? — indagou ela. — Apareceu?

— Está aqui, sim — respondeu Pedrinho —, mas nega a pés juntos que haja furtado o Ditongo.

Emília aproximou-se do velho sábio, que tinha uma bochecha inchada de dor de dente.

— Então, onde está o Ditongo, Senhor Visconde? — interpelou ela, de mãozinha na cintura e olhar firme.

O pobre fidalgo pôs-se a tremer, todo gago.

— Eu. . . eu. . .

— Sim, o senhor mesmo! — disse Emília com vozinha de verruma. — O senhor raptou o Ditongo Ão e escondeu-o em qualquer lugar. Vamos. Confesse tudo.

— Eu. . . eu. . . — continuava o fidalgo, que não sabia lutar com a boneca.

Emília refletiu uns instantes. Depois agarrou-o e fê-lo abrir a boca à força. O Ditongo furtado caiu no chão. . .

— Vejam! — exclamou Emília, vitoriosa. — Ele tinha escondido o pobre Ditongo na boca, feito bala. Que vergonha, Visconde! Um homem da sua importância, grande sábio, ledor de álgebra, a furtar Ditongo. . .

— Eu explico tudo — declarou por fim o Visconde, muito vexado. — O caso é simples. Desde que caí no mar, naquela aventura no País da Fábula fiquei sofrendo do coração e muito sujeito a sustos. Ora, este Ditongo me fazia mal. Sempre que gritavam perto de mim uma palavra terminada em Ão, como Cão, Ladrão, Pão e outras, eu tinha a impressão dum tiro de canhão ou dum latido de canzarrão. Por isso me veio a idéia de furtar o maldito Ditongo, de modo que desaparecessem da língua portuguesa todos esses latidos e estouros horrendos. Foi isso só. Juro!

Emília ficou radiante de haver adivinhado.

— Eu não disse? — gritou para os meninos. — Eu não disse que devia ser isto?

E para o desapontadíssimo fidalgo:

— Pegue o Ditongo e vá botá-lo onde o achou. Você não é Academia de Letras para andar mexendo na língua. . .

Meia hora mais tarde já estavam todos no sítio, contando ao Burro Falante o maravilhoso passeio pelas terras da Gramática.

.•.•´¯`•.•. ( FIM ) .•.•´¯`•.•.

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Emília no País da Gramática. SP: Círculo do Livro. Digitalizado por http://groups.google.com/group/digitalsource