segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Guerra Junqueiro (Contos para a Infância: O Malmequer)

Ouvi com atenção esta pequenina história:

No campo, junto da estrada real, havia uma casinha muito bonita, que deveis ter visto muitas vezes. Há na frente um jardinzinho com flores, rodeado por uma sebe verdejante. Ali perto, nas bordas do vaiado, no meio da erva espessa, floria um pequenino malmequer. Desabrochava a olhos vistos, graças ao Sol, que repartia igualmente a sua luz tanto por ele como pelas grandes e ostentosas flores do magnífico jardim. Uma linda manhã, já inteiramente luminosa, com as folhinhas alvas e desabrochando, parecia um sol em miniatura circundado de raios. Pouco se lhe dava que o vissem no meio da erva e não fizessem caso dele, pobre florinha insignificante. Vivia satisfeito, aspirando deliciado o calor do Sol, e ouvindo o canto da cotovia, que se perdia nos ares.

Nesse dia o malmequer, apesar de ser numa segunda-feira, sentia-se tão feliz como se fosse um domingo. Enquanto as crianças sentadas nos bancos da escola estudavam a lição, ele, sentado na haste verdejante, estudava na formosura da natureza a bondade de Deus, e tudo o que sentia misteriosamente, em silêncio, julgava ouvi-lo traduzido com admirável nitidez nas canções alegres da cotovia. Por isso, pôs-se a olhar com uma espécie de respeito, mas sem inveja, para essa avezinha feliz que cantava e voava.

– Eu vejo e ouço, ponderou o malmequer; o Sol aquece-me e o vento acaricia-me. Ora, adeus! não tenho razão de me queixar.

Dentro da sebe havia muitas flores altivas, aristocráticas; quanto menos aromas rescendiam, mais orgulhosas se aprumavam. As dálias empertigavam-se, para fingir maior tamanho que o das rosas; mas não é o volume que faz a rosa. As túlipas davam-se ares pela beleza das cores, pavoneando-se pretensiosamente. Nem se dignavam lançar os olhos ao pequenino malmequer, enquanto que o pobrezinho as admirava exclamando: – «Que ricas e que bonitas! A cotovia irá certamente visitá-las. Graças a Deus, poderei assistir a este belo espetáculo». – E no mesmo instante a cotovia dirigiu o voo, não para as dálias e túlipas, mas para a relva, junto do triste malmequer, que morto de ventura nem sabia o que havia de pensar.

E o passarinho, saltitando em roda alegremente, cantava: – «Que erva tão macia! ai! que bonita flor, com um coração de ouro, vestidinha de prata!»

Não pode imaginar-se a felicidade do malmequer!

A ave acariciou-o com o bico, gorjeou de novo, e perdeu-se depois no azul do firmamento. Durante mais de um quarto de hora não pôde o malmequer reprimir a sua comoção. Meio envergonhado, mas todo contente, olhou para as outras flores do jardim, testemunhas da grande glória que ele acabava de alcançar; mas a haste vermelha e pontiaguda das túlipas manifestava o despeito. As dálias tinham a cabeça toda inchada. Se falassem, diriam coisas bem desagradáveis ao pobre malmequer. A florinha viu isto, e ficou melancólica.

Daí a pouco entrou no jardim uma rapariguita com uma grande faca afiada e brilhante, aproximou-se das túlipas, e cortou-as uma a uma.

– Que desgraça! disse o malmequer suspirando; é horrível; foram-se todas.

E, enquanto a rapariga levava as túlipas, o malmequer alegrava-se por ser apenas uma florinha simples escondida entre as ervas. Agradecido à bondade de Deus, cerrou as folhas ao cair da tarde, e sonhou toda a noite com a luz do Sol e a cotovia.

No outro dia de manhã, assim que o malmequer abriu as folhas reconheceu a voz do passarinho, mas o seu canto era triste, muitíssimo triste. Pobre cotovia! Tinham-na encerrado numa gaiola, suspensa entre uma janela aberta; prisioneira, cantava a alegria da liberdade, a beleza dos campos e as suas antigas viagens luminosas através do espaço ilimitado.

O pequenino malmequer bem desejaria acudir-lhe: mas como? Era difícil. A compaixão pela desventurada cotovia fez-lhe esquecer as belezas que o cercavam, o doce calor do Sol e a alvura resplandecente das suas próprias folhas.

Nisto dois rapazinhos entraram no jardim. O mais velho trazia aberta uma navalha comprida e afiada como a da pequerrucha, que cortara as túlipas. Encaminharam-se para o malmequer, que não lhes compreendia as intenções.

– Levemos daqui um pedaço de erva para a cotovia, disse um dos rapazes.

E começou a fazer um quadrado profundo à volta da florinha.

– Arranca a flor, disse o outro.

A estas palavras o malmequer estremeceu de medo. Ia morrer e nunca abençoara tanto a existência, como no momento em que esperava entrar com a relva na gaiola da cotovia.

– Não; deixemo-la, tornou o mais velho. Está aí muito bem.

Foi por conseguinte poupado, e entrou na gaiola da cotovia.

O pobre passarinho, queixando-se amargamente do cativeiro, batia com as asas sangrentas nos arames da gaiola. E o malmequer, se não falava, como é que o havia de consolar em tamanha dor?

Correu assim a manhã.

– Água! exclamou a prisioneira. Saiu toda a gente, e não me deixaram ao menos uma gota de água. A garganta escalda-me, ardo em febre. Ai! Não há remédio senão morrer, longe do sol esplêndido, longe da fresca verdura e de todas as maravilhas da criação!

Depois mergulhou o bico na relva húmida, para se refrescar um pouco. Viu então o malmequer; fez-lhe um sinal de cabeça amigável, e disse-lhe afagando-o:

– Também tu, pobre flor, morrerás aqui! Em vez do mundo inteiro, que já foi meu, deram-me a tua companhia e este pedacito de relva. Nada mais! Oh! que saudades das belas coisas que perdi!

– Se eu te pudesse consolar! cismava o malmequer, incapaz do mais ligeiro movimento.

No entanto o seu hálito perfumado tornou-se mais intenso que de costume; a cotovia sentiu-o, e, apesar da sede devoradora que a obrigava a arrancar a erva, teve o máximo cuidado em não bulir, nem de leve, na pequenina flor.

Caiu a noite; e não voltara ninguém, que enchesse o bebedouro à desventurada cotovia. Então ela abriu as suas lindas asas, agitou-as angustiadamente, e pôs-se a cantar uma cançãozinha melancólica; e o seu coração, quebrado de penas, enfim, deixara de bater. O malmequer, diante disto, não pôde já, como na véspera, cerrar as folhas e dormir; curvou-se para o chão, doente de mágoa e de tristeza.

Os rapazitos só no outro dia voltaram, e, dando com o passarinho morto, debulhados em lágrimas, fizeram-lhe uma cova. Meteram o cadáver numa caixa vermelha, lindíssima, e celebraram-lhe um enterro grandioso, juncando-lhe a sepultura com folhas de rosas e madressilvas.

Pobre passarinho! Enquanto viveu e cantou, esqueceram-se dele deixando-o morrer à sede na gaiola; depois de morto é que o choraram, prestando-lhe homenagens bem inúteis.

A relva e o malmequer, deitaram-nos à poeira do caminho; a flor, que tão extremosamente amara a cotovia, dessa é que ninguém se lembrou.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Irmão de Pinóquio – II – O pau vivente

A grande idéia de Emília não deixou mais a cabeça de Pedrinho. Só pensava em ir à Itália, ver se no quintal do homem que fez o Pinóquio não existiria ainda um resto do tal pau. Mas ir como? A pé não podia ser, porque era muito longe e teria de atravessar o oceano. De navio também não, porque dona Benta tinha um medo horrível de naufrágios e jamais consentiria que ele embarcasse.

Como resolver o problema? Desta vez foi o Visconde quem teve a melhor idéia. Esse sábio estava ficando cada vez mais sabido, depois da temporada que passou atrás da estante, entalado entre uma Álgebra e uma Aritmética. Por isso só falava cientificamente, isto é, de um modo que tia Nastácia não entendia.

— Eu acho — observou ele cuspindo um pigarrinho – que não é preciso ir à Itália para descobrir madeira com “propriedades pinoquianas”. A Natureza é a mesma em toda parte; e se lá há disso, não vejo razão plausível para que não o haja aqui também. Logo, se você procurar, bem procurado, é possível que descubra em nossas matas algum “exemplar esporádico da mirífica substância”.

Tia Nastácia, que naquele momento ia passando de trouxa de roupa à cabeça, parou, escutou o discurso, de olhos arregalados, e lá se foi, resmungando: “Que mania essa do Visconde de só falar inglês agora! Credo!” Para a boa negra, tudo que ela não entendia era inglês. Mas Pedrinho compreendeu perfeitamente e até se entusiasmou com o que o sábio disse.

— Boa idéia, não há dúvida. Vou amolar meu machadinho e amanhã cedo começarei as “investigações”.

E assim fez. No dia seguinte, logo depois do café botou o machadinho ao ombro e partiu para a floresta disposto a picar todos os paus por lá existentes até encontrar um que desse sinais de vida.

A semana inteira passou naquilo. Não deixava escapar uma só árvore. Golpeava-as todas, e aplicava o ouvido ao tronco para ver se gemia. Muitas choraram lágrimas de resina, mas gemer nenhuma gemeu durante todo aquele tempo.

— Acho que estou fazendo papel de bobo — disse ele um dia ao voltar. — Pau de Pinóquio só mesmo na Itália. A idéia do Visconde está me parecendo como o nariz dele.

Ouvindo-o dizer aquilo, Emília ficou de pulga atrás da orelha. Pôs-se a refletir que se o menino não achasse pau vivente, era capaz de lhe tomar o cavalinho, alegando que sua idéia também era como o nariz de alguém. Pensou, pensou, pensou e por fim concebeu um plano. Foi procurar o Visconde e disse-lhe:

— Largue esse livro (era uma álgebra) e diga-me uma coisa: o senhor Visconde sabe gemer?

— Nunca gemi — respondeu o sábio, estranhando a pergunta — mas não creio que seja muito difícil.

— Então gema um pouquinho para eu ver.

O Visconde, com uma careta muito feia, gemeu em vários tons o melhor que pôde.

— Muito bem — aprovou a boneca. — Sabe gemer, sim, e nesse caso preciso que me preste um grande serviço, Presta?

O velho sábio parece que tinha alguma paixão oculta pela boneca, pois se apressou a fazer uma mesura e a declarar, todo deslambido:

— Dona Emília manda, não pede.

— Pois então venha comigo.

E Emília, sem mais cerimônias, levou-o a certo lugar no campo, para lá da porteira, onde havia um velho tronco de pau caído à beira da estrada. Parou naquele ponto e disse:

— Pedrinho tem o costume de passar por aqui quando volta da mata onde anda procurando o pau vivente. E como está que não pode passar por perto de pau nenhum sem dar um golpe, já estou vendo o jeitinho dele: chega, pára e — pá! machadada neste tronco. Pois bem, vosmecê vai ficar escondido aqui neste oco de pau; assim que ele chegar, parar e der o golpe, vosmecê vai gemer – mas gemer bem gemido, com voz rouca de pau velho, está entendendo?

— Mas para que isso? — atreveu-se o sábio a perguntar.

— Não é da sua conta, Visconde. Faça o que estou dizendo e não discuta.

Nisto Pedrinho apontou lá longe, de machadinho ao ombro.

— Depressa! Depressa, Visconde! — disse Emília, empurrando o sábio para dentro do oco. — Ele vem vindo!...

O Visconde sumiu-se no oco e ela correu para casa antes que o menino a visse por ali e desconfiasse.

Pedrinho chegou e fez como fora previsto. Parou e — machadada. Mas fez aquilo por fazer, pela força do hábito, porque já não tinha a menor esperança de encontrar pau vivente nenhum. Com imensa surpresa sua, porém, o tronco gemeu. — ai! ai! ai! o que o fez dar um pulo para trás como se tivesse pisado em uma cobra.

— Homessa! — exclamou, arregalando os olhos. — Será possível que este tronco tenha gemido ou foi ilusão minha?

Para certificar-se deu novo golpe, mas de longe, meio ressabiado.

— Ai! ai! ai! — gemeu novamente o tronco. Embora andasse já por uma semana a procurar aquilo, Pedrinho ficou seriamente impressionado com o milagre e sem ânimo de meter o machado no pau para cortar o pedaço necessário à fabricação do boneco. Teve de ir ao riacho que corria perto beber uns goles d’água, que lhe acalmassem a agitação e lhe dessem coragem. A água fez efeito.

Pedrinho criou ânimo e, apesar do pau continuar a gemer, cortou dele um bom pedaço, voltando para casa a correr, na maior alegria de sua vida.

Ao penetrar no terreiro deu com a boneca sentadinha na soleira da porta, assobiando o “Pirulito que bate bate” com a cara mais inocente deste mundo.

— Achei, Emília! — gritou o menino de longe.

E ela, com a maior indiferença:

— Que é que você achou, Pedrinho?

— O pau vivente, ora essa! Que é que havia de achar se é só isso que ando procurando?

— Nesse caso, bom proveito! — murmurou a sonsa, sem erguer os olhos e a fingir que estava cavoucando o chão com um pauzinho.

O menino danou. Disse-lhe um desaforo e entrou em casa como um pé-de-vento, ansioso por contar a história dos gemidos.

— Vocês não imaginam que coisa mais espantosa! — gritou quase sem fôlego logo que todos o rodearam. — O pau gemia que nem gente de carne e osso — ai! ai! ai! numa voz que lembrava um pouco a do Visconde. Gemia de cortar o coração! Nunca imaginei que pudesse haver uma coisa assim no mundo! Um assombro!...

Pedrinho teve de repetir a história uma porção de vezes, enquanto o maravilhoso pedaço de pau corria de mão em mão, apalpado, cheirado, provado com a ponta da língua. Só tia Nastácia não teve coragem de chegar perto. Espiou de longe — e nunca fez tantos pelos-sinais nem murmurou tantos credos.

Todos comentavam, menos o Visconde e a boneca. O Visconde fingia-se absorvido na leitura do seu livro de Álgebra, mas na realidade estava observando a cena com o rabo dos olhos; de vez em quando dava sua risadinha. E Emília, essa espiava pelo vão da porta; depois saiu tapando a boca para abafar o riso, indo conversar com o seu cavalinho. Botou-o ao colo e disse-lhe ao ouvido:

— Pedrinho caiu como um pato e com certeza agora não se lembra mais de tomar você de mim. Viva! Viva! Você é meu e bem meu, e tem que brincar comigo o dia inteiro. Antes de mais nada, preciso consertar Vossa Senhoria, pois onde já se viu um cavalo sem rabo? Vou arranjar para Vossa Cavalência um lindo rabo de galo, muito mais na moda que esses rabos de cabelo com que os cavalos nascem, está ouvindo, Senhor Barão Cavalgadura Cavalcanti Cavalete da Silva Feijó?

Estava aberta a célebre torneirinha das asneiras — e aberta ficou durante todo o tempo em que Emília deu voltas pelo terreiro em procura duma boa pena de galo que servisse de cauda para o novo barão.
–––––––
Continua... O Irmão de Pinóquio – III – O concurso

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas de Fim de Ano n. 439)

Uma Trova Nacional

Vai ano velho, de vez,
leve o mal e o duvidoso,
que o Ano Novo em rapidez,
há de ser mais generoso!
–VANIA ENNES/PR–

Uma Trova Potiguar

Este ano, já moribundo,
chora por não ser capaz
de ao menos puxar o mundo
para mais perto da paz!
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

Uma Trova de Ademar


Eu desejo aos Trovadores
com pompa e com muita pose
o pódio dos vencedores
agora em 2012!!!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


O Ano Novo sempre faz
renovar nossa vontade,
de ver a bendita Paz
reinando na humanidade.
–REINALDO AGUIAR/RN–

Simplesmente Poesia

Ano Novo
 –CAROLINA RAMOS/SP–
 

Os sinos sacodem a noite silente!
Apitos, sirenes, febris, a anunciar
que parte o Ano Velho, tristonho e doente,
e  nova esperança começa a brilhar!

Em meio à alegria, que explode em espuma,
transborda de taças e rola no chão,
rasteja a tristeza, fiapos de bruma,
estranha entre risos confete e rojão!

É a mesma tristeza que rima com prece
e aquele que a sente é  incapaz de a entender!
Tristeza que às vezes, receio parece,
receio de tudo que é inútil prever...

Mas, pulsam ao peito, no fundo... bem fundo,
reservas de Amor, e de Fé e Confiança
- um eco escapado aos gemidos do mundo –
e mesmo sofrida... renasce a Esperança!!!

Estrofe do Dia

O Ano Novo vem vindo
no grande trem das mudanças,
vem trazendo os seus vagões
lotados de esperanças,
mas eu só creio em conquista,
se Deus for o Maquinista
desta bem-aventurança!
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Soneto do Dia

Transitório.
 –VANDA FAGUNDES QUEIROZ/PR–


Trezentos e sessenta e cinco dias,
meu calendário, foi seu tempo exato.
Agora é estranho, quando então constato:
- É um bloco velho, já sem serventias.

Mas eu o estimo. As datas foram guias...
Cada lembrete compôs um retrato
do cotidiano que se fez, de fato,
de altos e baixos, sombras e alegrias.

Releio as notas... Dói-me concordar:
- Dever cumprido! Ceda o seu lugar
para o que chega e estreia no cenário.

Tão companheiro, em toda a minha lida
de um ano inteiro... Para mim, tem vida!
– Adeus, meu velho amigo Calendário...
Fonte:
Textos e imagem enviados pelo Autor

Thaty Marcondes (Lembranças de Infância)

Sou de um tempo em que as mulheres não conversavam sobre política: isto era assunto exclusivamente de homens.

 Sou de um tempo em que as crianças iam pra cama quando começava o horário dos noticiários, que não eram considerados apropriados para crianças, devido aos temas “fortes” que abordavam.

 Lembro-me de minha avó - espanhola de traços mouros - cuidando para que tudo isso acontecesse de forma correta, pois não podia perder o controle da casa e da família, para que meu avô - espanhol de traços ibéricos - não perdesse a calma ou alguma palavra do apresentador do Repórter Esso.

 “Lugar de mulher é na cozinha, falando sobre amenidades e trocando receitas” – chavão da época da minha infância.

 Outro chavão: “Lugar de criança, depois das 9 h da noite, é na cama: criança limpa, de dentes escovados, após tomar um leite morno (leite de verdade, não esse leitágua de vaca quadrada de caixinha) e comer uns biscoitos (bolacha Maria ou de Maisena)”.

 E os homens na sala trocando idéias sobre as notícias anunciadas com estardalhaço, bebericavam uma “purinha” de reserva especial que era pra facilitar a digestão. Ficavam até tarde nos bebericos e falações, às vezes se exaltavam quando o assunto era política ou futebol. A avó na cozinha, se alguém precisasse de um café forte pra cortar o efeito do exagero nas doses.

 Se eu ainda fosse criança, naquele tempo novamente, eu não teria visto a CNN espanhola. Eu não teria marejado meus olhos ao ver o povo de meus avós sofrendo de forma parecida ao que seus antepassados um dia fizeram sofrer os antepassados dos assassinos. Afinal, quem matou quem? Caim matou Abel? David matou Golias? A inquisição matou os ímpios? As fogueiras queimaram bruxos? Resumo: gente matando gente, por que o nome de seu Deus é diferente!

 - Mãe, tem uma bolachinha Maria e um leitinho morno? Acho que tá na hora de eu dormir. Não entendo gente grande!

 “Tá na hora de dormir, não espere mamãe mandar;
 um bom sono pra você e um alegre despertar".

Fontes:
Garganta da Serpente. Contos do Coral.
Imagem = Cultura Livre

Quadrinhas para Crianças

Vamos lembrar neste dia
Mais um grande amor da vida,
Que é mãe duas vezes,
A vovozinha querida!

Filhos, meus lindos tesouros,
Pedacinhos do meu ser,
É em vocês que eu encontro
A alegria de viver!

Das coisas mais sublimes desta vida,
A mais sublime que se me afigura,
É minha mãe, a minha mãe querida
Que, das coisas mais puras,
É a mais pura!

Há cirandas de esperanças
Mesmo nas tristes favelas
Onde brincam as crianças,
Brincam os anjos com elas!
Trazendo a força divina
Do amor à luz da esperança,
Mesmo sendo pequenina,
Como é grande uma criança!

Não esbanje tanta água,
Já chega de brincadeira.
Use sempre o necessário
E depois feche a torneira!

Empine o seu papagaio,
Mas tenha muito cuidado.
Não solte perto dos fios,
Solte em lugar descampado!

Da frase “vá tomar banho!”
Tem quem goste ou se zangue.
No entanto o banho é tão bom
Pra circulação do sangue!

Oi, não sinta tanta inveja
Das coisas que os outros têm,
Com trabalho e com vontade
Você poderá ter também!

Higiene, água fervida,
Roupas leves no verão!
Você está se prevenindo
Contra a desidratação!

Comer com a boca fechada,
Faz parte da educação.
Cuidado para não deixar
Cair comida no chão!

Coma legumes verduras,
E muitas frutas também
Mas primeiro não se esqueça,
Lave tudo muito bem!

Ei, cuidado com a porta!
Abra e feche sem bater.
Se ela é tão importante
Pra que fazê-la sofrer?

Êta friozinho danado!
Mas não vou me preocupar,
As festas do mês de junho
Fazem a gente esquentar!

Não coma assim tão depressa,
Mastigue bem devagar,
Não se afobe, pois o prato
Não vai sair do lugar!

Se alguém confia em você,
Dê valor a esse gesto.
Faça tudo direitinho,
Não abuse, seja honesto!

Não faça mal a ninguém,
Reflita muito primeiro.
Não se esqueça que o feitiço
Vira contra o feiticeiro!

Não se esqueça, apague a luz
Quando sair de onde está.
Aprenda a ser responsável,
Começando já!

Coma um pouco de legumes,
Não precisa ser demais,
Se você não come agora,
Depois então, nunca mais!

Não importa se o seu banho
É de chuveiro ou de bacia,
O importante é que você
Tome banho todo dia!

Não entre em conversa alheia,
Porque isso é muito feio,
Deixe a conversa dos outros,
Não ponha a colher no meio!

Marchando bem direitinho,
Seguindo sempre pra frente,
Você fica em boa forma,
Saudável, forte e valente!

Não fique triste se a chuva
Não deixou você sair,
Lembre das flores, das frutas,
E deixe a chuva cair!

Ei, cuidado com o gato,
Não maltrate tanto assim,
Pode ser que os sete fôlegos
Já estejam chegando ao fim!

Não se aborreça se hoje
Você não teve alegria,
Lembre-se que tudo passa,
E amanhã é outro dia!

Você aí, que nas férias
Passeou, brincou demais.
Agora estude bastante,
No fim do ano tem mais!

Pessoa bem educada
Nunca fala palavrão,
Nem que leve martelada
Na pontinha do dedão!

Natal, sensação de paz
Que tão bem envolve a gente!
Oh deus, como eu gostaria
Que a paz fosse permanente!

Aproveite bem as festas,
Coma pipoca, pinhão,
Batata doce, canjica,
Mas nunca solte balão!

O verão já foi embora,
Com chuva raio e trovão.
E o outono já chegou,
A mais suave estação!

Carnaval, festa em que o povo
Não olha raça nem cor.
Todos cantam, pulam, dançam
Sentindo o mesmo calor!

Não deixe que eles perguntem
Se tem baile no salão.
Tire o dedo do nariz
E lave bem a sua mão!

Batatinha quando nasce,
Esparrama pelo chão
Mamãezinha quando deita,
Põe a mão no coração!

Fonte:
Caderno de Leitura.

Visconde de Taunay (Pobre Menino!)

I

Em dia fresco e de chuva miúda, viajava eu na estrada de ferro Central.

Vinha de S. Paulo para o Rio de Janeiro em trem que parecia, contra inveterados hábitos, dever chegar á hora regulamentar.

A locomotiva como que se aprazia a devorar o espaço - na frase consagrada - por tempo tão grato que dispensava calor, poeira e grandes atrasos, e o jornadear, calculado por tabela oficial de paradas certas, inflexíveis, sempre as mesmas, era relativamente agradável.

Na estação do Cruzeiro, onde desde largos anos -ia dizendo séculos - imperam o porte dominados, a alentada bengala, a enérgica gesticulação e as barbas medievais e enchumaçadas do major Novaes, entrou uma família, regressando de Caxambú. Pai, mãe, bastante moços, esta ainda vistosa, bonita, um filho de 12 para 13 anos, visivelmente doente, duas criadas, uma branca, outra preta, e um molecote, vestido de pagem, muitas malinhas de mão, chales, cobertores, travesseiros, garrafas de leite e aguas minerais, embrulhos com restos, sem duvida, da matolotagem, comida á descida da serra. Tudo aquilo ás carreiras se arrumou nos bancos vazios ao lado e ao redor de mim.

Afinal, apitou a máquina e partiu o barulhento comboio.

Cansado de ler, esgotados os jornais de S. Paulo, parcos de novidades, e um tanto aborrecido com um romance de Charles Merouvel comprado no Garraux, que não me interessava, nem merecia interesse, pus-me a observar os recem-chegados.

No rosto de todos, a inquietação, concentrada no menino que, apenas sentado, pedira para se deitar.

_ Sinto-me tão fraco! Exclamou dolente. Não tenho mais forças!...

E com muita solicitude, criadas e molecote, auxiliando apressados os amos e obedecendo-lhes ás indicações, arranjaram os meios de dar melhor cômodo ao doentinho, cujos pés iam além do banco e se contraiam de cada vez que passavam os empregados do trem.

Sim, doente, muito doente até. E tão simpático, tão meigo, uma expressão de tanta doçura na fisionomia, nos olhos bem rasgados, pestanudos, negros, cintilantes, mais do que há vida normal, uns olhos de sofrimento e febre!.... Os lábios como que reviam sangue, de tão rubros; em compensação, as orelhas, muito grandes, desgraciosamente apartadas, da cabeça, umas orelhas desmarcadas, como as do malogrado Napoleão IV, mostravam-se brancas, diáfanas, num grão de deplorável e significativo descoramento.

Impressionaram-me logo de princípio os modos e as observações do menino.

A cada momento, sorria para os pais com imensa ternura, repassada de melancolia, ainda que nessa continua e comovedora carícia transparecesse a vontade de lhes incutir coragem e esperanças.

_ Apesar de tudo, disse todo superexcitado, estou mais valente do que homem. Assim mesmo não posso ainda estar olhando pela janela. Que pena! Tinha tanto que ver! Apenas ficar bom havemos de viajar a valer, não é? Levarei os meus cadernos de estudos e lucrarei muito. Não deve haver melhor modo de aprender do que viajar. O livro vai sempre aberto diante dos olhos... E eu, que fazia outra idéia da Mantiqueira... mais sombria, mais cheia de buracões e pedras. Tão pequenina, que ela é!...

E buscando outra posição, gemeu surdamente.

_ Sentes muita febre, boy? Perguntou a mãe com angustia.

_ Muita, não... já disse á mamãe, menos do que ontem; assim mesmo tenho cá dentro em fogo!... Mas que bonita a serra desde o túnel até ao Perequê!...

_ Talvez a frialdade da agua te tivesse feito mal, observou o pai; dois copos cheios...

_ Que mal, papai? Nunca bebi com tanto gosto, nunca! Eram uns copinhos... parecia que aquela agua devia curar-me afinal...

E como que em subdelirio:

_ Que bonita a descida! Como o céu estava puro! Eu quisera poder, como um passarinho, atirar-me de cabeça para baixo, voando, voando, por cima de todas aquelas montanhas e dobras e matarias! E o sol como brilhava, com um calor tão bom, de saude; não como calor de febre!

Lorena, não é, papai? Já em baixo, na várzea, uns pontinhos brancos. Quanto é boa a vida, a vida... a gente sentir-se valente, robusto... sem necessidade de tanto remédio amargo!

_ Vamos pôr-lhe o termômetro? Propôs a mãe para o marido com uma lágrima a cair-lhe da pálpebra.

Recalcitrou um pouco o pobrezinho.

_ Não, mamãe; sempre esta maçada! Ficar parado um tempão... e para que, afinal? Esta febre não quer me deixar... bem feliz se puder ir vivendo com ela... me acostumando aos poucos.

Resignou-se, porém, com gracioso amuo e quedou-se imovel e silencioso, com o bracinho esquerdo bem encostado ao peito.

E os olhos negros, pestanudos, cintilantes, giravam de um lado para outro, enquanto a ponta da lingua em continua vaivém, molhava os lábios ressequidos e gretados pelo ardor da terrível consumação.

Cruzaram-se os seus olhares com os meus e tiveram como que um sorriso de simpatia e cordialidade, com uma pontinha de vexame por estar assim doente, aniquilado, n'aquella inferioridade da moléstia triunfadora, invicta.

Embora um tanto casmurro na viagem e nada propenso a entabolar relações com adventícios companheiros de caminho, não me contive e, inclinando-me para o lado em que estava a mãe, perguntei-lhe, abaixando a voz:

_ Desde muito enfermo este interessante menino?

Respondeu-me e senhora com verdadeiro açodamento de quem acha uma válvula de expansão a constante e incompreensível sobressalto.

_Muito não... uns quarenta dias. Nem o senhor imagina como boy era forte e são... dormia como um chumbinho... bom apetite sempre, ávido de movimento... Boy não parava..., travesso como um cabritinho, muito bonzinho porém, sempre...

E boy isto e boy aquilo. Chamava-o assim desde criancinha. A madrinha, muito dada a leituras inglesas, lhe pusera essa apelido familiar...

_ De que não gosto nada, interrompeu o menino com engraçada seriedade. Eu me chamo Alberto.

Mas a mãe continuava:

_ Haviam feito, no mes anterior, um passeio fatal á chácara de uns amigos para os lados do Jardim Botânico, ele se agitara de mais com os camaradas numas correrias sem fim, se resfriara...

_Brincaram perto de uma vala aberta de pouco, explicou o pai...

_ A' noite, perturbação de digestão, e desde ai uma febre tenaz, rebelde, que nada pudera atalhar. Tomara já quinino... um despropósito!... um horror!... Depois continuas mudança, Gávea, Engenho Novo, Cascadura, Barbacena, Caxambu, tudo sem resultado...

_ Não há tal, contradisse o pequeno, já estive pior... E não  desanimemos. Olhem, façam tudo para não me deixarem morrer... Tenho tanto que aprender e estudar!... Que atraso este tempo todo em pura perda! Como o Cardoso e o Souza devem ter-se adiantado nas aulas!... Quando é que hei de pega-los agora?...

Não pensava noutra coisa, ia-me dizendo a mãe, enquanto as lágrimas, como que já por hábito, lhe corriam a fio. Tão boa criança, tão estimada de todos, estudioso... tanto estimulo! Uma ambição insaciável de saber... Muitas vezes se levantara ela da cama para apagar-lhe a vela e faze-lo deitar-se... Ardendo em febre, pedia os livros, queria seguir as lições, ouvir os professores... Nunca se vira coisa igual... Tirara já bonitos prêmios... livros muito dourados, com gravuras...

_ Já mamãe está falando de mim, interrompeu Alberto com ligeiro tom de repreensão. Este senhor há de desculpar... é de toda a mãe. Não sou melhor do que tantos outros...

E o seu rosto ensombreceu-se.

_ Pelo contrario, valem mais do que eu, muito mais...

_ Porque, meu amiguinho? Perguntei comovido.

_Oh! Eles têm saude; eu nunca mais hei de tê-la, ainda que escape desta... Tambem, de agora em diante saberei arredar-me sempre de valas abertas... Verdade é que me diverti tanto!

E recomeçava o subdelirio:

Cada qual nascera com a sua sorte. O Carlinhos, que caíra dentro do fosso e se molhara dos pés á cabeça não tivera nada... e ele!... Quanto se rira, que boas gargalhadas dera, vendo o companheiro atolado... Saíra sujo de lama, que era uma miséria... E a borboleta azul que estavam perseguindo fugira, fugira; subindo muito alto... E as asas tinham-se aberto largas, imensas, como um manto... tomando de ali o pouco o céu todo, de ponta a ponta... Tambem, que lembrança, querermos pegar o céu... o céu!

Ai, fazendo um esforço sobre si, perguntou impaciente:

_ Papai, não é tempo de tirar o termômetro? Está me incomodando. Além da febre e sêde... esta caceteação!...

Era tempo.

_Quantos graus? Indagou a mãe com dolorosa sofreguidão.

_ 38º e 8, respondeu o pai. Hoje, bem melhor d o que ontem, pois a esta hora Alberto tinha 39 e 2.

Via-se porém, que encobrira a verdade, pois destoavam as aquietadoras palavras com o ar de desalento que simultaneamente se lhe estampava no rosto. Ao guardar o termômetro no estojo de metal, fez-me imperceptível sinal.

Levantei-me e fingi que ia refrescar o rosto no cubículo ao lado, poeirento e sujo toilette do vagão.

Daí a pouco, chegava o homem.

_ 39 e 8, foram as suas primeiras palavras, pontuadas de terror.

E, acabrunhado, pôs-me a contar o caso, banal, diário, tão comum, mas sempre pungitivo da sua imensa desgraça. Esse menino, a alegria da sua vida, a vida da sua mulher, ricos eles, sem mais objetivo algum na existência. Agora, aquela febre invencivel, que zombara de tudo e lhes estava matando a adorada criança, debaixo dos olhos, dia por dia. Mudem de ares, era o incessante conselho dos médicos; o recurso único que lhes restava. E não faziam outra coisa; de um lado para outro, semanas inteiras. Para onde mais ir? E os terrores em lugares distantes, ermos, sem recursos, sem para quem apelar, quando vinham acessos de estupenda violência!...

Ao tomar então nos braços o filho, parecia que o tirava de um braseiro... queimava... Como poderia por mais tempo resistir organismo tão delicado?... Que cruel expiação era essa? E expiação porque? Afinal, nem ele, nem a mulher tinham culpas ou crimes a pagar? Porque os esmagava, tão dura, a mão de Deus? De que o acusava a justiça eterna? Confessava Ter sido sempre bastante orgulhoso dos haveres herdados e sobretudo daquele filho tão perfeito... Mas quem o fizera assim? Não fora a própria natureza? Casara-se por amor com uma moça pobre, rejeitando propostas de enlaces ricos. Nunca se arrependera, porém... haviam, até pouco, sido tão venturosos! Parecia que a felicidade era um crime. A vida devia ser triste, agoniada, passada em lágrimas e travada de amargos desgostos...

E ao dizer tudo isso, apesar de violento esforço, tinha as pálpebras molhadas. Via-se que aquele homem sofria cruelmente, sobretudo na altivez inata, ao ter que abrir o peito, por irresistível impulso, a um desconhecido que arvorava, na conturbação da sua dor, em amigo e amigo intimo.

Pouco se importara, a principio, com a tal febre, não pelas afirmações, sempre tranquilizadoras, dos muitos médicos consultados, a mestrança, portanto, graças a Deus, podia paga-los generosamente; mas afigurava-se-lhe impossível, fora de toda a ordem, lei e justiça, que a vida do seu Alberto pudesse perigar. Nem de leve lhe passara isso pela mente... nunca!...

Um menino destinado a tanta coisa! Havia de ser, por força, homem excepcional, conquistar as mais altas posições no Brasil, dando prestigio á enorme fortuna que lhe era destinada... Herdeiro universal do avô riquíssimo, com duas tias solteironas, de que era o ai-Jesus, ambas com muitas posses, quem podia contar com futuro mais brilhante?... Eles, os pais, tinham de renda mensal nada menos de cinco contos e gastavam-na com regra e prudência, fazendo ás vezes apertadas economias, para que o Alberto na sua carreira política jamais se preocupasse com o dinheiro, encontrando-o sempre á mão... Tudo isso, tudo seria debalde? Arredava do espirito á possibilidade de irremediável desastre...mas...

E a custo lhe saiam as palavras... mas a morte a nada atende... a nada! É inexorável!

Prorrompendo então em soluçoso pranto, agarrou-se a mim, convulsivamente.

_ Ah! meu filho, Alberto! Quanto é castigada a minha soberba! Está perdido... perdido!... E por quanto tempo, por quantos dias ainda o hei de possuir?

Sacudi-o com certa energia:

_ Silencio! Sua senhora pôde ouvi-lo! Olhe, lave o rosto; esconda os sinais da sua comoção.

Naturalmente exagerava o perigo...

O desconsolado pai abanou a cabeça; mas obedeceu-me opresso e alquebrado.

II

Quando voltamos aos nossos bancos, parecia Alberto presa de agitado sono. Pelo menos, tinha as pálpebras caídas, como que prostradas por vontade alheia ao organismo.

Via-se que febre intensa lhe trabalhava nas veias - faces escarlates, beiços rubros, estremecimentos repetidos por todo o corpo, fulgurantes. Relâmpagos de frio - assim nos dissera - lhe ziguezagueavam pela espinha dorsal, contraindo-lhe, de cada vez, os bracinhos magros, descarnados.

_ Agua, agua, murmurou a custo, depois de algum tempo e abrindo com sofreguidão os lábios secos, ávidos.

O molecote, Apresentou-lhe rápido um copinho de leite, cortado com agua mineral.

_ Mió , nhonhô? Perguntou baixinho com expressão de tocante e inquieto interesse , miósinho .

Com um gesto de dedo, respondeu não o pobre do menino.

Em estática e inexcedivel desolação, o contemplava a mãi, aconchegando os cobertores, quando um movimento mais impaciente e vivo do doente os atirava ao chão, naquelas cruelíssimas alternativas de algidez e de inaturavel calor.

_ Apenas chegarmos ao Rio- disse ela para o marido, que, sorumbatico, olhava pela janela a fugitiva paisagem - devemos logo embarcar, fazer uma longa viagem de mar, talvez até á Europa...

Entreabriu Alberto os olhos e, em tom de ligeira malícia, objetou:

_ Ora, a malvada embarcará conosco... Está dentro de mim; não me largará mais...

E o trem corria, corria! Entre Mendes e Rodeio, engolfou-se no túnel grande, acordando barulhos ensurdecedores, de fantásticos ferros a se chocarem, sopros gigantescos, estalos enormes e sufocadora fumaça.

_ Mamãe... mamãe! Chamou o menino com indivisível angustia.

E ela, inclinando-se toda sobre o malsinado, como que a defende-lo de misterioso inimigo, a chorar, o acalentava, qual criancinha de berço.

Ia então desembocando em ofuscadora claridade a locomotiva, triunfante e a apitar estridente e galhofeira.

_ Como é boa a luz, como é boa! Exclamou Alberto erguendo nervosamente a cabeça e com ar de verdadeira exultação. Pensei que ia morrer. A morte deve ser assim; um túnel, do qual a gente não sai mais nunca, comprido, comprido e tão escuro, Santo Deus!... E onde a boa mamãe para animar o filhinho... só, abandonado!...

Não sei por que, julguei dever intervir, como que desvendar consoladora clareira ás negras idéias daquele menino tão combalido e ameaçado.

_Não, Alberto, repliquei com involuntária gravidade e imposição, na morte há tambem muita luz, muita esperança, muito céu, o verdadeiro céu, sempre azul e grandioso... Na morte, mil alegrias e gozos esperam a alma, como a vida não as pôde dar...O túnel acaba logo... começa depois sem demora a realidade, eterna, cheia de encantos e esplendores... Ilimitada é a bondade do imenso Criador!

E estaquei, vexado do que acabara de expender na vivacidade espontânea daquela espécie de preleção tão descabida. Mostrara Alberto certa surpresa ao ouvir essas palavras, e, encarando-me muito sério, respondeu com resignado desalento.

_ Pode ser, pôde bem ser... mas eu não quero ainda morrer!...

E retraiu-se ao silencio. De vez em quando tiritava, encolhendo-se todo e a bater os queixos.

Buscava, porém, cauteloso, dominar manifestações que impressionassem mais os pais, atentos ao menor sintoma de agravamento, tão atentos quanto impotentes e vencidos; pobres, pobres pais!

Passada a estação de Belém, já noite escura, observou a mãi, para dizer qualquer coisa, que o trem não parava mais senão no Rio, no campo da Aclamação.

Contrariou-a Alberto com inesperada alacridade e, nos olhos subitamente acesos, pareceu Ter singular prazer em assentar incontestável verdade:

_ Não, senhora; pára ainda em Cascadura.

E como suscitasse duvida o que afirmava, eu mesmo opinando contra ele, mostrou bastante resolução e jovialidade em sustentar a sua asseveração.

_ Você não se lembra, José, que o trem de São Paulo costuma parar em Cascadura?
Perguntou para o molecote, levantando-se a meio.

_ Iô , nhonhô? Respondeu o pajenzinho todo assarapantado , iô , não... ué!

E tal a figura atrapalhada do negrinho pela obrigação de interpôr juízo no debate, que não pudemos, todos nós, deixar de sorrir.

_ Que tolinho! Exclamou Alberto.

E deu uma risadinha gostosa. Depois caiu novamente em comatoso abatimento. E, á luz vacilante, cheia de vaivéns, quasi sinistra das fumosas lâmpadas, o íamos observando, cada qual entregue a penosas meditações que se concentravam, em doloroso acordo, num ponto único.

Identificado, como se fosse velho amigo, ou, mais ainda, parente chegado dessa gente, que eu nem de longe conhecia, cujo nome ignorava e nem sequer procurava saber, sofria com eles numa contenção dura, cruciante, numa afinidade afetiva de maior intensidade e violência.

Que viagem interminável! Que hora aquela! Tudo tão sombrio em torno de nós! Cessara a chuva; mas as trevas úmidas, gotejantes, se condensavam carrancudas, caliginosas, como que palpáveis. E a cada estação eram apitos e assobios de perfurarem os ouvidos, ou então clamores angustiosos e um bater de sino melancólico, lúgubre, a dobrar finados.

_ Ainda por cima este agouro, murmurou uma das criadas num como muchôcho.

Em Cascadura parou, com efeito, o expresso , e um trem de subúrbios com ele cruzou num estrondear ensurdecedor de fragorosos gritos, uivos e sibilos, como que a anunciarem pavoroso e irremediável desastre, choques horríveis, encontro medonho.

_ Boy, boy , clamou a mãi simulando certo jubilo, você é que tinha razão! Olha...

_ Nhonhô, nhonhô, avisou por seu turno o molecote achegando-se e puxando de leve o doentinho por um braço, tá hi Cascadura.

Conservou-se Alberto inerte, indiferente, suspirou apenas com mais força.

_ O túnel... o túnel... Depois vem luz e céu... Bem me disse o homem...

_ Não será bom ver o termômetro? Propôs a mãi com respiração cortada, ofegante.

_ Não, mamãe, pelo amor de Deus, pôde ainda implorar o pequeno.

Já ai entráramos na zona dos subúrbios e os lampiões de gás, cada vez mais chegados, indicavam a proximidade da capital. As estações todas iluminadas, cheias de burburinho e animação populares. Numa delas tocava uma banda de música saltitante peça e o contraste desses alegres compassos mais me apertou o coração.

Revoltava-se, contudo, o meu egoísmo. Que necessidade essa de me associar a todo aquele drama intimo, que me trazia tão consternado enquanto me abalava o systema nervoso? Por que não mudava de lugar, não procurava outro qualquer vagão? Afinal, não era aquilo tão comesinho? Não assistira a tantos episódios de agonia e morte? Mais uma criança que desaparecia no  insondável... para dar razão ás estatísticas. Que importancia no desenrolar geral da existência? Gota d'agua pura e cristalina a cair no abismo... Não era, mesmo por isto, um afortunado da sorte? Saía da vida sem as misérias e desilusões que a vão assaltando... limpo de toda a poeira e lama...

Procurava distrair o espirito; mas ai se me prenderam as vistas insistentes, teimosas, hipnotizadas aos olhos então largamente abertos de Alberto, não mais desassossegados e em tresvario, mas num movimento lento de oscilação, como que destacados das órbitas a se mexerem um tanto ao acaso. De quando em quando parecia que se sumiam, caídos, sem mais apoio, dentro do crânio vazio, oco. E me diziam, assim mesmo, tanta coisa, me falavam de tantos mistérios, me interpelavam com tamanha ansiedade!...

Interrogavam súplices, meigos, quem, em boa hora, lhe dera do mundo de além idéia outra, que não de simples terror e aniquilamento para sempre, n'aquelle instante tão proximo da suprema partida.

Sim, deveras, lá, fora daqui, tambem sóis, tambem flores, esperanças, carinhos? Tambem o aconchego doce, protetor de entes bons, superiores, compassivos? Palavra?! Podia confiar?

Não o quisera enganar... A leva-lo d'alli a pouco, longe, longe, pela imensidade na desconhecida viagem, o regaço de algum anjo, faria vezes da estremecida mãi? Para que, porém, deixa-a? Para que despedaçar o coração daqueles fulminados pais? Amavam-no tanto, tanto!

Quem incutira, porém, a esse homem desconhecido o poder de saber quanto se passava da outra banda da vida? Talvez fosse um desses anjos destinados a carrega-lo, não era?... Ah! o disfarce mostrava-se bem claro! Por que, porém, não se deixava enternecer? Não via a pungente dor dos que o cercavam? Pedisse a Deus misericórdia... consentisse-lhe o viver... A ninguém, nunca fizera mal algum... Prometia tudo... não por ele, mas pelos pais... Passaria os anos a estudar, a dispensar o bem, o amor, a pagar a divida solene de interminável gratidão! Senta quieto, refletido, honesto, caridoso, a sacrificar-se pelos outros, por todos...amigo dos humildes, dos mendigos e desgraçados!... Mas tivesse pressa... do contrario não o acharia mais na terra... Bem sentia a morte...sim, a morte...

Passou mais um trem de subúrbios com assustador estampido:

Ouvisse, ouvisse!... Ai vinha ela... Que medo!... E já estava como que sozinho... via-se na cova estreita com um mundo de terra por cima do seu corpinho tão batido pela moléstia!

_ Não, não! Havia de Ter coragem... dominava o seu terror, embora bem justo, bem natural!...

Criança, saberia morrer como homem... Poderia estar chorando nos braços de pai e mãe, mas para que? Para tortura-los mais? Quem sabe se não haviam de morrer tambem ali! Viessem, viessem para cobrirem de flores o cantinho que eternamente o acolheria no cemitério, alvo, consolador com tantos cruzes e anjinho de mármore a rezarem.

Debalde buscava eu fugir à obsessão. Duas vezes me levantei; mas irresistivelmente voltava a conversar com aqueles olhos, cada vez mais resignados, penetrantes e de dolorosa eloquencia, cheios de surpresas, desconsolos e revoltas, com energia sopitados...

É preciso, é preciso; que fazer?

Bem quisera estar pensando, como menino, em coisas fúteis e risonhas e da sua idade, mas tinha por força que cuidar no que há de mais sério e triste, na morte... morte!

E já as pupilas negras, virando de vez em quando, se escondiam sob as arcadas orbiculares, buscando ver além, para dentro do pobre organismo combalido... E já se fixava, no bater lento das pálpebras pesadas, plúmbeas, impenetrável, o branco das escleróticas, como alvacento pano caído de cena finda, acabada...

E os bicos de gás iluminavam de fora, intermitentemente, o vagão, como que em fantasmagórica visita, dando repentina luz a todos os recantos ou deixando-o de súbito em completa escuridão...

Íamos chegando, e no rostinho de Alberto se desdobrava o palor dos ultimos instantes. Desbotava-se a rubidez das faces incendiadas e afilava-se, a mais e mais, o nariz correto, aquilino.

Já a luz elétrica chegava até nós.

E o trem estacou com o baque de definitiva parada, salteado pelos carregadores em grita:

"Malas, malas! Bagagens! N. 20, n. 53!"

_ Leve ao ombro o seu filho, disse eu para o pai, ele está...

E a palavra "expirando" ficou-me atravessada na garganta.

Parado, imovel, os vi partir, a todos. O pai, na frente, com o sagrado fardo, a mãe, trôpega, fora de si, no braço das criadas em soluços, atrás o molecote com cobertores e chales...

E no vagão vazio, como que continuei a fitar aqueles olhos ardentes, indagadores, tão suaves no ingente desespero, na duvida do problema eterno...

Poor boy, alas!

Fonte:
Visconde de Taunay. Ao Entardecer (contos). SP: Cia. Melhoramentos de São Paulo.

J. G. de Araújo Jorge (Trevos de Quatro Versos) Parte 2, final

"REALEJO..."

Coração – pobre realejo –
com canções velhas e novas...
Tudo o que sinto, e o que vejo,
vais tocando.. . em minhas trovas…

"QUEM CALCULA ?"

Ao ler uma bela trova
depois que pronta ficou,
- quem calcula a dura prova
por que o poeta passou ?

"O ETERNO TRIÂNGULO... "

Aos meus ciúmes doentios
Tu me disseste ainda nua:
- De olhos abertos sou dele!
De olhos fechados, sou tua!

Ciúme tolo, policial,
Tão pretensioso, irritante,
Se eras casada... e afinal
Eu era apenas... amante...

E eis a suprema ironia
Ao meu coração ferido:
- tu foste trair-me um dia,
Mas, com quem? - com teu marido...

(Ó Amor, como desandas!)
Ontem, ciúmes... mil espreitas...
Hoje, nem sei onde andas,
Nem em que cama te deitas…

"SER MÃE..."

Quando todos te condenem
quando ninguém te escutar,
ela te escuta e perdoa,
pois ser mãe – é perdoar!

Quando todos te abandonem
e ninguém te queira ver,
ela te segue e procura
pois ser mãe – é compreender!

Quando todos te negarem
um pão, um beijo, um olhar,
ela te ampara e acarinha
pois ser mãe – sempre é se dar!

"DIÁLOGO IMPOSSÍVEL"

Chama-me tu, por favor,
Se estamos juntos, e a sós...
- não ponhas este Senhor
tão importuno... entre nós...

Tu tão moça, eu tão vivido...
Tantos anos de permeio.
- Bem poderias ter sido
o grande amor que não veio...

Tu, moça, bela, tão calma...
Eu, inquieto, a alma ferida...
- O diabo leve a minha alma!
- Quero o amor de Margarida!

"PORTUGAL"

Portugal, que, num segundo
da História, - do "era uma vez"
fizeste do mar - um mundo!
E o mundo - um mar português !

Portugal de D. Diniz
que em seus pinhais, em Leiria,
plantava naus que, feliz
o Infante Henrique, colhia!

Araste o Mar – tuas velas
abriram caminhos novos...
Teus grãos – eram caravelas!
E as colheitas – eram povos!

"VOCÊ... E O NATAL..."

Festa na terra e no céu...
Só eu só... tão triste assim...
- Quem dera Papai Noel
trouxesse Você pra mim!

Quem dera Papai Noel
descendo pelos espaços
me desse um pouco de céu
pondo Você em meus braços...

Neste dia belo e doce
de festa, - sentimental,
- quem dera que Você fosse
meu presente de Natal !

"FILOSOFIA..."

Você quer mesmo saber
como a vida se levar ?
Pois é... primeiro viver...
e depois... filosofar...

Vou pisando folhas mortas
sem amanhã... Sigo a esmo...
Fecham-se todas as portas...
Sou o fantasma de mim mesmo...

Disse Jesus certo dia
com bondade e com saber
- há mais alegria em dar,
muito mais - que em receber !

Não tinha paz nem descanso...
O amor... a vida.... – Voragem !
Hoje, a saudade é um remanso
a refletir a folhagem...

Diz que é rico... Pode ser...
Mas pode ser que não seja...
Ser rico é apenas poder
fazer o que se deseja...

Nessa eterna e dura lida
renasço a cada momento
lavando as dores da vida
no rio do esquecimento...

Onde o sonhar de outra idade?
A fé que tive, e perdi?
Hoje chego a ter saudade
daquele... que já morri...

Tu queres mais, sempre mais...
Sê comedido, prudente...
Até o bem quando é demais
acaba enjoando a gente...

Livre da dor, do desgosto,
mais feliz o homem seria
se assim como lava o rosto
lavasse a alma todo o dia.

Paro, as vezes, num momento
feliz, que se vai embora,
e enquanto o vivo, a perde-lo,
sinto saudades... de agora.

- "Crê na Vida"- eis o conselho
da esperança ante a desgraça,
se a face do fria do espelho
de calor ainda se embaça...

Pobre alma triste a cativa !
E há quanta gente como eu
a pensar que ainda está viva
sem saber que já morreu

"UVAS..."

Teus seios - frutos maduros.
cachos de uva, de um pomar
guardado por altos muros,
que apenas vejo ao passar...

Alcançá-los, ninguém ousa,
penso, em angústia perene,
- a me sentir a raposa
da estória de La Fontaine…

"SORRIA..."

Esperava tanta luta
e tão pouco foi preciso:
ao invés da força bruta
ele empregou... um sorriso...

Eis a arte de viver
num conselho dos mais sábios:
às vezes, para vencer
basta um sorriso nos lábios...

Nem tanta coisa é preciso
para evitar-se um revés...
- Tão pouco... basta um sorriso
e eis todo mundo a teus pés…

"MÃOS..."

 Como aves desarvoradas
Depois de roteiros vãos
Tuas mãos vieram, cansadas,
Se aninhar em minhas mãos...

Há momentos... Acontece...
Puro, o amor pode ficar,
Como duas mãos em prece,
Esquecidas, a rezar...

Quando maior é o carinho
Às vezes, tenho a impressão
De que conversam baixinho...
Tua mão... em minha mão...
Fonte:
J.G. de Araujo Jorge . Trevo de Quatro Versos". 1. ed. Livraria São José, 1964.

António Botto (A Nuvem)

Certa noite, muitas nuvens pequeninas, dispersas no espaço, juntaram-se e formaram uma grande nuvem. Na manhã seguinte, os campónios exclamara, contentes:

- Até que enfim, vamos ter chuva!

Passaram dois dias; outros dois dias passaram, e a nuvem, agora maior, nem uma gota deitava.

- Que nuvem será esta?, diziam eles, que parece prometernos a bênção da chuva e não nos dá essa alegria? O dever de uma nuvem é desfazer-se em água, diziam os mais impacientes, a caminho da casa de um sábio.

Chegaram, bateram à porta e o sábio veio atendê-los.

- Tu que sabes tanto e que lês tantos livros, diz-nos o que devemos fazer para que o céu nos dê água.

- Não posso atendê-los, respondeu o sábio. Estou a ver se encontro a dedução de um alto pensamento e não posso, por agora, distrair-me com insignificâncias...

Fechou a porta, pôs os óculos e voltou a debruçar-se sobre os velhos alfarrábios.

Os campónios, desiludidos, diziam uns para os outros:

- Este sábio é como a nuvem; é como a nuvem, o maroto! Porque ter muito é o mesmo que não ter nada, se esse muito não servir para alguma coisa na vida.

Fonte:
Os Contos de Antonio Botto. RJ: Livraria Bertrand.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Irmão de Pinóquio – I – O Irmão De Pinóquio

— Coitada de vovó! — disse um dia Narizinho. — De tanto contar histórias ficou que nem bagaço de caju; a gente espreme, espreme e não sai mais nem um pingo.

Era a pura verdade aquilo — tão verdade que a boa senhora teve de escrever a um livreiro de São Paulo, pedindo que lhe mandasse quanto livro fosse aparecendo. O livreiro assim fez. Mandou um e depois outro e depois outro e por fim mandou o Pinóquio.

— Viva! — exclamou Pedrinho quando o correio entregou o pacote.

— Vou lê-lo para mim só, debaixo da jabuticabeira.

— Alto lá! — interveio dona Benta. — Quem vai ler o Pinóquio para que todos ouçam, sou eu, e só lerei três capítulos por dia, de modo que o livro dure e nosso prazer se prolongue. A sabedoria da vida é essa.

— Que pena! — murmurou o menino fazendo bico. — Não fosse a tal sabedoria da vida, que nunca vi mais gorda, e hoje mesmo eu dava conta do livro e ficava sabendo toda a história do Pinóquio. Mas não! Temos de ir na toada de carro de boi em dia de sol quente — nhen, nhen, nhen...

Sua zanga, porém, não durou muito, e assim que chegou a noite e tia Nastácia acendeu o lampião e gritou o “É hora!”, ninguém se mostrava mais assanhado que ele.

— Leia da sua moda, vovó! — pediu Narizinho. — A moda de dona Benta ler era boa. Lia “diferente” dos livros. Como quase todos os livros para crianças que há no Brasil são muito sem graça, cheios de termos do tempo do onça ou só usados em Portugal, a boa velha lia traduzindo aquele português de defunto em língua do Brasil de hoje. Onde estava, por exemplo, “lume”, lia “fogo”; onde estava “lareira” lia “varanda”. E sempre que dava com um “botou-o” ou “comeu-o”, lia “botou ele”, “comeu ele” — e ficava o dobro mais interessante. Como naquele dia os personagens eram da Itália, dona Benta começou a arremedar a voz de um italiano galinheiro que às vezes aparecia pelo sítio em procura de frangos; e para o Pinóquio inventou uma vozinha de taquara rachada que era direitinho como o boneco devia falar. Os primeiros capítulos lidos não deram para fazer uma idéia da história. Mesmo assim Pedrinho declarou que se simpatizava com o herói.

— Pois eu não! — contraveio Narizinho. — Esse freguês não me está com cara de ser boa bisca. E você, Emília, que acha?

A boneca estava pensativa, de mãozinha no queixo.

— Eu acho — respondeu ela — que achei uma grande coisa.

— Diga!

— Não posso. Não é coisa de ir dizendo assim sem mais nem menos. Só direi se Pedrinho me der aquele cavalinho de pau sem rabo que está na gaveta dele.

Emília sempre fora interesseira, mas depois que encasquetou a idéia de tornar-se a boneca mais rica do mundo (rica de brinquedos), virou uma perfeita cigana, dessas que não fazem nada de graça.

— Pode ser que dê — disse o menino. — Se a idéia for aproveitável...

— Jura que dá?

— Não duvide de mim. Você bem sabe que sou menino de palavra.

— Pois minha idéia é esta: Se Pinóquio foi feito de um pedaço de pau vivente, bem pode ser que ainda haja mais pau dessa qualidade no mundo.

— E que tenho eu com isso?

— Tem que, se houver mais pau dessa qualidade, você poderá arranjar um pedaço e fazer um irmão do Pinóquio!

Todos se entreolharam, admirados da esperteza da boneca. Pedrinho chegou a entusiasmar-se com a idéia.

— É mesmo! — exclamou arregalando os olhos. — A idéia é tão boa que só admiro de ninguém ter pensado nisso antes. Pode ir lá ao meu quarto, Emília, e tirar o cavalinho da gaveta.
–––––––
Continua... O Irmão de Pinóquio – II – O pau vivente

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Trova 216 - Francisco Pessoa (CE)


Caderno de Leitura (Poesias para Crianças 1)

OU ISTO OU AQUILO
CECÍLIA MEIRELES


Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.

AS BORBOLETAS
VINÍCIUS DE MORAES

Brancas
azuis
amarelas
e pretas
brincam
na luz
as belas borboletas.

Borboletas brancas
são alegres e francas.

Borboletas azuis
gostam muito de luz.

As amarelinhas
são tão bonitinhas!

E as pretas, então...
oh, que escuridão!

LEILÃO DE JARDIM
CECÍLIA MEIRELES


Quem me compra um jardim com flores?
Borboletas de muitas cores,
lavadeiras e passarinhos,
ovos verdes e azuis nos ninhos?
Quem me compra este caracol?
Quem me compra um raio de sol?
Um lagarto entre o muro e a era,
uma estátua da primavera?
Quem me compra este formigueiro?
E este sapo, que é jardineiro?
E a cigarra e a sua canção?
E o grilinho dentro do chão?
(este é o meu leilão!)

A MINHOCA
ELIAS JOSÉ


A minhoca sai da toca
e se estica e se enrosca.

O pescador quer pegar
a pobre da minhoca.

A galinha quer comer
a saborosa minhoca.

O moleque quer espremer
pra separar terra e minhoca.

A minhoca, que não é tonta,
logo se estica e se enrosca.

A terra enterra a minhoca
e ninguém viu a sua toca.

Lá de sua toca, toda torta,
torce de rir a levada minhoca.

TOLAS PERGUNTAS
ELIAS JOSÉ


Onde estará o rato
que se escondeu no meu sapato?

Onde estará o meu sapato
que escondi perto do gato?

Onde estará o gato
que miava chamando o pato?

Onde estará o pato
que nadava feito um peixe?

Onde estará o peixe
que nadou no fundo do rio?

Onde estará o rio
que caminhava para o mar?

O rio virou mar
que deixou encantados
o rato, o gato, o pato e o peixe.

CRIANÇAS LINDAS
RUTH ROCHA


São duas crianças lindas
mas são muito diferentes!
Uma é toda desdentada,
a outra é cheia de dentes...
Uma anda descabelada,
a outra é cheia de pentes!
Uma delas usa óculos,
e a outra só usa lentes.
Uma gosta de gelados,
a outra gosta de quentes.
Uma tem cabelos longos,
a outra só corta rentes.
Não queiras que sejam iguais,
aliás, nem mesmo tentes!
São duas crianças lindas,
mas são muito diferentes!

VALSA DAS PULGAS
RUTH ROCHA


As pulgas dançando
no meio da rua
dão pulos e pulos
sob a luz da lua.

No baile das pulgas
o passo é assim:
Três passos pra um lado
e entra o cupim.

Cupim dá três passos
pra lá e pra cá
e a pulga contente
toma guaraná.

Quem toca a valsinha
é o sabiá
e as pulgas pulando
pra lá e pra cá.

O GATO
MARINA COLASANTI

No alto do muro
Pulando no escuro
Miando no mato
Entrando em apuro
É o gato, seguro.

De antigo passado
E jeito futuro
Movimento puro
Ar sofisticado
É o gato, de fato.

Só pode ser gato
Esse bicho exato
Acrobata nato
Que só cai de quatro.

GALINHA D’ANGOLA
ROSEANA MURRAY


A galinha d’angola acaricia
o dia com a sua cantoria:
Tô fraco’ tô fraco’ tô fraco’
O menino tira o milho da sacola
e dá de comer à galinha d’angola
Come tudo a angolinha,
mas continua a ladainha:
Tô fraco’ tô fraco’ tô fraco’
Na beira do lago suspiro o sapo:
Que galinha mais fominha!

BEIJA-FLOR
ROSEANA MURRAY


Beija-flor pequenininho
que beija a flor com carinho
me dá um pouco de amor,
que hoje estou tão sozinho...

Beija-flor pequenininho,
é certo que não sou flor,
mas eu quero um beijinho
que hoje estou tão sozinho...

BARCA BELA
ALMEIDA GARRET


Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela,
Ó pescador?

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Ó pescador!

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Ó pescador!

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Ó pescador!

Pescador da barca bela,
Ainda é tempo, foge dela,
Foge dela,
Ó pescador!

A BAILARINA
CECÍLIA MEIRELES


Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.
Não conhece nem dó nem ré
mas sabe ficar na ponta do pé
não conhece nem mi nem fá
mas inclina o corpo para cá e para lá.
Não conhece nem lá nem si,
mas fecha os olhos e sorri.
Roda, roda, roda com os bracinhos no ar,
e não fica tonta nem sai do lugar.
Põe no cabelo uma estrela e um véu
e diz que caiu do céu.
Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.
Mas depois esquece todas as danças
e também quer dormir
como as outras crianças.

TANTA TINTA
CECÍLIA MEIRELES


Ah! Menina tonta,
toda suja de tinta
mal o sol desponta!

(Sentou-se na ponte,
muito desatenta...
E agora se espanta:
Quem é que a ponte pinta
com tanta tinta?...)

A ponte aponta
e se desaponta.
A tontinha tenta
limpar a tinta,
ponto por ponto
e pinta por pinta.

Ah! Menina tonta!
Não viu a tinta da ponte!

A FOCA
VINÍCIUS DE MORAES


Quer ver a foca
ficar feliz
é por uma bola
no seu nariz.

Quer ver a foca
bater palminha
é dar a ela
uma sardinha.

Quer ver a foca
fazer uma briga
é espetar ela
bem na barriga.
Fonte:
Caderno de Leitura: textos e poesias.

Hiroko Hatada Nishiyama (As Borboletas)

Nesta sala vazia, relembro os momentos alegres e descontraídos das nossas risadas e piadas, nem parece que faz um ano que estou sozinha.

Aproxima-se um novo ano, e é impossível não fazer uma retrospectiva para avaliar nossos sonhos e realizações.

Quando soube que você estava esperando nenê, depois de cinco anos de tentativas, chorei de alegria! Você voltaria dia 30, e não voltou…

No mesmo dia, soube que o nosso amigo Alemão, tinha quebrado a perna, jogando futebol! Ele sempre foi fraquinho…

Não sei explicar como me senti, duas surpresas no mesmo dia, não é brincadeira.
Agora estou aqui sozinha. Parece que o desejo seu e do Alemão foram atendidos, pois não é que ele ganhou na loteria? vai passear com a esposa na Alemanha.

Neste ano, choveu demais, fez calor demais.

E as borboletas acabaram de invadir minha sala novamente. Algumas pequenas, outras maiores mas todas azuis com asas transparentes, iridescentes!

Mas este ano, as campanhas anti-fumo e anti-álcool continuaram, sem muito impacto, tudo muito devagar.

Uma borboleta pousou agora na minha cadeira, linda.

No dia da Padroeira Nossa Senhora da Aparecida, em outubro, aconteceu a maior demonstração de fé, está todo mundo precisando do auxílio lá do Alto. As orações diárias não estão atendidas. Assim como meu pedido!

Mas a Semana da Criança, foi um sucesso. Até na mais longínqua cidadezinha, houve uma grande distribuição de doces e brinquedos e muito, muito carinho!
Uma borboleta acabou de pousar no meu ombro, maravilhosa. Daqui a pouco irá embora, como meu sonho!

Pois então, o meu pedido não foi atendido: não encontrei ninguém para morar no meu coração. Continua vazio à espera de um príncipe que me leve num cavalo branco para um castelo encantado, como nos contos de fada!

Mas numa análise mundial, este ano foi definitivamente positivo: os nascimentos superaram os óbitos. Isso é muito bom: quem sabe já está entre nós o gênio que salvará o mundo do caos ecológico, a cada dia mais e mais evidente.
As borboletas estão cada vez mais pousando na minha mesa, na cadeira e até no meu lápis. Daqui a pouco desaparecerão na fresta do papel de parede que adorna minha sala!

Estou ouvindo passos de alguém aproximando-se, a fim de me levar a um passeio pelo jardim maravilhoso que circunda esta casa!

Mas, no Ano que se aproxima, tenho certeza que será um Ano de Renovação Espiritual, trazendo o Princípio da Paz, da Amizade e do Amor Universal.

Estes não são apenas votos e desejos, mas uma Oração para que o Ano Entrante seja pleno de Luz nos corações de todos os viventes!

Adeus Ano Velho!

Feliz Ano Novo!

Fonte:
Texto enviado por Carlos Leite Ribeiro

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas de Ano Novo n. 438)

Uma Trova Nacional

Que se alegre este meu povo
sempre lutador e audaz;
que o meu BRASIL no ano novo
alcance o progresso, em paz!
–LARISSA LORETTI/RJ–

Uma Trova Potiguar

Mensageiro do evangelho
o Ano Novo, eu suponho
seja o próprio ano velho
vestido de um novo sonho!
–HELIODORO MORAIS/RN–

Uma Trova de Ademar


Ao Trovador meu irmão,
mando um abraço apertado;
pra vocês, de coração...
Um Ano Novo “Arretado!”
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Que o Ano Novo nos dê,
à maneira que puder,
o Bem que eu quero a você
e o Bem que você me quer!
–ALCY RIBEIRO S. MAIOR/MG–

Simplesmente Poesia

Mais um Ano...
–DELCY CANALLES/RS–


Mais um ano que se vai,
carregando os sonhos meus,
e eu fico, só esperança,
buscando o sonho sonhado,
nessa busca que me cansa,
querendo encontrar-te, enfim,
pra vivermos , lado a lado,
eu e tu, tu junto a mim!
Mas ano, após ano, passa,
e este sonho, qual fumaça,
se desfaz na amplidão...
E eu continuo sozinha,
a teimar com a sorte minha,
a  viver  em  solidão!

Estrofe do Dia

Quero desejar ao povo
de todas as regiões,
que tenham nesse Ano Novo
muitas realizações;
e que os nossos corações
se superlotem de paz,
pra não ter guerra jamais
peça a Deus que nos ajude,
com paz, amor e saúde
que o resto... Vamos atrás.
–ADEMAR MACEDO/RN–

Soneto do Dia

Crença
 –DIVENEI BOSELI/SP–


No mar revolto a lua jorra o brilho
e a luz que tremeluz em cada barco
ajuda clarear o estreito trilho
que leva a multidão no espaço parco.

Vindos da praia, onde se fez rastilho,
fumaça e estrondos; descrevendo um arco,
uma após outra, em confuso estribilho,
profusas cores festejando o marco.

Eu levo antúrios, vou descalça e crente,
só com amigos, sem nenhum parente,
pular as bravas ondas dessas águas.

O mar se agita mais, a lua espreita,
e a voz da Janaína, desta feita,
promete um ano só de amor. Sem mágoas!
Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Lima Barreto (Os Enterros de Inhaúma)

Certamente há de ser impressão particular minha não encontrar no cemitério municipal de Inhaúma aquele ar de recolhimento, de resignada tristeza, de imponderável poesia do Além, que encontro nos outros. Acho-o feio, sem compunção com um ar momo de repartição pública; mas se o cemitério me parece assim, e não me interessa, os enterros que lá vão ter, todos eles, aguçam sempre a minha atenção quando os vejo passar, pobres ou não, a pé ou em coche-automóvel.

A pobreza da maioria dos habitantes dos subúrbios ainda mantém neles esse costume rural de levar a pé, carregados a braços, os mortos queridos.

É um sacrifício que redunda num penhor de amizade em uma homenagem das mais sinceras e piedosas que um vivo pode prestar a um morto.

Vejo-os passar e calculo que os condutores daquele viajante para tão longínquas paragens, já andaram alguns quilômetros e vão carregar o amigo morto, ainda durante cerca de uma légua. Em geral assisto a passagem desses cortejos fúnebres na rua José Bonifácio canto da Estrada Real. Pela manhã gosto de ler os jornais num botequim que há por lá. Vejo os órgãos, quando as manhãs estão límpidas, tintos com a sua tinta especial de um profundo azul-ferrete e vejo uma velha casa de fazenda que se ergue bem próximo, no alto de uma meia laranja, passam carros de bois, tropas de mulas com sacas de carvão- nas cangalhas, carros de bananas, pequenas manadas de bois, cujo campeiro cavalga atrás sempre com o pé direito embaralhado em panos.

Em certos instantes, suspendo mais demoradamente a leitura do jornal, e espreguiço o olhar por sobre o macio tapete verde do capinzal intérmino que se estende na minha frente.

Sonhos de vida roceira me vêm; suposições do que aquilo havia sido, ponho-me a fazer. Índios, canaviais, escravos, troncos, reis, rainhas, imperadores - tudo isso me acode à vista daquelas coisas mudas que em nada falam do passado.

De repente, tilinta um elétrico, buzina um- automóvel chega um caminhão carregado de caixas de garrafas de cerveja; então, todo o bucolismo do local se desfaz, a emoção das priscas eras em que os coches de Dom João VI transitavam por ali, esvai-se e ponho-me a ouvir o retinir de ferro malhado, uma fábrica que se constrói bem perto.

Vem porém o enterro de uma criança; e volto a sonhar.

São moças que carregam o caixão minúsculo; mas assim mesmo, pesa. Percebo-o bem, no esforço que fazem.

Vestem-se de branco e calçam sapatos de salto alto. Sopesando o esquife, pisando o mau calçamento da rua, é com dificuldade que cumprem a sua piedosa missão. E eu me lembro que ainda têm de andar tanto! Contudo, elas vão ficar livres de um suplício; é o do calçamento da rua do Senador José Bonifácio. É que vão entrar na Estrada Real; e, naquele trecho, a prefeitura só tem feito amontoar pedregulhos, mas tem deixado a vetusta via pública no estado de nudez virginal em que nasceu. Isto há anos que se verifica.

Logo que as portadoras do defunto pisam o barro unido do velho trilho, adivinho que elas sentem um grande alívio dos pés à cabeça. As fisionomias denunciam. Atrás, seguem outras moças que as auxiliarão bem depressa, na sua tocante missão de levar um mortal à sua última morada neste mundo; e, logo após, graves cavalheiros de preto, com o chapéu na mão, carregando palmas de flores naturais, algumas com aspecto silvestre, e baratas e humildes coroas artificiais fecham o cortejo.

Este calçamento da rua Senador José Bonifácio, que deve datar de uns cinqüenta anos é feito de pedacinhos de seixos mal ajustados e está cheio de depressões e elevações imprevistas. É mau para os defuntos; e até já fez um ressuscitar.

Conto-lhes. O enterro era feito em coche puxado por muares. Vinha das bandas do Engenho Novo, e tudo corria bem. O carro mortuário ia na frente, ao trote igual das bestas. Acompanhavam-no seis ou oito caleças, ou meias caleças, com os amigos do defunto. Na altura da estação de Todos os Santos, o cortejo deixa a rua Arquias Cordeiro e toma perpendicularmente, à direita, a de José Bonifácio. Coche e caleças põem-se logo a jogar como navios em alto-mar tempestuoso. Tudo dança dentro deles. O cocheiro do carro fúnebre mal se equilibra na boléia alta. Oscila da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, que nem um mastro de galera debaixo de tempestade braba. Subitamente, antes de chegar aos "Dois Irmãos", o coche cai num caldeirão, pende violentamente para um lado; o cocheiro é cuspido ao solo, as correias que prendem o caixão ao carro, partem-se, escorregando a jeito e vindo espatifar-se de encontro às pedras; e - oh! terrível surpresa! do interior do esquife, surge de pé - lépido, vivo, vivinho, o defunto que ia sendo levado ao cemitério a enterrar. Quando ele atinou e coordenou os fatos não pôde conter a sua indignação e soltou uma maldição: "Desgraçada municipalidade de minha terra que deixas este calçamento em tão mal estado! Eu que ia afinal descansar, devido ao teu relaxamento volto ao mundo, para ouvir as queixas da minha mulher por causa da carestia da vida, de que não tenho culpa alguma; e sofrer as impertinências do meu chefe Selrão, por causa das suas hemorróidas, pelas quais não me cabe responsabilidade qualquer! Ah! Prefeitura de uma figa, se tivesses uma só cabeça havias de ver as forças das minhas munhecas! Eu te esganava, maldita, que me trazes de novo à vida!"

A este fato, eu não assisti, nem ao menos morava naquelas paragens, quando aconteceu; mas pessoas dignas de toda a confiança me garantem a autenticidade dele. Porém, um outro muito interessante aconteceu com um enterro quando eu já morava por elas, e dele tive notícias frescas, logo após o sucedido, por pessoas que nele tomaram parte.

Tinha morrido o Felisberto Catarino, operário, lustrador e empalhador numa oficina de móveis de Cascadura. Ele morava no Engenho de Dentro, em casa própria, com razoável quintal, onde havia, além de alguns pés de laranjeiras, uma umbrosa mangueira, debaixo da qual, aos domingos, reunia colegas e amigos para bebericar e jogar a bisca.

Catarino gozava de muita estima, tanto na oficina como na vizinhança.

Como era de esperar, o seu enterro foi muito concorrido e feito a pé, com um denso acompanhamento. De onde ele morava, até ao cemitério de Inhaúma, era um bom pedaço; mas os seus amigos a nada quiseram atender: Resolveram levá-lo mesmo a pé. Lá fora, e no trajeto, por tudo que era botequim e taverna por que passavam, bebiam o seu trago. Quando o caminho se tornou mais deserto até os condutores do esquife deixavam-no na borda da estrada e iam à taverna "desalterar". Numa das últimas etapas do itinerário, os que carregavam, resolveram de mútuo acordo deixar o pesado fardo para os outros e encaminharam-se sub-repticiamente para a porta do cemitério. Tanto estes como os demais - é de toda a conveniência dizer - já estavam bem transtornados pelo álcool. Outro grupo concordou fazer o mesmo que tinham feito os carregadores dos despojos mortais de Catarino; um outro, idem; e, assim, todo o acompanhamento dividido em grupos, tomou o rumo do portão do campo-santo, deixando o caixão fúnebre com o cadáver de Catarino dentro abandonado à margem da estrada.

Na porta do cemitério, cada um esperava ver chegar o esquife pelas mãos de outros que não as deles; mas nada de chegar. Um, mais audaz, após algum tempo de espera, dirigindo-se a todos os companheiros, disse bem alto:

- Querem ver que perdemos o defunto?

- Como? perguntaram os outros, a uma voz.

- Ele não aprece e estamos todos aqui, refletiu o da iniciativa.

- É verdade, fez outro.

Alguém então aventou:

- Vamos procurá-lo. Não seria melhor?

E todos voltaram sobre os seus passos, para procurar aquela agulha em palheiro...

Tristes enterros de Inhaúma! Não fossem essas tintas pinturescas e pitorescas de que vos revestis de quando em quando de quanta reflexão acabrunhadora não havíeis de sugerir aos que vos vêem passar; e como não convenceríeis também a eles que a maior dor desta vida não é morrer...

Fonte:
Lima Barreto. Contos completos. Companhia das Letras.

António Botto (Egoísmo)

Chove. A velha está no seu esconderijo. Mas não está só; rodeiam-na suas três filhas que querem sair mesmo a chover. E a velha raposa, de um lado para o outro, trabalhadora, inquieta, vigiando as maldades das filhas, acabou por se cansar e sentou-se molengona a abrir a boca e a fechar os olhos.

     - Mãe, conta-nos uma história; mas não uma história moral; está a chover, e quando há chuva a moral não sai muito limpa...

     - Disparates, respondeu a mãe. Uma história sem moral é como uma capoeira sem galinhas. Vou, pois, contar uma história, mas é preciso que as meninas estejam com atenção:
Era uma vez uma nossa parenta que possuia a mania de colecionar só objetos brilhantes: pedaços de cristal, metais, botões, jóias, esmaltes, e em poucos meses a casa dela era um verdadeiro museu variado e valioso. E quando alguém lhe passava ao pé da porta, só de pálpebras cerradas poderia resistir a tanto brilho ali concentrado. A colecionadora mal comia. Alimentava-se a olhar para os diamantes brancos e azuis que eram os que mais distinguia na sua paixão pelos brilhos. Mas uma noite de Inverno choveu tanto, tanto, tanto que o mundo quase se desfazia alagado em tanta chuva. Uma noite, não enganei-me: foram três dias e três noites - fechada, sozinha, sem alimentos, e sem poder consegui-los...

     - Morreu de fome, já se vê, disse a filha mais novinha.

     - Não, respondeu a raposa. Pôs-se a gritar e ouviram-na.

Ao cabo de algum trabalho, lá conseguiram chegar ao famoso esconderijo e socorreram-na como foi possível: dois frangos por sete lascas de brilhantes, e outras trocas assim. Mas salvou-se, e era o importante.

     - É perto daqui, minha mãe?, perguntou a do meio.

     - Ainda que esteja perto, ainda que lhe toquemos com o dedo, tudo quanto não é nosso está na lua, entendeste?

Fonte:
Os Contos de Antonio Botto. RJ: Livraria Bertrand.

J. G. de Araújo Jorge (Trevos de Quatro Versos) 1

SOBRE A TROVA

Tudo é trova: a flor, a onda,
A nuvem que passa ao léu
E a lua, trova redonda
Que a noite canta no céu!

Ah, trova com quem me enleio...
- Tens um gingado qualquer
Que lembra esse bamboleio
Do corpo de uma mulher...

A todos prende e cativa,
E não se rende a qualquer...
- É pequena, mas esquiva...
... Não fosse a trova, mulher...

TROVAS

Sejam felizes ou não
Cantando instantes diversos,
As trovas do coração,
são trevos de quatro versos.

Rico eu sou, mesmo sem ouro
E da riqueza, dou provas,
- eis aqui o meu tesouro:
Minha sacola de trovas.

Tão simples, as trovas são
Cantigas com que a alma expande
Tudo o que há no coração
Do poeta - um menino Grande.

Meu terço feito de trovas
Que em versos fico a compor,
Com ele rezo, e dou provas
Do meu culto ao teu amor!

EU FAÇO VERSOS

 Eu faço versos assim
Como quem respira ou canta,
A poesia nasce em mim
Como do chão nasce a planta...

E como que por encanto
Minha dor se vai embora
Pois estas trovas que eu canto
São feitas... como quem chora...

De mãos dadas com as lembranças
Com o mar, com a noite, com a lua
Faço versos, como as crianças
Fazem ciranda na rua…

TUAS MÃOS...

Ternura de cinco pontas
Viva, estranha, inquieta flor...
Tuas mãos são duas contas
Do meu rosário de amor.

Delicados diademas
Trabalhadas obras-primas...
...Tuas mão sãos dois poemas
Rimando, em vermelhas rimas...

Ah, mãos tão frágeis, parecem
Pedir arrimo e guarida...
E entretanto, se quisessem
Guiariam minha vida…

GLÓRIA ?

Minha maior alegria
minha glória humilde e nua
é ver a minha poesia
fazer ciranda na rua...

 Por certo que me comovo,
nem glória existe maior :
ouvir um poeta o seu povo
dizer seus versos de cor !

A POESIA

Poesia, flor de mistério
que brota do coração
e abre as pétalas de etéreo
no céu da imaginação.

Vivo a vida cada dia,
vida comum, sem engodos,
por isto a minha poesia
reflete a vida de todos

A poesia que desejo
tiro de mim como aquela
cantiga do realejo
se alguém roda a manivela…

SOLIDÃO

Por certo a pior solidão
É aquela que a gente sente
Sem ninguém no coração...
No meio de muita gente...

Praias longe, em solidão
Fora de todas as rotas,
Tal como o meu coração
Só como o sonho... das gaivotas…

A VIDA

Gota d'água transparente
que brilha, cresce...e que cai!
Assim a vida da gente
que num instante se vai!

A Vida, - mistério vão
sombra agora, depois luz,
- estranho traço de união
ligando um berço... a uma cuz!

A Vida - uma onda que avança
e volta, vai-vem do mar...
Quando vai, quanta esperança!
Quanta amargura, ao voltar!

A Vida - visão fugaz,
praia chã, mar que alteia,
onda que faz e desfaz
os seus cabelos de areia...

A Vida - ansiosa escalada
sobre a paisagem do mundo
Tanto esforço para nada
se há sempre abismo no fundo!

Às vezes penso que a vida
que há tanta gente a querer
só existe, - indefinida -
pra gente poder morrer...

Ó pobre vida suicida!
Teu destino é uma ironia
se o que chamamos de vida
é um morrer de cada dia!

Numa amizade perdida,
num amor que se desgraça,
a morte desconta a vida
a cada dia que passa!

Há uma ironia, contida
nas contigências da sorte:
- quanto mais se vive a vida
mais se avança para a morte.

Vive a vida bem vivida
e ao mais, esquece e revela,
que a gente leva da vida
a vida que a gente leva…
Fonte:
J.G. de Araujo Jorge . Trevos de Quatro Versos". 1. ed. Livraria São José, 1964